A (des)consideração do direito à fidelidade do cônjuge: um contributo à teoria da responsabilidade civil familiar

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A (des)consideração do direito à fidelidade do cônjuge: um contributo à teoria da responsabilidade civil familiar Raul Cézar de Albuquerque Acadêmico de Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Colunista do periódico eletrônico Obvious Magazine – autor da coluna A Razão Singular do Segredo. Foi Pesquisador Universitário Bolsista pelo Programa Jovens Talentos para a Ciência (2013/2014). E-mail: .

Resumo: Dentre os deveres conjugais, a fidelidade é provavelmente o mais polêmico, envolvendo questões morais, religiosas e jurídicas. Além disso, o seu inadimplemento é cercado de problemas de ordem jurídica, porquanto o ingresso da responsabilidade civil do direito familiarista é um caminho pedregoso, enfrentando questionamentos sobre a monetarização do afeto e acerca da privacidade e da liberdade como direitos fundamentais. Descrito o quadro, é necessário abrir novos caminhos para chegar a novas respostas.

Palavras-chave: Direito de família. Casamento. Deveres conjugais. Responsabilidade civil familiar. Sumário: 1 Considerações iniciais – 2 Uma revisitação histórica – 3 Anotações sobre o dever de fidelidade recíproca – 4 A infidelidade como uma questão de direito matrimonial – 5 A infidelidade como uma questão de responsabilidade civil – 6 O quadro jurisprudencial e seus equívocos – 7 No toar da retificação – 8 O direito à fidelidade do cônjuge – 9 Por uma teoria da responsabilidade familiar – 9.1 Por um novo dever de fidelidade – 9.2 Para além da subsunção – 10 Considerações finais – Referências

1 Considerações iniciais O adultério foi o grande tema da literatura realista do século XIX. Enquanto o casamento, como quintessência da família burguesa, era o ápice do romance românti-co, o realismo, como contramovimento, vê no estado conjugal um locus problemático.

De certo, Flaubert incita discórdia na sociedade francesa ao publicar, no ano de 1857, o seu Madame Bovary, visto que o livro, ao tocar no delicado tema do adultério, feriu o ideário do sagrado matrimônio que vigorava de modo inquestionável à época. Mas a obra do francês coloca-se como vanguarda, precedendo outras grandes obras sobre o mesmo tema. No clássico romance, Emma casa-se como o Charles Bovary. Como boa leitora dos folhetins românticos, a jovem imaginava o matrimônio como o auge da felicidade vivida. No entanto, a frustração dessas expectativas sobrevém de modo paulatino. Madame Bovary, então, continuava sem saber, e precisava conhecer, de algum modo,

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―o que significavam exatamente na vida as palavras felicidade, paixão e êxtase, que 1

haviam lhe parecido tão belas, nos livros.‖ Na busca por essa significação, Emma inicia uma vida de sucessivos adultérios e dívidas exorbitantes. Frustrada também essa busca e insustentável o pesar moral, o fim da personagem é o suicídio.

O suicídio de Emma Bovary é icônico, vez que a morte, por si só, é a maior pena que se pode aplicar a alguém; e, no romance, é a própria Emma, carregada de culpa, que se condena a tal destino. Adulterar, à época da publicação do romance, era violar o que havia de mais importante e sagrado na sistemática social: os augustos laços do matrimônio. O casamento é mesmo este misterioso domínio situado na tumultuada fronteira entre o Estado, a Moral e a Religião. E não é por outro motivo que ele é tão informa-do pelas mudanças sociais; sua complicada posição simultaneamente avulta-lhe a importância e dificulta a sua definição. E o adultério, como conceito carnalmente ligado ao de matrimônio, possui a mesma dificuldade de estabelecer um significado e, com isso, uma valoração. O Direito, como disciplina social, depende dessa valoração para atribuir-lhe efeitos.

2 Uma revisitação histórica É incontornável fazer constar que o adultério sempre foi uma realidade nas sociedades que elegeram o matrimônio como a principal — e, por vezes, a única — forma constitutiva de família, e a monogamia como seu ideal moral. O que mudou durante a História, no entanto, foi o modo como o adultério foi tratado. Cabe anotar que o repúdio moral ao adultério é consequência da vitória da retóri-ca do direito canônico no tratamento da questão matrimonial, visto que a monogamia e a fidelidade sempre foram valores muito caros à moral cristã. Disso decorre que o adultério passa a existir como um problema a partir da sacramentalização do casamento.

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No Medievo, encontra-se uma figura curiosa na repressão ao adultério: o charivari.

O filósofo francês Luc Ferry relata os detalhes do costume nos seguintes termos: Quando o marido é traído, ou, pior ainda, quando apanha, é costume dos aldeões lhe darem uma surra, se ouso dizer, à moda de um belo charivari. [...] Então eles põem o infeliz marido ao contrário sobre um burro (é a ‗algazarra‘), em seguida o pintam de vermelho, atiram-lhe legumes podres 3 na cara, espetam, batem um pouco nele, insultam, xingam.

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FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. São Paulo: Martin Claret, 2014, p. 55. John Gilissen aponta que ―o casamento é um sacramento, pelo menos desde o séc. XII e XIII; certas regras que o regem são de direito divino, sem qualquer possibilidade de dispensa. Outras são de direito eclesiástico, podendo ser eventualmente dispensadas pela autoridade eclesiástica‖ (GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, p. 569-570) FERRY, Luc. A revolução do amor: por uma espiritualidade laica. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p. 87.

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O costume é, simultaneamente, curioso e revelador. O charivari destaca quem seria o sujeito devedor da fidelidade conjugal e quem seria o sujeito titular dessa fidelidade. Inicialmente, nesse contexto, a fidelidade matrimonial somente é devida pela mulher. Muito embora a moral declarada obrigasse os dois cônjuges à fidelidade, tal dever só era cobrado da esposa, sendo as ―faltas‖ do esposo totalmente perdoadas, ignoradas, e até incentivadas em algumas situações. De outro giro, o titular da fidelidade conjugal é a comunidade, o vilarejo, o aldeão. O que, a princípio, parece uma ideia absurda, mas que resta logo clara: se é o vilarejo quem une os noivos sob os sagrados laços do matrimônio e se esse vínculo serve à própria comunidade, é apropriado que ela mesma tutele a moralidade e bom andamento do casamento. O charivari, portanto, é construto de uma época em que os casais não se casavam, mas eram casados — ressalva que se faz importante para ressaltar que as vontades dos nubentes eram quase sempre ignoradas e que os casamentos eram ar-ranjados pelas famílias com objetivos bem demarcados: a manutenção da linhagem, a reprodução dos costumes e a produção de mão de obra. O cenário parece mudar no século XIX. Luc Ferry destaca esse século — que é estrategicamente posterior à Revolução Francesa e Revolução Industrial — como o momento paradigmático na questão matrimonial: o surgimento do 4 casamento por amor. O amor-eros existe bem antes do século XIX, bem como o casamento, mas a coabitação destes dois entes é fato que exsurge como regra apenas a partir dessa época. O processo de rápida industrialização esvaziou os vilarejos e trouxe os jovens às cidades, locais em que estes estavam longe da tutela do patriarca e tinham maior liberdade na escolha dos seus futuros cônjuges. Sob a influência da literatura român-tica de sua época, a juventude passou a almejar casamentos que trouxessem em seu bojo o amor-eros e, por conseguinte, a felicidade individual; o que representou verdadeira reviravolta na questão matrimonial, que, até pouco tempo, preconizava a função social do casamento. Afastada a tutela do patriarca — e do vilarejo — sobre o casamento, a defesa da fidelidade passa a ser tutelada pelo cônjuge ofendido. E, como o Estado, a essa altura, já detinha o monopólio do uso da violência, o adultério surge como crime. O Código Criminal brasileiro de 1830 já dispunha sobre o crime de adultério, regrando que a mulher adúltera seria apenada com prisão de um a três anos, sob regime de trabalhos forçados. O esposo só seria enquadrado no tipo penal se mantivesse relacionamento de concubinato com ―teuda e manteuda‖, enquanto, para a

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FERRY, Luc. A revolução do amor: por uma espiritualidade laica. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p. 77-107.

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esposa, o simples flagrante era suficiente para condená-la. A mesma disposição repetiu-se no Código Penal de 1890. A regulação criminal do adultério revela alguma mudança no tratamento da questão infidelidade. Se compararmos com o regime do charivari, o crime de adultério revela a tutela individual da fidelidade conjugal, vez que só o cônjuge ofendido pode motivar a ação penal contra o adúltero. No entanto, mantém-se a distinção de tratamento entre a adúltera e o adúltero, a postura da mulher que incorre em traição acaba por ser mais reprovada pelo sistema jurídico, reflexo claro de uma conjuntura social machista. O Código Penal de 1940, ao tratar o crime de adultério, no toar das reformas sociais do século XX, retira a distinção de tratamento entre a traição realizada pelo esposo e a impetrada pela esposa, caminhando em direção ao que se consagraria com a Carta Constitucional de 1988, que dispõe que o poder familiar e os deveres conjugais são atribuídos no mesmo espectro tanto pelo homem quanto pela mulher, anunciando ventos de igualdade. O existir de um crime de adultério revela uma tutela estatal sobre a fidelidade conjugal recíproca, ou seja, embora apenas o cônjuge ofendido possa dar início à ação penal, a sanção penal sobre o adúltero anuncia que a prática da monogamia serve à ordem pública, e não apenas à satisfação individual. Nesse sentido, explica o penalista Cezar Roberto Bitencourt, o Direito Penal limita-se a castigar as ações mais graves praticadas contra os bens jurídicos mais importantes [...] deixando, em princípio, sem punir ações que possam ser consideradas como imorais, tais como o in6 cesto, a homossexualidade, a infidelidade no matrimônio ou a mentira.

Por isso, em 2005, é extinto o crime de adultério, inaugurando uma nova fase no tratamento jurídico da infidelidade, tornando-a um problema exclusivo do Direito Civil.

3 Anotações sobre o dever de fidelidade recíproca Antes de adentrar aos átrios do atual quadro de tratamento jurídico da questão infidelidade, é de bom alvitre redigir algumas notas sobre o dever de fidelidade recíproca.

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Observe-se que a infidelidade masculina só era reprovável quando passava a sustentar economicamente a concubina, ou seja, só incomodava o Estado a postura do cônjuge varão infiel, quando ela afetava o patrimônio familiar, desviando-o da família oficial para servir à família paralela (ou irregular). Desse modo, vê-se que, nesse caso, o Estado não procura tutelar a moralidade da família, mas sim seu patrimônio. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 55-56. v. I.

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Inicialmente, é importante lembrar que, independentemente de ser norma moral de fortíssimo cunho religioso, o dever de fidelidade é norma jurídica, protegida ao acalanto do Código Civil, referendado pelo artigo 226, §5º, da Constituição Federal.

Dito isso, Arnoldo Wald tem lição muito didática sobre o tema. Basicamente, o dever matrimonial, segundo o autor, sagra-se em duas obrigações: uma de fazer 7 e uma de não fazer. A primeira obrigação que decorre do dever de fidelidade seria a de coabitar, no sentido de manter relações sexuais com o cônjuge — estas chamadas por certa dou-trina de prestações fisiológicas —, era o chamado debitum conjugale. Este débito era consequência da visão do casamento como um contrato que 8 estipula o jus in corpus, opinião difundida com muita força até o século XX. E, nesse sentido, assemelha-se ao dever de coabitação. É óbvio que esta obrigação resta plenamente inexigível, principalmente quando analisada sob o óculo da repersonalização das relações civis — mormente as fami-liares — e à luz dos princípios constitucionais que informam diretamente o direito de família. Na verdade, para tornar absurda tal interpretação do dever de fidelidade não é preciso recorrer aos argumentos axiológicos, vez que o próprio Código dispõe regras sobre a tutela do próprio corpo, não sendo esta passível de cessão por ocasião do matrimônio. A outra obrigação que exsurge do dever de fidelidade é a de não fazer, a saber, a de não manter relações de índole marital com alguém estranho à relação conjugal. Deste ponto, surge a questão sobre qual seria o ato capaz de caracterizar o descum-primento do dever de exclusividade. Caio Mário da Silva Pereira capitaneia corrente que apregoa que só a infidelidade física, consubstanciada na relação sexual com pessoa alheia à relação marital, tem 9 o condão de locupletar o inadimplemento da obrigação. Há quem defenda, no entanto, que a infidelidade moral, configurada na relação afetiva de índole marital com 10 terceiro, pode ensejar também a caracterização do descumprimento do dever, como a doutrinadora Regina Beatriz Tavares da Silva Papa dos Santos: 7 8

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WALD, Arnoldo. O novo direito de família. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 83. Nessa vereda, é de se pontuar, a título exemplificativo, a opinião de Immanuel Kant, que, influenciado pela cosmovisão de sua época, escreve que ―o matrimônio (matrimonium) é a ligação de duas pessoas de sexos diferentes para a posse recíproca de suas propriedades sexuais ao longo da vida‖ (KANT, Immanuel. Princípios metafísicos da doutrina do direito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014, p. 87.) PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Atualizado por Tânia da Silva Pereira. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 171. v. V. É de se fazer notar que a opinião de que a infidelidade moral é ato capaz de configurar o inadimplemento do dever civil de fidelidade se espraia por boa parte da doutrina. Villaça Azevedo (Direito de família. São Paulo: Atlas, 2013, p. 122), por exemplo, anota que o ―dever recíproco de fidelidade, estaria englobando em seu amplo significado, pelo prisma negativo, a infidelidade física e a moral.‖ Maria Helena Diniz (Curso de direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 148. v. V.) cursa o mesmo caminho interpretativo do dever: ―é preciso não olvidar que não é só o adultério que viola o dever de fidelidade recíproca, mas também atos injuriosos, que, pela sua licenciosidade, com acentuação sexual, quebram a fé conjugal.‖

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Não é apenas o adultério, relação carnal fora do casamento, que carac-teriza o descumprimento desse dever. Todo ato que tenha em vista sa-tisfazer aquele instinto, como o namoro do cônjuge com terceira pessoa, é havido como infração do dever de fidelidade, 11 mesmo sem chegar à cópula carnal, que, por sinal, é de difícil prova.

Houve, nos ventos da contemporaneidade, recente discussão sobre a infideli-dade virtual, a que consiste na manutenção de relação erótico-afetiva por meio de cartas, e-mails ou outros meios eletrônicos. Ora, a infidelidade virtual é apenas uma modalidade de infidelidade moral, caracterizando igualmente o descumprimento do dever.

4 A infidelidade como uma questão de direito matrimonial 12

Após séculos sendo tratado como crime, o adultério passa a ser apenas um ilícito civil, consagrando sistema de valores jurídicos em que a fidelidade conjugal compõe a cartela dos itens pertinentes somente à esfera privada. Por força da moral que influenciou o Código Bevilácqua, a causa primeira e principal da separação era o adultério, porquanto a infidelidade era o motivo mais gritante da insuportabilidade da vida em comum, tornando penosa a convivência no lar conjugal. Na forma da Lei do Divórcio (nº 6.515/77), ao cônjuge culpado — também chamado de ―divorciando vencido‖ — eram impostas determinadas sanções punitivas civis, tais como a possibilidade da perda da guarda do filho menor, assim como, sendo mulher a culpada, ensejava a perda do patronímico do esposo e do direito aos alimentos. Logo após a publicação da Lei do Divórcio — que já representava grande avanço na questão da dissolução do vínculo conjugal —, a jurisprudência e a doutrina empreenderam esforços em, pouco a pouco, retirar a eficácia maléfica da separação ao cônjuge considerado culpado pelo fim do casamento, vez que, além da clara dificuldade (por vezes, da impossibilidade) em determinar quem seria o culpado pelo fim do vínculo, as sanções previstas na lei eram demasiadamente inadequadas. A lei previa, por exemplo, que o cônjuge considerado culpado poderia perder a guarda do filho menor. Essa disposição é equivocada, porquanto é de bom-tom que o filho menor seja guardado pelo genitor que ofereça melhores condições materiais e

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SANTOS, Regina Beatriz Tavares da Silva Papa dos. Responsabilidade civil dos cônjuges. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha. A família na travessia do milênio. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 128.

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A partir deste ponto, os termos ―adultério‖ e ―infidelidade‖ serão tratados como se sinônimos fossem, embora sabidamente não sejam. É pacificado entender o adultério como espécie do gênero infidelidade, sendo aquele a manifestação física (expressa na conjunção carnal) deste. Como cremos que tanto a infidelidade física (adultério) quanto a moral têm a mesma índole, não vemos sentido em aderir à distinção neste trabalho.

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morais para exercer o múnus da guarda, independentemente de ter ele dado causa ou não ao término da sociedade conjugal. A perda compulsória do patronímico do consorte era sanção que violava diretamente direito da personalidade, a saber, o direito ao nome, que compõe a esfera de liberdade da pessoa. De outra sorte, a perda do direito aos alimentos por imputação de culpa era atentatória ao dever de sustento, que persiste mesmo após o divórcio, e que 13 se funda na consideração do binômio necessidade-possibilidade. Com o advento da Carta Constitucional de 1988, anunciando novos tempos com seu longo repertório de princípios e direitos fundamentais, restou praticamente morta a eficácia da atribuição de culpa a algum dos divorciandos no âmbito matrimonial. Assim, passaram a ser resolvidas as questões como guarda de filhos menores, fixação de alimentos ao ex-cônjuge e manutenção (ou não) do patronímico do consorte a partir de outros balizamentos, estes, por seu turno, fundados na dignidade da pessoa humana, na escolta dos direitos da personalidade, na solidariedade social e na proteção integral à criança e ao adolescente. Nessa vereda, escrevera Orlando Gomes que se observava, já antes da travessia do milênio, ―a substituição da ratio do divórcio pelo gradual, mas insistente, abandono da ideia de culpa como sua justificação, até mesmo por sua 14 inadequação aos problemas do divórcio‖. O Código Civil de 2002, no entanto, curiosamente parece ter repristinado o problema da culpa no fim da relação conjugal, elencando um rol extenso de atos ou fatos que teriam o condão de tornar inviável o consórcio de vidas, desembocando, assim, no divórcio. No entanto, não há sentido em entender que o Código — enquan-to corpo normativo infraconstitucional — possa ressuscitar questão que a própria Constituição — como vértice superior da pirâmide normativa — tornou letra morta. É a opinião também de Paulo Lôbo: Desde a década de 70 do século XX, a tendência que se observa nas legislações dos povos ocidentais é a da supressão do papel da culpa como requisito para as separações judiciais ou para o divórcio. Cresce a convicção da inoportunidade e da inutilidade da intervenção do Estado, mediante Poder Judiciário, na sindicação das causas das 15 separações dos casais, como fez o Código Civil de 2002.

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SANTOS, Regina Beatriz Tavares da Silva Papa dos. Responsabilidade civil dos cônjuges. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha. A família na travessia do milênio. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 132-133. GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 52. LÔBO, Paulo. Dissolução da sociedade conjugal: separação judicial e suas modalidades. In: CHINELLATO, S. J. de A.; SIMÃO, J. F.; FUJITA, J. S.; ZUCCHI, M. C. Direito de família no novo milênio: estudos em homenagem ao Professor Álvaro Villaça Azevedo. São Paulo: Atlas, 2010, p. 285-294.

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Na verdade, a superveniência da Emenda Constitucional nº 66/2010, inaugura uma nova época no tratamento da questão do divórcio. Com a reforma do artigo 226 da Constituição, são expurgados, num só ato, o critério temporal e o 16 critério moral para a concessão do divórcio. Dessarte, afiguram-se anacrônicas e falidas as ideias de divórcio-sanção, de divórcio-falência e de divórcio-remédio, exsurgindo do atual contexto jurídico civilcons-titucional a figura do divórcio como um direito — e mais, um direito personalíssimo e fundamental.

5 A infidelidade como uma questão de responsabilidade civil Uma vez restando inócua a questão da infidelidade na dissolução do vínculo conjugal pela ausência de efeitos da constatação da culpa de algum dos cônjuges, a parte da doutrina que defendia calorosamente a existência de culpa no fim do casamento passou a arvorar que o cônjuge ofendido por violação de qualquer dos deveres matrimoniais poderia ingressar com ação judicial requerendo indenização por danos morais, tornando a infidelidade um problema de responsabilidade civil. A priori, surge um aparente descompasso entre a ideia de família e de responsabilidade civil, visto que, enquanto esta se baseia na consideração das obrigações civis, aquela se propõe como o locus da afetividade e da plena realização dos indivíduos que dela participam. Nesse sentido primeiro, permitir a entrada da responsabilidade civil nas relações familiares seria — numa espécie estranha e maléfica de Midas — transformar em pecúnia o que é intrínseca e essencialmente afeto. No entanto, como bem esclarece Marcos Ehrhardt Jr., ―não se trata de valorar economicamente situações existenciais, fixando-lhes um quantum, mas sim de garantir a tutela, vale dizer, proteção máxima a direitos de caráter personalíssimo‖.

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Nesse toar, permitir a entrada da responsabilização civil nas relações de direito de família não significa monetarizar a dignidade do partícipe do seio familiar, antes é dispor de mais uma via jurídica para salvaguardar direitos fundamentais, ainda que por via indenizatória. Ou seja, responsabilizar civilmente o familiar que perturba o núcleo da família descumprindo deveres civis é perseguir o ideal constitucional de proteger especialmente a família, enquanto base da sociedade. Superado esse primeiro obstáculo ideológico, resta-nos saber se o regime de responsabilidade civil a ser aplicado nas relações de família deve ser o negocial ou o extranegocial, o que é questão de relevo no assunto que ora tratamos. Por ter o

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LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 142. EHRHARDT JÚNIOR, Marcos A. de A. Responsabilidade civil no direito das famílias: vicissitudes do direito contemporâneo e o paradoxo entre o dinheiro e o afeto. In. ALBUQUERQUE, F. S.; EHRHARDT JÚNIOR, M.; OLIVEIRA, C. A. de. Famílias no direito contemporâneo: estudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. Salvador: JusPodivm, 2010, p. 362.

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casamento ares de contrato — mesmo sendo um ―contrato‖ muito distinto daqueles que dizem respeito ao direito civil contratual —, parte da doutrina familiarista atinente à questão pugnou pela aplicação da responsabilidade civil negocial (ou contratual), com mais clangor a autora Regina Beatriz Papa dos Santos: Observe-se que os deveres dos cônjuges nascem do contrato de casamento, embora sejam estabelecidos em lei, de forma que sua violação acarreta a responsabilidade contratual. Esses deveres impõem certos comportamentos aos cônjuges, cujo descumprimento consciente do qual 18 resulte dano acarreta a responsabilidade do faltoso.

É fácil perceber que a fala da doutrinadora carrega ainda a questão da culpa no fim do matrimônio, que, como visto, é questão que restou silenciada pela doutrina e pela jurisprudência. No entanto, a questão da infidelidade vem sendo tratada nos tribunais brasilei-ros como caso de responsabilidade civil extranegocial e vez sendo julgada de modo apartado da questão do divórcio ou da culpa na superveniência deste. O que se afigura justo e razoável, uma vez que, como lembra o civilista Zeno Veloso, ―se não fosse possível pedir indenização por violação dos deveres matrimoniais, a enumera-ção desses deveres não passaria de um discurso vazio do legislador‖.

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6 O quadro jurisprudencial e seus equívocos Como demonstrado, o surgimento de pretensão a indenização por danos mo-rais (ou extrapatrimoniais) em caso de adultério é questão pouco pacífica tanto na doutrina quanto na jurisprudência. Então, é de bom alvitre observar de modo mais demorado o que se vem decidindo nos tribunais em terrae brasilis quando o assunto é infidelidade conjugal. O Superior Tribunal de Justiça, em julgado relativamente recente, decidiu que não surge pretensão indenizatória do cônjuge ofendido quando ―ausente a intenção do ex-cônjuge de lesar ou ridicularizar o cônjuge traído‖.

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Observe-se que o pretório

deseja sondar os corações, ou mais grave, que o autor prove de modo inequívoco que o cônjuge que foi infiel teve animus direto de aviltar sua dignidade, tornando praticamente impossível a satisfação do pleito. É o que Anderson Schreiber chama

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SANTOS, Regina Beatriz Tavares da Silva Papa dos. Responsabilidade civil dos cônjuges. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha. A família na travessia do milênio. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 134-135. VELOSO, Zeno. Deveres dos cônjuges: responsabilidade civil. In: CHINELLATO, S. J. de A.; SIMÃO, J. F.; FUJITA, J. S.; ZUCCHI, M. C. Direito de família no novo milênio: estudos em homenagem ao Professor Álvaro Villaça Azevedo. São Paulo: Atlas, 2010, p. 180. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental em Recurso Especial nº 566.277 MG. Relatora Maria Isabel Gallotti. Acórdão. Data: 06/11/2014. Disponível em: Acesso em: 28 jun. 2015.

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de ―prova diabólica‖, visto que almeja ―análises psicológicas incompatíveis com os 21 limites naturais da atividade judiciária‖. No mesmo sentido equívoco do Superior Tribunal de Justiça, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais negou provimento a ação que requeria indenização por dano moral em razão de adultério, porque notou a ―ausência de prova de ofensa à honra subje-tiva‖, ou seja, requerendo prova do abalo moral psicológico causado ao ofendido.

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O Tribunal de Justiça

do Distrito Federal julgou que o consorte traído, para ter direito a indenização por danos morais, deve ter sofrido ―grave humilhação e exposição‖.

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Esse tipo de persecução da dor, do sofrimento, do abalo moral não pode continuar sendo operada, visto que pertence à época pretérita do tratamento dos danos morais, plenamente superada. Já não cabe equiparar a indenização ao pretium doloris, porque, como se sabe, a dignidade, mesmo quando atingida, não possui preço. Há lesão à honra no momento em que a honra da vítima vem a ser concre-tamente afetada, e tal lesão em si configura o dano moral. A consequência (dor, sofrimento, frustração) que a lesão à honra possa 24 vir a gerar é irrele-vante para a verificação do dano.

Vê-se, em síntese, que a jurisprudência nacional selecionou o caminho da res-ponsabilidade civil extranegocial para tratar a questão da infidelidade conjugal e que elegeu, para tanto, os critérios da dor moral do ofendido e da culpa subjetiva do ofensor.

7 No toar da retificação Primeiramente, é necessário trazer os sólidos argumentos doutrinários que su-plantam as teses utilizadas — ainda que implicitamente — pela praxe jurisprudencial brasileira no tratamento da questão em comento. Há anos, a doutrina civilista vem indicando a impropriedade dos critérios como dor, sofrimento, abalo moral, humilhação, aflição, constrangimento, entre outros, na cognição dos processos atinentes à questão da infidelidade. Isso porque o Direito não pode adentrar a essas veias subjetivistas da insondável personalidade humana com todas as suas variáveis e vicissitudes. É o que explica a autora Maria Celina Bodin de Moraes:

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SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. São Paulo: Atlas, 2013, p. 17. BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível nº 10699060652137001. Relator Brandão Teixeira. Data: 10/07/2013. Disponível em: Acesso em: 28 jun. 2015. BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Apelação nº 0118170-83.2005.807.0001. Relator J. J. Costa Carvalho. Acórdão. Data: 15/04/2009. Disponível em: Acesso em: 28 jun. 2015b.

SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. São Paulo: Atlas, 2013, p. 134.

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Se a violação à situação jurídica subjetiva extrapatrimonial acarreta, ou não, um sentimento ruim, não é coisa que o Direito possa ou deva averi-guar. O que o ordenamento jurídico pode (e deve) fazer é concretizar, ou densificar, a cláusula de proteção humana, não 25 admitindo que violações [...] permaneçam irresarcidas.

Cabe reiterar ainda o descabimento dos argumentos que tomam a jurispru26

dência no sentido de tornar a indenização por danos morais o sucedâneo jurídico equivalente ao ―preço da dor‖, uma vez que, não obstante a posição considerável da doutrina no sentido de expurgar da cognição judicial o critério subjetivista do abalo moral, a jurisprudência tem sido reincidente no uso — e no abuso — do parâmetro. Além disso, é flagrante a cobrança da prova da culpa subjetiva do cônjuge infiel, que faz parte de uma retórica complicada — e pouco sustentável no atual contexto civil-constitucional — segundo a qual a reparação guardaria em si um caráter puni-tivo, além do toar compensatório, esquecendo que, com o advento da Constituição de 1988, a responsabilidade civil deixou de ser instrumento de vingança para ser instituto de salvaguarda da dignidade da pessoa humana em toda a sua extensão. Tal postura do Judiciário faz lembrar o alerta de Pontes de Miranda: A teoria da responsabilidade pela reparação dos danos não há que se ba-sear no propósito de sancionar, de punir, as culpas, a despeito de se não atribuir direito à indenização por parte da vítima culpada. O fundamento, no direito contemporâneo, está no princípio de que o dano tem que ser reparado, se possível. A restituição é que se tem 27 por fito, afastando qualquer antigo elemento de vingança.

O que se percebe, ao analisar o atual tratamento jurisprudencial da questão, é a construção de inúmeras barreiras à satisfação do pleito do cônjuge ofendido pela infidelidade, como a comprovação de intenção do consorte infiel em expor ou deson-rar o cônjuge, o que, obviamente, impossibilita o provimento do pedido. Como substituição destes critérios impróprios, Paulo Lôbo, na vereda da cons-titucionalização do direito civil, aponta que a reparação por dano moral está intima-mente ligada à disciplina dos direitos da personalidade.

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27

BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 131. Maria Celina Bodin de Moraes (Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 145) ainda anota preferência pela expressão ―ressarcimento por danos morais‖, visto que a palavra ―indenização‖ carrega, em sua etimologia, o sentido de reparar integralmente o dano, de fazer o bem lesado retornar ao status quo ante, o que é notadamente impossível no tratamento dos danos à dignidade humana. Embora o alerta seja válido, entendemos que as expressões ―indenizar‖ e ―ressarcir‖ acabaram por desembocarem na sinonímia, como percebe o filólogo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (Miniaurélio século XXI: o minidicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 413, 641). PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Tomo XXII. São Paulo: Borsoi, 1968, p. 183.

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Segundo o autor, para fazer jus ao ressarcimento pelo dano não é necessário que o indivíduo tangido percorra o tortuoso caminho da prova do prejuízo provocado pelo ato ilícito, bastando apenas a indicação do direito pessoal violado. Os direitos da personalidade oferecem um conjunto de situações definidas pelo sistema jurídico, inatas à pessoa, cuja lesão faz incidir diretamente a pretensão aos danos morais, de modo objetivo e controlável, sem qualquer necessidade de recurso à existência da dor ou do prejuízo. [...] Assim, verificada a lesão a direito da personalidade, surge a neces-sidade 28 de reparação do dano moral. (grifo nosso)

No sentido da lição de Lôbo, é lícito perguntar: qual direito da personalidade é violado em caso de infidelidade conjugal?

8 O direito à fidelidade do cônjuge O gênio romano construiu a máxima jus et obligatio sunt correlata, ou seja, para cada dever há um direito correspondente. Na questão em comento, se o Código Civil erige o dever de fidelidade recíproca aos cônjuges, faz nascer, por ricochete, o direito à fidelidade do cônjuge. Aliás, direito este que integra a personalidade da pessoa humana por consecução de seu status familiar, a saber, o estado conjugal.

Observe-se que o direito à fidelidade do cônjuge não deriva apenas de alguma interpretação construtiva de algum princípio constitucional, como o da dignidade da pessoa humana ou da proteção especial da família, mas exsurge da interpretação de regra que institui dever no Código de 2002, sendo de fácil lastreamento na ordem jurídica vigente. Dessarte, se os direitos que surgem nas relações familiares se dividem em existenciais (ou pessoais) e patrimoniais, o direito à fidelidade do cônjuge certamente ingressa à ordem jurídica civil-familiarista integrando o repertório de direitos existenciais daquele que adentra ao estado conjugal a partir do momento em que o casamento se locupleta perfeitamente e passa a dimanar seus efeitos legais. Portanto, respondendo à pergunta realizada anteriormente, é possível — e até mais coerente com a ordem vigente e a cena doutrinária — entender que a conduta do consorte traidor fere o direito à fidelidade do cônjuge, enquanto direito existencial da seara familiar, em decorrência da vigência do estado conjugal. Não obstante a configuração deste direito, é plenamente possível também que a postura do infiel seja tal, e de tal ilicitude, que atinja também a honra e a integridade fisiopsíquica do cônjuge traído, o que, ocorrendo, influenciará no arbitramento do quantum indenizató-rio (ou compensatório), avultando-o. 28

LÔBO, Paulo. Direito civil: obrigações. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 252.

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Portanto, o eixo cognitivo da pretensão indenizatória em caso de infidelidade conjugal deve deslocar-se da questão da culpa no fim do casamento para a proteção da dignidade do consorte, vez que os tempos e os ventos são de 29 repersonalização das relações. No entanto, será que o direito à fidelidade do cônjuge é plenamente exigível num sistema jurídico que preza pelo respeito à intimidade e à privacidade? Será que este direito é eficaz numa cena jurídica que elege como princípio a liberdade? É possível considerar o ingresso da boa-fé objetiva nas relações conjugais? As questões supracitadas surgem e urgem por respostas fundamentadas, po-rém nem a responsabilidade civil negocial nem a extranegocial possuem soluções bastantes e satisfatórias para tais questionamentos. Afinal, é muito difícil chegar a novos lugares utilizando sempre as mesmas velhas estradas.

9 Por uma teoria da responsabilidade familiar Percebendo a urgência da responsabilização civil em relações jurídicas de cunho familiar, sob pena desproteger a dignidade humana, e da clara insuficiência dos balizamentos dos dois regimes clássicos de responsabilidade civil, o professor Roberto Paulino de Albuquerque Júnior, em ousado artigo, propõe a construção de uma teoria da responsabilidade civil familiar, na forma de um tertium genus.

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Como brevemente exposto, os parâmetros e os motivos da responsabilidade civil clássica são inadequados para tratar das questões que exsurgem de relações familiares, em razão das especificidades e das peculiaridades que marcam direito de família contemporâneo O ingresso do afeto como valor jurídico e da liberdade como princípio informativo, por exemplo, provocaram verdadeira reviravolta no regramento do direito familiarista e da hermenêutica a este aplicada. Depois da constitucionalização do direito civil, o direito de família, por tratar especificamente de vínculos socioafetivos, metamorfoseou-se e abandonou a visão moralista — que tratava por ilegítimos e de segunda ordem os filhos adulterinos — e puramente biológica — que punha à margem os vínculos socioafetivos não-sanguíneos, como a questão dos filhos adotivos — do conceito de família. Após a publicação do novo Código Civil em 2002, como se pode perceber no cenário da doutrina e da

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Esse entendimento tem raízes na lição do professor Silvio Neves Baptista (O dano e a responsabilidade civil no direito de família. In: ______. Manual de direito de família. Recife: Bagaço, 2010, p. 371-396), que, além de tratar com maestria a questão tortuosa da incidência da responsabilidade civil no direito familiarista, anota que a responsabilização pode ser entendida de modo apartado da culpa no fim do vínculo marital, incidindo apenas sobre a questão da violação do dever matrimonial. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino. Ensaio introdutório sobre a teoria da responsabilidade civil familiar. In: ALBUQUERQUE, F. S.; EHRHARDT JÚNIOR, M.; OLIVEIRA, C. A. de. Famílias no direito contemporâneo: estudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. Salvador: JusPodivm, 2010, p. 402-404.

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jurisprudência acerca do assunto, professa-se um modelo 31 eudemonista de família.

É fácil perceber que esta reviravolta axiológica atingiu diretamente a instituição milenar do casamento, fazendo-a deixar de ser um locus obrigacional para tornar-se o domínio da realização pessoal em que os nubentes ingressam por livre vontade com vistas à construção de sua felicidade pessoal. Em razão desta metamorfose, Paulo Lôbo entende que a liberdade, hoje reinante sobre o direito de família, impossibilita a exigibilidade do direito à fidelidade do cônjuge. Aliás, o autor nega a existência deste direito, porquanto julga ultrapassado o dever de fidelidade, principalmente diante da proteção da intimidade e da 32 privacidade. A fala do civilista chama a atenção para a quantidade de valores, princípios e direitos que estão em jogo quando se trata de responsabilização nas relações fami-liares. Nesse sentido, Albuquerque Jr. anota que ―a reparação do dano deve respeitar os princípios próprios do direito de família, tendo em conta, reitere-se, a fundamental diretriz da repersonalização.‖

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9.1 Por um novo dever de fidelidade Nessa senda, não é cabível pautar a existência do dever de fidelidade no jus in corpus, porque seria profundamente anacrônico, inconstitucional e iria ao exato contrário da repersonalização das relações matrimoniais. No entanto, com a retirada deste ultrapassado argumento, o dever não rui, mas passa a dialogar com o direito civil-constitucional e a erguer-se sobre as sólidas e nobres bases da boafé objetiva e do afeto, como valor jurídico. De fato, a entrada da boa-fé objetiva nas relações familiares é algo que merece análise mais cautelosa, uma vez que o instituto surge num contexto totalmente diverso, a saber, a seara das relações negociais. No entanto, para além de suas origens, a boa-fé objetiva soergueu-se e hoje ostenta lugar de princípio integrativo e informativo do direito civil como um todo, inclusive o direito de família.

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ALBUQUERQUE, Raul Cézar de. Direito à busca da felicidade: olhar filosófico-pragmático. Jus Navigandi, Teresina, ano 20, n. 4218, 18 jan. 2015. Disponível em: . Acesso em: 28 jun. 2015. LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 143. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino. Ensaio introdutório sobre a teoria da responsabilidade civil familiar. In: ALBUQUERQUE, F. S.; EHRHARDT JÚNIOR, M.; OLIVEIRA, C. A. de. Famílias no direito contemporâneo: estudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. Salvador: JusPodivm, 2010, p. 403. Provavelmente a primeira vinculação direta entre boa-fé e dever de fidelidade na doutrina brasileira é devida ao professor Clóvis Veríssimo do Couto e Silva, quando aduziu, no ano de 1964, na tese apresentada para ocupar a cátedra de Direito Civil da UFRS, que ―os deveres derivados da boa-fé ordenam-se, assim, em graus de intensidade, dependendo da categoria dos atos jurídicos a que se ligam. Podem até constituir o próprio

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A boa-fé objetiva adentra ao direito matrimonial como um balizamento ético consoante os novos tempos do direito privado e, como escreve Fernanda Gurgel: Isso nos permite dizer que a ética aliada ao direito de família dá origem ao dever de se respeitar a dignidade dos sujeitos em todos os seus aspectos, o dever se buscar um ambiente sustentado por laços afetivos, o 35 dever de se preservar a confiança e o respeito no grupo familiar.

Desse modo, o dever de fidelidade ganha novos traços, deixando de ser norma absoluta para participar de um dever geral de lealdade nas relações familiares, alinhando-se aos direitos de privacidade e intimidade. Como já assinalado, a liberdade passa a informar o direito matrimonial e, com isso, o direito à fidelidade do cônjuge passa a ser balizado com vista a outros fins, notadamente a tutela da confiança e a presença da assistência imaterial no seio fa-miliar. Desse modo, o casamento sofre uma revolução, deixando de ser um contrato de direito de família simplesmente por sê-lo para representar uma relação afetiva merecedora de tutela estatal. Mas essa liberdade não pode ser interpretada como regra absoluta, o que levaria a família a ser a sede da desordem, contrariando a ordem constitucional de proteção especial. Na verdade, ―liberdade significa, hoje, poder realizar, sem interferências de qualquer gênero, as próprias escolhas individuais, exercendo-as como melhor convier‖, como sintetiza Bodin de Moraes ao contextualizar o princípio.

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Por força de norma civil, parte-se do pressuposto de que o direito à fidelidade do cônjuge é eficaz na relação matrimonial. Porém, na esteira dessa liberdade e sob os auspícios da boa-fé objetiva, os cônjuges podem, através de seus comportamentos ou de suas posturas, tornar sem eficácia o dever de fidelidade.

Hoje, não é raro encontrar casais que não primam pela monogamia, entendendo que a exclusividade das relações erótico-afetivas representa uma regra desneces-sária à felicidade conjugal e consentem que seu consorte tenha outros parceiros sexuais, sem que isso abale o vínculo marital. Nesse caso, observa-se a supressio do direito à fidelidade do cônjuge. De outro giro, se, na ausência de acordo, um dos cônjuges costuma ser infiel, este não poderá arvorar o direito à fidelidade do consorte com vistas ao recebimento de ressarcimento por danos morais, em decorrência da existência do tu quoque —

conteúdo dos deveres principais, [...] como deveres duradouros de fidelidade, abrangendo e justificando toda a relação jurídica, como no contrato formador da relação de família‖ (A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV 2007, p. 34) 35

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GURGEL, Fernanda Pessanha do Amaral. O princípio da boa-fé objetiva no direito de família. 2008. 261f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2008, p. 82.

BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 107.

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expressão da boa-fé objetiva pela qual ninguém pode requerer do outro polo da rela-ção interpessoal aquilo que ele próprio não faz. Ainda, se o cônjuge passa anos conhecendo, perdoando e silenciando sobre a infidelidade do outro, e, depois, por ocasião do divórcio, ressuscita a questão do adultério realizado para conseguir vingança pessoal ou acréscimo patrimonial, ocorre o venire contra factum proprium, pelo qual resta ineficaz o direito à fidelidade do cônjuge. Por tratar-se de afeto, afigura-se de difícil aplicação o duty to mitigate the loss — expressão da boa-fé objetiva pela qual a pessoa tem o dever de minimizar os próprios prejuízos — no caso da infidelidade, uma vez que é possível que o cônjuge, mesmo conhecendo da postura do traidor e sentindo-se atingido por ela, dê novas chances ao infiel, com vistas à manutenção do lar conjugal ou ao melhor interesse da prole. Nesse caso, não há maximização voluntária do próprio dano, mas expectativa legítima de mudança de postura da outra parte, ou seja, não há má-fé, nem mesmo abuso de direito. Como, além da boa-fé, o direito à fidelidade do cônjuge é construído também de afeto, enquanto valor jurídico, o cônjuge separado de fato não pode exigir tal direito, uma vez que, havendo separação física e moral, entende-se por silenciado o affectio maritalis. Pelo exposto, é fácil perceber que o princípio da liberdade tem seu lugar no tratamento da questão do dever de fidelidade, mas tal princípio não pode figurar desvencilhado da análise da boa-fé objetiva, enquanto diretiva ética do direito contemporâneo. Estes balizamentos primeiros correm na senda da determinação de ―novos contornos para os institutos familiaristas, impondo-lhes um conteúdo voltado à proteção efetiva dos valores constitucionais‖, como percebe Cristiano de Chaves Farias.

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9.2 Para além da subsunção Como já indicado, a teoria da responsabilidade civil familiar tem a difícil tarefa de harmonizar campos que, à primeira vista, nada possuem em comum nem costu-mam dividir o mesmo espaço retórico. Uma primeira contradição a ser vencida é a consideração simultânea do afeto como valor jurídico e da boa-fé objetiva como princípio integrativo e formulador de deveres.

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FARIAS, Cristiano de Chaves. Variações do abuso de direito nas relações de família: o venire contra factum proprium, a supressio/surrectio, o duty to mitigate the loss e a violação positiva do contrato. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Família e responsabilidade: teoria e prática do direito de família. Porto Alegre: Magister, 2010, p. 211.

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A boa-fé objetiva não nega suas raízes negociais, porquanto faz uso de interpretação lógico-sistemática para analisar a existência de deveres e os limites da prestação. No entanto, é, simultaneamente, cláusula obrigatória em todas as relações privadas, inclusive nas de família, pelo que negar sua presença seria aceitar que a máfé poderia habitar sem maiores empecilhos ou sanções punitivas no meio familiar.

No outro prato da balança, está o afeto como valor muito caro ao direito de família contemporâneo. Antes desconsiderado totalmente, o afeto é considerado hoje como a própria razão de ser da família. O afeto adentra ao mundo jurídico sempre que faz nascer uma relação merecedora de tutela estatal, como é o caso da ado-ção. No entanto, informa também o direito matrimonial, ressignificando o instituto do casamento. A segunda contradição — e esta merece uma anamnese mais apurada — é a que se instaura entre liberdade e solidariedade. Quem explora bem essa contraposi-ção necessária é Maria Celina Bodin de Moraes, quando escreve: Ao direito de liberdade da pessoa, porém, será contraposto — ou com ele sopesado — o dever de solidariedade social [...] Os direitos só exis-tem para que sejam exercidos em contextos sociais, contextos nos quais ocorrem as relações entre as pessoas, seres humanos ‗fundamental38 mente organizados‘ para viverem uns em meio a outros.

Enquanto existe a liberdade de constituir vínculos afetivos — e esta liberdade é assegurada pela Carta Constitucional —, há, de outro turno, a solidariedade como princípio, que, quando informa relações familiares, estende sua significação até onde o afeto alcança. Nas palavras de Flávio Tartuce, a ―solidariedade familiar implica respeito e consideração mútuos nos relacionamentos entre os membros da família. Como decorrência lógica desse espírito de solidariedade, surge o afeto, apontado, atualmente, como o principal fundamento das relações familiares‖.

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Nesse contexto, a liberdade de estabelecer vínculos contrasta com solidariedade moral familiar, manifesta na construção da confiança, da expectativa legítima, que muitas vezes consubstancia-se na fidelidade do cônjuge, como coroação do mútuo respeito. Na esteira da repersonalização das relações privadas, o dever de mútua assistência, ao ser interpretado à luz da solidariedade, passa a significar muito mais a assistência pessoal, moral ou existencial do que propriamente a assistência material. O direito à fidelidade do cônjuge encontra-se nesta encruzilhada movimentada: entre a boa-fé e o afeto, entre a liberdade e a solidariedade. Ou seja, o método da

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BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 107. TARTUCE, Flávio. Princípios constitucionais e direito de família. In: CHINELLATO, S. J. de A.; SIMÃO, J. F.; FUJITA, J. S.; ZUCCHI, M. C. Direito de família no novo milênio: estudos em homenagem ao Professor Álvaro Villaça Azevedo. São Paulo: Atlas, 2010, p. 45.

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subsunção da norma ao fato de nada serve nesta questão, bem como em boa parte das questões de responsabilidade civil familiar. Diante desses dilemas, Roberto Paulino de Albuquerque Jr., na esteira da cons-trução de uma teoria da responsabilidade civil familiar e com base na doutrina mais apurada no tratamento do assunto, aponta uma solução: [A ponderação] deve presidir o exame dos casos de reparação de dano em relação familiar. Se o esquema subsuntivo clássico não se mostra preciso o suficiente para resolver os problemas da responsabilidade fa-miliar, é à ponderação que se deve recorrer, 40 concretizando-se a eficácia da cláusula geral de responsabilidade.

Portanto, é fácil perceber que os casos de reparação civil que tangem relações familiares nunca serão decididos satisfatoriamente pelo método da subsunção, uma vez que a presença dos princípios constitucionais e do processo de repersonalização é tão evidente, que os interesses em jogo não poderão ser simplesmente descarta-dos, mas cuidadosamente sopesados, ponderados, a fim de que se chegue a uma conclusão justa. Nesse sentido, as aparentes contradições entre afeto e boa-fé objetiva, bem como as que são supostas entre a liberdade e a solidariedade — que sempre entra-ram na dança, quando o assunto for família — hão de ser deslindadas com o advento da ponderação dos interesses, devendo sempre prevalecer aquele que melhor atenda à dignidade das pessoas envolvidas na questão posta em juízo.

10 Considerações finais O adultério é uma questão que envolve o direito matrimonial há séculos. Aliás, um problema que sempre faz reacender as raízes canônicas do direito matrimonial brasileiro. Sendo uma questão eminentemente moral, o direito sempre teve dificulda-des em tratá-la e dá-lhe os devidos efeitos. Nos ventos da Constituição de 1988, do Código de 2002 e da consequente repersonalização das relações privadas, a família deixou de ser entendida como um centro emanador de deveres para ser um locus afetivo. No entanto, ainda há deveres que envolvem o seio familiar e o dever de fidelidade parece restar de eficácia penden-te num contexto que preza pela liberdade e pela privacidade. Pelas linhas que se passaram, analisou-se que não se pode continuar utilizando o critério da dor moral para conceder indenizações (ou ressarcimentos) por ocasião

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ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino. Ensaio introdutório sobre a teoria da responsabilidade civil familiar. In: ALBUQUERQUE, F. S.; EHRHARDT JÚNIOR, M.; OLIVEIRA, C. A. de. Famílias no direito contemporâneo: estudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. Salvador: JusPodivm, 2010, p. 419.

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de dano moral em caso de adultério, sendo de bom alvitre passar a utilizar o critério da lesão a direito da personalidade, in casu, o direito à fidelidade do cônjuge, que surge por via reversa do dever de fidelidade elencado no Código Civil e que integra a personalidade do indivíduo que ingressa no estado matrimonial. Aliás, este direito foi afetado pela repersonalização do direito privado, passando a ser expressão da boa-fé objetiva e do afeto, e não mais do arcaico e inconstitucional jus in corpus.

No entanto, essa retificação ainda não é suficiente para criar um contexto eficaz no tratamento da questão da reparação civil em caso de infidelidade conjugal, uma vez que nenhum dos dois regimes clássicos de responsabilidade civil oferece boas respostas ao pleito. No caminho aberto por Roberto Paulino de Albuquerque Jr., cremos que se faz necessária a construção de uma teoria da responsabilidade civil familiar, já que as relações familiares urgem por mais proteção, pleito que inclui a tutela da reparação civil. O que, como vimos, não é monetarizar afeto, antes significa abrir mais uma via para proteger a dignidade da pessoa humana, mormente em suas relações de família. Essa nova teoria — à qual este artigo pretende ser um contributo —, além de plenamente necessária, espera inaugurar uma nova fase no tratamento da questão da infidelidade conjugal no âmbito da responsabilidade civil, bem como nas demais questões de danos morais em relações familiares, prezando sempre pelos ―princípios 41 próprios da matéria familiar, procurando-se afastar os riscos da repatrimonialização.‖ Abandonado o critério atécnico da dor moral e eleito o critério do direito à fideli-dade do cônjuge, os casos de indenização por danos morais em caso de infidelidade conjugal hão de ser conhecidos e decididos tendo por base os princípios constitu-cionais que informam o direito de família — notadamente o direito matrimonial — e tendo por método a ponderação de interesses legítimos entre a liberdade e a solida-riedade, entre a boa-fé objetiva e o afeto, sempre na persecução do melhor caminho à proteção da dignidade humana.

The (dis)Regard of the Right to Fidelity of Consort: a Tribute to the Theory of Familial Civil Liability

Abstract: Between the marital duties, fidelity is probably the most polemic one, involving moral, religious and law issues. Beyond that, the infringement is surrounded by problems of juridical order, in view of the entrance of civil liability of the family law is a stony path, facing questions about the monetization of affection and about the privacy and freedom as fundamental rights. Described the picture, it is necessary to open new paths in order to find new answers. Keywords: Family Law; marriage; marital duties; familial civil liability.

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ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino. Ensaio introdutório sobre a teoria da responsabilidade civil familiar. In: ALBUQUERQUE, F. S.; EHRHARDT JÚNIOR, M.; OLIVEIRA, C. A. de. Famílias no direito contemporâneo: estudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. Salvador: JusPodivm, 2010, p. 421-422.

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Raul Cézar de Albuquerque

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT): ALBUQUERQUE, Raul Cézar de. A (des)consideração do direito à fidelidade do cônjuge: um contributo à teoria da responsabilidade civil familiar. Revista Fórum de Direito Civil – RFDC, Belo Horizonte, ano 4, n. 10, p. 257-277, set./dez. 2015.

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