A densidade e o lirismo de \" Ensaio sobre a Cegueira \"

May 24, 2017 | Autor: Vanessa Brandao | Categoria: Cinema, Literatura, Literatura e cinema, Intermidialidade
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A densidade e o lirismo de “Ensaio sobre a Cegueira” Artigo sobre a adaptação de romance de José Saramago para o cinema, por Fernando Meirelles, publicado na Revista Mundo Fiat (número 92, out/nov 2008) Denso, pesado, difícil. Assim boa parte da crítica literária classifica o texto de José Saramago. Assim, boa parte da crítica de cinema classifica também os filmes de Fernando Meirelles. O que dizer então do encontro destes dois trabalhos artísticos, na adaptação de Ensaio Sobre a Cegueira (romance de Saramago publicado em 1995) para o cinema? Por Vanessa Cardozo Brandão* Denso, sim. Reflexivo. Por vezes, duro. Mas também poético. Lírico. Doce. Parecem qualidades impossíveis de serem conciliadas, mas a delícia do texto de Saramago é exatamente a capacidade que tem de transitar entre uma difícil reflexão sobre a humanidade e uma poética envolvente. Quebrando a dureza do cenário grotesco trazido pela cegueira branca, o romance que consagrou o escritor português insere cenas de extrema leveza, no encontro de personagens que aos poucos se descobrem. Como seres humanos, complexos, imperfeitos. Seres que erram e acertam, oprimem e são oprimidos, sentem-se amedrontados, frágeis, mas ainda assim fortes e capazes de lutar pela vida. Nada de falso moralismo. Faça um teste: tente classificar os personagens, dizendo quem é do bem ou do mal. Difícil. Por isso mesmo é que este texto nos faz pensar. Aprendemos com Saramago que pouca coisa é preto no branco, o que nos faz questionar a cada instante nossa moral. Nem a cegueira é escura, nem o escuro é ruim. Os valores são invertidos pela cegueira do “mar de leite” que envolve as pessoas. Acima de tudo, os personagens são humanos. Fortes e frágeis, bons e maus, ao mesmo tempo. É aí, na estrutura ambígua de uma narrativa que alterna descrença na humanidade e crença no ser humano, a dureza da realidade e a leveza da poesia, que reside boa parte do brilho do texto de Saramago. É também esse o maior mérito do filme de Fernando Meirelles. Fernando Meirelles não seria o diretor reconhecido que é se não tivesse a capacidade de colocar questões de forma complexa. Sem estereótipos redutores, fechados. Meirelles sabe como envolver o espectador, revelando, no meio das cenas de uma sociedade em estado de suspensão de todos princípios de humanidade, pequenos flashes poéticos que alimentam a alma. No livro e no filme, pequenos momentos poéticos surgem como clareiras na noite, aparecem sem aviso na narrativa e são boas surpresas no caminho. Doces em meio a uma dieta miserável, prontos a serem saboreados.

Surpreendente como alguns recursos narrativos que definem o estilo do escritor José Saramago transformaram-se em um estilo fílmico que guarda a assinatura do diretor Fernando Meirelles. A intertextualidade, recorrente nos textos do autor português, aparece também em cenas filmadas cuidadosamente por Meirelles, em referências visuais que retomam pinturas importantes da história da arte. Influências como Brueguel, Rembrandt, entre outros, confessadas pelo próprio diretor no blog criado para compartilhar o processo de elaboração do filme (blogdeblindness.blogspot.com). Estas referências ajudaram a compor um cenário de grande impacto visual. Interessante como esta composição cênica forte, de imagens caracterizadas pelo excesso (compostas por amontoados de lixo, sujeira, entulho, fragmentos de coisas e de seres humanos), foi explorada ao máximo também no tratamento de luz. A saturação cria um efeito de luminosidade que provoca um incômodo inicial, logo superado para levar o espectador ao entendimento de uma estética do nãoconvencional. Nada de escuridão para tratar da cegueira: esta cegueira inunda com o branco os olhos dos contagiados, “como num lençol branco”. O que poderia indiciar leveza e lucidez acaba se revelando como caos, no contexto da história. A inversão de valores (não é a escuridão que constitui o mal, mas a luminosidade que cega), aliada ainda a uma escolha poética que privilegia o excesso (de luz, de objetos, de personagens e visões de mundo oferecidas por um narrador irônico que a todo tempo apresenta sua consciência de estar articulando um mundo ficcional), fez com que alguns renomados críticos literários chamassem a obra de José Saramago de “barroca”. Assumindo que podemos classificar uma obra complexa no rótulo do barroco, recontextualizado no cenário pós-moderno, podemos perceber esse mesmo “olhar barroco” sobre o mundo no filme de Fernando Meirelles. Uma perspectiva que mostra não apenas as cenas abertas, panorâmicas de espaços urbanos em degradação, mas por vezes se volta sobre o detalhe microscópico de um objeto perdido ou do movimento no detalhe do corpo do ator. A multiplicidade é outro elemento importante: são vários os pontos de vista que se alternam durante as duas horas de filme. São também variados os espaços cênicos, ou sets de filmagem: São Paulo, Guelph, Montevidéu. O excelente trabalho de desterritorialização realizado na produção do filme é fiel à narrativa de Saramago que, não apenas em Ensaio sobre a Cegueira, mas ainda em outros romances, cria narrativas que ultrapassam as fronteiras de Portugal e podem ser imaginadas em qualquer grande cidade do mundo: Brasil, Canadá, Uruguai, França, Estados Unidos, Japão. Essa multiplicidade espacial é reforçada pela multinacionalidade da produção (são três produtoras envolvidas neste filme) e até mesmo do elenco, com atores de diferentes países. Incorporando personagens que convivem na trama do filme nestes espaços transnacionais, o elenco ajuda a alimentar o sentimento de “humanidade” na história, independente das variações políticas, étnicas,

lingüísticas. Acrescente-se a esse delicado trabalho de direção a performance brilhante dos atores. Preservando a complexidade da personagem do romance, Juliane Moore incorpora com perfeição os conflitos da mulher do médico: heroína, assassina, mulher comum. Danny Glover seduz como o velho da venda preta. Embora a estrutura do filme se divida nas mesmas três partes do livro de Saramago, registra-se com pesar que a última parte tenha ganhado menos peso no filme. No livro, os diálogos mais ricos e humanos são reservados para este momento, em que o grupo dos sete cegos perambula pela cidade destruída. No filme, a segunda parte (a internação dos cegos em quarentena) fica mais forte, e é nela que a crítica social está mais pesada. Pena que não tenha havido mais tempo de explorar as delicadas relações entre os sete personagens centrais: mulher do médico, médico, primeiro cego, mulher do primeiro cego, menino estrábico, velho da venda preta e mulher dos óculos escuros. Algo se perde: fica apenas insinuado no filme o lindo amor que a cegueira branca traz, entre o velho da venda preta e a prostituta de óculos escuros. Enfim, como Meirelles bem sabe, filmar um livro é também uma leitura. Ganha-se um sentido, perdem-se outros. Mas outras importantes imagens do livro são preservadas, como a rica cena da igreja. Por tudo isto, o filme Blindness tem uma variedade de elementos interessantes que valem o ingresso do cinema (e até um replay – com tantas nuances, um filme assim merece ser visto e revisto). Ao assistir o filme, o espectador pode se deixar oprimir pelo caos dessa sociedade assolada pela cegueira branca. Assustar-se com o que o ser humano pode fazer para proteger a si mesmo, destruindo o outro. Mas há uma outra leitura que convive lado a lado com esta crítica social. Podemos ainda ver o que o ser humano pode fazer pelo outro. Como ele pode descobrir no outro a solidariedade. A compaixão. A amizade. O amor. Em meio às imagens pesadas de decadência, as pequenas cenas líricas que não devem ser esquecidas. Na verdade, a cegueira branca provoca não apenas um estado de profunda degradação moral, mas ainda abre espaço para a descoberta do que pode ser bom, apesar de toda a dureza. Do que pode ser belo, em meio ao caos: poesia. Por isso, não leve tão a sério se te disserem que o filme é pesado. Talvez, algumas pessoas não saibam ver a leveza (tão suave que é, neste filme). E saber ver além das aparências é tudo o que Ensaio Sobre a Cegueira quer provocar no espectador. Sim, há cenas de estupro. Mas há o renascer do desejo entre o médico e a mulher do médico. Há disputa pelo poder e desprezo pela vida. Mas também há o nascimento de um senso de comunidade e solidariedade entre um grupo de cegos. Há traição. Mas também há perdão e o surgimento de fortes amizades. Há sujeira e horror. Mas há a bela cena do banho de chuva. Há cães devorando homens. Mas há o “cão das lágrimas”, mais humano do que muitos homens, que conforta e faz companhia.

E há uma grande alegria: a maior parte das cenas importantes do livro foram preservadas no filme. Há uma fidelidade ao sentido original do romance de Saramago (talvez até excessiva: será que o narrador precisava estar presente em um filme que narra tão bem pelas imagens?). Preserva-se o fundamental. O conflito de uma narrativa que, ao mesmo tempo, critica a sociedade que apaga o sentido de humanidade, mas elogia a capacidade do ser humano (como indivíduo) para o belo. Densidade e leveza podem viver lado a lado. Nas páginas de um livro. Na tela do cinema. Dentro de cada um de nós. * Vanessa Cardozo Brandão Publicitária, Mestre em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas, Doutoranda em Estudos Literários pela Universidade Federal Fluminense (UFF)

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