A DESCONSTRUÇÃO – A JUSTIÇA ALÉM -DO DIREITO

June 4, 2017 | Autor: Fernando Turchetto | Categoria: Deconstruction, Justice, Derridean Deconstruction, Direito
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A DESCONSTRUÇÃO – A JUSTIÇA ALÉM - DO DIREITO.

Fernando Antônio Turchetto Filho Disciplina: Desconstrução Prof. Dra. Fernanda Bernardo 2º Ciclo de Estudos em Direito - Ciências Jurídico-Filosóficas – Disciplina isolada

COIMBRA 2015/2016

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Sumário: 1. Introdução.................................................................................................. 2 2. A desconstrução ....................................................................................... 3 2.1. O Ailleurs ............................................................................................... 4 2.2. Messiânico .............................................................................................. 5 2.3. Chóra .................................................................................................... . 7 3. A hospitalidade ao outro ......................................................................... 12 3.1. O outro cidadão/estrangeiro kantiano .................................................. 12 3.2. O outro absoluto de Derrida ................................................................. 15 3.3. O outro de E. Lévinas........................................................................... 18 3.4. O terceiro .............................................................................................. 22 4.0 Justiça, direito e desconstrução ............................................................. 24 4.1. Da justiça do direito à justiça ............................................................... 25 4.2 Um novo sentido ao direito ................................................................... 30 Conclusão .................................................................................................... 33 Bibliografia.................................................................................................. 34

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RESUMO Este artigo visa analisar o pensamento do autor Jacques Derrida acerca da desconstrução e um de seus motivos – a justiça, na tentativa de viabilizar por esta reflexão filosófica, à experimentação de um novo sentido ao direito. Palavras-chave: Desconstrução, justiça, direito. Manoel de Barros, Livro sobre nada, p. 75. 1. Introdução Para compreender o pensamento do filósofo Jacques Derrida, imperioso se faz ir mais longe, ir além do horizonte de questionamento do ser. Abstração – é refletir sobre o além e sua possibilidade de acesso. A profundidade do seu pensamento pode fazê-lo parecer enigmático, pois, diga-se de passagem, pensá-lo também é uma loucura. É também um pensamento impossível e do impossível, na medida em que transborda ao já interrogado pelo ser humano (desde a Grécia antiga aos dias atuais). Trata-se de um pensamento que se pensa à partir de outro lugar. Sim, afirmar o que Derrida pensa é, sem dúvida, considerar o por vir. Inobstante, importa frisar que o pensamento aqui pensado não se reduz ao transcendental. Embora não possa ser antecipado (experimentado, decidido, condicionado, conceitualizado) pelo ser, sua aparição compreende-se por um movimento que rompe, que transborda – a desconstrução. Pensar os motivos da desconstrução se faz urgente, sobretudo, para tentar responder ao cataclismo contemporâneo que vive a humanidade. Neste espeque, o artigo visa à análise da desconstrução como reflexão filosófica, para buscar uma abertura de acesso ao sentido de compreensão do direito, a partir dos motivos da hospitalidade e da justiça. Mas o que seria afinal este pensamento? O segundo tópico, a seguir, trata especificamente da desconstrução.

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2. A desconstrução: Mas o que é desconstrução afinal? Arrica-se em poucas palavras que a desconstrução faz-se pela aporia, isto é, um caminho sem saída, ou com várias saídas, sem que necessariamente uma delas seja a correta, 1, pois à fundo, qualquer deles distribuir-se-ão ao profundo, ao infinito.

Mencionada acima, a desconstrução é também um pensamento e uma experiência impossível e do impossível.2 O que isto quer dizer? Considerando que a construção humana e sua história desenvolvem-se conforme as experiências no tempo (pelo passado e sua capacidade de transformar-se no futuro), a desconstrução escapa ao pensamento, pois não é o ser que escolhe suas experiências, mas as experiências que o escolhem. Deste modo, não há construção possível que não seja passível de desconstrução pelo que ainda não veio de encontro do eu – o desconhecido e absolutamente outro. Ao acelerar um pouco o ritmo, perceber-se-irá que o outro absoluto e sua relação com o eu é o que permite a desconstrução, motivando-a. Ora, se as construções humanas frente às diversas possibilidades experimentadas/testadas já não são por si só capazes de definí-lo, a pretenciosa autonomia não é só denunciada, mas re-modificada pela desconstrução. Além da concepção sujeito-objeto no tempo, a desconstrução desafia esta própria rigidez.3 Isto porquanto ela visa romper com toda e qualquer formulação, juntamente com suas respostas já cogitadas pelo ser humano (seja através da razão, seja através da vontade, seja através da experiência, etc…) para remoldá-las, sobretudo, elevá-las. Com efeito, a desconstrução pode atuar em quaisquer das estruturas instituidas pelo cogito (política, religião, ciência, economia, direito, filosofia, etc…).

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J. DERRIDA, Forca de lei – o fundamento místico da autoridade. Trad. Fernanda Bernardo. Ed. Galilée, 1994. p. 27. 2 Para a relação do motivo do impossível inerente à singular radicalidade da desconstrução como pensamento (cf. in Psyché), ou do quase-impossível, do só apenas im-possivel no sentido de possível-impossível em razão da sua inscrição excepcional no domínio do possível, com o motivo da espectralidade e da virtudalidade, cf. J. Derrida, Spectres de Marx e Políticas da amizade. [Apud: Limites do Cosmopolitismo kantiano: Kant lido por Derrida. Fernanda Bernardo. Kant: posteridade e actualidade, Lisboa, CFUL, 2006, nota de roda pé p. 710.] 3 A relação entre sujeito e objecto cumpre-se na actualidade do cogito, e dessa forma, insere-se na trama do tempo. O idealismo procurou depurar o sujeito desta última contaminação pelo tempo, desta última confusão de estar no seio do acontecimento chamado a fundar o ser. Empreendimento que impõe uma escamoteação ou uma dedução do tempo. […] Para Kant, é uma forma fenomenal a que o sujeito recorre, mas em que não se reconhece; para Hegel é qualquer coisa que o espírito se lança para se realizar, mas de que é originalmente distinto. In: Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger. E. Lévinas. Instituto Piaget. Trad. Fernanda Oliveira. 1997. Lisboa. p. 69-70.

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Derrida ao longo de suas obras escreve com demasiado cuidado acerca do movimento, ou do rompimento que acontece (através idiomas da resistência) pela desconstrução. Como? A desconstrução tem seus próprios motivos/nomes. Mesmo diferentes, estes nomes possuem as mesmas características que revelar-se-ão ao longo do texto. São alguns exemplos/nomes da desconstrução: o amor, a amizade, o perdão, a responsabilidade, a hospitalidade, a democracia por vir e a justiça.4 Com efeito, o que importa dizer é que a desconstrução e seus nomes não possuem uma defnição rígida. A raíz etimológica de cada uma destas palavras (motivos) vai além da dissociação/oposição lógica, pois como supramencionado, além é que pensa-se a desconstrução. Além porque vem antes, antes mesmo do próprio tempo e do espaço cogitado. As formulações para Derrida elevam-se à origem anterior que as proporcionam, ao anterior que condicionaria todas essas possibilidades, responsável por proporcionar a desconstrução do “real” (sensível, inteligível, racional, autônomo). Portanto, Derrida convida o leitor a conhecer um algures, responsável pela origem que dá origem, ao qual será chamado a pensar e a tentar escrever – o Ailleurs. 2.1. O Ailleurs: Derrida pensa a desconstrução a partir de um lugar… Mas onde fica, de onde vêm? Ora, como seria este lugar? Impossivel dizer. No entanto, ainda assim, urgente e necessário se faz sua reflexão, isto é, considerar sua impossibilidade. Algum lugar, sem quando nem onde, mas que possibilita o quando e o onde; um alhures que permite, um lugar que dá lugar ao lugar, traduzido por Derrida como Ailleurs. O acesso do ser ao Ailleurs é impossível, mas sua possibilidade de acessar ao ser é inevitável. Deste modo, não cabe ao ser antecipá-lo, apenas esperar o Ailleurs como um tempo por vir absoluto. O autor chama atenção a este tempo de véspera, pois a vigília eleva-se diante dos limites (impostos, prépostos, ou supostos) do logocentrismo ou da metafísica da presença,

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De entre os demais de Derrida, destacam-se o dom, o perdão, a hospitalidade, a justiça, a morte, a tradução, a amizade, o amor, a democracia por vir… In: Fernanda Bernardo. Jacques Jacques Derrida – o gosto do segredo. Hospitalidade, justiça e democracia. p. 27. Texto de uma conferência proferida na FLUP a 8 de março de 2010. Disponível no instituto de estudos filosóficos da Universidade de Coimbra.

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repensando a ética, a linguística, a racionalidade, a teorética, a ciência, a hermenêutica, a fenomenologia, a política, a democracia, o direito, etc.5 Em um primeiro momento, poderia-se pensar que o Ailleurs seria uma abstração sem sentido, pois sua impossibilidade (transcendentalidade) não poderia ser acessada/cogitada pelo ser. Todavia, isto é um equívoco, caso contrário seria um ideal puramente especulativo e contemplativo. Ver-se-há adiante que sim, ela pode vir a ser experimentada e mais; o Ailleurs é que permite experimentá-la através da descontrução. O Ailleurs é a condição que possibilta, o aqui e o agora. Derrida pensa o Ailleurs como leitor, através de duas “quase-palavras” que deixaram uma marca da língua grega - Chóra e Messiânico - permitindo assim à sua reflexão. Não são estas palavras autônomas, mas que dizem à origem como não presença originária. Elas desconstroem o tempo e o espaço (intercalando-se neles), e serão pormenorizadamente tratadas a seguir. 2.2. Messiânico: Como supramencionado, o Ailleurs seria o lugar sem lugar. Sua impossibilidade de acesso pelo ser é analogicamente mencionada por Derrida a partir de Chóra e Messiânico - o tempo e o espaço do Ailleurs. O que seria o Messiânico? Em “Fé e saber”, o autor escreve: Primeiro nome: o messiânico, ou a messianicidade sem messianismo. Seria a abertura ao por vir ou à vinda do outro como advento da justiça, mas sem horizonte de expectativa sem prefiguração profética. O Messiânico é o tempo antes do tempo do mundo, das formas, das coisas do mundo – a capacidade de temporalizar o tempo. Não possui carga, ou conotação ontoteológica, pois sua índole é eventual, mas responsável por controlar o ritmo; o tempo do tempo.6

O Messiânico não é o tempo conhecido. Não são os anos, meses, as semanas, os dias e as horas, é mais do que isso. Como se fosse a origem do tempo, o que concede tempo a este tempo, a “figuração” do messiânico marca a exposição e a abertura do tempo do ser:

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O ser, sabe-se, foi interpretado pela metafísica da presença como sendo-presente a partir de uma précompreensão do tempo, que privilegiava o êxtase temporal do agora-presente. Heidegger proporá, ao tempo de Seins und Zeit, um re-pensamento desta questão do ser a partir de uma interpretação transcendental do tempo. In: O limite da questão no pensamento de M. Heidegger. Fernanda Bernardo. Revista Biblos – Vol. LXVIII. 1992. p. 538. 6 J. DERRIDA, Fé e Saber. In: A religião. Seminário de Capri dirigido por Jacques Derrida e Gianni Vitiello. Trad. Miguel Serras Pereira. Ed. Relógio D’água. Lisboa. 1997. p.p. 29-30.

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Es más bien cierta afirmación emancipatória y mesiánica, cierta experiencia de la promesa que se puede intentar liberar de toda dogmática e, incluso, de toda determinación metafísico-religiosa, de todo mesianismo. […] Pertenece al movimiento de una experiencia abierta al porvenir absoluto de lo que viene, es decir, de una experiencia necessariamente indeterminada, absracta, desértica, oferecida, expuesta, brindada a su espera del outro y del acontecimiento. En su pura formalidad, en la indeterminación que requiere, todavía se le hallar alguna afinidad esencial com cierto espíritu mesiánico.7

O messiânico seria a abertura absoluta ao que está por vir, ou seja, o ainda não experimentado pelo ser (pode vir a ser experimentado, talvez), o indeterminado. Logo, está em outro tempo que não o cogitado (antes de cristo, depois de cristo por exemplo). O Messiânico surpreende o tempo determinado pelo eu (imposto, preposto, suposto), isto é, limitado pela sua experiência, não dependendo assim de nenhum messianismo, não segue nenhuma revelação determinada, não é pertença própria de nenhuma religião abraâmica.8 Derrida compara o absolutamente indeterminado como um tempo que nasce com a vinda do outro, de um outro completamente indeterminado, diferente do eu. À vinda do outro, causa à surpresa, à perturbação, à curiosidade - há uma passividade do eu diante da vinda do outro: A vinda do outro só pode surgir como um acontecimento singular onde nenhuma antecipação vê vir, onde o outro e a morte – e o mal radical – podem suspreender a todo instante. Possibilidades que ao mesmo tempo abrem e podem sempre interromper a história. Mas este curso ordinário é aquele de que falam os filósofos, os historiadores, e muitas vezes também os (teóricos) clássicos da revolução. Interromper ou rasgar a própria história, fazê-la decidindo nela, com uma decisão que pode consistir em deixar vir o outro e em tomar a forma aparentemente passiva de uma decisão do outro: precisamente onde parece em si, em mim, a decisão e de resto sempre a do outro, o que não me exonera de responsabilidade alguma. O messiânico expõe-se à surpresa absoluta e, ainda que sempre sob a forma fenomenal da paz ou da justiça, deverá, expondo-se tão abtractamente, esperar (esperar sem o antecipar) tanto o melhor como o pior, pois nenhum deles chega jamais sem a possibilidade aberta do outro.9

Em que pese sua abstracção indeterminada, pensá-lo também é um ato de fé, pois a espera sem antecipação de vinda, nada mais é que a fé incondicional. Para Derrida, sem o Messiânico não haveria nem ato de fé, nem promessa, nem por vir, nem relação com o outro, nem outro: Lo mesiánico, creemos que sigue siendo una marca imborrable — que ni se puede ni se debe borrar— de la herencia de Marx y, sin duda, del heredar, de la experiencia 7

J. DERRIDA, Espectros de Marx. Trad. José Alarcón y Cristina de Peretti. Ed.Trotta. Valladolid. 1995. pp. 103-104. 8 Ibid. 9 DERRIDA,. Fé e Saber. In: A religião. Seminário de Capri dirigido por Jacques Derrida e Gianni Vitiello. Trad. Miguel Serras Pereira. Ed. Relógio D’água. Lisboa. 1997. p.p. 29-30.

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de la herencia en general. De no ser así se reduciría la acontecibilidad del acontecimiento, la singularidad y la alteridad del otro.10

Por isto não se faz possível conhecê-lo ou experimentá-lo, saber quando realmente virá. Por mais absoluto e abstrato que seja, o que resta é esperar sem antecipação por ele. A possibilidade deste deserto dentro do deserto […] é que desenraizando a tradição, ateologizando-a, esta abstracção liberta, sem denegar a fé, uma racionalidade universal e a democracia política que dela é indissociável. (DERRIDA, p.31) Portanto, Derrida atenta para a necessidade de pensar um tempo que não é este tempo acessado/instituído/cogitado/revelado pelo ser humano. O messiânico é um dos nomes dados ao Ailleurs – o tempo que antes do tempo, proporciona pensar o próprio tempo do ser. 2.3. Chóra: O que seria este nome Chóra, ou melhor, Chóra tem um nome? Estas perguntas são tratadas pelo autor ao longo de suas obras, mas sobretudo, por uma obra específica que Derrida entitula de “Khôra”.11 Buscando a origem da palavra por Platão, pois é na obra de Timeu que esta palavra é mencionada, mesmo sem tratar do que ela é especificamente. É sua incondição que Derrida buscar re-interpretar: A khôra não é nem “sensível”, nem inteligível; ela pertece a um “terceiro gênero” (triton genos, 48e, 52a). Sobre ela não se pode nem mesmo dizer que ela não é nem isto, nem aquilo, ou que é ao mesmo tempo isto e aquilo. […] A khôra parece estrangeira à ordem do “paradigma”, esse modelo inteligível e imutável. Apesar disso, “invisível’ e sem forma sensível, ela “participa” do inteligível de forma muito incômoda, na verdade, aporéitca (aporôtata, 51b). […] Lembremos ainda o seguinte, a título de abordagem preliminar: o discurso sobre khôra, tal como se apresenta, não procede do logos natural ou legítimo, mas muito mais de um raciocínio híbrido, bastardo (logismô nothô), ou até mesmo corrompido. […].O que é esse lugar? Ele é nomeável? E ele não teria alguma relação impossível com a possibilidade de nomear? […] Seu nome não é uma palavra justa., […] não porque seria inalteravemente ela mesma para além do seu nome, mas porque, levando para além da polaridade do sentido (metafórico ou próprio), ela não pertenceria mais ao horizonte do sentido, nem do sentido como sentido do ser. […] Não tendo essência, como a khôra se manteira para além do seu nome? A khôra é anacrônica, ela “é” a anacronia no ser, ou melhor, a anacronia do ser. Ela anacroniza o ser.12

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J. DERRIDA, Espectros de Marx. Trad. José Alarcón y Cristina de Peretti. Ed.Trotta. Valladolid. 1995. p. 42. Em latim Khôra, que traduzido ao português: Chóra. 12 J. DERRIDA,. Khôra. Trad. Nícia Adan Bonatti. Ed. Papirus. Campinas-SP, 2007. pp. 09-17. 11

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Para Derrida, Chóra (assim como o Messiânico) situa-se no Ailleurs. Algum lugar sem lugar, um lugar que se pensa a partir de outro lado - espaço ou uma exterioridade absoluta (Ab-Solus), separada do solitário, do abandonado, do eu, por isto além do eu, do presente. Mesmo sem saber o que ela é, o anacronismo e a heterogeneidade de Chóra são características inevitáveis. Derrida afirma que os tipos hermenêuticos não podem informar, não podem dar forma à khôra, à não ser na medida que, “inacessível”, “amorfa” (amorphon, 51a).13 Isto porque khôra não é um outro como um sujeito que daria lugar, recebendo ou concebendo, ou até mesmo se deixando conceber. (DERRIDA, p.20). Ora, separando-se do eu, separa-se também de qualquer gênero do ser ou do discurso, da lógica, de qualquer analogia (conto, fábula, lendo, mito) pois nem mesmo seu nome aqui pensando é capaz de limitá-la ou a reduzí-la. Portanto, ainda que digam respeito ao próprio nome de khôra (“lugar”, “local”, “localização”, “região”, “território”), ou àquilo que a tradição chama as figuras – comparações, imagens, metáforas – propostas pelo próprio Timeu (“mãe”, “ama”, “receptáculo”, “molde”) as traduções permanecem presas em redes de interpretação:14 Não falaremos de metáfora, mas não por entender, por exemplo, que a khôra seja propriamente uma mãe, uma ama, um receprtáculo, um molde ou ouro. Talvez seja porque leva além ou aquém da polaridade sentido metafórico/sentido próprio, que o pensamento da khôra excede a polaridade, sem dúvida análoga, do mythos e do logos. (DERRIDA, p. 15).

A rebeldia da Chóra a qualquer tipo de forma, ou a qualquer tipo de essência, só pode ser compreendida pelo mito, mas ainda assim, não limita-se nele. Ao contrário, este apenas consegue comparar analogicamente ao que seria a khôra (um mito antes do mito), ou genericamente, outra modalidade de mãe ou de ama, que daria lugar a qualquer tipo de gênero e por isso, seria Chóra um tertium genus - o que dá gênero ao gênero. A analogia ao mito pretende alcançar a verdade unicamente por verosimilhança, pelo plausível, provável, parecido: Quando o logos é ausente, ou restrito, de firmeza (estrutura, coerência e estabilidade), o mito serve como condição possível de “tapar” este buraco. É o caso do ser da lógica, bem como da oposição entre o paradigma do inteligível forma com o devir sensível. […] Platão só recorre ao mito na medida de sua impotência (Unvermogen) em “se exprimir na pura modalidade do pensar”. (DERRIDA, p. 28). 13 14

Ibid. p. 19. Ibid. pp. 16-17

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Assim, a capacidade de condicionar, nomear ou até mesmo expor sua essência é impossível. Todavia, a verosimilhança analógica e genealógica são inevitáveis para que fosse permitida sua reflexão (Timeu de Platão é o ponto de partida da reflexão), mesmo que ela não caiba nem na analogia, nem no gênero: O devir sensível é uma imagem, uma semelhança, e o mito, uma imagem dessa imagem. O logos que se relaciona com essas imagens, com esses seres icônicos deve ser da mesma natureza: somente verossímil (29b-c-d). É preciso que aceitemos nesse campo o “mito verossímil’ (ton eikota mython) e não busquemos ir mais além (29d, cf. Também 44d, 48d, 57d, 72d-e). […] Khôra marca um lugar à parte, o espaçamento que guarda uma relação dissimétrica com tudo aquilo que, “nela”, ao lado ou além dela, parece fazer dupla com ela. Ela não pertence a raça das mulheres. Ela escapa a todo esquema antropo-teológico, a toda história, a toda revelação, a toda verdade. Antes não significa nenhuma anterioridade temporal. (DERRIDA, pp. 49-69).

Ora, se esta “pré-origem” não permanece, ou não é capaz de delimitar-se, eleva-se implacavelmente à relação de horizontalidade, de reconhecimento e de representação do ser humano. O pensamento a khôra inquietaria a própria ordem da polaridade, da polaridade em geral, quer ela seja dialéctica ou não. Propiciando oposições, ela mesma não se submeteria a nenhuma inversão. […] ela não pertenceria mais ao horizonte do sentido, nem do sentido do ser.15 Consequentemente, eleva-se também à dialéctica, pois a Aufhebung ainda é o círculo, a roda, a esfera, a clausura da idéia em movimento circular. Ora, abre-se este ciclo em todas as direções (para frente, para trás, para cima e para baixo) – para além da idéia holística de circularidade, não contaminada pelo Ser:16 A filosofia só se torna séria, para Hegel, […] a partir do momento em que entra na via segura da lógica: isto é, depois de ter abandonado, ou melhor, reanimado sua forma mítica – depois de Platão, com Platão. […] O mitema não terá sido nada além de um pré-filosofema oferecido e prometido ao seu Aufhebung dialético. […] O esquema dialético de Hegel diz respeito tanto ao mítico quanto ao figurativo ou simbólico. […] qualquer que seja a apresentação formal – filosófica ou mítica – permanece sempre força de lei, o domínio ou a dinastia do discurso. Podemos ver passar aqui o fio da nossa questão: se khôra não tem sentido ou essência, se não é um filosofema e se, apesar disso, não é nem o objeto nem a forma de uma narrativa fabulosa de tipo mítico, onde situá-la nesse esquema?17

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Ibid. p. 16. A filosofia ocidental soube falar desse além, mas afirmou-o imediatamente como Ideia, isto é, interpretou-o em termos de ser, subordinando assim Deus à ontologia. A nossa tentativa vai num sentido totalmente oposto. In: Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger. E. Lévinas. Instituto Piaget. Trad. Fernanda Oliveira. 1997. Lisboa. p. 273. 17 DERRIDA, Jacques. Khôra. Trad. Nícia Adan Bonatti. Ed. Papirus. Campinas-SP, 2007. pp. 27-30. 16

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Pensar este outro lugar é elevar a dialética. Fazendo-se uma referência a Heidegger, Derrida utiliza como parâmetro “comparativo” a realização da Offenbarung (revelação) pela condição de possibilidade oferecida pela Offenbarkeit (revelabilidade), como um segredo absoluto (separado do eu) que teria ditado a Offenbarung (no sentido da revelação que origina os dogmas, os axiomas, a ciência, a epistemologia):18 A outra tentação [em torno da religião nos limites da simples razão] (talvez continuem a existir boas razões para conservarmos esta palavra) seria de tipo “heideggeriano”: para além desta ontoteologia, lá onde ela ignora a prece e o sacrifício. Seria preciso assim deixarmos revelar-se uma “revelabilidade’ (Offenbarkeit) cuja luz (se) manifetaria mais originariamente do que toda a revelação (Ofenbarung). Seria preciso ainda distinguir entre a teo-logia (discurso sobre Deus, a fé ou a revelação) e a teio-logia (discurso sobre o ser-divino, sobre a essência e a divindade do divino). […] 19. Sob a sua forma mais abstracta, a aporia em que nos debatemos talvez seja então a seguinte: a revelabilidade (Offenbarkeit) será mais originária do que a revelação (Offenbarung) e portanto independente de toda a religião? Independente nas estruturas da sua experiência e na analítica que se lhes referisse? Não será esse o lugar de origem, pelo menos, de uma “fé reflexiva”, senão essa mesma fé? Ou então, inversamente, o acontecimento da revelação teria consistindo em revelar a própria revelabilidade, e a origem da luz, a luz originária, a própria invisibilidade da visibilidade?19

A Offenbarkeit para Derrida é como se fosse Chóra, pois as condições de possibilidade de revelação são proporcionadas por estas e, por mais complexo que seja este pensamento, menos o é por sua impossibilidade obscura, mas parece ser, sobretudo, porquanto não se faz presente, está por vir o evento (a véspera supramencionada): Khôra, a “prova de khôra” seria, pelo menos segundo a interpretação que dela julguei poder tentar, o nome de lugar, um nome de lugar, e bem singular, para este espaçamento que, não se deixando dominar por nenhuma instância teológica, ontológica ou antropológica, sem idade, sem história e mais “antigo” que todas as oposições (por exemplo, sensível/inteligível), não se anuncia sequer como “para além do ser”, segundo uma visão negativa. No mesmo acto, khôra permanece absolutamente impassível e heterogénea a todos os processos de revelação histórica ou de experiência antropoteológica, que todavia supõem sua abstracção. Nunca terá entrado em religião e nunca se deixará sacralizar, santificar, humanizar, teologizar, cultivar, historializar. Radicalmente heterogénea ao são e ao salvo, ao santo e ao sagrado, não se deixa nunca indemnizar. Nem isto se pode porém dizer no presente, porque khôra nunca se apresenta como tal. Não é nem o Ser, nem o Bem, nem Deus, nem o Homem, nem a história. Resistir-lhes-á sempre, terá sido sempre (e nenhum futuro anterior, sequer, terá podido reapropriar, fazer flectir ou reflectir uma khôra sem fé nem lei) o próprio lugar de uma resistência infinita, de uma reestância 18

O homem como enquanto revelação do ser, enquanto verdade, não se absorve num olhar sereno virado para as ideias, libertado dos grilhões que aqui o fixam… […] o sentido de um pensamento não anuncia necessariamente um objecto epácio-temporal. A possibilidade de separar totalmente e , e , e está doravante em aberto. In: Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger. Emannuel Levinas. Instituto Piaget. Trad. Fernanda Oliveira. 1997. Lisboa. p. 25-84. 19 DERRIDA, Jacques. Fé e Saber. In: A religião. Seminário de Capri dirigido por Jacques Derrida e Gianni Vitiello. Trad. Miguel Serras Pereira. Ed. Relógio D’água. Lisboa. 1997. pp. 26-27.

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infinitamente impassível: um totalmente outro sem rosto. 25. Khóra não é nada (nada de essente ou de presente) […].20

O autor utiliza a expressão francesa “mise en abyme” – expressão que remete a um movimento de cratera sem fundo, de sorvedouro abissal, de um abismo dentro de outro que regularia um discurso sobre Chóra:21 A conclusão ontológico-enciclopédica do Timeu parece recobrir o precipício aberto no meio do livro. O que ela recobriria então, fechando a boca aberta do discurso quase proibido sobre khôra, não seria talvez somente o abismo entre o inteligível e o sensível, entre o ser e o nada, o ser e o menor ser, nem mesmo talvez entre o ser e o ente nem mesmo ainda entre logos e mythos, mas entre todos estes pares e um outro que não mais seria sequer seu (deles) outro. […] Nada de ter próprio, nem mesmo o ouro com o qual somente podemos compará-lo (50 a), não é também a posição de khôra? (DERRIDA, p. 33-35).

Derrida chama a atenção para a necessidade de precaução no que tange as analogias. Não só dos autores, mas por ele próprio como autor e leitor, na medida em que estas seriam, inevitavelmente, condicionantes de Chóra. O autor pouco contesta o recurso a analogia, pois ele é utilizado. Entretanto, ressalta que este se reduz única e exclusivamente na estrutura e na forma limitada de sua tentativa de compreensão ou inteligibilidade por verosimilhança. As analogias então restringem-se às maneiras, ao método, à índolde performativa, isto é, ao modo pelo qual permite-se a abertura de diálogo, ou de discurso. Por outro lado, são elas que permitem diferenciar o espaço cartesiano do espaço incondicional, isto é, são elas que permitem darmos conta da origem que dá lugar à origem – Chôra. Igualmente, é mencionada na obra de Timeu um outro nome análogo. Como se fosse um recipiente que tudo carrega ou suporta - um receptáculo (dekhomenon). O receptáculo é o lugar de acolhimento ou de hospedagem (hypodokhè): Na verdade, cada conteúdo narrativo – fabuloso, fictício, legendário ou mítico, pouco importa no momento – torna-se por sua vez, o recipirnete de uma outra narrativa. Cada narrativa é então, o receptáculo de uma outra. Somente há receptáculos de receptáculos normativs. Não esqueçamos, que receptáculo, lugar de acolhimento ou hospedagem (hypodokhè), é a determinação mais persistente (não digamos essencial, por razões já evidentes) de khôra. (DERRIDA, p. 55).

Derrida compara-o como a determinação mais persistente de Chôra. Porém, ainda que consiga-se receber dela o nome deste local de acolhimento, seja por conto, fábula, lenda ou mito (identidade de um saber, de um “dito”) – um segredo sem segredo permanece a seu 20

Ibid. pp. 33-34. DERRIDA, Jacques. Khôra. Trad. Nícia Adan Bonatti. Ed. Papirus. Campinas-SP, 2007. p. 32 e nota de rodapé.

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respeito, sempre impenetrável, pois essas figuas não são verdadeiras, ou melhor dizendo, não são sensíveis (como mãe, ama, molde, receptáculo, recipiente). Assim, este lugar sem lugar (antes do tempo, antes do gênero, antes do mito, antes até do tempo e do espaço, ou melhor, proporcionam tudo isto) está além da oposição sensível/inteligível, além da oposição de gênero, além da capacidade cognitiva. Chóra é a responsável por tudo isto, pois ela acolhe e hospeda tudo, juntamente com o Messiânico, graças ao Ailleurs. Portanto, a hospitalidade do Ailleurs transborda os tipos de hospitalidades conhecidas/cogitadas pelo ser humano ao outro. Mas como transborda, e quais são os tipos a serem desconstruidos? Há de ver-se no próximo capítulo. 3. A hospitalidade ao outro: Como visto no capítulo anterior, Derrida percorre à origem do próprio mundo - não a do que o “eu foi lançado”, mas à origem que não situa-se como presença, além do eu. Ainda que seja impossível de ser delimitado, Derrida interpreta-o (mesmo não querendo) como Ailleurs, análogo à mãe que a tudo abriga, uma ama, ou um recipiente que tudo contém - ponto de partida que possibilita a relação do ser e suas experiências/interrogações com o Outro. Na toada deste pensamento, percebe-se que o Ailleurs é como um local de acolhimento. Um local hospitalar, na medida que comporta qualquer possibilidade de relação entre o ser humano e o outro. Sem este deserto dentro do deserto, não haveria nem acto de fé, nem promessa, nem porvir, nem expectativa […], nem relação com a singularidade do outro.22 Dentre os vários tratamentos que são dados ao outro, necessário se faz apontar a diferença entre cada um deles. Em suma, trata de saber a diferença entre “A hospitalidade” que vem do Ailleurs e os tipos de hospitalidade cogitadas pelo ser humano. Ao longo deste capítulo, serão apontadas as diferenças sutis que Derrida traça ao refletir sobre o tratamento ao outro como cidadão/estrangeiro em Kant, como visitante em E. Levinás, bem como o outro absoluto na sua própria concepção. 3.1. O outro como cidadão/estrangeiro kantiano:

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Ibid.

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Derrida analisa em algumas de suas obras, mormente em “Da Hospitalidade” e “Cosmopolitas de todo o mundo – mais um esforço!” o tratamento pormenor ao estrangeiro e sua compreensão em sede de hospitalidade. Com efeito, salienta na primeira das obras citadas que, antes de dizer sobre a hospitalidade ao estrangeiro, haveria que precisar uma tal diferença de acentuação entre “a questão do estrangeiro e “questão do estrangeiro”, uma diferença sutil, mas que altera o tratamento ao outro de maneira desproporcional. (DERRIDA, p. 31). Isto porquanto a diferença, ou a substituição das palavras (a substituido por do) vai inverter, ou alternar o dono, o portador da questão - a questão seria sobre o estrangeiro ou do estrangeiro? Observa-se que a primeira das proposições pergunta antes de acolher, pois a questão do estrangeiro seria analisada por quem não é estrangeiro: Começará ela pela pergunta endereçada àquele que vem […]: como é que te chamas? Diz-me o teu nome, como deverei eu chamar-te, eu que te chamo, eu que desejo chamar-te pelo nome? Como te irei eu chamar? (DERRIDA, p. 41.)

Se a questão do estrangeiro é posta desta forma, endereça-se ao outro (estrangeiro) a questão para que ele responda, e talvez (depende de sua resposta), seja reconhecido como sujeito a ter à hospitalidade. Em suma, o estrangeiro colocado em questão é forçado a responder conforme a vontade de quem o hospeda (do Estado, da nação, de quem detem o poder) antes de ser acolhido. O outro seria primeiramente estrangeiro à língua do direito na qual o dever de hospitalidade está formulado, o direito de asilo, os seus limites, as suas normas, a sua polícia, etc. Ele tem de pedir a hospitalidade numa língua que, por definição, não é sua, a língua que o dono da casa lhe impõe, o hóspede, o rei, o senhor, o poder, a nação, o Estado, o pai, etc. (DERRIDA, p.36). Neste sentido, há uma atitude de suspeita pelo cogito anterior ao acolhimento (uma instância de acolhimento senhora de si), pois o reconhecimento irremediavelmente impõe limites23 de identidade ao outro:

23

Uma constituição e uma formulação que mostrarão, a par da sua necessidade, os limites do cosmopolitismo: e isto precisamente na sua tentativa para delimitar, e apropriar o limite. Limites que são de um racionalismo de índole onto-teológico-político, como é o que dita e inspira a Aufklärung kantiana, e que muito claramente se manifesta na determinação de “identidade” [subjectiva, cidadã, estado-nacional ou internacional] da instância de acolhimento. Uma instância soberana e ciosa da sua soberania, quero dizer, uma instância que se define a partir do seu próprio poder: “dar hospitalidade” ao estrangeiro é um dever, uma obrigação, uma lei, mas…na condição da instância de acolhimento ser e permanecer soberana. Isto é, dono da senhora de si e do que é seu. In:

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[…] este estrangeiro é portanto alguém a quem, a fim de o receber, se começa por perguntar o nome; pede-se-lhe para declinar e para garantir a sua identidade, como se faz a uma testemunha diante de um tribunal. É alguém a quem se coloca uma pergunta e se dirige a um pedido, sendo o primeiro pedido, o pedido mínimo: ou ainda .

Pode-se afirmar então que a primeira questão, tocante a questão do estrangeiro, pergunta antes de acolher, ou impõe condições de acolhimento. Aos que não estão dentro das condições, isto é, aos estrangeiros não reconhecidos como sujeitos de direito em um determinado Estado, ou que não são reconhecidos como sujeitos a possuir direitos (independente dos motivos), a hospitalidade transforma-se em seu oposto, desencadeando a hostilidade, reduzindo-se na oposição hospitalidade/hostilidade. Na medida que a hospitalidade é designada como direito, suspende-se a hostilidade aos que nele se enquadram, isto é, aos sujeitos de direito (seja ele cidadão ou estrangeiro). Ora, aos que não possuem o direito à hospitalidade o que lhes resta? Com efeito, o filósofo do iluminismo I. Kant, afirma que todos os homens possuem direito à hospitalidade. O cosmopolitismo kantiano ainda é visto por muitos doutrinadores como o fundamento do direito internacional e dos direitos humanos. Ao filósofo iluminista, a hospitalidade não seria mais filantropia, mas sobretudo, um direito garantido pelo Estado soberano, senhor da hospitalidade: “Es ist hier, wie in den vorigen Artikeln, nicht von Philantropie, sondern bom Recht die rede, und da bedeut Hospitalitat (Wirt-barkeit) das Recht eines Fremdlings, seiner Ankunft auf dem Boden eines andern wegen von diesem nicht feindselig behandelt zu warden.” “Fala-se aqui, como nos artigos anteriores, não de filantropia, mas de direito, e hospitalidade significa aqui o direito de um estrangeiro a não ser tratado com hostilidade em virtude da sua vinda ao território de outro.”25

Conforme a citação acima, percebe-se que o cunho filosófico e jurídico-político é o limite da hospitalidade em sede kantiana, em dois aspectos – a saber: a dimensão antropológica e humanista da hospitalidade universal.26

Limites do Cosmopolitismo kantiano: Kant lido por Derrida Fernanda Bernardo. Kant: posteridade e actualidade, Lisboa, CFUL, 2006, p. 703. 24 J. DERRIDA, Da Hospitalidade. Ed. Palimage. Trad. Fernanda Bernardo. Viseu. 2003. pp. 40-41. 25 I. KANT. A paz perpétua e outros opúsculos. trad. Artur Morão. Lisboa : Edições 70, 2009. [Apud: Para além do Cosmopolitismo kantiano: Hospitalidade e “altermundialização”” ou a Promessa da “nova Inter-nacional” democrática de Jacques Derrida. Fernanda Bernardo. Revista Portuguesa de Filosofia. Ed. 61.Braga. 2005. p. 964.]

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Para Kant, o direito a hospitalidade reduz-se ao estrangeiro não ser tratado com hostilidade, concedida a partir da vontade dos Estados, limitando-se. O outro deve se dobrar, isto é, responder de acordo com a vontade do hospedeiro. Ora, um simples exemplo da afirmação supra torna isto bem claro: vários Estados só permitem a entrada de estrangeiros, caso estes tenham identificação conforme a própria lei do Estado. Caso contrário, a hospitalidade vira hostilidade. Veja-se bem. O problema maior não está em condicionar a hospitalidade, pois a condição comprova que a hospitalidade é possível. O problema sobretudo, é reduzi-la à força de quem é capaz de oferecê-la, como única condição para que a hospitalidade venha existir. Ora, como um direito pode ser universal e ao mesmo tempo limitado/condicionado pelo Estado que o concede? Percebe-se que o cosmopolitismo kantiano é incapaz de suportar a promessa que o permititiu nascer, pois o ideal de paz perpétua kantiana limita ou condiciona a própria paz. Tornam-se mais cristalino estes limites, ao perceber que a hospitalidade kantiana permite apenas a condição de visitação do estrangeiro dentro de um Estado, e não o direito de residência.27 O direito que se mostra como hospitalidade, istoe é, o limite da hospitalidade como direito ou como hostilidade, não se sente obrigado a acolher qualquer outro. O dever da hospitalidade cogitada por Kant, cogita antes acolher – acolhe o humano (cidadão ou estrangeiro), identificado como sujeito de algum lugar reconhecido pelo acolhedor. O direito a hospitalidade está preso nas dimensões jurídico-políticas oferecidas pelo Estado, bem como, preso na dimensão de pessoa humana como “núcleo” do direito. Por outro lado, tendo em conta a segunda questão tratada no início deste capítulo por Derrida, a posição da pergunta inverte-se, alterando-se também o motivo da hospitalidade. 3.2. O outro absoluto de Derrida: O tópico anterior mostrou que o tratamento ao outro como estrangeiro ou como cidadão é regulado pela força do Estado, bem como é de Kant seu fundamento – o direito cosmopolita kantiano regula-se pelas condições da hospitalidade universal, concedida através dos Estados, delimitando assim, as questões sobre o acolhimento ao estrangeiro. Em suma, , reflete na hospitalidade sob as regras de quem a oferece. Senão, do contrário, transforma-se em hostilidade. Este limite suspende o lugar de onde vem a verdadeira hospitalidade, ou que dela faz-se possível pensar. Além, a hospitalidade derridiana vem da incondição, não se contém única e exclusivamente no direito a hospitalidade, na oposição hospitalidade/hostilidade.28 Para Derrida, o próprio termo – hospitalidade - é aporético. O autor chama-nos atenção ao termo, pois ao conceituá-lo, revela-se um conteúdo que não pode ser completamente eliminado à partir de sua definição. Percorrendo ao fundo, tanto ao ler os diálogos platónicos (mormente Apologia de Sócrates29), quanto com a ajuda de É. Benveniste30, o autor mostra que hospitalidade deriva-se da palavra latina – Hospes – que siginifca tanto hóspede como estrangeiro: Un groupe de mots se rapporte à un fait social bien établi: l´hospitalité, la notion d’ >. Le terme de base, latim hospes, est un ancien composé. L’analyse des éléments qui le composent permet d’éclairer deux notions distinctes et qui finissent par se rejoindre : hospes représente hosti-pet-s. Le second membre pet- est en alternance avec pot- qui signifie >, en sorte que hospes signifierait proprement >. C’est une désignation un peu singulière. Pour mieux la comprende, il faut analyser séparément les deux élements potis et hostis et étudier leurs connexions étymologiques.31

28

[…] Derrida também refere para dar conta do inevitável recorte contraditório ou aporético da hospitalidade [hos-ti/pita-lidade], ela implica heterogeneidade sem oposição e indissociabilidade. Heterogeneidade sem oposição quer dizer, por um lado, a hospitalidade incondicional é e permanece absolutamente heterogénea à ordem das condições, isto é, à ordem da hospitalidade política ou condicional; mas, por outro lado, esta necessária diferença dissimétrica entre hospitalidade incondicional e hospitalidade condicional ou pretensamente soberana [assim como entre pensamento e filosofia e entre “outro absoluto” e “estrangeiro”] não confronta dois pólos de-limitados e opostos da hospitalidade.[…] Há, deve haver diferença dissimétrica, transacção e contaminação entre ambas. Mas nunca fusão nem homogeneidade. In: F. BERNARDO, Para além do Cosmopolitismo kantiano: Hospitalidade e “altermundialização”” ou a Promessa da “nova Inter-nacional” democrática de Jacques Derrida. Revista Portuguesa de Filosofia. Ed. 61.Braga. 2005. p.p. 982-983. 29 A leitura de Derrida sobre os textos platónicos mostra, por um lado, a acolhida do estrangeiro, daquele que é de boa família, que é estrangeiro, mas tem um nome, tem estatuto social, tem visto, por outro lado, também fala da chegada do bárbaro, daquele que fala engraçado, com um sotaque estranho, que não entende direito, que não entendo direito, que não tem estatuto social que não tem documentação. Um é o estrangeiro acolhido, o outro é deportado. In: Daniel Omar Perez. Os siginificados dos conceitos de hospitalidade em Kant e a problemática do estrangeiro. rev. Konvergências. nº 15.Buenos Aires. 2007. p. 24. 30 E. Benveniste nos diz da palavra de etimologia latina Hospitalidade [Hospitalitas] – a qual é, no dizer deste, uma palavra estranha, ambígua. Indecidível ou contraditória, dir-se-ia em linguagem derridiana, onde ela já é “mais de uma”. “Mais de uma” palavra, logo também “menos de uma”. […] E isto porque Hospitalitas vem de hospitalis, palavra forjada a partir da palavra latina hospes [“aquele que recebe outrem”], que se encontra na sua raiz, e que, tendo também um estranho parentesco com a palavra hostis [inimigo], tento pode significar hóspede (Gast, Gasts) ou estrangeiro, acolhido, como hospedeiro [o que a palavra francesa hôte diz de uma assentada], como ainda inimigo – o estrangeiro, amigo/favorável ou inimigo/hostil, como Benveniste diz. In: Para além do Cosmopolitismo kantiano: Hospitalidade e “altermundialização”” ou a Promessa da “nova Inter-nacional” democrática de Jacques Derrida. Fernanda Bernardo. Revista Portuguesa de Filosofia. Ed. 61.Braga. 2005. p.p. 966-967. 31 É. BENVENISTE, Le vocabulaire des institutions indo-européennes. Paris. Les Édtions de Minuit, 1969. P. 88.

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A aporia reflete-se na ausência de definição fixa/rígida do termo. A hospitalidade em sede derridiana assim, possui um carácter de ambiguidade, isto é, de duplo sentido, devido ao aporema hos-ti/pi-talidade.32 Assim, tal como a palavra ou o conceito, a Lei ou a experiência da “hospitalidade” é, em si mesma, imediatamente pervertível e contraditória.33 Kant ao “esclarecer” que a hospitalidade universal só seria possível pelo direito cosmopolita, suspende, ou tenta fechar o aporema denunciado pela raíz etimológica da palavra hospitalidade, consequentemente obrigando o outro (cidadão/estrangeiro) a vergar-se – no modo de assimilação, da integração, ou da naturalização – à sua própria lei. A lei que ele mesmo faz e faz aplicar – dando-lhe “força de lei”.34 Talvez esta suspensão deva-se pelo intuito de proteger o hospedeiro de uma possível hostilidade do outro e isso não deve ser destruído nem mesmo esquecido. Derrida não descarta o cosmopolitismo kantiano, mas ousa repensá-lo. A hospitalidade/hostilidade definem-se como termos contraditórios, mas originam-se da indissociabilidade da palavra e justamente por isto estão suscetíveis de desconstrução. Neste sentido, haverá sim o risco da hostilidade do outro, mas só a hospitalidade incondicional é quem permite a dissociação hospitalidade/hostilidade. Exposto o aporema, imperioso se faz o retorno proposto no tópico deste capítulo, isto é, o segundo questionamento proposto por Derrida - “a questão do estrangeiro” como um chegante. Derrida precisa-o assim: “O que poderíamos aqui chamar o chegante, e o mais chegante entre os chegantesn o chegante por excelência, é aquilo, aquele ou aquela que mesmo, ao chegar, não passa um limiar que separaria dois lugares identificáveis, o próprio e o estrangeiro, o próprio de um e o próprio do outro, como se diria que um cidadão de um certo país identificável passa a fronteira de um outro país, como se fosse um viajante, um emigado ou um exilado político, um deportado ou um refugiado, um trabalhor imigrado, um estudante ou um investigador, um diplomata um turista. Estes são efectivamente chegantes, mas a um país que já se determina e cujo habitante se sabe ou se crê em sua casa (tal é o que deve regular o direito público segundo Kant, […], e quer em relação à hospitalidade e quer ao direito de visita). O chegante absoluto não tem ainda nem nome nem identidade, o seu lugar de chegada encontra-se 32

Ora, desta investigação da filiação semântico-institucional de Benveniste é possível salientar um traço determinante – que se revela também um traço paradoxal no que diz respeito à hospitalidade, a saber, que o hospedeiro, o hospes, aquele que recebe ou dá acolhimento ou hospitalidade, é também o ou do lugar onde e a partir de onde dá hospitalidade e, enquanto tal, aquele que também exerce um poder sobre o hóspede: o hospedeiro é o dono e senhor do lugar e dos bens que oferece ao outro como estrangeiro – assim ela é em sede kantiana. In: Jacques Derrida – o gosto do segredo. Hospitalidade, justiça e democracia. Texto de uma conferência proferida na FLUP a 8 de março de 2010. Disponível no instituto de estudos filosóficos da Universidade de Coimbra. 33 F. BERNARDO, Para além do Cosmopolitismo kantiano: Hospitalidade e “altermundialização”” ou a Promessa da “nova Inter-nacional” democrática de Jacques Derrida. Fernanda Bernardo. Revista Portuguesa de Filosofia. Ed. 61.Braga. 2005. p.p. 966-967. 34 Ibid. p. 970.

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também assim des-identificado: não se sabe ainda ou não se sabe mais como chamar, qual é o país, o lugar, a nação, a família, a língua, o em si em geral que acolhe o chegante absoluto.”35

Ao supra citado, consegue-se perceber que a questão posta não é mais formulada/portada pelo eu, ou pelo soberano, mas do próprio estrangeiro que chega. Ao invés de responder ao chegar, é o estrangeiro quem pergunta primeiro. A origem da hospitalidade, assim, não nasce de condições formuladas, não reduz-se aos Estados, aos identificáveis sujeito de direito, cidadão ou estrangeiro, mas sobretudo, graças à vinda do outro. Por isto cabe ao chegante perguntar primeiro ao acolhedor (caso tratemos a hospitalidade em sua amplitude) - antes de questionar sobre o estrangeiro o Estado tem o dever de acolhê-lo, justamente porque detém este poder. Quando a questão é do estrangeiro, ela não mais pertence ao Estado, rei, sujeito, nação. Eis a diferença entre hospitalidade condicional e incondicional – o portador da pergunta: Dá-se hospitalidade a um sujeito? A um sujeito identificável? A um sujeito identificável pelo seu nome? A um sujeito de direito? Ou a hospitalidade dá-se antes, dá-se ao outro antes mesmo de ele se identificar, antes mesmo de ele ser (posto ou suposto como) sujeito, sujeito de direito e sujeito nomeável pelo seu nome de família, etc? (DERRIDA p. 40).

Numa palavra, como salienta a professora F.Bernardo: nada nem ninguém se acolhe quando não se acolhe incondicionalmente o outro no absoluto da sua singularidade antes e para além da cidadania, portanto – e não para a recusar, mas para ousar repensá-la diferentemente36: Para o dizer noutros termos, a hospitalidade absoluta exige que eu abra a minha casa (chez-moi) e que dê, não apenas ao estrangeiro (dotado de um nome de família, de um estatuto social de estrangeiro, etc.), mas ao outro absoluto, desconhecido, anônimo, e que dê lugar, que o deixe vir, que o deixe chegar, e ter lugar no lugar que lhe ofereço, sem lhe pedir reciprocidade (a entrada num pacto), e sem mesmo lhe perguntar o nome. A lei da hospitalidade absoluta manda romper com a hospitalidade do direito; não que ela a condene ou a oponha, ela pode mesmo, e ao contrário colocá-la e mantê-la num incessante movimento de progresso, mas é-lhe tão estranhamente heterogénea ao direito, de que no entanto tão próxima é, e na verdade indissociável.37

Ao prisma da hospitalidade incondicional derridiana, o direito à hospitalidade não deve ser jogado fora ou desconsiderado, mas sobretudo repensado, rompido pelo Ailleurs. Isto 35

36

Ibid. p. 991. [Apud. J. DERRIDA, Apories. pp. 66-67].

BERNARDO, Fernanda. A crença de Derrida na justiça: para além do direito, a justiça.. Rev. Agora, Vol. 28. Nº 2: 53-94. p. 83. Apud. in op. cit., p. 182. 37 DERRIDA, Jacques. Da Hospitalidade. Ed. Palimage. Trad. Fernanda Bernardo. Viseu. 2003. P. 40.

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porque vem de lá o motivo de dar a hospitalidade e por isto mesmo que a desconstrução é inevitável, justamente pelo carácter ambíguo, indissociavel, heterogêneo e dissimétrico que porta esta palavra. Condicionar ou limitar a hospitalidade pelo que o sujeito já experimentou, a fim de resistir possivelmente a hostilidade/hospitalidade do outro desconhecido, é desconsiderar o primeiro motivo ao qual a hospitalidade pode ser pensada – a vinda do outro. Ora, não é possível acolher/rejeitar, isto é, dar hospitalidade à alguém, sem que este venha à cena, caso contrário, o eu solitário nem mesmo saberia o que poderia ser hospitalidade/hostilidade. Portanto,

. só pode tornar-se possível a partir da

. 3.3. O outro como visitante em E. Levinás: Ao analisar o outro como chegante, pode-se perceber que ele difere-se do outro compreendido como cidadão ou como estrangeiro, no que tange à hospitalidade. Este pensamento aproxima-o do filósofo E. Lévinas, na medida em que este autor considera que o outro não é simplesmente o mesmo que o eu, mas um enigma. Lévinas explica a seguir que o outro não é igual ao eu, ou seja, não reconhece-se como o eu, não adequa-se nem nasce conforme as condições dadas pelo eu. Em suma, o outro não é o Mesmo que o eu. 38 O Mesmo é essencialmente identificação no diverso, ou história, ou sistema. Não sou eu que me recuso ao sistema, como pensava Kierkgaard, é o Outro.39 O choque do encontro entre o eu e o outro é uma experiência “auto-heterônoma” que não se pode converter em teoria, pois o movimento para o outro não se recupera na identificação, não volta ao seu ponto de partida.40 Outrém é o princípio do fenômeno.41

38

A revelação do absoluto inominável do Outro se manifesta como um ser pessoal, totalmente presente a mim que, antes mesmo de um gesto ou de uma palavra, se anuncia a mim: eis me aqui! Este modo de ser do olhar do outro é o que caracteriza o ato revelador, comunicação da visibilidade absoluta do outro e impossibilidade de desnudamento. In: Emmanuel Levinas - En Decouvrant I´Existence avec Husserl et Heidegger. p. 196. 39 E. LÉVINAS, Totalidade e Infinito. Trad. José Pinto Ribeirto. Biblioteca de Filosofia Contemporânea. Ed. 70. Lisboa. 1998. p 28. 40 É. LÉVINAS, Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger. Instituto Piaget. Trad. Fernanda Oliveira. 1997. Lisboa. p. 231. 41 E. LÉVINAS, Totalidade e Infinito. Trad. José Pinto Ribeirto. Biblioteca de Filosofia Contemporânea. Ed. 70. Lisboa. 1998. p,p. 78-79.

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Isto porquanto a relação com o outro não é de re-conhecimento, mas de revelação. O eu em relação com o infinito (outro) é uma impossibilidade de parar a sua marcha para a frente, a impossibilidade de desertar o seu posto, segundo a expressão de Platão no Fédon: é literalmente não ter tempo para se virar.42 É como se o eu fosse ferido, apaixonado, passivo, e por isto leva a resposta imediata ao outro: Venha! Venha! A incondição de estar sempre já sempre desde sempre e para sempre diante da lei: uma incondição que revela a lei (da língua do outro) na origem de todas as leis.43 Desta maneira, não é o outro um representado, não é um dado, não é um particular já aberto à generalização - ontologizado. Esta é a relação em comum entre os autores - a alteridade absoluta, ou responsabilidade infinita, isto é, a necessidade de responder de modo instantâneo ao outro, sem condições - o outro aparece e chama, o eu responde (a eleição do eu pelo outro). Todavia, por mais próximo que seja o pensmento, há também um afastamento entre os autores. Derrida assume sua divida com Lévinas que, em “Totalidade e Innifito”, entende

como relação com Outrem - a relação com outrem - quer dizer a justiça.44

A aproximação está na rectidão incondicional ao outro, enigmático e por isto tratado na sua singularidade, pois o ser carrega o Outro, suporta-o, seja para Derrida como para Lévinas – a rectidão do frente a frente.45 Por outro lado, subiste uma diferença sutil pelas caracteristicas no tratamento dado ao outro. O outro de Lévinas demarca-se como um visitante humano e enquanto tal, um outro com carcterística “carno-falo-logo-cêntrica”46, senão veja-se: […] O estabelecimento do primado da ética, isto é da relação de homem a homem – significação, ensino e justiça -, primado de uma estrutura irredutível na qual se apoiam todas as outras (e, em particular, todas as que, de uma maneira original, nos parecem por em contato com o sublime impessoal, estético ou ontológico), é um dos objetivos da presente obra.47 (grifo nosso).

42

E. LÉVINAS, Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger. Instituto Piaget. Trad. Fernanda Oliveira. 1997. Lisboa. p. 238. 43 F. BERNARDO, A crença de Derrida na Justiça: para além do direito, a justiça. Rev. Agora, Vol. 28. Nº 2: 53-94. p. 64. 44 E. LÉVINAS, Totalidade e Infinito. Trad. José Pinto Ribeirto. Biblioteca de Filosofia Contemporânea. Ed. 70. Lisboa. 1998. p. 65 45 Ibid. 46 F. BERNARDO,. A crença de Derrida na Justiça: para além do direito, a justiça. Rev. Agora, Vol. 28. Nº 2: 53-94. p. 69. 47 Ibid.

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Em “força de lei”, Derrida esclarece que a noção levinasiana de justiça aproxima-se do “humanismo judeu” – entitulando-o como um “direito infinito”, mas limitado ao humano, bem como à teologia.48 Derrida deixa claro seu afastamento: Estaria tentado, até um certo ponto, a aproximar o conceito de justiça – que aqui tendo a dinstinguir do direito – do de Lévinas. Fá-lo-ia, justamente, em razão desta infinitude e da relaçção heteronómica com outrem, com o rosto de outrem que me ordena, de quem não posso tematizar a infinitude e de quem sou refém. Em Totalité et infini, Lévinas escreve: justiça que, aliás, ele define como . Lévinas fala de um direito infinito: naquilo que ele chama , cuja base não é o é a de um direito praticamente infinito. […] E a noção levinasiana de justiça aproximar-se-ia mais do equivalente hebreu que nós traduziriamos talvez por santidade.49

O outro a quem se pensa justiça, hospitalidade, amor, amizade, é o outro humano, como próximo, semelhante à santidade humana para E. Lévinas. Para o autor, a revelação do absoluto inominável do Outro se manifesta como um ser pessoal, totalmente presente a mim que, antes mesmo de um gesto ou de uma palavra, se anuncia a mim: eis me aqui!50 Só o absoluto estranho pode nos instruir. Só o homem me pode ser absolutamente estranho.51 Ora, que outro?! Derrida levanta esta pergunta justamente para transbordar as características dadas por E. Lévinas ao teorizar o outro como um homem-pessoa. O outro absoluto é o separado do eu, e isto inclui o todo e qualquer outro, eleva-se a qualquer semelhança pré-questionada pelo eu, seja ela bíblica, helênica ou ontológica para o primeiro autor. Pensar o outro incondicional (diferentemente de Lévinas), é condenar o sacrfício ao animal, bem como a pena de morte, bem como o sacrifício a vida de qualquer outro vivente. Em “Da Hospitalidade” há uma passagem onde o autor propõe falar acerca da hospitalidade também aos animais, senão vejase:

48

Rachamim inspired Emmanuel Lévinas´s description of the “subject” as immemorially “persecuted” as “maternity, gestation of the other in the same” and as “the groaning of the wounded entrails. [However, as Levinás own metaphor of “maternity” and the origin of rachamim in rechem suggest, rachamim points to a difficulty that Lévinas does not directly address, and that Derrida essay confronts by describing it as the site of one of the “aporias” of “living together. In: Elisabeth Weber. Living Together: Jacques Derrida's Communities of Violence and Peac.e Fordham University Press. Ner York. 2013. p. 250. 49 J. DERRIDA, Forca de lei – o fundamento místico da autoridade. Trad. Fernanda Bernardo. Ed. Galilée, 1994. p. 36. 50 E. LÉVINAS, Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger. Instituto Piaget. Trad. Fernanda Oliveira. 1997. Lisboa. p. 195. 51 E. LÉVINAS. Totalidade e Infinito. Trad. José Pinto Ribeirto. Biblioteca de Filosofia Contemporânea. Ed. 70. Lisboa. 1998. p. 60.

22

. Com efeito, a hospitalidade de um gato para com um pássaro termina bastante mal. […] Dizer que o homem não pode oferecer a hospitalidade senão a outro homem, mulher ou criança, é fazer dele uma espécie animal como outra qualquer. .(DERRIDA, pp. 28-29).

Portanto, a relação primeira entre o eu e outro transborda o próprio humano, caso tratese da justiça e da hospitalidade em sua totalidade e em seu infinito.52 Senão, é o próprio E. Lévinas quem afirma: A ideia do infinito é o espírito antes de se expor à distinção do que descobre por si mesmo e do que recebe da opinião. A relação com o infinito não pode, por certo, exprimir-se em termos de experiência – porque o infitno extravasa o pensamento que o pensa. Nesse extravasamento, produz-se precisamente a sua própria infinição, de modo que será preciso exprimir a relação com o infinto por outros termos que não em termos de experiência objetiva. Mas se experiência significa precisamente relação com o absolutamente outro – isto é, com aquele que extravasa sempre o pensamento – a relação com o infinito contempla a experiência por excelência.53

Aproximam-se ao autores, sobretudo para pensar o outro como uma tarefa indispensável para tentar responder as urgências e as necessidades que o mundo globalizado perpassa.54 Está claro que a hospitalidade em sede levinasiana não reduz-se ao direito, como a hospitalidade em sede kantiana. Porém ainda há um limite - um dever ético-teológico. Apenas em Derrida é que o outro não depende de nenhuma condição mesmo, pois, a partir da vinda do outro chegante é que as condições podem ser formuladas e por isto mesmo também reformuladas, pelo ao outro independente de qualquer dever moral, ou característica: Digamos sim, ao recém-chegado (arrivant) antes de qualquer determinação, antes de qualquer antecipação, antes de qualquer identificação, trate-se ele ou não de um estrangeiro, de um imigrado, de um convidado ou de um visitante inapropriado, seja 52

É pois, receber de Outrém para além da capacidade do Eu: o que signifca exactamente ter a ideia de infinito. In: Ibid. p. 31. 53 E. LÉVINAS, Totalidade e Infinito. Trad. José Pinto Ribeirto. Biblioteca de Filosofia Contemporânea. Ed. 70. 1998. Lisboa. p.15. 54 O que, quanto à relação de pensamento existente entre Lévinas e Derrida, não deixa de ser também já uma maneira de eu insinuar a hipótese para a qual aqui me inclino: a saber, a de que também a conjunção e, que neste título conjuga entre si os nomes e os pensamentos dos dois filósofos (Lévinas e Derrida: a meta-ética e a desconstrução), ao mesmo tempo (ama, como se diz em grego) os disjunta também. Mais: que esta conjunção não conjuga entre si estes dois nomes e o que, quanto ao pensamento filosófico, eles significam senão imediatamente os disjuntando também, dizendo-nos que, também eles, souberam à sua maneira ser próximos, muito próximos mesmo e, em nome dessa proximidade e a partir dessa proximidade, justamente, pensar o mesmo, pensando aquilo que, de cada vez, apela e dá a pensar, isto é, o outro, o absolutamente outro (tout autre), mas na “separação” e, por isso, singular, diferente ou idiomaticamente. In: Lévinas e Derrida: “um contacto no coração de um quiasma”. Fernanda Bernardo. Revista Filosófica de Coimbra. Ed; 33. pp. 47. 2008.

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o recém-chegado ou não o cidadão de um outro país, um ser humano, animal ou divino, um vivente ou um morto, masculino ou feminino. (DERRIDA, p. 62).

Qualquer outro deve ser acolhido com hospitalidade em sede derridiana, independente até mesmo da linguagem. Portanto, os desvios que escapam ao acolhimento incondicional, só fazem sentido se desenvolvidos para regular as relações onde o ser (dono da hospitalidade) não participa diretamente com o outro, mas ainda precisa realizar a justiça, pois é o hospedeiro, o detentor do poder. Neste sentido, só cabe ao soberano regular a relação entre o , a seguir tratada.

3.4. O terceiro: Diferentemente de Kant e de Lévinas, (limitados com suas devidas diferenças pelo ser soberano), o outro para Derrida não possui medida. Ora, outro é qualquer outro (não importa o vivente) e só após seu acolhimento imediato é que faz-se possível cogitar. Neste sentido, entende-se que o cogito regularia apenas o tratamento em que não participa, isto é, entre o

. A maneira de privar o ser conhecido de sua

alteridade só pode ser levada a cabo se ele for visado através de um terceiro termo – termo neutro – que em si mesmo não é um ser.55 Deste modo, a questão do terceiro excluído é fundamental. Fato é que, se não houvesse a intervenção do terceiro, se a intriga fosse entre o eu e o outro absolutamente, estaríamos dentro de um contexto, em primeiro lugar, sem contexto, ou seja, apenas do ser no âmbito da imediatez, antes do mundo e da linguagem.56 Mas quem é o terceiro excluído? Com a ajuda de E. Lévinas: O saber ou a teoria significa, em primeiro lugar, uma relação tal com o ser que o ser cognoscente deixa o ser conhecido manifestar-se, respeitando sua alteridade e sem o marcar, seja no que for, pela relação de conhecimento. Neste sentido, o desejo metafísico seria a essência da teoria. Mas teoria também significa inteligência logos do ser – ou seja, uma maneira tal de abordar o ser conhecido que a sua alteridade em relação ao ser cognoscente se desvanece. O processo de conhecimento confunde-se neste estádio com a liberdade do ser cognoscente, nada encontrando que, em relação a ele, possa limitá-lo. Esta maneira de privar o ser conhecido da sua alteridade só pode ser levada a cabo se ele for visado através de um terceiro termo – termo neutro – que em si mesmo não é um ser. Nele viria amortecer-se o choque do encontro entre o Mesmo e o Outro.57 55

E. LÉVINAS, Totalidade e Infinito. Trad. José Pinto Ribeirto. Biblioteca de Filosofia Contemporânea. Ed. 70. 1998. Lisboa p. 30. 56 M.L. PELIZZOLI, A resconstrução da subjeticidade Porto Alegre. EDPUCRS. 2002. p. 209. 57 E. LÉVINAS, Totalidade e Infinito. Trad. José Pinto Ribeirto. Biblioteca de Filosofia Contemporânea. Ed. 70. 1998. Lisboa p. 29.

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O eu relaciona-se com o outro, que relaciona-se com vários outros, que não se relacionam com o eu (por isto terceiros). O terceiro é desconhecido do eu, mas revela-se no rosto do Outro ao clamar por equidade ao eu (para que a relação dada ao outro pelo eu, seja dada também a ele), na medida em que se relaciona com o outro em comunidade (entram em acordos/desacordos, etc…). É preciso se dirigir ao terceiro mesmo que ele não esteja próximo, e a linguagem terá de suprir tal demanda. Após o primeiro laço de acolhimento/hospitalidade incondicional entre o , a linguagem seria um segundo laço para solucionar a controvérsia entre . Neste sentido, o eu equilibra a relação , em conformidade com o primeiro laço (alteridade absoluta). A equidade é sim cogitada pelo eu, realizando-se através de instituições/estruturas que regulam a vida numa colectividade. O sistema de leis e códigos é um meio de suprir esta demanda exigida pelo terceiro. É deste desvio que nasce a hospitalidade e a justiça como direito. A justiça como direito abre a ordem da consciência tematizante, capaz de julgar, comparar e sincronizar.58 O direito desvia-se da incondicionalidade, para que o eu possa considerar aquele que não está próximo. Graças ao terceiro é que o impossível se torna possível: O terceiro termo pode aparecer como conceito pensado. O terceiro termo pode chamar-se sensação em que confundem qualidade objetiva e afecção subjectiva. Pode manifestar-se como o ser distinto do ente: ser que ao mesmo tempo não é (quer dizer, não se põe como ente) e entretanto corresponde à obra perseguida pelo ente, e não é um nada. Ser, sem a espessura do ente, é a luz em que os entes se tornam inteligíveis. (LÉVINAS, p. 30).

A entrada do terceiro provoca no eu soberano a consciência de regular o desvio ao qual não se faz presente, mas necessita regular - Qual dentre os outros desviou, isto é, qual seria o justo/injusto? Após à vinda do outro e o seu acolhimento, contingenciais relações entre os vários outros entram em cena. Ao nascer uma controvérsia entre o outro e o terceiro, estes aclamarão ao detentor do poder para que realize a justiça entre eles – o eu. Para isto que o direito serve – mediar a relação entre o

, bem como

para regular os desvios que o próprio eu soberano (como Estado, nação, como comunidade internacional, em suma, representado como poder público) cometa, ao agir em desacordo ao acolhimento incondicional, isto é, a hospitalidade e a justiça em sua amplitude.

58

M. FABRI, Desencantando a ontologia: subjectividade e sentido ético em Lévinas. EDPUCRS, Porto Alegre. 1997. p. 182.

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Assim, o direito realiza-se pela obliquidade/desvio entre o . O direito seria o modo pelo qual o ser compara os outros, à partir da incomparabilidade primeira do outro. Só nesta posição é que o eu está em condições de julgar; para que garanta a justiça aos que dele dependem. Portanto, percebe-se que a justiça como direito é passível de desconstrução, senão, veja-se no próximo capítulo. 4. Justiça, direito e desconstrução: Como supra demonstrado, a desconstrução é capaz de atuar em qualquer dimensão/estrutura desenvolvida pelo ser humano. Isto porque ela origina-se além do ser, na medida em que a vinda do outro afeta-o (hetero-auto-afecção pelo outro). Neste sentido, cabe ao ser humano que detém o poder de dar hospitalidade, impor condições somente na relação entre o outro com um terceiro – . Na toada deste pensamento, o direito formulado pelo dono da hospitalidade faz-se um laço obrigatoriamente necessário, pois seria a garantia de justiça como solução às relações controvertidas entre o

- qual dentre estes desviou-se da verticalidade da

relação de acolhimento, isto é; qual deles é o justo/injusto? No entanto, o outro não é senão um mistério para o dono da hospitalidade, na medida em que não é reconhecido como igual, semelhante, próximo, mas singularmente diferente e sempre por vir. Assim, o terceiro que não participa da relação com eu só pode ser cogitado após a vinda do outro (o terceiro se revela no rosto do outro, não o contrário). Deste modo formulado, a justiça como direito expõe sua vulnerabilidade e portanto, mostra-se passivel de descontrução ao por vir. Mas como a desconstrução atuaria no direito? Motivada pela justiça. Mas qual justiça? 4.1. Da justiça do direito à justiça Na obra “Espectros de Marx”, Derrida busca a aproximação de Heidegger sobre “justiça”, autor que insiste na necessidade de pensá-la: […] «Diké, aus dem Sein ais Anwesen gedacht, ist der fugend-fugertde Fug. Adikia, die JJn-Fuge, ist der Un-Fug» «Diké, pensada a partir del ser como presencia, es el acuerdo que junta y acuerda. Adikia, la dis-yunción, es la discordia»

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A justiça para Heidegger é movida pelo seu oposto Adikia, isto é, a injustiça. Neste sentido, a justiça não nasce da vinda do outro, mas da força que provém do acordo harmônico das vontades (entre vários eus). Segundo Derrida: Heidegger interpreta allí Diké como juntura, conexión, ajuste, articulación del acorde o de la harmonía, Fug, Fuge (Die Fuge ist der Fug). En tanto se la piensa a partir del ser como presencia (als Anwesengedacht), Diké conjunta harmoniosamente, de alguna manera, la juntura y el acorde. Adikia, lo contrario: a la vez lo que está disyunto, desencajado, torcido y fuera del derecho, en el entuerto de lo injusto, incluso en la necedad.59

Ao limitar a justiça (Diké) como condição de não conviver com a injustiça (Adikia), Heidegger desconsidera o motivo da justiça de Derrida, pois a reduz ao poder da autoridade, e do acordo em harmonia. A consequência é a justiça limitada pela determinação que se faz do presente, enclausurando a possibilidade do desconhecido por vir. Em breves palaras, Heidegger reduz a justiça como direito. Ora, a justiça que Derrida pensa vai além da dissociação: Diké/Adikia ou seja, além do direito que determina o que é justo/injusto: Tudo seria ainda simples se esta distinção entre e justiça e direito fosse uma verdadeira distinção, uma oposição cujo funcionamento permanecesse logicamente regulado e dominável. Mas acontece que o direito pretende exercer-se em nome da justiça e que a justiça exige instalar-se num direito que deve exercer-se (constituído e aplicado) pela força .60

A justiça do direito em Heidegger é fundada e realizada através da vontade dos que participaram de um determinado acordo, ou um pacto, e assim entraram em harmonia entre o que seria o justo e o injusto, sendo fundado o direito pela força da lei. Além disto está a justiça para Derrida pois, como o senhor do lugar, mesmo que não haja legitimidade anterior para este reconhecimento, a justiça como direito é aporética. Isto porque o seu fundamento último é sem fundamento, a-legal, reduzindo-se pela força da autoridade, pela violência fundadora e conservadora do ato criador: Na estrutura que assim descrevo, o direito é essencialmente desconstrutível, seja por ser fundado, quer dizer, construído sobre camadas textuais interpretáveis e transformáveis (e é a história do direito, a possível e necessária transformação, por vezes o melhoramente do direito), seja porque seu último fundamento por definição, é infundado. (DERRIDA, p. 25).

59

J. DERRIDA, Espectros de Marx. Trad. José Alarcón y Cristina de Peretti. Ed.Trotta. Valladolid. 1995. P. 36. DERRIDA, Jacques. Forca de lei – o fundamento místico da autoridade. Trad. Fernanda Bernardo. Ed. Galilée, 1994. p. 37.

60

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Derrida faz uma leitura de Montaigne e Pascal sobre este ponto, ao qual denominam esta violência como o fundamento místico da autoridade - como que se existisse ali um silêncio murado, emparedado na estrutura violenta do ato fundador. Murado, emparedado, porque este silêncio não é exterior à linguagem. O discurso encontra ali o seu limite: nele mesmo, no seu poder performativo.61 Assim como o aporema da hospitalidade, a justiça em sede derridiana é aporética, e por isto não se reduz na determinação da justiça como direito, à oposição (justo/injuto). O direito no seu momento fundador implica sempre uma força performativa ou interpretativa que jamais pertence àquilo que institui, funda ou justifica.62 A aporias sao percebidas não apenas no que tange aos fundamentos a-legais do direito. Em consequência destes, outras aporias o assombram, sobretudo no momento de sua aplicação/realização. Derrida cita, em “Força de Lei”, três exemplos em que o direito cai em aporia ao realizar-se. A primeira delas denuncia que a mera aplicação das normas juríicas que se deduzem do caso, logicamente só podem ser justas no sentido de justeza, isto é, conforme a lei. No entanto, para ser justa no sentido de justiça, a decisão jurídica para o autor não reduziria-se apenas na lógica por subsunção das normas.63 A responsabilidade do juiz vai além da mera aplicação lógico-subsuntiva: Neste sentido, na sua própria autonomia, na sua liberdade de seguir ou de se dar a lei, ela deve poder ser da ordem do calculável ou do programável, como acto de equidade, por exemplo. Mas, e o acto consiste simplesmente em aplicar uma regra, em desenrolar um programa ou em efectuar um cálculo, di-lo-emos talvez legal, conforme ao direito, e talvez por metáfora justo, mas enganar-nos-íamos em dizer que a decisão foi justa. Muito simplesmente porque, neste caso, não houve decisão. (DERRIDA, pp. 38-39).

O juiz ao aplicar apenas as normas positivadas, não só desconsidera o problema singular de cada caso, como exonera sua responsabilidade de decidir. Se couber apenas garantir a aplicação da lei, o juiz reduz-se a uma máquina de calcular. Para Derrida, a decisão se faz como juizo que deve ir além do cálculo caso x norma/regra:

61

DERRIDA, Jacques. Forca de lei – o fundamento místico da autoridade. Trad. Fernanda Bernardo. Ed. Galilée, 1994. p. 24. 62 F. BERNARDO, A crença de Derrida na Justiça: para além do direito, a justiça. Rev. Agora, Vol. 28. Nº 2: 53-94. p. 81. 63 Ninguém mais pode afirmar seriamente que a aplicação das normas jurídicas não é senão uma subsunção lógica às premissas maiores abstratamente formuladas. In: K. LARENZ, Methodenlehre der Rechtwissenschaft, 3. Ed., Berlim/Heidelberg/Nova York, 1975, p. 154. [Apud. R. ALEXY, Teoria da argumentação jurídica. trad. Zilda Hutchinsin Schild Silva. 3.ed. Forense. Rio de Janeiro. 2013. p. 19].

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Para ser justa, a decisão de um juiz, por exemplo, deve não apenas seguir uma regra de direito ou uma lei geral, como deve assumi-la, aprová-la, cofirmar-lhe o valor, por um acto de interpretação restaurador como se no limite a lei não existisse antes como se o próprio juiz inventasse cada caso. Cada exercício da justiça como direito só pode ser justo se for uma […] […]. A nova frescura, a inicialidade desta sentença inaugural, bem pode repetir qualquer coisa, melhor, deve ser conforme a uma lei pré-existente, mas a interpretação re-instauradora, reinventiva e livremente decisória do juiz responsável requer que a jua , não consista apenas na conformidade, na atividade conservadora e reprodutora da sentença. (DERRIDA, p. 38).

Assim, seria necessário “a epokhé da regra”, isto é, a suspensão da lei aquando o juizo decisório. O juiz para Derrida se torna responsável, na medida em que re-inventa, re-modela sua normatividade conforme a singularidade de cada caso, mesmo que para isso seja necessário desconsiderar a própria norma (a justiça que vem antes e não a norma): […] Em suma, para que uma decisão seja justa e responsável, é preciso que, é preciso que no seu momento próprio, se o houver, ela seja, ao mesmo tempo, regrada e sem regra, conservadora da lei e suficientemente destrutiva ou suspensiva da lei para dever, em cada caso, reinventá-la, re-justificá-la, reinventá-la pelo menos na reafirmação e na confirmação nova e livre do seu princípio. Cada caso é um caso, cada decisão é diferente e requer uma interpretação absolutamente única que nenhuma regra existente e codificada pode nem deve absoluta garantir. (DERRIDA p. 38).

Já a segunda aporia é explificada na “assombração [hantise] do indecidível” - como forma de denunciar os momentos em que o juiz não consegue realizar o direito, utilizando apenas as normas. Alguns exemplos do indecidível são devidos: (1). A imprecisão da linguagem do direito. (2). A possibilidade de conflitos entre normas. (3). A possibilidade de haver casos que requeiram uma regulamentação jurídica, uma vez que não cabem em nenhuma norma válida existente. (4). A possibilidade, em casos especiais, de uma decisão que contraria a literalidade da norma.64

Não cabe aqui tentar responder a cada um destes problemas, mas sobretudo, comprovar que qualquer uma tentativa de resposta inevitavelmente remete o direito para além de sua pretensão de autonomia formal. Ora, o indecidível não é apenas a oscilação entre duas significações ou entre duas regras contraditórias e bem determinadas, […] é a experiência daquilo que, estrangeiro, heterogêneo

64

Para o primeiro tópico: H. Hart, The Concept of Law. Oxford, 1963, p.121 ss. Para o segundo tópico: H. Kelsen, Reine Rechtslehre, 2. Ed. Viena. 1960, p. 210 ss. Para o terceiro tópico: K. Larenz, Methodenlehre der Rechtwissenschaft, 3. Ed., Berlim/Heidelberg/Nova York, 1975, p. 354 ss.Para o quarto tópico: H. Kelsen. op.cit. p. 348. [Apud. R. ALEXY, Teoria da argumentação jurídica. trad. Zilda Hutchinsin Schild Silva. 3.ed. Forense. Rio de Janeiro. 2013. p. 19].

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à ordem do calculável e da regra, deve no entanto – é de dever que é preciso falar – entregarse à decisão impossível, tendo embora em conta o direito e a regra.65 A decisão justa para Derrida é indecidível porque se faz apenas no momento do endereçamento do acontecimento, isto é, no momento de decidir, e por isto, não pode ser premeditada, mesmo que o juiz tenha os instrumentos para tanto. Não há como o juiz presumir a certeza de sua decisão apenas embasado na norma, por isto ela é passivel de desconstrução: Confirma-o já esta segunda aporia – esta segunda forma de aporia: se há desconstrução de toda a presunção à certeza determinante de uma justiça presente, ela opera, ela mesma, a partir de uma infinita, e infinita porque irredutível, e irredutível porque devida ao outro – devida ao outro, antes de todo e qualquer contrato, porque vinda, a vinda do outro como singularidade sempre outra. (DERRIDA, p. 42).

Além da justiça do direito formulado (pela força da lei, ou pela vontade dos membros da sociedades), dar o lugar ao outro é o motivo da justiça. O motivo não pertence a força do outro, mas provém da vinda do outro.66 Se a justiça vem do outro - abre-se a justiça para um lugar e um tempo novo, diferente e singular.67 A justiça derridiana manda sem ordenar, sem pacto, sem convenção, sem tratado, sem dever, sem imperativo, pois ela não espera por condições de negociação, ela é imediata. Ai está a terceira aporia expemplificada por Derrida, “a urgência que barra o horizonte do saber: Ora a justiça, por mais impresentável que seja, não espera. […] Por sua vez, um constantivo pode ser justo, no sentido da justeza, mas jamais no sentido da justiça. Mas como um performativo não pode ser justo, no sentido de justiça, senão fundando-se em convenções, e portanto sobre outros performativos, escondidos ou não, conserva sempre em si qualquer violência eruptiva. […] Paradoxalmente, é por causa deste transbordamento do performativo, por causa deste avanço sempre excessivo da interpretação, por causa desta urgência e desta precipitação estrutural

65

DERRIDA, Jacques. Forca de lei – o fundamento místico da autoridade. Trad. Fernanda Bernardo. Ed. Galilée, 1994. p. 40. 66 Abertura absoluta para dinstinguir da abertura da 3ª analogia da experiência da Crítica da Razão Pura, de Kant, da abertura da intencinalidade da consciência de Husserl, do êxtase da ek-sistência de Heidegger ou mesmo da abertura ao outro de Lévinas entendida como vulnerabilidade de uma pele exposta ou oferecida. Ibid. p. 22 e nota de roda pé. 67 […] a Justiça numa certa proximidade à Dikê de Heidegger, foi justamente o (fio) da disjunção do tempo – uma disjunção siginificada pela palavra de Hamlet . E uma proximidade a Heidegger marcada pela sua subtração da justiça ao juridiscismo e ao direito romano. […] Uma proximidade que, no entanto, logo tomará as suas distâncias, em razão da interpretação heideggeriana da Dikê (justiça) em termos de harmonia, de conciliação, de acordo….In Fernanda Bernado. Jacques Derrida – o gosto do segredo. Hospitalidade, justiça e democracia. Texto de uma conferência proferida na FLUP a 8 de março de 2010. Disponível no instituto de estudos filosóficos da Universidade de Coimbra.

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da justiça, que ela não tem horizonte de espera (regulador ou messiânico). (DERRIDA, pp. 43-45)

Ora, esta abertura anterior, como supramencionado, deve-se ao Ailleurs, na relação vertical que dá lugar e tempo ao outro absoluto. A verticalização se dá com a resposta imediata (sem espera). Para a justiça incondicional, o outro porta a primeira questão, por isto ela é indesconstrutível. Ao direito, contrariamente, ao eu pertence a questão, por isto ele é desconstrutível. Como pensamento do imeaditado endereçamento ao acontecimento da vinda do outro, a re-construção do direito estruturalmente precipitado sempre pode vir à cena: A justiça permanece por vir (à venir) ela tem que vir, está por-vir (a-venir), ela desprega a própia dimensão de eventos (évenements) irredutivelmente por vir (à venir). Ela terá sempre este por-vir (à venir) e tê-lo-à sempre tido. Talvez seja por isso que a justiça, na medida em que não é apenas um conceito jurídico […], abra ao por vir a transformação, a reforma ou a refundação do direito[…].68

Assim como todos os outros impossíveis da desconstrução, a justiça está para além do direito, inapresentável devido sua incondicionalidade. Prova disto se faz pelas aporias denunciadas supra. A justiça em si mesma, diz Derrida, se uma tal coisa existe, fora ou para além do direito, não é desconstrutível. Tal como a própria desconstrução, se qualquer coisa de tal existe. A desconstrução é a justiça.69 4.2 Um novo sentido ao direito: As

aporias

supramencionadas

por

Derrida

atentam

pela

urgente

hiper-

reflexão/radicalidade dos paradigmas pelas quais se desenvolve a juridicidade.70 Por que? Por vir a justiça da vinda do outro. É pois a que faz-se a possibilidade do direito ter sentido. Este sentido alerta para um

J. DERRIDA, Forca de lei – o fundamento místico da autoridade. Trad. Fernanda Bernardo. Ed. Galilée, 1994. p. 46. 69 Ibid. pp 26-27. 70 Fá-lo-emos referindo três perguntas: […] As perguntas são: 1-) com que sentido ou de que modo intencionalmente constitutivo visam o direito e, em consequências desse sentido e desse modus, em que termos fundamentalmente se objectivam e compreendem?; 2-) com que categoria ou categorias de inteligibilidade o pensam e determinam?; 3-) como, em corolário operativo das respostas dadas às duas perguntas anteriores, se estruturam metodologicamente, i. é, segundo que modelo metódico o realizam e actuam? In: C. Neves. Teoria do direito. FDUC. 1998. p. 29.

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repensar exigente, responsável e inventivo do direito […] – e portanto, como a condição para uma transformação do direito […].71 Não para desacreditá-lo abrindo mão do seu ordenamento normativo, mas sobretudo para apelar por perfectibilidade, sempre por vir, para um progresso no próprio direito. Tendo em vista o pensamento da desconstrução, o direito deve elevar ao



o seu sentido

normativo. Derrida expõe outro plural que considere antes a “singular, absoluta e única” lei da hospitalidade:

A lei da hospitalidade, a lei incondicional da hospitalidade ilimitada (dar ao recémchegado toda a sua casa (chez-soi) e todo o seu si (soi), dar-lhe o seu próprio, o nosso próprio, sem lhe pedir, nem que nos diga o nome, nem contrapartidas, nem para preencher a menor condição), e, por outro lado, as leis da hospitalidade, estes direitos e estes deveres sempre condicionados e condicionais, tal como os define a tradição greco-latina, ou judaico-cristã, todo o direito e toda a filosoia do direito até Kant e Hegel em particular, através da família, da sociedade civil e do Estado. E esta aporia é, na verdade, uma antinomia. Nela está de facto em questão a lei (nomos). Este conflito não opõe uma lei a uma natureza ou a um facto empírico. Marca a colisão de duas leis, na fronteira entre dois regimes da lei igualmente não empíricos. […] A lei, no singular absoluto, contradiz as leis no plural, mas de cada vez é a lei na lei, e de cada vez fora da lei na lei. Tal é a coisa tão singular a que chamamos as leis da hospitalidade. Plural estranho, gramática plural de dois plurais ao mesmo tempo diferentes. Um destes dois plurais diz as leis da hospitalidade, as leis condicionais, etc. O outro plural diz a adição antinómica, aquela junta à única e singular absolutamente única grande Lei da hospitalidade, à lei da hospitalidade, ao imperativo categórico da hospitalidade, as leis condicionais. No segundo caso, o plural é feito de Um (ou de Uma) + uma multiplicidade, enquanto no primeiro caso é apenas a multiplicidade, a distribuição, a diferenciação. Num caso, temos Um+n; no outro n+n+n, etc. (Notemos entre parênteses que a título de quase-sinonímia para , a expressão kantiana do não deixa de colocar alguns problemas; mantê-la-emos com alguma reserva, sob rasura, se quiserem, ou sob épokhè. Porque, a fim de ser o que ser, a hospitalidade não deve pagar uma dívida, nem ser ordenada por um dever: graciosa, ela não abrir-se ao hóspede [convidado ou visistante] nem nem mesmo, para utilizar ainda a distinção kantiana, . Esta lei incondicional da hospitalidade, se pudermos pensar tal coisa, seria pois uma lei sem imperativo, sem ordem e sem dever. Uma lei sem lei, em suma.Um apelo que manda sem ordenar. Porque se eu praticar a hospitalidade por dever [e não apenas em conformidade com o dever], esta hospitalidade saldável não é mais graciosamente oferecida para além da dívida e da economia, oferecida ao outro, uma hospitalidade convidada para a singularidade do recém-chegado, do visitante inominado.72 (g.n).

Primado na alteridade absoluta, Derrida propõe assim elevar o sentido e a realização do direito que considere a adição antinómica, ou anômica da grande Lei da hospitalidade (Um+n), oferecendo hospitalidade e justiça acolhedora a vinda do outro para que só assim, as multiplicidades legais sejam desenvoldidas. 71

J. DERRIDA, Espectros de Marx. Trad. Joseé Alarcón y Cristina de Peretti. Ed.Trotta. Valladolid. 1995. p. 126. 72 DERRIDA, Jacques. Da Hospitalidade. Trad. Fernanda Bernardo. Ed. Palimage. p.

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Mesmo tendo em conta as leis, a incondicionalidade da lei maior da hospitalidade desconstrói a condição de estrangeiro, de cidadão, de sujeito de direito e de presunção de certeza jurídica, seja na sua fundação, seja na sua realização. Verdadeira é só a justiça. 73 Ora, é o por vir que possibilita a chance do evento se realizar e a justiça pensada assim é: Invencível a qualquer cepticismo, como é possível dizer-se, falando à maneira de Pascal, esta parece indestruível no seu carácter afirmativo, na sua exigência de dom sem troca, sem circulação, sem reconhecimento, sem círculo econômico, sem cálcuclo e sem regra, sem razão ou sem racionalidade teórica, no sentido de dominação reguladora. Pode então reconhecer-se nela, ou mesmo acusarse nela uma loucura. E talvez uma outra espécie de mística. E a descontrução é louca por esta justiça. Louca por este desejo de justiça. Uma tal justiça, que não é o direito, é o próprio movimento da desconstrução a operar no direito e na história do direito, na história política e na história tout court, antes mesmo de se apresentar como o discurso que assim se intitula na academia ou na cultura do nosso tempo – o .74

No decurso deste artigo, viu-se que a desconstrução não faz-se premeditar, ou seja, não há como antecipá-la, apenas esperar. Com efeito, a desconstrução não é um método. Inobstante, todo método, (inclusive o jurídico) é passível de desconstrução. Posto isto, eleva-se também ao



o modus operandi do direito, pois em um

extenso número de casos, a decisão jurídica que põe fim à uma disputa judicial, expressa em um enunciado normativo, não se segue logicamente das formulações das normas jurídicas que se supõem vigentes, juntamente com os enunciados empíricos que se devam reconhecer como verdadeiros ou provados.75 O direito é apenas um apelo que a justiça manda, uma exigência estrutural, de modo que o operador do direito deve ir além, para que a decisão seja justa. A justiça para Derrida é indissociável, heterogêna, anômica, dissimétrica e diacrônica. Suas caracterísitcas suspendem o dito do direito pelo por vir, pelo sempre a dizer da justiça infinita e incalculável. Com isto: Um invencível desejo de justiça se liga a esta expectativa. Por definição, esta não está nem deve estar garantida de nada, por nenhum saber, nenhuma consciência, nenhuma previsibilidade, nenhum programa enquanto tais. Esta messianicidade abstracta pertence desde o início à experiência da fé, do crer ou de um crédito irredutível ao saber e de uma fiabilidade que “funda” toda a relação com o outro no testemunho. Esta justiça, que distingo do direito, permite, só ela, esperar, para além dos “messianismos”, uma cultura universalizável das singularidades, uma cultura na 73

Verdadeira, só mesmo a justiça. In: E. Lévinas. Totalidade e Infinito. p. 62. J. DERRIDA, Forca de lei – o fundamento místico da autoridade. Trad. Fernanda Bernardo. Ed. Galilée, 1994. p. 42. 75 R. ALEXY, Teoria da argumentação jurídica. trad. Zilda Hutchinsin Schild Silva. 3.ed. Forense. Rio de Janeiro. 2013. p. 19 74

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qual a possibilidade abstracta da impossível tradução posssa todavia anunciar-se. Inscreve-se de antemão na promessa, no acto de fé ou no apelo à fé que habita todo ato de linguagem e todo o endereçamento ao outro […]. Anuncia-se por toda a parte onde, reflectindo sem flectir, uma análise puramente racional faz surgir este paradoxo, a saber, que o fundamento da lei – a lei da lei, a instituição da instituição, a origem da constituição – é um acontecimento “performativo” que não pode pertencer ao conjunto que funda, inaugura ou justifica. Tal acontecimento é injustificável na lógica do que tiver aberto. É a decisão do outro no indecidível. […] Doravante a razão deverá reconhecer aquilo que Montaigne e Pascal chamam um irrecusável “fundamento místico da autoridade”. O místico assim entendido alia a crença ou o crédito, o fiduciário ou o fiável, o secreto (significando aqui “místico”) ao fundamento, ao saber, e, como diremos mais adiante, também à ciência como “fazer”, como teoria, prática e prática teórica, quer dizer a uma fé, à performatividade e à performação tecnocientífica ou teletecnológica.76

Assim, necessário se faz uma recompreensão/reconstrução de sentido ao direito que considere A lei” incondicional da hospitalidade como fundamento legítimo das leis da hospitalidade, bem como uma recompreensão/reconstrução do método ou de práxis da juridicidade que não feche os olhos às aporias, para que assim equilibre a relação entre o primado na alteridade absoluta.

Portanto, a justiça para Derrida está além do direito concedido ao outro (cidadão/estrangeiro/visitante). Está além, mas pode vir acessá-lo e assim, rasgar seus códigos através da desconstrução, (não para jogá-los no lixo, mas para remoldá-los) na medida em que busca alcançar, sem cessar, por uma justiça anterior à qualquer questão, razão, pacto, contrato, imperativo, ou seja, atuando por mais justiça ao direito. Conclusão O pensamento transborda - do infinito ao finito. Como? Através da desconstrução e os motivos pelo qual ela atua, isto é, as maneiras pela qual des-cons-trói-se para re-construir-se, na busca pela perfeição que sempre estará por vir. Por isto é que ela rompe com as questões - para lembrar que só são possíveis, graças à vinda do outro (pela questão de que o outro não é dono, mas que porta, provém). Ora, é impossível perdoar, senão o imperdoável. Ora, é impossível oferecer hospitalidade, senão dando-a. Como economizar a justiça ao direito? A desconstrução não somente denuncia, mas sobretudo remolda todas as estruturas. Aos limites do direito fundado pela força do eu e pelo pré-reconhecimento do outro (como sujeito/cidadão/estrangeiro), rompe com a pretensa autonomia formal, seja no momento de

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DERRIDA, Jacques. Fé e Saber. In: A religião. Seminário de Capri dirigido por Jacques Derrida e Gianni Vitiello. Trad. Miguel Serras Pereira. Ed. Relógio D’água. Lisboa. 1997. p. 31.

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sua fundação, seja no momento do juízo decisório e isso pode-se concluir através das inevitáveis aporias. Mas o trabalho não encerra-se. Uma futura e pormenorizada investigação faz-se imperiosa, sobretudo no que tange a um novo sentido para o direito, no intuito de buscar à perfectibilidade ao verdadeiro motivo de sua consitutção e práxis - a justiça incondicional. Gratidão ao autor por pensar o além, repensando as condições (ética, direito, política, religião, economia, sociedade, etc….), sem temer enfrentar os fantasmas, nem abrir atalhos para liquidá-los. Cabe enfrentá-los, não sem medo, mas ainda de peito aberto pela força dissimétrica que o ser possui – sempre passível de desconstrução. Bibliografia R. ALEXY, Teoria da argumentação jurídica. trad. Zilda Hutchinsin Schild Silva. 3.ed. Forense. Rio de Janeiro. 2013. É. BENVENISTE, Le vocabulaire des institutions indo-européennes. Paris. Les Édtions de Minuit, 1969. F. BERNARDO, Limites do Cosmopolitismo kantiano: Kant lido por Derrida. In: Kant: posteridade e actualidade. Lisboa, CFUL, 2006. ______________, O limite da questão no pensamento de M. Heidegger. Revista Biblos – Vol. LXVIII. Coimbra. 1992. ______________, Jacques Derrida – o gosto do segredo. Hospitalidade, justiça e democracia. Texto de uma conferência proferida na FLUP a 8 de março de 2010. Disponível no instituto de estudos filosóficos da Universidade de Coimbra. ______________, A crença de Derrida na Justiça: para além do direito, a justiça. Rev. Agora, Vol. 28. Nº 2: 53-94. Coimbra. 2009. ______________, Para além do cosmopolitismo kantiano: Hospitalidade e “altermundialização”ou a Promessa da “nova internacional” democrática de Jacques Derrida. Revista Portuguesa de Filosofia. Ed. 61.Braga. 2005. ______________ e M. Junges, E. Lévinas – J. Derrida: pensamentos a alteridade ab-soluta. Rev. Filosófica de Coimbra – nº 42. 2012. J. DERRIDA, Fé e Saber. In: A religião. Seminário de Capri dirigido por Jacques Derrida e Gianni Vitiello. Trad. Miguel Serras Pereira. Ed. Relógio D’água. Lisboa. 1997. ____________, Espectros de Marx. Trad. José Alarcón y Cristina de Peretti. Ed.Trotta. Valladolid. 1995. ____________, Khôra. Trad. Nícia Adan Bonatti. Ed. Papirus. Campinas. 2007.

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____________, Da Hospitalidade. Ed. Palimage. Trad. Fernanda Bernardo. Viseu. 2003. ____________, Cosmopolitas de todos os países, mais um esforço! Trad. Fernanda Bernardo. Ed. MinervaCoimbra. Coimbra. 2001. ____________, Forca de lei – o fundamento místico da autoridade. Trad. Fernanda Bernardo. Ed. Galilée, 1994. I. KANT, A paz perpétua e outros opúsculos. trad. Artur Morão. Lisboa : Edições 70, 2009. E. LÉVINAS, Descobrindo a existência com Husserl e Heidegger. Instituto Piaget. Trad. Fernanda Oliveira. Lisboa. 1997. ____________, De outro modo que ser ou para lá da essência. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011. ____________, Totalidade e Infinito. Trad. José Pinto Ribeirto. Biblioteca de Filosofia Contemporânea. Ed. 70. Lisboa. 1998. N. MELO, A ética da alteridade em Emmanuel Levinas. Coleção: Filosofia – 163. Ed. PUCRS. Porto Alegre. 2003. C. NEVES, Teoria do direito. FDUC. Coimbra. 1998. M.L. PELIZZOLI, A resconstrução da subjeticidade Porto Alegre. EDPUCRS. 2002.

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