A (Des)Confiança na Polícia: Uma Comparação entre a Relação do Ministério Público e a Polícia no Brasil e na França

June 24, 2017 | Autor: P. Heitor Barros ... | Categoria: Sociologia do Direito, Etnografia, Estudos Comparativos
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38º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS

GT01 - ADMINISTRAÇÃO DE CONFLITOS EM PERSPECTIVA COMPARADA

A (DES)CONFIANÇA NA POLÍCIA: UMA COMPARAÇÃO ENTRE A RELAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO E A POLÍCIA NO BRASIL E NA FRANÇA

PEDRO HEITOR BARROS GERALDO1 LUIZA FELIX DE SOUZA BARÇANTE2

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Professor do Departamento de Segurança Pública e do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito (PPGSD) da Universidade Federal Fluminense (UFF). 2 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito (PPGSD) da Universidade Federal Fluminense (UFF).

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Resumo Este trabalho busca analisar a relação entre a polícia e o Ministério Público no Brasil e na França, através da comparação entre duas pesquisas de campo, contrastando seus dados. No caso brasileiro, trata-se de uma pesquisa de campo sobre a organização do trabalho realizado dentro do gabinete na Procuradoria de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Em contraste, compara-se com outra pesquisa realizada entre 2008 e 2010, em que foi feita a observação de audiências criminais em diferentes fóruns do sudeste francês. Assim, procura-se compreender como estas instituições têm sentidos diversos nesses países, explicitando como a transparência e a cooperação na administração da justiça produzem a confiança entre os atores no caso francês ao passo que a opacidade das formas de produção dos pareceres e a disputa institucional pelo controle sobre os fatos caracteriza tal relação no caso brasileiro. Palavras-Chave: Ministério Público; Polícia; Administração de conflitos; Estudos comparados. 1. Introdução Este trabalho busca analisar a relação entre os policiais e os promotores (e procuradores) de justiça no Brasil e na França, através da comparação entre duas pesquisas de campo, contrastando seus dados. Assim, procura-se compreender como a Polícia e o Ministério Público têm sentidos diversos nesses países, (GARAPON; PAPADOPOULOS, 2008; KANT DE LIMA, 2009), apesar dessas instituições serem constantemente equiparadas pelos juristas. Este artigo surgiu de uma confrontação de experiências de pesquisas. No processo de orientação da dissertação sobre o trabalho de produção dos pareceres na Procuradoria do Ministério Público no Rio de Janeiro percebíamos que a relação institucional entre os Procuradores e suas representações sobre a polícia divergiam muito das formas institucionais entre o Ministério Público e a polícia na França. Esta última experiência de pesquisa realizada a partir da observação de audiências criminais (GERALDO, 2011). Os juristas consideram que o Brasil e a França pertencem a uma mesma tradição jurídica: o Civil Law. Este regime jurídico é caracterizado, entre outros, pela valorização da formalização escrita dos procedimentos, um intenso grau de codificação, rigor do Direito Processual de prerrogativa do Estado, e uma liberdade restrita de ação e de interpretação aos operadores do direito que trabalham em instituições. Não obstante

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repartam uma mesma cultura jurídica, esses países possuem diferentes formas de representar suas sensibilidades jurídicas (GEERTZ, 2000), sendo diversas as formas de se pensar o sistema legal, o Estado, as leis, os procedimentos e as instituições. No caso brasileiro, trata-se de uma pesquisa de campo sobre a organização do trabalho realizado dentro do gabinete na Procuradoria de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Na 2ª instância o Ministério Público atua como fiscal da lei ou custus legis e sua função é emitir um parecer sobre o processo (atuação prevista no artigo 610, caput, do Código de Processo Penal), realizando uma análise dos autos e sugerindo, por exemplo, a manutenção ou revisão da sentença aos desembargadores que julgam o caso no Tribunal de Justiça, considerando a intervenção realizada pelo procurador de justiça através de seu “parecer”. Na assessoria de um procurador, pode-se observar como o trabalho de produção de pareceres é realizado.

Nas entrevistas e conversas informais, pode-se

compreender como as regras de elaboração dos pareceres são transmitidas e utilizadas pelos diferentes atores. Analisando a formação do parecer criminal, avalia-se de que forma é realizada a qualificação do crime na 2ª instância, destacando os constrangimentos que orientam sua formação. Em muitos processos a prova oral é fundamental e às vezes a única prova dos autos. Assim, percebe-se que o testemunho do policial possui valor relativo ao revisar uma sentença criminal. Em contraste a esta pesquisa, compara-se com outra realizada entre 2008 e 2010, em que foi feita a observação de audiências criminais em diferentes fóruns do sudeste francês (GERALDO, 2011). Esta pesquisa englobou os fóruns de dez cidades diferentes. Nas audiências criminais observadas, os representantes do Ministério Público e os policiais estavam em uma relação coordenada. A comparação permite compreender como os profissionais destas instituições representam o trabalho e produzem formas de administração de conflitos distintas. Neste artigo, a relação de desconfiança dos procuradores no Brasil em relação à polícia é explicitada nas formas de produção das peças processuais enquanto uma dúvida em relação ao valor do testemunho do policial. Uma regra prática para a produção dos pareceres orienta que quando os depoimentos da polícia são contraditórios, indica-se a absolvição dos réus. Além disto, outra regra prática diz que é irrelevante a condição de policial para dar maior ou menor valor aos depoimentos. Estas regras, porém, são

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desenvolvidas no trabalho prático de realização dos pareceres e não são regras universais e consensuais entre os membros do MP. Ao passo que, a confiança entre os representantes do ministério público e os policiais franceses é explicitada nas audiências criminais através do reconhecimento de um valor absoluto do testemunho dos policiais. Nas audiências, observou-se que quando as declarações da polícia eram questionadas quanto a sua veracidade, o juiz e o representante do Ministério Público explicavam que os policiais eram juramentados e que, portanto, não poderiam mentir. Assim, as contestações fundadas neste argumento eram logo desconsideradas. Como os julgamentos eram realizados no final da audiência, pode-se constatar como isto pesava contra os réus nas condenações. Mesmo as políticas de segurança pública indicam como estas diferentes instituições se articulam em ambos os países. Como demonstra Anne Wyvekens (1997), a noção de proximidade surge com a articulação das instituições no sistema criminal francês. Enquanto no Brasil, tais políticas não conseguem produzir estas relações de proximidade e cooperação entre Ministério Público e polícia (FERREIRA PAES, 2010). Ao caracterizar a relação enquanto uma confiança institucional pretende-se explicitar esta relação hierárquica no caso brasileiro entre as instituições no campo da segurança pública (KANT DE LIMA, 1995; MENDES DE MIRANDA; BERALDO DE OLIVEIRA; FERREIRA PAES, 2007; MISSE, 2011). Como conclusão, a divisão do trabalho entre estas instituições demonstra como a transparência e a cooperação na administração da justiça produzem a confiança entre os atores no caso francês ao passo que a opacidade das formas de produção dos pareceres e a disputa institucional pelo controle sobre os fatos caracteriza tal relação no caso brasileiro. 2. Polícia e Ministério Público: A competição e a colaboração em jogo As pesquisas sobre o Ministério Público no Brasil e na França enfatizam estes aspectos institucionais sob diferentes abordagens, seja sob a constituição de uma identidade profissional, seja ressaltando os aspectos do trabalho cotidiano. A pesquisa de Silva (2001) realiza uma análise sobre o perfil social dos promotores públicos que trabalham na esfera dos direitos difusos (com especial ênfase na área da criança e adolescente), sobretudo de suas representações a respeito da sociedade, da política e de sua intervenção profissional, no contexto das novas atribuições

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conferidas ao Ministério Público a partir da Constituição Federal de 1988, contribuindo para o debate a respeito aos limites da atuação dos promotores de justiça e no modo como essas novas funções são incorporadas à atuação de cada um deles (SILVA, 2001). A autora identifica duas maneiras distintas de descrever a relação que eles têm com seu trabalho, construindo dois tipos ideais (promotor de fatos e promotor de gabinete) por meio da ênfase em certas características e elementos encontrados na atuação dos promotores selecionados. De forma sintetizada, o tipo promotor de fatos indica a tendência da ampliação das funções dos promotores para além da esfera jurídica, transformando-os em articuladores políticos nas comunidades em que trabalham. Por sua vez, o tipo promotor de gabinete se limita às fronteiras da esfera jurídica, podendo ser considerado como um agente judiciário que prioriza o trabalho processual, cuja ação se dá, sobretudo, pela via judicial. Na perspectiva da sociologia das profissões jurídicas no Brasil, esta pesquisa realiza uma análise tipológica do perfil dos profissionais (promotores de justiça) e trata de representações sobre o trabalho, identidades e práticas profissionais a partir de narrativas dos promotores. Outra pesquisa relevante sobre a atuação do Ministério Público na área criminal analisa o perfil socioprofissional e as concepções de política criminal do Ministério Público Federal. Os autores identificam correlações existentes entre as diferentes correntes de política criminal auto imputadas pelos respondentes e as respostas obtidas para temas apresentados no questionário como, por exemplo, a redução da idade de imputabilidade penal, as funções da pena e as prioridades para a redução da criminalidade no Brasil. A respeito das concepções de política criminal, os resultados sugeriram a existência de três campos bem definidos (defensores do movimento de Lei e Ordem, do Garantismo Penal e de uma posição intermediária) e indicaram haver vinculação entre a escolha teórica pelos membros da Instituição e as opiniões dos respondentes em cada um dos temas pesquisados (AZEVEDO; VASCONCELLOS, 2013). Sobre as interações dos profissionais do direito que lidam institucionalmente com a questão da justiça, Bonelli (2010) analisou as relações e competições interprofissionais (disputas entre profissões que atuam em áreas de fronteira no Direito) e intraprofissionais (disputa entre os pares que se relaciona à própria estratificação de cada ocupação) entre

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juízes, promotores, advogados, delegados de polícia e funcionários de cartório judicial, através de um estudo qualitativo com a utilização de entrevistas, realizado em uma comarca de médio porte do interior do Estado de São Paulo. Desta forma, os conflitos profissionais apontam para a existência de maior tensão entre aqueles que estão em posições de fronteira, reforçando a noção de que é a proximidade nos lugares ocupados no mundo do Direito que aumenta a disputa entre eles. Nesse sentido, em relação ao trabalho realizado pela polícia e pelo Ministério Público, segundo seus interlocutores, há disputa por enfoques, perspectivas, privilégios, monopólios sobre objetos, campo de atuação e poder de decisão. Em relação às interações entre o Ministério Público e a polícia na França (MOUHANNA, 2004), a pesquisa utiliza ferramentas da teoria organizacional no país, apresenta as estruturas históricas do sistema de justiça criminal francês e os papéis assumidos pelas diferentes organizações na divisão social do trabalho jurídico-penal. Em seu trabalho, o autor destaca as dinâmicas internas e as estratégias construídas por policiais e membros do MP e dá enfoque à colaboração e aos conflitos que surgem na relação entre estes atores, a partir do modelo burocrático assumido pelas organizações, que é condicionado pelas contingências territoriais e pelas relações pessoais construídas a partir da definição de prioridades. Apesar de não formarem um conjunto homogêneo e possuírem lógicas bastante contraditórias de funcionamento, o autor constatou que, em ambos os lados, os elementos atuantes na prática encontram-se em uma situação de interdependência. Assim, na França, a pesquisa explicita que a cooperação cotidiana entre os policiais e os representantes do Ministério Público costuma caracterizar-se por uma relação de confiança entre o oficial da Polícia Judiciária e o membro do Ministério Público (MOUHANNA, 2011). Christin (2008) apresenta um etnografia do sistema de justiça francês em relação a realização das audiências de comparecimento imediato. Um procedimento em que o réu é apresentado ao Ministério Público que em contato direto com os policiais decide denunciar o caso para julgamento imediato no Tribunal de Police. Considerado um procedimento rápido, a autora ressalta a cooperação no trabalho cotidiano entre os policiais e os Procuradores e Substitutos sugerindo relações de confiança e cumplicidade nas formas de administração dos conflitos.

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No tocante as formas de identidade profissional dos Procuradores,

Milburn

(2010) apresenta uma pesquisa enfatizando o papel de gestores das políticas de segurança pública no nível local. Segundo o autor, as políticas de segurança permitiram esta evolução do métier cuja a expertise está fundada na autonomia para a gestão dos processos cotidianamente juntamente com a polícia e, ao mesmo tempo, contribuindo para os objetivos mais gerais estabelecidos pela hierarquia que marca a instituição francesa. Esta postura os coloca num lugar central para a consecução das políticas de segurança pública. Sobre o trabalho realizado pelos promotores de justiça do Ministério Público e pela polícia sob uma perspectiva comparada entre Brasil e França, Paes (2013) realiza uma etnografia dos procedimentos policiais e judiciais criminais nesses países, buscando compreender as características e os dilemas da construção social do crime. A autora analisa a construção do crime como forma e como saber que está inserido nas práticas, na cultura profissional e nas regras da experiência, desenvolvendo uma abordagem que envolve a gestão e a produção de conhecimento sobre os crimes. A pesquisa realiza a análise sobre as rotinas e práticas profissionais dos atores destas instituições. Ela apresenta a forma como as instituições do sistema de segurança e justiça criminal produzem narrativas e números sobre a criminalidade, explicitando, em especial, as práticas das instituições que trabalham no início do tratamento penal, transformando fatos em crimes. A comparação entre as práticas das instituições penais do Brasil e da França permite compreender como os profissionais da polícia e do Ministério Público representam o trabalho e produzem formas de administração de conflitos distintas, apesar de em ambos os países a atribuição de significados e de administração do fato criminal serem prerrogativa das instituições Estatais. 3. A comparação entre as organizações A comparação entre as organizações dos diferentes países tem por objetivo compreender os sentidos atribuídos ao trabalho e às relações pelos atores institucionais inseridos em cada uma delas. Os textos produzidos pelos juristas enfatizam sempre as semelhanças entre os “sistemas de direito” (DAVID, 2002) permitindo universalizar as discussões sobre as instituições formalmente semelhantes. Como observamos, as peças processuais produzidas por promotores e procuradores de justiça se designam

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comumente como “Parquet”, ou mesmo, como “magistrados de pé” (“les magistrats débuts”) em referência a como são designados os representantes do Ministério Público na organização judiciária francesa. Entretanto, tomar uma instituição pela outra é incorrer no risco de que a tradução termo a termo nos permitiria pensar sobre as mesmas funções que estas instituições desempenhariam nos respectivos países (VIGOUR, 2005). Orientaremos a análise para uma comparação contrastiva (KANT DE LIMA, 2009) que nos permitirá compreender os sentidos atribuídos pelos próprios atores no contexto de uma cultura jurídica institucionalizada. O intercâmbio de informações faz circular práticas que são deslocadas dos contextos permitindo um espelhamento dos princípios que orientam as organizações dos diferentes Estados (GARAPON; PAPADOPOULOS, 2008). Em razão disto, a reflexão sobre a relação entre o Ministério Público e a Polícia partirá das práticas observadas em campos de pesquisas distintos. O que enfocaremos é como os representantes do Ministério Público avaliam e qualificam o trabalho realizado pela polícia ao imputarem valor à “palavra da polícia”, como os depoimentos prestados em juízo pelos policiais como testemunhas no processo criminal brasileiro; ou as declarações dos policiais nos processos verbais franceses. Esta relação orienta assim regras práticas de tomada de decisão. Estas regras se explicitam na forma como o trabalho de elaboração dos pareceres é realizado pelos procuradores no caso brasileiro; e como o representantes do Ministério Público interpretam o trabalho da polícia em audiência no caso francês. Esta comparação compreenderá a institucionalidade destas regras a partir das falas e sentidos atribuídos pelos diferentes atores em contexto e em ação. Os processos de tomada de decisão se amoldam, assim, a estes constrangimentos institucionais e contextuais que explicitam sempre estas regras práticas. O objetivo é entender por quais regras estes atores se orientam durante o processo de construção da tomada de decisão (EMERSON, 1983). Esta perspectiva praxeológica considera que as normas jurídicas não são unicamente interpretadas por um processo de silogismo por uma única pessoa, mas sim é o resultado de práticas sociais compartilhadas a respeito de como estas regras orientam práticas de administração de conflitos. Dupret (2011) busca compreender como os promotores de justiça de um tribunal egípcio traduzem os depoimentos para torná-los juridicamente inteligíveis durante a

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inquirição oral de réus, vítimas e testemunhas em processos criminais. Com isto, eles produzem um enquadramento dos fatos nas categorias do direito penal, sobretudo na categoria da intenção (dolo). Sua análise é feita a partir de sua presença no tribunal, onde observou várias oitivas e coletou documentos contendo transcrições dos diálogos entre os promotores e seus inquiridos. Assim, falar de intenção no direito supõe ir além de uma discussão filosófica ou da lógica jurídica para capturá-la em ato e em contexto, tratandose de uma orientação prática que emerge do ambiente e das interações judiciárias. 4. As relações de desconfiança entre o Ministério Público e a Polícia no Brasil No caso brasileiro, trata-se de uma pesquisa de campo sobre a organização do trabalho realizado dentro dos gabinetes na Procuradoria de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Trata-se de uma pesquisa empírica que possui como enfoque teórico a discussão sobre o papel do Ministério Público, salientando o contexto de atuação e desenvolvimento das práticas cotidianas de administração institucional de conflitos. A pesquisa lança mão de uma metodologia qualitativa para examinar as formas de atuação e a percepção dos atores da Procuradoria: os procuradores, os analistas processuais e os assessores. Para tanto, a propriedade das ações dos indivíduos é analisada através da observação da sua atividade cotidiana, o que se deu com a inserção da pesquisadora no contexto da pesquisa de campo, realizando um processo de observação da prática, mais especificamente nas arenas privilegiadas em que circulam esses atores. A investigação compreendeu trabalho de campo e pesquisa bibliográfica. Utilizei entrevistas, conversas informais e principalmente a observação participante (KANT DE LIMA, 2009). No âmbito criminal são os promotores de justiça que atuam até o momento da sentença final, podendo, então, interpor recurso contra a decisão (apelação) ou ainda, contrariar eventual inconformismo da parte adversa (contrarrazões de apelação). A partir daí, os autos “sobem” para reexame da matéria pelo Tribunal. No âmbito estadual, quem atua perante o Tribunal de Justiça são os Procuradores de Justiça, que, dentre outras funções, atuam nas sessões de julgamento dos processos da respectiva Câmara Criminal, elaboram um parecer e podem interpor, da decisão do Tribunal, recursos aos Tribunais Superiores (STF/STJ). Neste trabalho dá-se ênfase a função de “parecerista” das procuradorias de justiça. Nesta função, na 2ª instância, cabe ao Ministério Público atuar como fiscal da lei ou

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“custus legis”, emitindo um parecer sobre o processo, realizando uma análise dos autos e sugerindo a manutenção ou revisão da sentença, por exemplo, aos desembargadores que julgam o caso no Tribunal de Justiça. O MPRJ dispõe de 42 procuradorias criminais (que correspondem a 42 procuradores de justiça), divididas 05 procuradorias para cada câmara criminal (que são oito no total), e 02 procuradorias criminais junto à seção criminal. As 42 (quarenta e duas) procuradorias de justiça criminais contam com o auxílio de 42 (quarenta e dois) assessores, todos titulares de cargos em comissão, e de analistas processuais, titulares de cargos efetivos (servidores concursados). Atualmente, todos os processos das câmaras criminais são tramitados eletronicamente pelo sistema do Tribunal de Justiça. Os processos são encaminhados eletronicamente diretamente aos gabinetes dos procuradores e a distribuição dos feitos é feita da seguinte forma: as primeiras procuradorias criminais recebem os processos com final 1 e 2; as segundas procuradorias criminais recebem os processos com final 3 e 4; as terceiras procuradorias criminais recebem os processos com final 5 e 6; as quartas procuradorias criminais recebem os processos com final 7 e 8; e as quintas procuradorias criminais recebem os processos com final 9 e 03. A partir do recebimento dos autos em seu gabinete, analistas processuais, assessores e procuradores analisam o desenrolar do processo — já com decisão de 1ª Instância nele proferida — e, então, formam sua convicção a respeito do acerto ou não do quanto ali processado e decidido. Na maioria dos casos estudados, os assessores e analistas processuais são responsáveis pela tomada inicial de decisões que são direcionadas pela existência de “modelos de pareceres” salvos nos computadores e os procuradores pela alteração/revisão e assinatura dos pareceres. Na assessoria de um procurador, pode-se observar como o trabalho de produção de pareceres é realizado e compreender como as regras de elaboração dos pareceres são transmitidas e utilizadas pelos diferentes atores, capturando o direito em ato e em contexto, para além de uma discussão filosófica ou da lógica jurídica, já que se trata de uma orientação prática que emerge do ambiente e das interações (DUPRET, 2010). Neste                                                                                                                         3

Dados obtidos no relatório de inspeção realizado pela Corregedoria Nacional do Conselho Nacional do Ministério Público no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro de 20 a 24 de agosto de 2012. Disponível em: http://www.cnmp.mp.br/portal/images/Corregedoria/inspe%C3%A7%C3%A3o/RJ__MPE.RJ._Aprovado_pelo_Plen%C3%A1rio.pdf. Acesso em 20 de maio de 2014.

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âmbito, não existe um espaço de transmissão organizada de conhecimento, uma vez que tal transmissão é feita, ora pelos analistas processuais/assessores, ora pelos procuradores, através das práticas do dia a dia, sem existir uma escola profissional que realize esta transmissão de maneira organizada (BOIGEOL, 2010). Analisando a formação do parecer criminal, avalia-se de que forma é realizada a qualificação do crime na 2ª instância, destacando os constrangimentos que orientam sua formação. Assim, na produção do parecer, estuda-se o procedimento (prático e processual) necessário para a elaboração da decisão final, merecendo destaque, fatores como a avaliação dos depoimentos dos policiais que atuaram no inquérito e como testemunhas no processo, a avaliação da ficha de antecedentes criminais do réu, o nome do réu, as razões e contrarrazões dos recursos e a fundamentação da sentença efetuada pelo juiz da 1ª instância. Estas regras, porém, são desenvolvidas no trabalho prático de realização dos pareceres e não são regras universais e consensuais entre os membros do MP, sendo técnicas particularizadas empregadas para a produção dos pareceres. Para assegurar o cumprimento das funções institucionais, entre elas a elaboração dos pareceres, o Ministério Público é dotado de uma série de garantias e princípios previstos na Constituição da República Federativa do Brasil. O princípio da independência funcional garante liberdade de atuação aos promotores e procuradores, impedindo uma subordinação que não seja às normas jurídicas ou à sua própria consciência (MAZZILLI, 2013). Na prática, isso possibilita que membros do Ministério Público tomem posicionamentos divergentes em sua atuação quanto à avaliação do mesmo fato, existindo uma idiossincrasia na atuação da instituição e uma gestão particularizada do trabalho, uma vez que não existe subordinação funcional entre os membros da instituição, apesar de existir no Ministério Público hierarquia administrativa em relação à chefia única (Procurador Geral de Justiça). Quando o processo está na 2ª instancia já existe uma decisão (interlocutória ou final) proferida pelo juiz nos autos e o Ministério Público na 1ª instância já atuou, representado pelos promotores de justiça. Assim, quanto à qualificação dos depoimentos dos policiais pelo Ministério Público, ela pode ser dividida em duas etapas. A primeira consiste na avaliação que os promotores da 1ª instância dão aos depoimentos dos policiais que efetuaram a prisão do réu e participaram do inquérito, a fim de iniciar ou não o processo judicial, nesta etapa de conversão de fatos em crimes (PAES, 2013). Cabe ressaltar que esta pesquisa não avalia esse primeiro filtro realizado

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pelo MP na 1ª instância sobre a atuação da polícia, pois, na 2ª instância, como o processo já se iniciou, o MP em um primeiro momento deu credibilidade a atuação dos policiais, uma vez que denunciou, apresentou alegações finais, razões ou contrarrazões de recursos e requereu a condenação do réu ao juiz, baseado nestes depoimentos. A segunda etapa, analisada nesta pesquisa, consiste da atuação do Ministério Público na 2ª instância, onde procuradores de justiça elaboram os pareceres com o objetivo de oferecer ao tribunal que julgará a causa, uma assessoria jurídica (sua opinião sobre caso). E é neste momento que os mesmos depoimentos apoiados pelo MP na 1ª instância, são desqualificados na 2ª instância quando os procuradores de justiça opinam pela absolvição do réu. No contexto da elaboração dos pareceres, os casos de tráfico de drogas se apresentam particularmente interessantes no estudo pragmático da noção da (des) confiança dos procuradores no Brasil em relação à polícia uma vez que são explicitadas nas peças processuais dúvidas quanto ao valor relativo do testemunho do policial. Nesses processos, a prova oral é fundamental e às vezes a única prova dos autos. Quanto à autoria, a prova é praticamente baseada no depoimento dos policiais autores da prisão em flagrante do réu, e a materialidade na droga encontrada por esses mesmos policiais. Assim, ao opinar sobre a revisão de uma sentença criminal condenatória ou absolutória de tráfico de drogas, percebe-se que o testemunho do policial possui valor relativo, ora servindo para sustentar uma condenação, ora para reforçar a dúvida sobre a ocorrência do fato, o que gera uma absolvição. Apesar da maioria dos processos analisados e da produção dos pareceres serem favoráveis e darem credibilidade aos depoimentos dos policiais, existem regras práticas que possibilitam a relativização de tais depoimentos. A defesa dos réus nesses tipos de processos, de uma maneira geral, busca trazer aos autos testemunhas que atestem sobre o “bom comportamento” do réu (“ele é trabalhador” ou “pai de família” ou “frequenta a igreja”, como se lê nos processos) e busca desqualificar o depoimento do policial, que na maioria dos casos é a única testemunha, alegando que o mesmo “armou” para seu cliente ou que seu depoimento deve ser analisado com reservas por ele ter interesse pessoal no êxito da demanda já que realizou a prisão do réu. Uma regra prática para a produção dos pareceres orienta que quando os depoimentos dos policiais são contraditórios, indica-se a absolvição dos réus. Além disto,

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outra regra prática diz que é irrelevante a condição de policial para dar maior ou menor valor aos depoimentos. Nesse sentido, segue trecho retirado de um parecer: “(...) os policiais são testemunhas como quaisquer outras, só se podendo negar valor aos seus relatos à vista de algum fato concreto e objetivo, devidamente provado nos autos, que ateste estarem eles mentindo, não bastando alegar, de forma inconsistente e vazia, que eles têm interesse pessoal no êxito da demanda, sem apontar o fato que prove a veracidade dessa alegação (...) não há nenhum fundamento na alegação de desvalor dos depoimentos dos policiais, cujos relatos são perfeitamente harmônicos e lógicos, inexistindo contradição que os vicie, inclusive em relação aos depoimentos que prestaram em sede policial (...) Opondo-se a esses fatos, temos apenas a versão sustentada pelo apelante em juízo, sem o apoio de qualquer prova nos autos, dando a entender que teria sofrido uma “armação” por parte dos policiais autores da prisão. Versões desse tipo, desgastadas pelo excesso de uso, já perderam qualquer poder de convencimento que um dia possam ter tido (...) Ressalte-se, por oportuno, que a palavra de policiais, como a de qualquer outra testemunha, prescinde de outros depoimentos que lhe emprestem validade. Não se constatou vontade dos agentes em causar algum prejuízo, nada se revelando, pois, contra a idoneidade da prova acusatória, tornando-se inviável o reconhecimento do postulado in dubio pro reo”. Assim, na análise do processo criminal, o depoimento dos policiais é contraposto com os depoimentos de outras testemunhas, com a quantidade de drogas arrecadada ou outros materiais apreendidos (como dinheiro, armas, balança de precisão ou rádio comunicador) e muitas vezes com a ficha de antecedentes criminais do réu, a fim de se prestar maior ou menor credibilidade ao trabalho efetuado pela polícia. Cabe ressaltar que a elaboração dos pareceres e a tomada de decisão nos casos concretos não são tomadas apenas pelos procuradores e não dependem apenas das regras jurídicas para serem formadas, uma vez que são tomadas decisões informais (que não estão no processo) na elaboração dos pareceres que interferem em seu conteúdo (no que está de fato escrito no processo). Vejamos: Este parecer foi sobre um recurso de apelação interposto pelo Ministério Público contra uma sentença que absolveu a ré por entender que “não restou cabalmente provada a finalidade mercantil da droga apreendida” (65,7 g de cocaína) uma vez que, em que pese os policiais civis autores da prisão terem informado que se dirigiram a noite para as proximidades da residência (casa de veraneio) da acusada para concluir investigação de

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denúncia anônima de práticas criminosas pela ré em seu imóvel (dentre elas, tráfico de drogas) e terem visto uma grande movimentação de carros durante toda a madrugada, “não foi encontrada em sua residência balança de precisão, anotações concernentes ao tráfico ou mesmo dinheiro. Aliás, a ausência de dinheiro no local não se coaduna com o exercício da traficância, mormente quanto os policiais civis relataram que vários veículos pararam no local durante a noite (supostamente para adquirir droga)”. A primeira análise sobre este caso, realizada pelo assessor/analista foi no sentido de manter a absolvição a partir de uma regra de trabalho que informa ser importante ler a fundamentação do juiz na sentença para captar as razões da condenação ou da absolvição e por ele presidir o processo, a audiência, estar em contato com as partes e mais próximo aos fatos. Na segunda analise, realizada pelo procurador de justiça, o modelo do parecer foi alterado para sugerir a condenação da ré pelo delito de tráfico. Essa decisão foi tomada pela quantidade e pela forma de acondicionamento da droga apreendida, bem como pelo fato da ré ter 08 anotações de crimes em sua ficha de antecedentes criminais, o que faz dela uma “bandidinha”, segundo a aplicação desta regra prática. Além do mais, a ré foi presa pelos policiais tentando se desfazer da droga em seu quintal quando eles bateram na porta da residência. Quanto a quantidade da droga, o procurador após se informar com um colega por telefone disse que “— isso é muita droga para alguém cheirar sozinho”. No parecer, constou que a finalidade de traficância era evidente pela apreensão de 65,7g de cocaína acondicionada em 48 saquinhos plásticos, bem como pela apreensão de: “outros bens comuns no âmbito da comercialização de entorpecentes, quais sejam, grampeador, agenda com anotações e embalagens com sacos plásticos (sacolés) ainda sem utilização”. O Tribunal de Justiça manteve a absolvição da acusada por entender que “o quantitativo expressado se impunha para utilização na casa de veraneio”. Em outro processo foi interposto recurso de apelação pelo Ministério Público contra uma sentença que absolveu o réu do delito de tráfico. Em suas razões recursais o promotor de justiça informou que os policiais receberam denúncia anônima noticiando que havia um indivíduo com determinadas características comercializando drogas, razão pela qual foram para o local, onde identificaram o réu e abordaram-no, sendo certo que,

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realizaram buscas e encontraram próximo ao réu, em um mato, o material tóxico. Disseram ainda que o acusado somente admitiu a traficância após a droga ter sido encontrada. O juiz absolveu o réu por entender que “(...) para um dos policiais o réu, ao ser surpreendido, teria negado estar traficando, admitindo a prática após a droga ser localizada. Para a outra testemunha, o réu ficou silente num primeiro momento e, com a localização da sacola com drogas, teria admitido trabalhar para o tráfico. Ademais chega a soar estranho (dando uma conotação de excesso de justificativa) quando o policial Fernando Lopes Teixeira Filho dá conta que a quantia em espécie encontrada com o réu era pequena porque ele havia acabado de começar a fazer as vendas. Afinal, que rapidez foi essa entre o início da traficância, a denúncia por populares e a prisão do réu? (...) a versão mais digna de confiança é aquela apresentada, de maneira firme pelo acusado em sua autodefesa; não merecendo credito, por todas as razões aduzidas, os depoimentos dos policiais (...)”. O parecer manteve a absolvição. O procurador considerou a primariedade do réu e o fato dele “não ser bandidinho” (por não ter crimes anteriores anotados em sua FAC), o fato dele morar perto da boca de fumo, o que possibilita que ele transite pela localidade, de trabalhar e da droga ter sido encontrada no mato e não com ele, como constou do seu parecer: “(...) Deixaremos de repetir as ponderações feitas na r. sentença, mas a elas nos remetemos, vez que temos demonstrarem de forma clara as inúmeras dúvidas e contradições que, em razão do postulado in dúbio pro reo, foram resolvidas em favor do apelado. Por fim, ressaltamos ser até possível que o apelado tenha cometido o crime pelo qual foi denunciado, no entanto, sem que se tenha uma certeza a este respeito o mais correto afigurase absolvê-lo, pois não se pode presumir tal fato(...)”. Estes dois pareceres analisados foram realizados no mesmo dia. Enquanto no primeiro o que foi determinante na sugestão para a condenação foi quantidade e a forma de acondicionamento do material apreendido, bem como o fato da ré ser “bandidinha” (extensa “FAC”), no segundo o que foi determinante para a sugestão pela absolvição foi a dúvida em relação a veracidade dos depoimentos prestados pelos policiais, bem como pelo fato do réu não ser “bandidinho”, morar na rua da boca de fumo, trabalhar e a droga não ter sido encontrada com ele, mas no mato.

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Noutro caso, foi interposto pela Defesa um recurso de apelação contra uma sentença que condenou o réu pelo delito de tráfico de drogas. A Defesa alegou como tese principal que as drogas eram para uso pessoal e que seu cliente não era traficante. Os policiais, em seus depoimentos em juízo, informaram que estavam em patrulhamento no Mirante da Serra, quando abordaram o coletivo da empresa Linave, que fazia o itinerário Japeri-Arcozelo. Após busca pessoal, lograram apreender com o réu 22,2g de cocaína, distribuídas em 25 cápsulas, além de 03 papelotes contendo 5,4 g de maconha. Segundo os policiais, o réu teria admitido que as drogas se destinavam à venda. Entretanto, ele afirmou em juízo que as drogas eram para uso pessoal, tendo as adquirido na favela porque o preço é inferior ao praticado no município de Miguel Pereira. Na sentença, o juiz fundamentou a condenação nos seguintes termos: “(...) A questão nodal diz respeito, portanto, ao destino do entorpecente, se para uso próprio ou mercancia. Reconheço que muita vez a linha divisória entre o uso e o tráfico é muito tênue, na medida em que muitos usuários e/ou viciados traficam para sustentar o próprio vício. No caso, aqui, ainda que não se queira levar em conta a palavra dos policiais, no sentido de que o réu teria livremente confessado o destino comercial da droga, tenho que uma pessoa normal, em circunstâncias normais, não costuma transportar, para uso próprio, o número de papelotes que o réu trazia consigo (...) Não acredito, portanto, que a droga era para uso próprio; estou convencido, até pela forma de acondicionamento do entorpecente, que este se destinava ao comércio, no que para tanto o acusado foi buscar o material ilícito em outra cidade para difundi-lo aqui (...)”. No caso, o magistrado firmou seu convencimento no sentido de que as drogas se destinavam à revenda, considerando, além dos depoimentos dos policiais, a quantidade de entorpecente, sua forma de acondicionamento e a condição financeira do réu. O parecer da procuradoria de justiça foi no sentido da prova ser frágil para sustentar a condenação pelo crime de tráfico, por entender que a quantidade de drogas era compatível com o uso pessoal, principalmente para ser consumido durante o período de carnaval. E mesmo que os policiais tenham dito que o réu confessou que era traficante: “(...) não se pode esquecer que a dúvida deve ser interpretada em favor do réu, ainda mais no caso dos autos, pois plausível a versão do acusado de que as drogas seriam consumidas durante o período de carnaval, e que as adquiriu na favela ante o preço cobrado em Miguel Pereira (...)”.

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Como no segundo caso analisado, o parecer não deu crédito ao testemunho dos policiais considerando plausível a versão do acusado de ser usuário, visto não ser “bandidinho”, trabalhar como ajudante de pedreiro e a quantidade de drogas ser passível de ser consumida no carnaval. Outro parecer foi sobre um recurso de apelação interposto pela Defesa contra uma sentença que condenou o réu pelo delito de tráfico de drogas. A Defesa alegou como tese principal que as drogas eram para uso pessoal e que seu cliente não era traficante. Os policiais, em seus depoimentos em juízo, informaram que receberem notícia de que na Praça do Bairro Boa Vista estavam sendo comercializadas drogas por quatro elementos e que o réu Alexandre possuía como apelido "Tande" e que realizava tráfico na cidade. Disseram que ao chegarem no local eles avistaram o réu, sentado com três adolescentes, quando uma das pessoas do grupo se desfez de um saco de fandangos. Após busca pessoal, lograram apreender com o réu uma trouxinha de maconha. No saco de biscoito encontraram onze papelotes de maconha e mais dois de cocaína. Segundo os policiais, o adolescente Igor assumiu a propriedade das drogas e disse que “eles” estavam vendendo (incluindo o réu Alexandre) e que tinham usado o dinheiro para comprar um lanche. Na sentença, o juiz fundamentou a condenação nos seguintes termos: “(...) Os policiais diligenciaram no local e lograram encontrar o acusado que sob o vulgo de "Tande" a que o Policial Christian tem certeza de que Tande é o acusado porque ele próprio teria dito no momento de sua abordagem, de quem já tinham noticias anteriores de que praticava trafico em Iguaba Grande e à luz da experiência do Magistrado, por praticar a conduta ilícita com adolescentes, por óbvio que não era recomendável que ficasse com o produto todo consigo, já que para os maiores as consequências são bem gravosas do que para os menores que respondem por ato infracional análogo a crime (...).” O parecer da procuradoria de justiça foi no sentido da prova ser frágil para sustentar a condenação pelo crime de tráfico. Este entendimento foi construído a partir da credibilidade dada aos depoimentos colhidos (réu e adolescentes) que informaram que a droga arrecada no saco de fandangos era de propriedade do menor Igor e que com o réu foi encontrada apenas uma trouxinha de maconha, que pode ser usada para consumo pessoal. O parecer não deu crédito ao testemunho dos policiais considerando plausível a versão do acusado de ser usuário de maconha e de que estava malhando na praça, a

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versão dos adolescentes que estavam no local e disseram que a droga pertencia a um deles, a maior quantidade da droga não ter sido encontrada com ele, mas no chão dentro do saco de fandangos, bem como o fato dele não ser “bandidinho”. Outro parecer foi sobre um recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público contra uma decisão do juiz que rejeitou a denúncia em relação ao crime tipificado no artigo 35 da Lei n° 11.343/06 (associação para o tráfico de drogas) por entender que a peça inaugural estava “inepta”, não contendo a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias. Nas razões do recurso, o Ministério Público na 1ª instância alegou que “(...) os elementos de prova angariados ao procedimento investigatório que instruiu a denúncia, sobretudo, as declarações prestadas pelos policiais militares Humberto e Marinesio, associada à confissão em sede policial do indiciado e a quantidade de armamento pesado apreendido em seu poder demonstram que este efetivamente associou-se de modo estável e permanente com outros elementos do ainda não identificados da facção Terceiro Comando, para o fim de cometimento do tráfico ilícito de entorpecentes (...)” Na primeira análise realizada pelo assessor/analista a confecção do parecer foi no sentido de manter a rejeição da denúncia visto que na peça inaugural constava que o “indiciado teria se associado com terceiras pessoas não identificadas”, o que não seria suficiente para o reconhecimento do crime de associação, pois não haveria nos autos indicação dos nomes aos quais o acusado estaria associado, nem informações sobre a forma que ele atuava o grupo, não havendo comprovação de estabilidade e permanência ou de “liame subjetivo” entre o acusado e pessoas envolvidas com o tráfico de drogas naquela região. O procurador de justiça, em uma 2ª análise do caso, perguntou se no processo constava um apelido específico do réu, nos seguintes termos: “—Esse processo é sobre o fulaninho de tal?” Como a resposta do assessor/analista foi negativa, ou seja, o réu não era o “famoso fulaninho de tal”, o parecer não foi alterado. Nesse caso, a intervenção do Ministério Público na 2ª instância a favor ou não da rejeição da denúncia foi determinada pelo nome do réu e não pelas circunstâncias da investigação e das provas colhidas. Analisando a confecção dos pareceres criminais, vê-se que o que chega ao poder judiciário trata-se de um recorte realizado no inquérito pela polícia que é confirmado (ou

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não) em juízo. O tempo todo percebe-se que não existe um consenso sobre os fatos, pois, cada Instituição (polícia, MP e Judiciário) apreendem de formas diferentes e administram de maneiras diversas os conflitos. Em relação ao Ministério Público, a indicação da mesma instituição tomar, no mesmo processo, posicionamentos diversos. Quanto a esta diferenciação entre a atuação dos promotores na 1ª instância como parte (defendendo um posicionamento no contraditório) e fiscais da lei e dos procuradores em sua função exclusiva como fiscais da lei na elaboração de pareceres, um procurador de justiça em conversa informal me informou que: “(...) aqui é mais fácil a gente ser imparcial porque temos contato com papel. Estamos dentro do gabinete, não estamos no calor da emoção, o réu não está olhando para a nossa cara, não tá encarando, cuspindo. O promotor na 1ª instancia vê o réu muitas vezes rindo e debochando dele. Sendo mais influenciado pelas emoções do momento. E na 2ª instancia você está mais ausente disso. Só lê o papel (...)”. Em enfoque o fato das regras jurídicas serem apenas mais um dos constrangimentos que orientam a ação, sendo que outros fatores, como a avaliação da prova oral, a análise dos depoimentos e identificação da contradição ou coerência neles, a organização dos autos, a avaliação da ficha de antecedentes criminais do réu, o nome do réu, as razões dos recursos e a fundamentação da sentença efetuada pelo juiz da 1ª instância, recebem um valor diferenciado e relativo em cada caso concreto. Tratam-se de regras e técnicas vagas, ambíguas e particularizadas em cada gabinete na produção do parecer que somente são apreendidas a partir da observação da prática profissional. Cabe ressaltar que alguns desses fatores e documentos que de fato influenciam na formação do parecer, normativamente não eram para influenciar, uma vez que a “FAC”, por exemplo, serve para o momento da dosimetria da pena, aumentando a pena, por exemplo, no caso de uma reincidência reconhecida ou de maus antecedentes, e não para dar maior ou menor credibilidade ao depoimento do réu e dos policiais visto ele ser ou não um “bandidinho”. No Brasil a experiência prática e teoria nunca andam juntas. A experiência da pesquisa serve para organizar o conhecimento sobre o Direito, pois explicita regras de tomada de decisão na administração institucional de conflitos. E essas decisões têm consequências na vida das pessoas.

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5. A cooperação no centro da relação entre MP e Polícia na França Em contraste a esta pesquisa, compara-se com outra realizada entre 2008 e 2010, em que foi feita a observação de audiências criminais em diferentes fóruns do sudeste francês (GERALDO, 2011). Esta pesquisa englobou os fóruns de dez cidades diferentes. Nas audiências criminais observadas, os representantes do Ministério Público e os policiais estavam em uma relação coordenada. As audiências sempre se iniciam com os juízes perguntando aos réus, se estes reconhecem os fatos declarados no boletim de ocorrência da polícia que se encontra no processo. Se eles os reconhecem, o presidente em seguida passa a palavra ao representante do Ministério Público. Do contrário, o réu expõe sua versão dos fatos (ou seu advogado). Neste momento, pode-se perceber como a relação é próxima entre a polícia e os representantes do Ministério Público. Em diversas ocasiões, os policiais estavam presentes ou tinham se manifestado por escrito no processo acerca de questionamentos realizados pelo representante do MP. O sistema de justiça criminal francês se divide entre a Polícia judiciaria, que é exercida pela Gendarmeria, a Polícia Nacional, a Polícia de fronteira e a Guarda Municipal sob a direção do Procurador da República. No âmbito judiciário, as jurisdições de proximidade tem competência para julgar as contravenções (até as de 4ª classe, que constituem as infrações de trânsito majoritariamente); o Tribunal de Polícia competente para julgar as contravenções de 5ª classe (violências que provoquem interrupção de 8 dias de trabalho à vítima); o Tribunal Correcional (composto de três juízes) é competente para julgar os delitos; enquanto que a Cour d’Assises (correspondente ao tribunal do júri) seria competente para julgar os crimes (as infrações mais graves como homicídio, roubo com arma, rapto e estupro, por exemplo). No caso francês, o princípio da indivisibilidade do Parquet faz com que todos os Procuradores da República (Procureurs de la République, que atuam nos Tribunais de Correcionais) e os seus Substitutos (Substituts que atuam nos Tribunais de Polícia) sejam intercambiáveis. Por esta razão, Procuradores e Substitutos estão submetidos ao princípio do engajamento de processamento (le principe de l’engagement de poursuites) em que um ato praticado por um membro engaja os outros que não podem mudar de orientação. Outro princípio importante para compreender a estrutura do Ministério Público francês é a subordinação hierárquica dos Substitutos ao Procurador da República que pode chamar para si um processo em responsabilidade de um Substituto ou atribuí-lo a outro

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Substituto. Além disto, os Comissários de Polícia (Comissaires de Police) atuam como Officiers du Ministère Public nas jurisdições de proximidade para o caso se julgamento de contravenções (RASSAT, 2007). Esta estrutura do Parquet se transformou a partir das reformas judiciárias no início da década de 80 com o objetivo de permitir uma aproximação dos membros do Parquet e as políticas de segurança pública das cidades. Os Procuradores passaram a integrar “Grupos locais de tratamento da delinquência” nas Casas da Justiça e do Direito que são geridas por um comitê de Policiais, eleitos locais e representantes de serviços públicos (transporte, escola e serviços sociais). Estas Casas da Justiça e do Direito são mantidas através de um acordo entre a municipalidade e o judiciário (WYVEKENS, 1997). Desta forma, os Procuradores têm a reponsabilidade de formular políticas locais de administração de conflitos juntamente com policiais e representantes locais. Este papel revela uma forte relação entre as instituições. A proximidade com que o Parquet trabalha com os policiais não se encerra nesta instituição, mas também no procedimento de comparecimento imediato, no qual o suspeito sob custódia do Estado (“en garde à vue”) pode ser levado a julgamento caso o Parquet reúna provas suficientes para tanto e a pena não ultrapasse dois anos de prisão, nem tenha um procedimento especial previsto por outra lei, ou seja um delito político e de repercussão. As pesquisas sobre este procedimento indicam como os diferentes membros do Ministério Público colaboram entre si para a administração dos conflitos através de uma “cultura de grupo” (CHRISTIN, 2008), mas também para a administração dos processos numa “lógica de urgência” (MOUHANNA; BASTARD, 2010). No entanto, outro aspecto da relação entre a Polícia e os Substitutos é a cooperação, a proximidade e a relação de confiança (CHRISTIN, 2008; MOUHANNA, 2004). Nas audiências das jurisdições de proximidade, onde atuam os Officiers du Ministère Public a relação com a polícia é direta. O próprio Officier é um comissário de polícia. Esta atribuição institucional faz com que este comissário de polícia se identifique como “representante da sociedade”, como afirmou um deles em audiência a um jurisdicionado. Durante as audiências, os processos de tomadas de decisão se tornam explícitos e, desta forma, observáveis e descritíveis (LYNCH, 1998). A descrição das audiências nos permite compreender como a tomada de decisão é orientada por regras práticas do explicitadas durante a própria audiência e pelas quais os diferentes atores presentes

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compartilham o sentido das falas e das interações (GERALDO, 2013). Ao mesmo tempo, os jurisdicionados podem aprender e negociar através da linguagem dos juristas (POLLNER, 1979). Desta forma, as regras práticas para tomadas de decisão também são orientadas a partir da relação entre polícia e o Parquet. Ela é explicitada nas falas dos Officiers e dos juízes que não hesitam em manifestar a relação de confiança institucional existente entre Ministério Público e Polícia neste contexto. Para os fins da nossa demonstração, explicitaremos estas regras através da descrição das audiências. As audiências de Police nas jurisdições de proximidade têm a presença do juiz, do secretário da audiência (Greffier), do Officier do Ministério Público e do Huissier (quem faz as intimações e chama os casos nestas audiências), além dos advogados e dos réus, vítimas e testemunhas sempre presentes nestas audiências. O procedimento de julgamento começa quando o juiz entra na sala. O Huissier chama os réus, que podem se apresentar com ou sem advogado. As vítimas também são chamadas para constituir a Partie civile, isto é, para poder formular o pedido de danos materiais e morais quando são pertinentes. O procedimento começa com a leitura do PV (o processo verbal), onde constam os relatos dos policiais e também a assinatura do réu. Em seguida, é dada a palavra ao Officier que faz suas requisições. A palavra então é franqueada ao Réu (ou seu advogado). A vítima também se manifesta antes do juiz tomar sua decisão. As decisões são tomadas logo em seguida; no final da audiência; ou são proferidas numa data posterior que é indicada neste momento da audiência. A maior parte das decisões são tomadas logo em seguida às manifestações das partes do processo. Na presença de todos, a audiência transcorre em silêncio, quando se pode ouvir o que o juiz e os demais dizem. Esta dinâmica permite aos demais interessados aprender como se comportar e o que dizer durante a audiência (GERALDO, 2013). Há um forte componente moral nas falas do juiz e do Officier que repreendem os réus por seu comportamento relatado no PV, ou mesmo pela forma como se apresentam e falam durante a audiência. “Faire la morale” é a expressão que os franceses utilizam para as repreensões de cunho moral ao comportamento dos outros. Os próprios juízes reconhecem que fazem isto frequentemente durante as audiências. Os juízes têm um poder de polícia sobre a audiência. Assim, as repreensões aos advogados e aos jurisdicionados são frequentes quando os celulares tocam, o volume das conversas na

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sala aumenta, ou quando as pessoas permanecem sentadas quando deveriam estar de pé diante do juiz. A compreensão de que a palavra do policial tem um valor importante para orientar a tomada de decisão é institucionalmente compartilhada pelo juiz. Numa audiência do Tribunal de Police, um grupo de assistentes dos Guardas Municipais estava aguardando uniformizados o início da audiência. Antes de chamar os processos, o juiz começa uma cerimônia de juramento destes assistentes. A Procureure pediu que eles fossem leais ao juiz e que escrevessem apenas a verdade nos Processos Verbais. O juiz ditou o juramento. Os assistentes de pé diante do juiz levantaram a mão direita e disseram: — Eu juro. Noutra audiência, um caso em que um rapaz embriagado e nervoso cuspiu no policial. Após ressaltar este fato na leitura do PV, o juiz deu a palavra ao MP. Nas suas requisições, o Procureur constatou que o réu não teria mais direito ao sursis caso fosse condenado à prisão, que pareceu desproporcional para o caso. Então, disse: “— Eu não sei o que requerer de proibi-lo de beber, de proibi-lo de ficar nervoso... Eu requeiro uma pena de €200 contra ele.” Numa audiência da jurisdição de proximidade, o juiz leu o PV num caso de excesso de velocidade em que o réu foi parado pela polícia. O juiz disse: “— Eu leio, por que eu estou enjoado pela sua resposta ao policial”. E explicou que o réu disse que estava dirigindo rápido para poder comprar um tênis. O Officier, em seguida, complementou: “— Eu também estou chocado.” E requereu €600 de multa e 3 meses de suspensão da carteira de motorista. Em ambos os casos, o desrespeito à institucionalidade representada pelos policiais foi ressaltada nas tomadas de decisão. Sendo motivos para comentários tanto dos membros do Ministério Público quanto do juiz. Esta institucionalidade não se manifesta apenas quando ela é desrespeitada, mas também colocada em questão. Na audiência da jurisdição de proximidade, o juiz leu o PV de um senhor que estacionou o carro em local inapropriado e foi multado pelo policial. O réu contesta perguntando: “— Onde eu poderia estacionar?” O Officier retruca: “— Sem uma prova em contrário...” O réu reage novamente: “— Qual prova eu poderia trazer? Eu deveria ter tirado uma foto? Isto supõe que eu tenha uma.” O Officier responde novamente: “— Você poderia ter ido na sua casa para pegá-la.” O réu inconformado diz: “— Desculpe-me, senhor, mas eu moro longe. É a palavra contra a palavra [referindo-se ao relatado no PV]. Qual o espaço que me resta para fazer a prova em contrário?” O Officier diz em tom mais

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severo: “— Eu tenho a palavra de um Oficial juramentado.” Referindo-se ao policial que realizou o PV. Noutra audiência da mesma natureza,

o PV em questão tratava-se de um

motorista que dirigia sem o cinto de segurança. O Officier, sempre de pé para fazer suas requisições pediu “dois minutos de pedagogia” para explicar a questão ao Réu. Este defendeu-se dizendo que o PV não era válido, pois o carro estava em movimento e se afastou da polícia. Ele alegou que não cometeu o crime de fuga. O Officier retomou a palavra e explicou que não era por esta razão que o réu estava ali. E continuou afirmando que o PV era válido por que “o policial é juramentado”. Noutra audiência, o réu foi acusado de ultrapassar o sinal vermelho. O Officier pediu €250 de multa e 15 dias de suspensão da carteira de motorista. Em sua defesa, o réu disse que o sinal estava verde. O juiz falou: “— Você disse que você passou no sinal verde? — Não, eu passei no amarelo.” Respondeu o réu. “— Sim, está escrito por suas mãos.” Disse o juiz. O réu completa: “— Não, foi a polícia que escreveu. — Mas você assinou.” Retruca o juiz. “— Não.” Responde o réu. O juiz relendo o PV constata que ele realmente não assinou.: “— Desculpe-me, você não assinou.” Mesmo assim, o tom da conversa sugeriu que o réu estava colocando a versão da polícia em questão. A única prova era o relato do PV que não foi contestado pelo juiz publicamente que reduziu a multa em sua condenação a €150 e confirmou os 15 dias de suspensão da carteira de motorista. Noutra audiência, o réu contestava o fato de que ele não estava dirigindo o veículo quando foi multado. E que a foto na multa não permitia identificar quem estava dirigindo. O Officier explicou que o radar que realizou a foto era particular, pois havia um na entrada do túnel cuja velocidade máxima permitida era de 90km/h, enquanto na saída era de 80 km/h. E que o réu era o proprietário do veículo e, portanto, como não havia a transferência da responsabilidade a outra pessoa, ele responderia pela multa. O Officier afirmou irritado com as contestações do réu: “— O juiz tem outros problemas para resolver [ele usou a expressão “avoir d’autres chats à foueter”]. Você é o proprietário do veículo. Eu não tenho mais questões, senhor presidente.” Ao final, requereu €450 de multa. O juiz condenou o réu à €250 de multa se referindo às explicações “úteis do comissário”. E ainda ressaltou o fato de que era lamentável que as pessoas contestassem o trabalho da polícia. Os relatos presentes nos processos verbais não são nunca colocados em questão, mesmo quando são exclusivamente preenchidos pela polícia. Tanto os Procuradores,

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quanto os Officiers sublinham o fato de que a polícia é juramentada e que, portanto, não é possível colocar em questão a palavra da polícia a todo tempo. Durante a audiência, isto se torna uma regra importante explicitada nas interações descritas acima. Aliás, questionar a polícia torna-se um elemento que pesa negativamente contra os réus. O trabalho da polícia é enaltecido a partir de suas relações institucionais como o juramento e sua responsabilidade com o Parquet. Outra regra percebida negativamente pelo Officiers é a ausência dos réus no julgamento das contravenções (majoritariamente infrações de trânsito) pela jurisdição de proximidade. Neste procedimento, quando alguém é autuado. A multa pode ser paga, ou recorrida ao judiciário. Este recurso é encaminhado ao MP para que responda. Em muitos casos, os Officiers revisam o trabalho dos policiais, chamando-os a dar explicações suplementares ao PV. A ausência daqueles que recorrem na audiência é vista como um sobretrabalho inútil. Como um Officier disse numa audiência: “— Eles nos fazem trabalhar por nada.” Estes procedimentos são julgados ao final da audiência, quando a sala já está vazia. Em diferentes fóruns, a regra se apresentava da mesma forma, como disse um juiz: “— Se eles não estão presentes, a gente não tá nem aí [ele usou uma expressão francesa em tom coloquial “on s’en fiche”]!” Estar presente para apresentar as razões pela qual recorreu e discorda da multa é uma atitude percebida como indispensável para estes atores. Os valores das multas são comumente majorados nestas ocasiões e todos confirmados pelos juízes que compartilham a mesma impressão dos representantes do MP. 6. Conclusão: Os significados da (des)confiança institucional Estas regras práticas, que orientam a tomada de decisão nestes contextos, explicitam formas de relação institucionais entre a Polícia e o Ministério Público. No caso Brasileiro, apesar de darmos enfoque neste artigo à relação entre os policiais e o Ministério Público, percebe-se na avaliação das práticas para a produção dos pareceres como o trabalho das outras instituições estão em contato e são representadas por estes procuradores. Atuando como revisor na 2ª instância, o Ministério Público avalia o trabalho realizado por outras instituições, como a polícia (apreciando a qualidade dos depoimentos dos policiais que são testemunhas nos processos criminais); o poder judiciário (corroborando, ou não, um entendimento consolidado numa sentença); mas

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também da própria instituição (acolhendo, ou não, o recurso interposto por um promotor de justiça da 1ª instância). No Brasil, Paes (2013) afirma existir “sistemas de segurança e de justiça”, uma vez que a polícia é considerada uma instituição separada do sistema judiciário, contrariamente ao sistema de justiça francês onde o “aparelho de justiça é integrado, porque os inquéritos fazem parte do processo sem nenhum problema de legitimidade” (2013, p. 337). A pesquisa no MPRJ explicita tal campo de disputa, mas não apenas entre policiais e promotores, uma vez que todas as instituições que operam na administração de conflitos concorrem na administração simbólica do direito. A relação de desconfiança dos procuradores no Brasil em relação à polícia é explicitada nas peças processuais enquanto uma dúvida em relação ao valor do testemunho do policial. Uma regra prática para a produção dos pareceres orienta que, quando os depoimentos da polícia são contraditórios, indica-se a absolvição dos réus. Além disto, outra regra prática diz que é irrelevante a condição de policial para dar maior ou menor valor aos depoimentos. Estas regras, porém, são desenvolvidas no trabalho prático de realização dos pareceres e não são regras universais e consensuais entre os membros do MP. Elas demonstram a hierarquia entre estas instituições. Esta hierarquia não é funcional, mas em relação ao conteúdo do trabalho, uma vez que os Procuradores não apenas avaliam a atuação dos policiais, mas também modificam o significado do que é apresentado pelos policiais. Porém, esta desconfiança institucionalizada não se apresenta na forma de identificação da responsabilidade dos diferentes atores. Nenhuma responsabilidade dos policiais é apurada em caso de uma interpretação diferente dos fatos, assim como o próprio entendimento dos Procuradores não é colocado em questão nestes casos. Por outro lado, a confiança entre os representantes do Parquet e os policiais franceses é explicitada nos diferentes tipos de audiências criminais através do reconhecimento de um valor da palavra dos policiais. O juramento dos policiais não possui um sentido apenas formal, mas é usado como argumento institucional para construir esta confiança. Esta confiança entre Procuradores e Substitutos é salientada por outras pesquisas que demonstram a cumplicidade e a cooperação entre os Parquetiers e os policiais, que possuem uma relação menos hierarquizada do que se supõe, em razão da proximidade em que trabalham nos procedimentos de comparecimento imediato (MOUHANNA; BASTARD, 2010). Nas audiências, observou-se que quando as

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declarações da polícia eram questionadas quanto a sua veracidade, o juiz e o representante do Ministério Público explicavam que os policiais eram juramentados e que, portanto, não poderiam mentir. Assim, as contestações fundadas neste argumento eram interpretadas de uma forma negativa. Como os julgamentos eram realizados no final da audiência, pode-se constatar como isto pesava contra os réus nas condenações. Mesmo as políticas de segurança pública indicam como estas diferentes instituições se articulam em ambos os países. A noção de proximidade surge com a articulação das instituições no sistema criminal francês (WYVEKENS, 1997). As diferentes políticas de segurança pública fizeram dos membros do Parquet atores indispensáveis na articulação das instituições do sistema de justiça criminal. Pesquisas mais recentes demonstram como a própria identidade profissional dos Procuradores e Substitutos incorporou esta dinâmica cooperativa com a polícia. Milburn (2010) afirma que os Procuradores se encontram hoje no centro das políticas de segurança pública, uma vez que atuam com autonomia para gerir as questões locais sem prescindir das diretivas estabelecidas pela hierarquia institucional. No Brasil, ao caracterizar a relação enquanto uma desconfiança institucional pretende-se explicitar esta relação hierárquica no caso brasileiro entre as instituições no campo da segurança pública (KANT DE LIMA, 1995; MENDES DE MIRANDA; BERALDO DE OLIVEIRA; FERREIRA PAES, 2007; MISSE, 2011). As políticas de segurança pública não conseguem produzir estas relações de proximidade e cooperação entre Ministério Público e polícias (FERREIRA PAES, 2010). Como conclusão, a divisão do trabalho entre estas instituições demonstra como a transparência e a cooperação na administração da justiça produzem a confiança entre os atores no caso francês ao passo que a opacidade das formas de produção dos pareceres e a disputa institucional pelo controle sobre os fatos caracteriza tal relação no caso brasileiro. Bibliografia AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; VASCONCELLOS, Fernanda Bestetti de. A influência das concepções de política criminal nos posicionamentos adotados pelos membros do Ministério Público Federal sobre as funções e a eficácia do sistema penal. In: Anais do 37º Encontro Anual da Anpocs. Águas de Lindóia/SP, 2013.

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