A descentralização no Carnaval Multicultural do Recife: festa, política e cidade

June 6, 2017 | Autor: R. Moura de Andrade | Categoria: Carnival, Antropologia Urbana, CARNAVAL, Políticas Culturais, Carnaval, Festa, Espaço Público
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  A DESCENTRALIZAÇÃO NO CARNAVAL MULTICULTURAL DO RECIFE: FESTA, POLÍTICA E CIDADE

Rafael Moura de Andrade1

RESUMO: Apesar da relevância inquestionável da teoria elaborada por Roberto DaMatta (1990) sobre a festa, tendo sido alvo de uma ampla política pública que promoveu uma profunda mudança no modelo de organização da festa, o carnaval do Recife precisa ser encarado a partir de uma outra perspectiva. É fundamental compreender a festa em seu caráter ordinário, como se o rito fosse não de inversão de status, mas de intensificação do tempo do trabalho e da ordem. Para tanto, este artigo propõe auxiliar na compreensão do que foi a política multicultural implementada no carnaval do Recife especialmente em sua relação com o espaço urbano e com as dinâmicas políticas dos bairros periféricos.

PALAVRAS-CHAVE: Carnaval Multicultural, Cidade, Política cultural, Recife..

É de fazer chorar! Quando o dia amanhece e obriga o frevo a acabar! Oh! quarta-feira ingrata, chega tão depressa só pra contrariar. Quem é de fato um bom pernambucano espera um ano e se mete na brincadeira. Esquece tudo quando cai no frevo, e no melhor da festa chega a quarta-feira. (É de fazer chorar, Luiz Bandeira) Em uma cidade como o Recife, onde o carnaval é uma festa mais que sagrada, ainda que absolutamente profana, o rito momesco de passagem teima em repetir-se ano após ano como se nada mais importasse. Fato social total que é, encerra em si mesmo todas as dimensões da vida local e coloca para o observador mais atento um sem número de questões que podem ser encaradas por outro sem número de perspectivas interpretativas. Longe de poder encerrar num só artigo todas elas – e ainda que fosse este um grande livro, suspeito que não seria suficiente para tanto –, proponho aqui observar a festa em sua relação com a capital pernambucana, abordando a política da festa e a construção ritual de um imaginário urbano a partir de uma abordagem situada na interface entre a história e a antropologia. Diz-se por aqui que o ano só começa depois do carnaval. Há um sentido nisso. Antes de encerrado, toda a cidade está voltada para as festas pré-carnavalescas, que chegam a                                                                                                                         1

Jornalista, especialista em Mediação Cultural e mestrando em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Bolsista CNPq. E-mail: [email protected]. 1  

anteceder o carnaval em alguns meses, para os preparativos da folia em si, para os desfiles dos blocos, para os ensaios de maracatu, de caboclinho, das orquestras de frevo. Tudo já é carnaval mesmo antes do Sábado de Zé Pereira – ou Sábado do Galo, como também é conhecido pelas bandas de cá. A importância que a folia desempenha para a cultura local é incomensurável, tendo a cidade se desenvolvido enquanto tal na medida em que se desenvolvia também o carnaval e sua principal expressão artística, o frevo. Apesar da relação ser antiga2, é possível destacar a virada do século XX para o XXI como sendo o momento crucial para uma recriação do imaginário da cidade a partir do ritual carnavalesco. E ainda que a festa seja invariavelmente compreendida como um fenômeno espontâneo e democrático – ou, nas palavras de Roberto DaMatta (1990), liminar – faz-se mister destacar a presença do Estado, através da Prefeitura da Cidade do Recife, na organização da folia a partir da política que ficou conhecida como Multicultural. Numa breve explicação, a política do Multicultural se dividia em duas partes: a) o Programa Multicultural, que contava com cursos de formação e capacitação, fomento a produtores culturais dos bairros, articulação de lideranças em torno da temática da cultura popular, entre outras ações; e b) o Carnaval Multicultural do Recife, CMR, um modelo de organização da festa que seria implantado de maneira tão intensa a ponto de criar uma nova tradição festiva na cidade do Recife. Como não poderia deixar de ser, ao utilizar o termo multicultural para designar uma política pública, tornou-se impossível dissociar tal marca das políticas e teorias multiculturais surgidas nos Estados Unidos da América do pós-Segunda Guerra Mundial. Conforme propõem os pesquisadores Brunno Gaião e André Luiz Leão (2013), se tratarmos o carnaval local a partir das tensões existentes entre os campos discursivos identificados por eles, tornase possível observar o conflito existente entre os campos da produção erudita (BOURDIEU, 2011) e o da gestão pública no tocante à ideia de multiculturalismo. Enquanto o primeiro trata o tema a partir de uma perspectiva teórica advinda da sociologia e da filosofia política, o segundo está interessado em compreender a categoria como uma marca de gestão capaz de designar meramente um modelo de organização da festa. A tensão decorrente da aproximação entre os campos da academia e da gestão se dá na medida em que pesquisadores, professores e pós-graduandos começam a trabalhar para a Secretaria de Cultura e a Fundação de Cultura da Cidade do Recife. Neste momento, o debate sobre o multiculturalismo, que no campo teórico tem suas limitações conforme demonstrei em artigo anterior (ANDRADE, 2014), passa a ser                                                                                                                         2

Data do final do século XIX a re-ocupação do espaço público pelos foliões, seguindo um modelo adotado na Europa, notadamente na França (ARAÚJO, 1997). 2  

 

compreendido de maneira mais ampla, adotando a compreensão nativa tal qual elaborada pelos gestores responsáveis pela implementação da política. A academia passa, portanto, a se aproximar cada vez mais da gestão. É objetivo deste artigo, portanto, apresentar a política multicultural para o carnaval do Recife e levantar uma reflexão acerca da aproximação entre a política cultural para a festa e as políticas para a cidade. As informações aqui apresentadas foram coletadas em conversas com alguns interlocutores que fizeram parte da criação e implementação do Carnaval Multicultural do Recife. O CARNAVAL MULTICULTURAL DO RECIFE Considerado uma festa espontânea e democrática, o Carnaval é estudado frequentemente a partir da perspectiva inaugurada pelo antropólogo Roberto DaMatta (1984; 1990), que trabalhou a temática tendo como base a teoria ritual de Victor Turner (2013). Segundo o autor, o carnaval seria um momento de transição, de liminaridade, entre o tempo da ordem e o tempo extraordinário. Acabada a festa, voltaríamos à vida cotidiana regida pelo trabalho. O problema é que, ao ser confrontada com a realidade do carnaval do Recife, sobretudo a partir do início dos anos 2000, vê-se que a teoria torna-se insuficiente para uma interpretação ampla da festa. Apesar de ainda ser possível vislumbrar a folia a partir da perspectiva do folião individual proposta por DaMatta (1990), tendo sido alvo de uma ampla política pública que promoveu uma profunda mudança no modelo de organização da festa, o carnaval do Recife precisa ser encarado com um outro olhar. É fundamental compreender a festa em seu caráter ordinário, como se o rito fosse não de inversão de status, mas de intensificação do tempo do trabalho e da ordem. Para tanto, é de fundamental importância compreender o que foi a política multicultural implementada no carnaval do Recife. Segundo interlocutores ligados à gestão cultural do Recife entre 2001 e 2008 – período em que a Prefeitura local foi comandada por João Paulo, do Partido dos Trabalhadores – inicialmente o principal projeto da recém-criada Secretaria de Cultura – já sob o comando de João Roberto Peixe – era o chamado Programa Multicultural. Com uma vasta gama de ações que iam desde oficinas, workshops e cursos de formação até a realização de eventos e articulação de lideranças, o Multicultural foi o responsável por iniciar um processo que viria a ser uma das principais marcas do carnaval organizado pela instituição. A 3  

 

descentralização, que está também no cerne da compreensão de multiculturalismo conforme aplicada ao carnaval, era um dos pontos fortes do programa multicultural e serviu, entre outras coisas, para aumentar as formas de participação da sociedade civil na política municipal. Ao aproximar as ações da Prefeitura da população das periferias, a instituição visava a alcançar uma maior paridade de participação social. Desta forma, ao aplicar as diretrizes do Programa Multicultural na organização da festa carnavalesca, a PCR reestruturou o modelo de participação social na festa. O que anteriormente era compreendido como uma festa espontânea e centralizada, passou a ser uma festa organizada/controlada pelo poder público e descentralizada. Durante os anos de 2001 e 2008, o Carnaval Multicultural do Recife foi organizado obedecendo basicamente a seguinte forma: 08 polos centralizados, localizados no bairro do Recife e São José, cada qual com um nome específico e uma identidade bem definida; 08 ou 09 polos descentralizados, com pequena variação entre os bairros escolhidos, levando-se em consideração as 06 Regiões Político-Administrativas, RPA’s; e entre 30 e 40 polos comunitários, ou polinhos, espalhados pelos bairros periféricos da cidade. Apesar de alguns interlocutores representantes da gestão pública negarem haver uma diferença substancial entre os polos centrais e os polos descentralizados, a estrutura e o tamanho dos palcos, a decoração e a área de produção de cada polo, além da programação artística era visivelmente inferior nos bairros em comparação com os principais polos de animação. Se colocarmos na comparação também os polinhos, a diferença torna-se ainda mais relevante. Outro fator importante a ser destacado como característica fundamental deste novo modelo de carnaval é a mudança no paradigma da festa. Antes conhecida por seu caráter participativo, passa a ser organizada a partir da ideia do espetáculo, com palcos e sistema de som e iluminação de ótima qualidade, agremiações desfilando no centro dos polos de animação ou a frente de cada palco e o público convidado a participar mais como espectador do que como um sujeito ativo da folia. A participação da sociedade, neste novo modelo, muda de contexto e passa a ser mais claramente percebida nas disputas políticas enfatizadas pela festa que pela folia em si. Entre os modelos de carnaval participação e de carnaval espetáculo, o Multicultural parece se aproximar mais do segundo. Mas, como já destacamos, a participação não está ausente, apenas mudou de contexto. Ao trazer a sociedade civil para o centro do debate sobre o carnaval, a participação popular na festa passou a ser compreendida não mais no momento da brincadeira, mas no da organização da folia. E neste momento foi possível compreender que o carnaval é bom pra 4  

 

brincar, pra pensar, mas também é bom pra fazer política. A partir do Carnaval Multicultural, a Prefeitura da Cidade do Recife começou a compreender o poder de mediação políticocultural presente no carnaval da cidade. DESCENTRALIZANDO A FESTA Além da mudança no sentido da participação social na festa, outro fazer importante deste novo modelo de carnaval deve ser destacado: a dimensão espacial. Anteriormente concentrado na zona central da cidade, sobretudo com os desfiles de agremiações acontecendo na Avenida Dantas Barreto e as apresentações de orquestras de frevo no chamado Quartel General do Frevo, na Praça do Diário, o carnaval do Recife a partir de Multicultural passou a ser festejado de maneira descentralizada. No primeiro ano, ainda em 2001, a Prefeitura decidiu criar três polos descentralizados de folia – além dos já criados polos principais, localizados no bairro turístico do Recife Antigo: o Polo do Ibura, na Zona Sul da cidade; o Polo da Varzea, na Zona Oeste; e o Polo de Casa Amarela, na Zona Norte. Cada polo criado por um motivo diferente, começava aí o processo pelo qual ficaria conhecido o carnaval local. O bairro do Ibura, por exemplo, fora escolhido polo descentralizado por ser berço político do então prefeito eleito, João Paulo. Trata-se portanto, de uma escolha políticoeleitoral. Assim com foi a escolha do bairro da Várzea, tradicional reduto da esquerda recifense. Já o bairro de Casa Amarela, localizado no coração da Zona Norte da Cidade, foi escolhido por ser um bairro populoso e de importante localização entre os morros (Alto José do Pinho, Morro da Conceição, Alto José Bonifácio, etc.) e os bairros de Casa Forte, Poço da Panela, Parnamirim, estes de classe média. A partir do segundo ano de gestão, novos polos descentralizados foram criados, cada um atendendo a um objetivo ou demanda específica. Em comum, a necessidade de ocupar a cidade, de fazer a festa servir como mediadora da diversidade cultural característica da metrópole. Se antes o carnaval era realizado, sobretudo, no centro da cidade, a partir de 2002 o cenário passaria a ser diferente. Um mapa aproximado dos Polos Centrais e Descentralizados do carnaval pode dar a dimensão do que significou a festa em termos de ocupação da cidade.

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Imagem 01: Polos Centrais localizados nos bairros de Santo Antônio, São José, Boa Vista e Recife.

FONTE: Google Maps. Imagem 02: Polos Descentralizados (Nova Descoberta; Ibura; Santo Amaro; Alto José do Pinho; Casa Amarela; Várzea; Jardim São Paulo; e Chão de Estrela).

FONTE: Google Maps

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É possível observar na Imagem 01 que os Polos Centrais estão localizados nos bairros onde tradicionalmente se concentravam os carnavais do Recife. Já na Imagem 02, apreende-se a dimensão espacial da política multicultural, visto que, com a descentralização dos polos, a festa passa a ser realizada em toda a cidade. Os espaços anteriormente relegados pelo poder público passam a receber atenção especial, como se a gestão quisesse ocupar uma lacuna existente, uma ausência de Estado em determinadas localidade. Além dos Polos Centrais e Descentralizados, o esforço para a criação de um imaginário sobre a cidade a partir da festa intensifica-se na medida em que, em certo momento, são criados cerca de 40 Polos Comunitários, os chamados polinhos, além dos Corredores da Folia. Estes últimos, como o nome faz supor, tratam-se de corredores organizados em estreitas ruas das periferias da cidade por onde passagem blocos, troças e demais agremiações carnavalescas. Já os polinhos foram criados com objetivo de, por um lado, dar maior autonomia popular para a organização da festa e, por outro, disseminar sua presença na festa ao máximo. Há, portanto, dois importante fatores a serem destacados no processo de descentralização implementado pela política multicultural no carnaval do Recife. O primeiro deles, o da ocupação da cidade e sua consequente transformação em mediadora da diversidade durante a festa. O segundo, o incentivo à articulação política das comunidades periféricas e o convite à participação ativa na gestão cultural da cidade. Sobre o primeiro há pouco a acrescentar. A partir de 2001, inicia-se um processo de reinvenção do imaginário sobre a cidade, levando as pessoas a circularem espontaneamente entre os bairros periféricos em busca de experiências culturais diversificadas. Moradores dos considerados bairros nobres da cidade passam a frequentar, ao menos durante a folia, alguns bairros periféricos com o intuito de assistir às apresentações de palco de cada polo. Desse fluxo cresce o interesse por artistas, bandas e agremiações localizadas nas periferias, a exemplo da Orquestra Popular da Bomba do Hemetério, criada em 2002 e comandada pelo Maestro Francisco Amâncio da Silva, o Maestro Forró. Com relação ao segundo fator destacado acima, é preciso entender o funcionamento dos Polos Descentralizados. Num carnaval marcado pela ordem, como fora o Carnaval Multicultural do Recife, organizado pela Prefeitura da Cidade do Recife, é possível vislumbrar uma hierarquia da festa composta inicialmente por: no topo da escala, o Polo Multicultural, localizado no Marco Zero e espaço oficial da abertura e do encerramento da festa; logo abaixo os demais polos centrais, localizados no centro da cidade conforme 7  

 

ilustrado na Imagem 01 e cada um nomeado de acordo com a característica a ser introduzida no palco – por exemplo, Polo Mangue, para a chamada cena alternativa, Polo das Fantasias para um carnaval mais tradicional, e assim por diante; e por fim os Polos Descentralizados, cuja festa inicialmente tinha inicio apenas no domingo de carnaval e misturava atrações nacionais – geralmente uma por noite – e artistas locais, frequentemente do próprio bairro. A partir de 2002, segundo ano portanto da gestão do PT na cidade, os Polos Descentralizados foram aumentando em número e importância. Passaram a ser debatidos nos fóruns temáticos do Orçamento Participativo e também nos fóruns permanentes do Conselho Municipal de Política Cultural e suas demandas eram levadas diretamente ao Secretário de Cultura e criador do Multicultural, João Roberto Peixe. É neste momento que se inicia o processo de articulação político-cultural dentro das comunidades. Em cada bairro foi-se criando uma hierarquia que permitia ordenar a organização da festa e envolver a comunidade. Com uma equipe composta por aproximadamente vinte pessoas divididas nas funções de Coordenador de Polo, Supervisor de Polo, Auxiliar de Supervisor e Apoio, foi possível dar maior protagonismo para os moradores do bairro que passaram a ver na festa uma forma de, em primeiro lugar, ganhar um dinheiro extra – um dos critérios para a escolha dos integrantes da equipe, segundo Prazeres Barros, então coordenadora dos Polos Descentralizados na Secretaria de Cultura, era estar desempregado – e, em segundo lugar, se envolver com as questões relacionadas à comunidade. É importante observar que foi a partir da organização do carnaval e também das ações empreendidas pelo Programa Multicultural que muitas pessoas passaram a ver na produção cultural em suas mais diversas áreas uma possibilidade real de mudança. Este é, por exemplo, o caso de diversas travestis e transexuais que deixaram a prostituição para se dedicar à vida artística, como informa Zé Cleto, Diretor de Cultura/LGBT da Federação Ibura/Jordão, que congrega 56 entidades representativas dos moradores do bairro. Segundo ele, no Carnaval do Recife 20153, por exemplo, seis travestis inscreveram seus shows no edital da Prefeitura para a seleção da programação oficial da festa. Dentre as inscrições, quatro foram selecionadas e farão parte da festa.

                                                                                                                        3  A  partir  de  2013,  com  a  mudança  da  gestão  do  Partido  dos  Trabalhadores  para  o  Partido  Socialista   Brasileiro,  o  slogan  Carnaval  Multicultural  do  Recife  foi  deixado  de  lado.   8  

 

 

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES A política cultural enquanto estratégia de mediação dialógica, conforme trabalhada anteriormente

(ANDRADE,

2013),

desempenha

um

papel

fundamental

para

o

desenvolvimento social na cidade do Recife no contexto do Carnaval Multicultural. O processo ritual (TURNER, 2013) de construção da política multicultural e de sua aplicação nos bairros periféricos através do processo de descentralização dos polos de animação do carnaval promove uma mudança no paradigma organizacional da festa. Se não podemos falar exatamente em termos da liminaridade e da inversão proposta por DaMatta (1990), ao menos o espírito carnavalesco de Bakhtin (2010) – apenas para nos ater aos clássicos – reforçando o diálogo na folia pode ser observado. Diálogo com a cidade, que se vê fantasiada para a festa não apenas em seu centro histórico e comercial, mas também nas periferias mais distantes. Diálogo entre as diferenças, entre classes e gostos diversos, entre o tradicional e o moderno e, de diversas formas, entre o profano e o sagrado. É curioso observar ainda que, sendo uma política de aproximação entre a sociedade civil e o poder público, algo que caracterizou a gestão do PT em Recife, pode ser lida a partir da ideia de fetiche da participação popular de que trata a professora Suely Leal, entendendo as políticas de participação como sendo transformadas em valor mercadoria, numa leitura marxista (2003, p.21). Apesar disto – ou talvez exatamente por este motivo – não deixa de haver um caráter autoritário na criação de tais políticas, visto que a escolha dos bairros que receberiam os polos descentralizados e da grade de programação da festa, além do modelo predominantemente focado em atrações de palco, foi feita em última instância pela própria Prefeitura. Desta forma, exemplifica-se a nível local a interpretação desenvolvida pelo professor Antônio Albino Rubim sobre as tristes tradições das políticas culturais no Brasil: a ausência, a instabilidade e o autoritarismo (2008, p.185). Para compreender a ausência e a instabilidade nas políticas culturais da capital pernambucana seria necessário um resgate histórico conjuntural para observar as rupturas que viriam a ser empreendidas no início da gestão do PT em Recife e as posteriores mudanças ocorridas na gestão atual, do Partido Socialista Brasileiro. Se, por um lado, as duas primeiras tristes tradições carecem de uma investigação mais apurada com relação ao contexto local, a terceira, do autoritarismo, parece um pouco mais clara. Com a política centrada fundamentalmente na figura do Secretário de Cultura, João Roberto Peixe, o processo de decisão acerca da política cultural, ao menos num nível inicial, 9  

parecia também centralizada. A escolha do paradigma do espetáculo, a decisão pelo processo de descentralização e os motivos escolhidos para a sua realização inicial nos bairros, todos estes fatores, foram definidos de cima para baixo. O autoritarismo – ou centralização, se preferirem –, por sua vez, acabou permitindo que a população se aproximasse da gestão cultural na cidade. Se não foi possível apropriar-se completamente da festa em todas as suas dimensões, a política multicultural em sua proposta de descentralização ao menos permitiu a recriação de uma imagem da cidade a partir da festa e a articulação social em torno dela para, a partir disto, criar movimentos culturais mais consolidados e dinâmicas políticas mais participativas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Rafael Moura de. Mediação cultural e gestão pública de cultura: o desafio de trabalhar a diversidade cultural. In: ENECULT - Encontro Multidisciplinar de Estudos em Cultura, IX, 2013, Salvador, Anais. CULT. Disponível em: http://www.cult.ufba.br/enecult/?page_id=631 . Acesso em 15 de maio de 2014. ______. Carnaval Multicultural do Recife: reflexões para iniciar o debate. In: ENECULT - Encontro Multidisciplinar de Estudos em Cultura, X, 2014, Anais. CULT. Disponível em: http://www.cult.ufba.br/enecult/?page_id=1363 . Acesso em 30 de dezembro de 2014. ARAÚJO, Rita de Cássia. Festas: mascaras do tempo – entrudo, mascarada e frevo no carnaval do Recife. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1996. 423p. ______. Carnaval do Recife: alegria guerreira. Estudos Avançados, v.11, n.29, jan-abr. 1997. p. 203216. BAKHTIN, Mikhail. Cultura Popular na Idade Média: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 2010. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Editora Perspectiva, 2011. 461p. DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1990. 366p. ______. O que faz do brasil, Brasil?. Rio de Janeiro: Rocco. 1984. P. 65-79. GAIÃO, Brunno; LEÃO, André Luiz. Muitas festas numa só: a configuração do campo do carnaval do Recife. O&S, Salvador, v. 20, n. 64, jan./mar. 2013. P. 131-144. GAIÃO, Brunno; MELLO, Sérgio Carvalho de; LEÃO, André Luiz. A teoria do discurso do Carnaval Multicultural do Recife: uma análise da festa carnavalesca de Recife à luz da teoria de Laclau e Mouffe. In: ENCONTRO DE ESTUDOS ORGANIZACIONAIS DA ANPAD, VII, 2013. Gramado. Anais. ANPAD. P 01-14. Disponível em: http://www.anpad.org.br/evento.php?acao=trabalho&cod_edicao_subsecao=1045&cod_evento_edicao =72&cod_edicao_trabalho=16836. Acesso em 30 de dezembro de 2014. RUBIM, Antônio Albino. Políticas culturais do governo Lula/Gil: desafios e enfrentamentos. Intercom – Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, São Paulo, v.31, n.1, jan./jun. 2008. P. 183-203.

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TURNER, Victor. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. 2º edição. Petrópolis: Ed. Vozes. 2013. 199p.  

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