A denúncia como forma de falar do social

May 31, 2017 | Autor: Rogério Luid Modesto | Categoria: Discourse Analysis, Análise do Discurso
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Anais do III Seminário Internacional

Organização Eduardo Lopes Piris

Isabel Geralda Anais de Argumentação de Oliveira Estudos Cristina do Santos Michelan IIILima Seminário sobre de Azevedo (III Discurso SEDiAr) Internacional e

Organização Eduardo Lopes Piris Isabel Cristina Michelan de Azevedo Geralda de Oliveira Santos Lima

Anais do III Seminário Internacional de Estudos sobre Discurso e Argumentação (III SEDiAr)

Ilhéus Editus – Editora da Universidade Estadual de Santa Cruz 2016

Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário Murillo Macedo

S471a

Seminário Internacional de Estudos sobre Discurso e Argumentação (3. : 2016 : São Cristóvão, SE). Anais do III Seminário Internacional de Estudos Sobre Discurso e Argumentação (III SEDiAr) / Organização : Eduardo Lopes Piris, Isabel Cristina Michelan de Azevedo, Geralda de Oliveira Santos Lima . – Ilhéus: Editus- Editora da Universidade Estadual de Santa Cruz, 2016. 4.841 p. Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-7455-409-9 1. Análise do discurso – Congressos. 2. Retórica – Congressos. I. Piris, Eduardo. II. Azevedo, Isabel. III. Lima, Geralda. IV. Título. CDD : 418

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A DENÚNCIA COMO FORMA DE FALAR DO SOCIAL Rogério Modesto

Anais do III Seminário Internacional de Estudos sobre Discurso e Argumentação (SEDiAr)

Universidade Estadual de Campinas

Resumo: O objetivo do trabalho é compreender o funcionamento discursivo da denúncia na textualização do social. Para tanto, tomo como material de análise o documentário Menino Joel. Busco entender como a denúncia textualiza o social a partir dessa materialidade significante tomada como instrumento de resistência. Interessa-me pensar como essa mídia é formulada como instrumento político de luta que focaliza o social a partir da denúncia. Sendo, então, o documentário entendido como uma mídia importante para “desvelar” e “revelar” sentidos que não circulam nas grandes mídias, a partir da Análise de discurso materialista, quero tomar esse movimento de sentido sobre esse objeto midiático pensando-o como uma forma de/da denúncia, uma discursividade da denúncia. Palavras-chave: Denúncia. Mídia. Documentário. Resistência.

Abstract: This paper aims to understand the discursive functioning of the denouncement in the social textualization. For this purpose, I take as analytical material the documentary Menino Joel. My concern is to understand how the denouncement thematizes the social through a significant materiality taken as an instrument of resistance. It is interesting to think how that media is formulated as a political instrument of fight that focus on the social through denouncement. Thus, the documentary is understood as an important media to reveal and show senses which do not circulate in the Great Media. From the Materialistic Discourse Analysis, I would like to take the meaning movement about this mediatic object, thinking of it as a form of (the) denouncement – a denouncement discursivity. Keywords: Denouncement. Media. Documentary. Resistance.

INTRODUÇÃO

No dia 22 de novembro de 2010, Joel da Conceição Castro, dez anos, foi morto por uma bala perdida quando se preparava para dormir em sua casa no Nordeste de Amaralina, bairro da periferia de Salvador, capital da Bahia. Segundo o laudo da perícia técnica, a bala que matou Joel saiu da arma de um policial militar que foi afastado do serviço de rua e hoje cumpre trabalho administrativo interno na PM. Cinco anos depois, o caso ainda não foi julgado.

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Trágicos acontecimentos como esses, tal como apontoa o relatório de 2015 da Anistia Internacional do Brasil, têm sido cada vez mais recorrentes. Mas, em se tratando do caso de Joel, um ponto chama atenção: Joel era um “garoto propaganda” do Governo da Bahia. Ele promovia a capoeira em uma

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peça publicitária da Bahiatursa, órgão estadual responsável pela promoção do turismo, que circulava no Brasil e no exterior. Em 2012, um documentário recontando este acontecimento veio à público. Menino Joel, cuja direção é de Max Gaggino, embora apresente tanto a visão dos familiares de Joel quanto a dos acusados e de seus defensores, tem uma direção argumentativa muito clara: problematizar e denunciar a impunidade em casos como os da morte de Joel. Em agosto de 2013, a Polícia Militar impediu que o documentário fosse exibido pela terceira vez na comunidade do bairro de Amaralina. A alegação dos policias, conforme relatada pelos organizadores responsáveis pela exibição do documentário, seria de que o documentário em questão incitava a população contra a corporação policial e, tendo em vista uma operação em preparação à Copa do Mundo de 2014, o filme não deveria ser exibido. Esse gesto de censura traz à tona o imaginário do papel das mídias, em especial os documentários, em nossa formação social. Se, por um lado, a publicidade em torno do documentário estabelecia-se com a promoção de um cartaz que estampava os dizeres “Está chegando a hora de saber a verdade”, por outro lado, o impedimento da exibição do filme alega o perigo dessa verdade na incitação da população contra a polícia. De um lado, assume-se que produzir um documentário é por em circulação sentidos (fatos) que estavam ocultos e precisam circular (precisam ser desvelados, revelados); de outro lado, assume-se que essa mídia tem um poder perigoso que deve ser controlado. Movimentos convergentes e divergentes que legitimam o documentário como instrumento de resistência, um instrumento para que falas que em geral habitam o espaço do silenciamento, possam circular. Ao tomar esse documentário como um narrativa do social, meu objetivo nessa comunicação é compreender o funcionamento discursivo da denúncia nessa materialidade significante. Tomo como pressuposto a teoria materialista

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do discurso e pergunto-me (i) como a denúncia funciona discursivamente e se materializa no documentário, (ii) quais efeitos de sentidos de denúncia estão postos em circulação a partir dessa materialidade e (iii) como eles se relacionam com a resistência. Interessa-me, desse modo, trilhar um duplo

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caminho de questionamento: o primeiro diz respeito à instituição do documentário como uma mídia a ser tomada como instrumento de resistência ao já-posto, espaço de circulação de uma denúncia que é em si mesma o acontecimento discursivo de sentidos que não podem circular; o segundo diz respeito ao modo como essa denúncia funciona no documentário inaugurando uma discursividade, uma (outra) forma de (fazer) denúncia, uma discursividade atravessada ou que atravessa outras.

1. DOCUMENTÁRIO: DOCUMENTAR OU (D)ENUNCIAR?

O crítico e teórico de cinema, Jean-Louis Comolli (2008), ratifica a ideia, amplamente posta mas longe de ser consensual, de que o documentário é como um espaço próprio para a circulação de sentidos não dominantes. O teórico trata das grandes mídias como “a serviço unicamente das lógicas de mercado” (COMOLLI, 2008, p. 27) e propõe que o cinema-documentário não cedeu a essa lógica, mas, ao contrário, permanece como possibilidade de resistência. O autor considera, então, que “há uma implicação política – direta ou indireta – na escolha dos meios e das modalidades de expressão” (COMOLLI, 2008, p. 27). A relação entre o fazer documentário e a implicação política é patente na perspectiva de Comolli. Para ele, tal fazer coloca em questão a importância do “primado do real”. Desse modo, “diferentemente do jornalismo, o documentário se realiza após o acontecimento, mas diferentemente do espetáculo, é-lhe proibido ‘reconstruir’ o que não filmou” (COMOLLI, 2008, p. 29). Ainda, na proposta teórica do autor, a dicotomia documentário-ficção somente se sustenta enquanto preconceito. E essa dicotomia tem a ver com o sujeitoespectador.

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O espectador de uma representação interpretada por atores é levado a crer que a unidade da cena, isto é, do “fato”, é a junção de corpo, texto e narrativa. Em outra direção, o espectador do documentário não precisa ser levado a dar unidade e coerência a uma cena (um “fato”), já que, pelas “regras

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do jogo”, sabe-se que “aqueles que ali estão, ali estão mesmo, são eles próprios, e não ‘representados’ por atores profissionais” (COMOLLI, 2008, p. 29). Tal fato, porém, não pode ser tomado como elemento de distinção entre o documentário e a ficção. Comolli afirma, nesse sentido, que os espectadores de documentários estão sob o invólucro de uma inocência ou ingenuidade que os fazem como que virgens de qualquer dimensão espetacular, virgens do fato de que o espetáculo está por toda parte. E tal invólucro significaria a “ilusão da não-ilusão” (COMOLLI, 2008, p. 29). Ao afirmar que a espetacularização é um sintoma da sociedade contemporânea, o autor aproxima e distingue documentário e ficção: por um lado, ambos estão submerso na cultura do espetáculo, fato que os remete a uma nunca apreensão do real; por outro lado, se a ficção é declaradamente ficção, o documentário silencia este seu aspecto, dando a si o poder de fazer ver uma verdade, pois os corpos ali filmados são garantidos como verdadeiros. De uma perspectiva propriamente discursiva, Eni Orlandi se volta para o documentário, referindo-se a ele como objeto de arte. Ela o considera um “objeto memorial” (ORLANDI, 2012, p. 55) na medida em que ele se põe na relação entre a memória e o acontecimento. A autora chama atenção para o fato de que, embora haja, na palavra documentário a expressão documentar, discursivamente é mais produtivo compreender um documentário não como documento, mas como acontecimento discursivo, um trabalho da memória e das interpretações (cf. ORLANDI, 2012, p. 59). Esse posicionamento teórico que toma o documentário enquanto acontecimento está sustentado no modo discursivo de compreendermos a relação do simbólico com o real. Michel Pêcheux nos diz “o real é o impossível” (PÊCHEUX, 2006, p. 29), para poder dizer que “não descobrimos o real, pois, o real: a gente se depara com ele, dá de encontro com ele, o encontra” (PÊCHEUX, 2006, p. 29). Daí porque um documentário, discursivamente, não

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pode ser tomado como mera representação (documentação) de um “fato”. Orlandi propõe:

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A memória discursiva, o interdiscurso, como não cansamos de repetir, é irrepresentável. E o documentário, quando recorta, sem saber, essa memória em algum ponto, produzindo um acontecimento, não “representa”, produz um efeito, inserindo por seu gesto a memória em uma atualidade. (ORLANDI, 2012, p. 57).

Da consideração da autora, podemos dizer que o documentário intervém no real do sentido enquanto gesto de interpretação. Da memória discursiva, interdiscurso entendido como o sempre já-dito, espaço em que os dizeres estão de todo modo de relação (embate, dissenso, consenso, identificação etc), o documentário recorta um objeto simbólico, um evento sobre o qual os sentidos estão em disputa, produzindo este objeto em um acontecimento frente a

uma

atualidade. Nesse

gesto, o

documentário, mexendo

com

o

esquecimento, produz um “efeito de memória” necessário para se dizer “documentário”. Ao fazer isso, nos diz Orlandi, o documentário torna-se “acontecimento que fala de acontecimento” (ORLANDI, 2012, p. 58). Diante desse entendimento discursivo sobre o documentário, proponho perguntar: como um acontecimento discursivo é construído no documentário de modo a tomar corpo e funcionar como denúncia? Em outras palavras: como um recorte na memória discursiva é operado de modo a saturar e estabilizar sentidos, tomar corpo de verdade, funcionar discursivamente como denúncia e produzir um efeito de resistência?

2. A DENÚNCIA E SUAS FORMAS

Uma questão importante para a tese da qual este gesto analítico faz parte é pensar a denúncia como uma discursividade. Seguindo, então, o entendimento de Pêcheux que considera uma discursividade como “a inscrição de efeitos linguísticos materiais na história” (PÊCHEUX, 1982, p. 57 apud ZOPPI-FONTANA, 2006, p. 97), posso compreender a denúncia em como determinadas construções/formulações têm efeitos de sentido produzidos no batimento entre o equívoco da língua e a contradição da história. A constituição

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de uma discursividade, nesse sentido, significa o modo como as condições de produção estão discursivizadas na espessura material de um objeto significante. Pensar a denúncia como discursividade permite-me pensa-la fora do

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bojo absoluto do discurso jurídico que a categoriza como instituto do Direito Penal, uma formalidade processual. Não significa, no entanto, “desjuridicializar” a denúncia, isto é, retirar seu caráter jurídico, mas o de pensar esse papel nas relações cotidianas em uma (nossa) formação social capitalista respaldada por um Estado-de-Direito que produz, por sua vez, sujeitos-de-direito. Bernard Edelman (1976, p. 16) pontua a dupla face do direito que busca “tornar eficaz as relações de produção”, refletindo e legitimando “as ideias que os homens fazem de suas relações sociais”. Mostra ainda, de sua segura perspectiva marxista, que as categorias jurídicas dizem, “sem dizer”, a realidade das relações das quais são expressão. Uma construção tal do sujeito-de-direito que experimenta o direito tanto pela sua formalidade jurídica quanto pela própria certeza que o faz dizer “eu sou”, “eu posso”, “eu tenho” como se cada um desses enunciados fossem meras constatações do “real” e não construções possibilitadas pela ideologia jurídica. Pensar então a denúncia como uma discursividade abre espaço para pensar as formas da denúncia. Pontos de sua constituição e formulação que extrapolam o domínio do jurídico. Tanto porque a ordem do social, sendo ela mesma constituída pela diferença, impõe à discursividade da denúncia formas outras de acontecimento; quanto porque, relacionado a isso, o próprio jurídico assume formas implícitas no domínio do social, num processo denominado juridismo (LAGAZZI, 1988). De um lado, o espaço do social estabelece relações em que a denúncia é textualizada no batimento entre o bem e o mal, o certo e o errado, o bem feito e o mal feito. Relações sociais que, sob diferentes designações que envolvem a denúncia (o “vou contar...”, o fuxico, o fuxiqueiro, o X9, o cagoete, o dedoduro, o delator, a testemunha, o informante etc.), dão existência histórica à práticas (d)enunciativas mais ou menos aceitas, assimiladas ou mesmo denegadas em nossa formação social.

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Do outro lado, mas de modo algum desligado do que disse acima, O juridismo marcado as palavras, formulação de um dos trabalhos de Suzy Lagazzi (1988), permite-me pensar na denúncia marcando as palavras. Processo de não restrição da denúncia no campo do jurídico, mas de expansão

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da denúncia por seu funcionamento aberto no interdiscurso, na memória do/no cotidiano. Formas da denúncia. Em seu trabalho, Lagazzi reflete sobre a passagem do jurídico para o juridismo, passagem que se dá de maneira implícita. A sustentação dessa passagem é a própria organização do social. Se as leis não aparecem explicitas regulando o curso das relações sociais; regras e padrões de conduta, por seu turno, dão aos sujeitos os procedimentos a serem seguidos nessas interações. Em outras palavras, embora o jurídico não se marque explicitamente nas relações, uma comunidade funciona com base em regras, costumes, convenções as quais reescrevem (o funcionamento d)a lei, separando o apropriado do não apropriado, o permitido do não permitido. No juridismo, a lei, enquanto forma jurídica explícita do Direito, é, num processo implícito, reescrita, redita nos usos, nos costumes, nas regras, no senso comum que produz sentido para as/nas relações sociais. E, como um processo discursivo que é, o juridismo deixa suas marcas: o juridismo marcando as palavras – um funcionamento no cotidiano das relações. Ao buscar compreender o funcionamento discursivo da denúncia, tomo as formulações de Lagazzi como ponto de partida justamente porque pensar as formas da denúncia, de maneira ampla, permite-me traçar um caminho de reflexão que leve em conta a diferença no processo de constituição discursivo. Ao mesmo tempo em que a denúncia constitui-se como traçado da lei (jurídico), ela também aparece no modo como as regras e costumes edificam as relações sociais (juridismo) sob as mais variadas formas. Formas da denúncia que, na sua constituição, jogam com o explícito e o implícito, o formal e o informal, as formas matérias de suas corporificações etc. Formas diversas da denúncia que ora apresentam-se explícita, como num protesto de rua, por exemplo, ora mais ou menos implícita, na sutileza estética de uma crítica social artística, por exemplo.

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Formas da denúncia porque posso considerar o funcionamento explícito formal da palavra denúncia e seu significado no pensamento político e do direito; ou mesmo a dureza da formulação você matou meu filho 1 que explicitamente desestabiliza as relações de poder, denuncia a rudeza do ato

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em questão não na instância jurídica formal do Direito que a acolheria. Uma formulação forte produzida num contexto hierárquico regido por regras implícitas que não a permitiria, embora a emoção e a dor a fizessem emergir. Formas da denúncia porque a denúncia aparece no cotidiano das relações: no Direito, na política, na forma imperativa Denuncie! tão frequente nas campanhas publicitárias e políticas públicas, na formulação que textualiza uma opinião ou uma crença, uma evidência; porque ela aparece onde não deveria aparecer, estando lá não necessariamente na forma habitual da confrontação em que o denunciante atribui a responsabilidade/a culpa a um terceiro, ou estando lá, de forma brutal, mesmo quando as relações sugeririam entendimento.

3. MENINO JOEL: UMA FORMA DE (D)ENUNCIAR

Por que pensar o documentário Menino Joel com um gesto de denúncia? Duas explicações: do ponto de vista das condições de produções que impuseram um meio para que a história de Joel não se tornasse apenas mais uma história de um jovem, negro, morador de uma periferia morto pela polícia, o documentário propõe-se uma arma contra impunidade. Um gesto de resistência. Um recorte na memória que constrói como acontecimento discursivo um evento que deve ser visto como absurdo, embora muitas vezes esteja no rol do corriqueiro. Uma mídia específica, o documentário, tida forte o bastante para fazer circular uma verdade, tal como a publicidade na sua página do Facebook anuncia: “Está chegando a hora de saber a verdade.”

                                                                                                                1

Essa formulação dá título ao relatório da Anistia Internacional do Brasil sobre os homicídios cometidos pela Polícia Militar do Rio de Janeiro. Conforme a Anistia Internacional, trata-se da reação da mãe de Eduardo de Jesus, de 10 anos, morto no Complexo do Alemão em abril de

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Do ponto de vista do posicionamento discursivo que adoto em torno da denúncia, quando se abre para pensar a denúncia como uma discursividade que atravessa outras, reclamando para si certas materialidades significantes que se cruzam (corporeidade, vocalidade, sonoridade etc.), é possível

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compreender o potencial discursivo de uma narrativa que não é tão somente a “documentação” de testemunhos e depoimentos. É trazer para outro lugar o mesmo performativo (falar contra algo/alguém em virtude desse algo/alguém ter feito algo que fere algum princípio moral ou do direito) que fora do campo do jurídico é esvaziado de legitimidade e dito apenas acusação2. Como pude trazer mais acima, o cartaz de divulgação do documentário estampa, além do rosto do menino Joel, uma frase que traz a verdade como ponto central da produção. Saber a verdade. Está chegando a hora de saber a verdade. Afirmação inequívoca que chama para a forma material (cf. ORLANDI, 1994) em questão para um compromisso, um dever, uma missão. A reflexão em torno da noção de forma material é importante nesse ponto, pois é aqui que a ligação entre a mídia documentário e os seus sentidos de denúncia, tal como questionei no início deste texto, é feita. Ao trabalharmos a noção de forma material, lembramos de que o discurso não é a divisão abstrata forma e conteúdo, mas uma forma material histórica, equívoca e opaca, em que o conteúdo se inscreve. Não há divisão entre forma e conteúdo, mas sim inscrição de um no outro. No caso em questão, não há verdade sem documentário. Não há denúncia sem documentário. Tal é a força da compreensão social dos modos de significar determinados sentidos e não outros que presumir um discurso verdadeiro (com o conteúdo verdadeiro, a mensagem verdadeira) é presumir de imediato um formato midiático que não se deturpe, que não tenha outros compromissos. O documentário não é, assim, apenas um canal da verdade, mas a forma de dizer a verdade. Se os efeitos de sentido que trago a partir da publicidade em torno de Menino Joel e a própria produção do documentário estão de fato em                                                                                                                 2

Payer (2006) oferece mais fontes a respeito da denúncia enquanto um objeto de linguagem ao passo que Lemny (2012) apresenta uma exaustiva diferenciação entre denúncia, acusação e demais termos correlatos a partir de dicionários franceses pós Revolução Francesa.  

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circulação, temos, então, um porquê da relação entre documentário e denúncia na textualização do social. Pondo em paráfrases saber a verdade a partir das condições de produção de Menino Joel, posso pensar numa cadeia significante tal como saber a verdade/ conhecer a verdade/ revelar a verdade/ dizer a

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verdade/ enunciar a verdade/ enunciar/ denunciar. Uma forma da denúncia. Uma discursividade da denúncia que atravessa essa materialidade significante não só em sua ideia de verdade mas especialmente em sua constituição e formulação. Nesse

ponto,

a

denúncia,

sendo

aqui

entendida

como

essa

discursividade que ganha forma no discurso cotidiano de modos diversos, deixa suas marcas na ideia de resistência e revelação que o documentário apresenta, mas sobretudo nas diferentes entradas que mobilizam a morte de Joel. Formas da denúncia que se mostram na reconstituição do fato através do passeio da câmera pela comunidade de Joel ou mesmo na ênfase em mostrar as possibilidade de socorro negadas ao garoto. Por uma questão de espaço, opto aqui por tecer uma pequena consideração em torno do que considero uma forma de denúncia que imbrica língua e voz e que, por isso, se apresenta para mim como uma forma de materialização

da

denúncia

extremamente

interessante.

Durante

o

documentário Menino Joel, muitas são os depoimentos que falam do garoto, mas sem dúvida são os fragmentos em que a sua mãe, Miriam da Conceição Castro, toma a palavra os mais emocionalmente fortes e marcantes. Entendendo que o trabalho de juntar os depoimentos, colá-los, dando-os sentido e unidade de texto foi um trabalho do diretor do documentário, pude mais ou menos separar as intervenções de Miriam e dividi-las em duas partes. Uma parte um tanto mais narrativa em que ela realmente narra o que aconteceu no dia da morte de seu filho; e uma parte mais denunciativa em que ela traz à baila elementos importantes para instituir sua denúncia. Ainda que de modo preliminar, arrisco dizer que a diferença entre essas partes está realmente no trabalho inconsciente da língua (e do corpo) em dar corpo à denúncia. Na primeira parte, Miriam é mais inferencial em sua fala. Ela conta um história e, pressupondo que todos compartilhem os personagens e

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desfecho, Miriam não nomeia os que seriam responsáveis pela morte de Joel e também não nomeia a morte como crime ou assassinato. Em vários momentos desta primeira parte que chamo mais narrativa, Miriam utiliza construções como “Alguma coisa muito grave aconteceu”, “Joel faleceu”, “Joel caiu

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tombado”. Formulações que incomodam, que causam certa estranheza, porque sabemos que Joel não simplesmente faleceu. Mas Miriam mais do que qualquer outro sabe disso. Na segunda parte de seu depoimento, depois de já ter dito como encontrou seu filho no dia de sua morte, Miriam é contundente em nomear os policiais envolvidos na morte de Joel. Formulações como “Eles omitiram socorro” e “Eraldo participa de grupo de extermínio” em que o sujeito está implicado a uma ação são recorrentes. Associado a isso, a voz de Miriam muda. Seu tom de voz aumenta como também sua força de gesticulação. Uma denúncia que se materializa em corpo, em voz, numa língua que tem sujeito, verbo e ação. Uma denúncia as vezes quase feita aos gritos. O grito como materialidade para denúncia. Formas da denúncia que textualizam um social marcado pela dor, mas não mais em silêncio.

REFERÊNCIAS COMOLLI, J. Ver e poder: a inocência perdida – cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. EDELMAN, B. O direito captado pela fotografia. Coimbra: Centelha, 1976. LAGAZZI, S. O desafio de dizer não. Campinas: Pontes, 1988. LEMNY, S. Essais de définition : délation, dénonciation, délateur, dénonciateur dans les dictionnaires français jusqu’à la révolution. In : Annales Historiques de la Révolution Française, n 2, 2012, p. 3-31. PAYER, M. Escrever, (d)enunciar a verdade, sugerir sentidos. In: MARIANI, B. (Org.). A escrita e os escritos: reflexões em análise do discurso e em psicanálise. São Carlos, 2006. p. 59-70. PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes Editores, 2006. ORLANDI, E. Discurso, imaginário social e conhecimento. In: Revista Em Aberto, n 61, Brasília, jan/mar, 1994, p. 52-59. ORLANDI, E. Discurso em análise: sujeito, sentido, ideologia. Campinas: Pontes Editores, 2012. ZOPPI-FONTONA, M. Arquivo jurídico e exterioridade: a construção do corpus discursivo e sua descrição/interpretação. In: GUIMARÃES, E. et al. Sentido e memória. Campinas: Pontes, 2006, p. 93-116.

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