A DESCONSTRUÇÃO DA REPRESENTAÇÃO FEMININA EM UM ÚTERO É DO TAMANHO DE UM PUNHO, DE ANGÉLICA FREITAS

May 30, 2017 | Autor: Pilar Bu | Categoria: Contemporary Poetry, Poesia brasileira moderna e e contemporânea
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IV Colóquio Internacional de Estudos Linguísticos e Literários 08, 09 e 10 de junho de 2016 Programa de Pós-Graduação em Letras ANAIS ELETRÔNICOS - ISSN 2177-6350

A DESCONSTRUÇÃO DA REPRESENTAÇÃO FEMININA EM UM ÚTERO É DO TAMANHO DE UM PUNHO, DE ANGÉLICA FREITAS Pilar Lago e Lousa (UFG/CAPES) Vozes que ecoam Em Um útero é do tamanho de um punho, Angélica Freitas intensifica sua busca pela quebra e ruptura de padrões e paradigmas literários. A gaúcha de Pelotas segue problematizando tabus, rompendo mitos e se consolidando como uma das grandes expoentes da poesia contemporânea. Muito além de uma escrita panfletária, a poeta procura lançar um olhar crítico ao próprio fazer poético. A escolha dessa obra, e não de Rilke Shake (2007), para compor a análise deste artigo dá-se em virtude da percepção da existência de uma condensação e amadurecimento na desconstrução da figura clássica e padrão da mulher. Um útero é do tamanho de um punho propõe, por meio de uma poesia irônica, contundente e extremamente crítica, um verdadeiro manifesto polifônico de ruptura, do qual emergem dos poemas vozes femininas até então interditadas dentro do fazer poético e literário A literatura, bem como a poesia, é um espaço ainda prioritariamente masculino, interditado às mulheres em virtude de uma concepção machista que fez com que o cânone literário se cristalizasse em uma configuração excludente. Romper com esta estrutura clássica de silenciamento das vozes femininas pauta e perpassa a obra de Angélica Freitas. Como cabedal teórico, escolhemos pautar a análise dos poemas por meio da crítica de autoria feminina, vislumbrada pelas autoras: Naomi Wolf, Regina Dalcastagnè e Simone De Beauvoir como principais teóricas, a fim de verificar de que maneira Angélica Freitas, com sua representação poética, descontrói o feminino e funda um olhar crítico a cerca de mitos e tabus que circundam as mulheres. A ousadia da autora, como podemos perceber, já se inicia com a escolha do título do livro. O útero, simbolicamente tratado pela tradição como um símbolo sagrado de fertilidade, encontra sua ressignificação ao ter seu tamanho comparado com o de um punho. O punho, como exemplificado no poema homônimo ao livro, aparece aqui cerrado como marca da resistência. A utilidade do útero deixaria de estar centrada apenas no esvaziamento do poder feminino pela função biológica da procriação, lugar em que a mulher ficou durante muito tempo relegada, e passaria a ser um elemento de 3309

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demonstração da luta pela afirmação de uma nova estética não castradora, de retomada de lugar de fala. Muito além das santas e das musas, mulheres comuns transitam pelas páginas da obra de Angélica Freitas. Mulheres que não aceitam mais ter seus corpos habitados por outras pessoas que não elas mesmas, que não aceitaram o espaço de dor em que a sociedade patriarcal as colocou e que tomam posse de suas escolhas e vozes. O corpo feminino é um espaço interditado Segundo FRIGHETO (2015, p.1311), “nascer mulher implica uma série de exigências sexuais e comportamentais, como o recato, a limpeza, a submissão e mais importante, a maternidade”. O estereótipo feminino do corpo educado, que deve seguir normas sociais bem definidas, pré-estabelecidas, que forma um ideal de mulher quase sagrado e inatingível torna-se insustentável na contemporaneidade, que não o comporta e o rechaça em virtude dos mais diversos avanços nas lutas por direitos oriundas, principalmente, do movimento feminista. Já no primeiro poema de Um útero é do tamanho de um punho, Angélica Freitas coloca em foco tal crítica: porque uma mulher boa é uma mulher limpa e se ela é uma mulher limpa ela é uma mulher boa há milhões, milhões de anos pôs-se sobre duas patas a mulher era braba e suja braba e suja e ladrava porque uma mulher braba não é uma mulher boa e uma mulher boa é uma mulher limpa há milhões, milhões de anos pôs-se sobre duas patas não ladra mais, é mansa é mansa e boa e limpa (FREITAS, 2013, p.11)

Neste poema, a autora nos chama atenção para a função castradora da sociedade em relação à conduta feminina. O usos das expressões “mansa”, “boa” e “limpa” marcam no poema quais configurações são esperadas e se deve ter para que uma mulher seja considerada aceita e respeitada dentro de uma sociedade “civilizada”, regulada por 3310

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padrões. O oposto, aqui exemplificado pelas palavras “braba”, “suja” e “ladrava”, surge como marcação de falha e de conduta bárbara a não ser seguida. Aqui a violência é simbólica, é preciso tirar da mulher tudo aquilo que a caracteriza, tudo que lhe é natural a fim de domesticá-la para que não seja um perigo para a sociedade. Uma mulher boa segue padrões, aos olhos da máquina patriarcal, é submissa, não reclama e aceita sua condição de subalterna socialmente. A repetição cumpre uma função de ladainha, quase como acontece em manuais de boas-maneiras aonde o reforço é exigido para educar e castrar quaisquer condutas transgressoras. É preciso apagar os instintos e desejos femininos, é preciso dominá-las e controlá-las para que não ladrem mais. Esse é um processo de “milhões, milhões de anos”, evidenciando um construto naturalizado nas mais diversas camadas e empreendimentos sociais. A literatura, como território contestado, segundo Regina Dalcastagnè (2012) é um campo de batalhas e busca por espaço. À revelia do cânone, as mulheres tem procurado romper barreiras e dar voz às suas mais diversas demandas. Seus corpos, abjetos e desconsiderados pela sociedade machista que não os vê como aceitáveis, possíveis e humanos são muitas vezes retratados de maneira caricatural. Entretanto, se elas não se dignam mais a ser apenas limpas, o que acontece quando suas abjeções e interdições se acumulam? uma mulher gorda incomoda muita gente uma mulher gorda e bêbada incomoda muito mais uma mulher gorda é uma mulher suja uma mulher suja incomoda incomoda muito mais (FREITAS, 2013, p.16)

Sim, elas incomodam muito mais. A ladainha é novamente utilizada aqui para reforçar estereótipos. O corpo gordo é visto pela sociedade como um corpo doente, que não atende aos anseios estéticos pasteurizados. Novamente aqui aparece a figura da sujeira para marcar esse corpo que não está institucionalizado. Duplamente subalterna, a mulher gorda está marginalizada tanto pela questão de gênero quanto pelo seu peso. Ela não é uma mulher digna, sua presença causa desconforto, tanto que ao final do poema é preciso encontrar rápido, muito rápido uma mulher limpa para substituir a mulher gorda deslocada. 3311

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Engana-se entretanto, aquela quem pensa que a marca da limpeza é sinônimo de tranquilidade. O mito da beleza, segundo Naomi Wolf (1992), imposto às mulheres e transmutado através dos tempos, atua de maneira violenta e mutiladora ao instituir um padrão de beleza inatingível e eternamente frustrante que serve apenas ao sistema de dominação masculina. No poema mulher de regime, a frustração é tamanha que desperta o sentimento de culpa. Culpa por não se encaixar mesmo em face de uma doença, culpa por não poder atender ao anseios, culpa por estar fraturada: Eu me sinto tão mal Eu vou lhe dizer eu me sinto tão mal Engordei vinte quilos depois que voltei do hospital Quebrei o pé Eu vou lhe contar que eu quebrei o pé (FREITAS, 2013, p.41)

Aqui o eu-lírico utiliza o tom da confissão por meio de “eu vou lhe dizer”, “eu vou lhe contar”. A repetição configura a espera de um perdão para um crime, um pecado que não foi cometido. Por meio da melancolia, vemos que ela encontra-se abatida pelos sentimentos de impotência e culpa, esperando que seus “deslizes” sejam compreendidos por ter quebrado o pé. Entretanto, o julgamento é implacável e não há justificativas para o não atingimento das metas, ainda que abusivas. Mais pra frente, ainda que admita estar magoada, entende que a mãe (outra mulher subjugada pelo mito da beleza) ao compará-la a um saco de batatas, tinha razão de chamar-lhe a atenção. Muito mais do que o osso do pé, é por dentro que encontra-se fraturada e recomeça o regime, a fim de torna-se mais uma vez aceita e encaixada. Em estudo de Regina Dalcastagnè (2010) é evidenciado que mesmo quando são retratadas por homens, no papel de personagens, as mulheres estão em uma posição subalterna à das figuras masculinas. Angélica Freitas nos estimula a todo momento dentro da obra a fazermos uma reflexão crítica da figura feminina representada na literatura como um espelho de sua representação na sociedade. A tradição clássica silencia as vozes das mulheres nas mais diversas situações. Seja pela negativa do acesso a fala ou seja pela negativa física do intento de concretizar um discurso sólido acerca de seus desejos e necessidades. Quando cerceá-las apenas no campo simbólico deixa de funcionar, é preciso tomar outras medidas drásticas para descredibilizá-las. Em uma canção popular (séc. XiX-XX), a autora evidencia: 3312

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uma mulher incomoda é interditada levada para o depósito das mulheres que incomodam loucas louquinhas tantãs da cabeça ataduras banhos frios descargas elétricas são porcas permanentes mas como descobrem os maridos enriquecidos subitamente as porcas loucas trancafiadas são muito convenientes interna, enterra (FREITAS, 2013, p.15)

A mulher que incomoda, é a que não se encaixa, simplesmente não aceita ser enquadrada em alguma das possibilidades tradicionais de representação. Neste poema, o eu-lírico nos chama atenção para o fato de mulheres serem taxadas como loucas quando não conseguem ou não querem cumprir o papel esperado pela sociedade. Essas mulheres serão “porcas permanentes”, ou seja, seus corpos serão abjetos e inumanos, suas ideias e convicções serão para sempre descredibilizadas. É mais fácil tratar uma pessoa que não se adequa como louca, do que procurar entender suas demandas. Neste poema a interdição do corpo se configura na interdição física, deflagrando uma prática muito comum e difundida no ocidente que é trancafiar essas mulheres em manicômios como uma resposta punitiva às suas inadequações. Na penúltima estrofe, novamente por meio da ironia, vemos a quem servem tais práticas de brutalidade, aos maridos que de alguma maneira ganham com sua loucura. O último verso deflagra o sepultamento em vida, internar é morrer socialmente. O útero é um símbolo de luta e resistência Angélica Freitas lança mão do olhar crítico, para desconstruir tabus e clichês e questionar como eles podem ser e são opressivos com mulheres. Como eles traduzem para a literatura uma prática de dominação falocêntrica. A releitura do lugar de fala feminino desloca o olhar e produz um efeito de desconforto no leitor, que não pode mais ficar alheio à tais questões. Vimos até aqui que sua linguagem expõe uma série de construtos tradicionais para, por meio da ironia e do jogo de palavras, fazer um movimento de desconstrução 3313

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dentro do próprio texto a fim de problematizar a concepção da figura feminina como reflexo da sociedade. Resgatando os estudos de BEAUVOIR (2009 p. 361), podemos verificar que repousa sobre a mulher uma teoria tradicional baseada na biologia que a reduz a uma concepção de mera procriadora da humanidade. A célebre frase “não se nasce mulher, torna-se” vem acompanhada da afirmação de que “nenhum destino biológico ou psíquico ou econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade”, o que existe é um processo cruel de socialização que através dos séculos marcou a figura feminina como subalterna e inferior ao homem, que seria o ser perfeito não castrado. Tais questões nos coloca em cheque o fato do que representa essa alegoria de ser o sujeito mutilado física e socialmente. A configuração do construto da socialização opressora, é criticada e colocada no centro da discussão por meio do poema homônimo ao livro, um útero é do amanho de um punho: um útero é do tamanho de um punho num útero cabem cadeiras todos os médicos couberam num útero o que não é pouco uma pessoa já coube num útero não cabe num punho quero dizer, cabe se a mão estiver aberta (FREITAS, 2013, p.59)

Muito além de um mero receptáculo, como ser pensante e que pratica a ação, produtor de uma fala original e genuína, é pertinente concluir que essa é a proposta da autora. Neste poema temos o útero como marcador dessa questão biológica em contraponto com o punho cerrado que é o símbolo da luta. O eu-lírico não é uma mera expectadora da vida, mas alguém que age por si. O verso “todos os médicos já couberam num útero”, nos traz a alusão de que todas as pessoas já nasceram de uma mulher, não há outra forma de ser. Então, por que elas são consideradas como subalternas pelos homens? A estrofe se encerra com a constatação de que uma pessoa caberia dentro de um punho apenas se a mão estivesse aberta, ou seja, à revelia em submissão. Essa não é a postura da voz desse poema, essa voz não se submeterá a caber dentro da palma da mão, pois está em luta por suas demandas pessoas como podemos ver ao decorrer do poema. Algumas estrofes depois temos:

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repita comigo: eu tenho um útero fica aqui é do tamanho de um punho nunca apanhou sol um útero é do tamanho de um punho não pode dar soco (FREITAS, 2013, p.61)

Quando o eu-lírico convida à repetição “eu tenho um útero”, é também um convite ao auto-reconhecimento, ao surgimento de uma voz que entende sim que é mulher, com todos as questões que margeiam esse ser. Entretanto esse útero encontra-se aprisionado, visto que não toma sol. É uma mulher cerceada, castrada e que não tem acesso aos seus direitos. Quando comparado novamente ao tamanho de um punho, com a ressalva de que não pode dar um soco, entendemos o real convite da autora. O que emerge desses versos é a conclamação ao abandono da simbologia do cálice e da fecundidade como única possibilidade de representação, fundando assim uma nova concepção do feminino pautada na ação, na retomada e posse daquilo que fora outrora relegado. Uma representação literária e social não mediatizada e caricata, mas que torna possível o entendimento da mulher como não submissa, agora tomadora de suas próprias decisões. A sociedade, galgada no machismo e na misoginia, não consegue dar conta dessa representação que está em franca libertação. Não é mais possível colocar em caixinhas e educar um corpo abjeto que almeja apoderar-se de suas demandas. Simplesmente escapa: (a mulher é uma construção com buracos demais vaza (FREITAS, 2013, p.45)

Se Angélica Freitas está “na contramão de uma história que se pretende contínua e perpetuada em/por centros de domínio e de poder”, como afirma PIETRANI (2013, p.37), ela então é porta-voz destas mulheres que não aceitam ter sua representatividade reduzida à tradição biológica e caricata da procriação, configurada por uma sociedade opressora. Constrói em sua obra uma representação feminina contundente que nos convida à reflexão do próprio fazer literário como um espaço de interdições, rompendo o 3315

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silêncio e mostrando quão urgentes e necessárias são essas questões tanto na academia quanto na sociedade como um todo. Referências BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. 936p. DALCASTAGNÈ, Regina. Representações restritas: a mulher no romance brasileiro. In: DALCASTAGNÈ, Regina; LEAL, Virgínia Maria Vasconcelos (Orgs.). Deslocamentos de gênero na narrativa brasileira contemporânea. São Paulo: Editora Horizonte, 2010, p. 40-64. ______. Literatura Brasileira: um território conquistado. Vinhedo: Editora Horizonte/Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 2012. 207 p. FREITAS, Angélica. Rilke Shake. São Paulo: Cosac Naif, 2007. ______. Um útero é do tamanho de um punho. São Paulo: Cosac Naify, 2013. 96 p. FRIGHETO, Gisele Novaes. Um útero é do tamanho de um punho, ou sobre as interdições do feminino. Revista Estudos Linguísticos, , São Paulo, v. 44, n.3, p. 13031317.

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Disponível

em:

https://revistas.gel.org.br/estudos-

linguisticos/article/view/1058/639. Acesso em 31 mar.2016. PIETRANI, Anélia Montechiari. Questões de gênero e política da imaginação na poesia de Angélica Freitas. Revista Fórum Identidades, Itabaiana, ano 07, v.14, p. 25-38. jul.dez/2013.

Disponível

em:

. Acesso em: 05 abr. 2016. WOLF, Naomi. O mito da Beleza: como as imagens são usadas contra as mulheres. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. 442p

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