A desconstrução do universo familiar em Admirável mundo novo e A ilha de Aldous Huxley

June 7, 2017 | Autor: Evanir Pavloski | Categoria: Aldous Huxley, Utopia/Distopia, Admirável mundo novo, A ilha
Share Embed


Descrição do Produto

A DESCONSTRUÇÃO DO NÚCLEO FAMILIAR EM ADMIRÁVEL MUNDO NOVO E A ILHA DE
ALDOUS HUXLEY

Evanir PAVLOSKI (UEPG)

RESUMO: A esfera familiar sempre constitui um elemento problemático na
literatura utópica ao longo dos séculos, uma vez que sua estrutura produz
fortes vínculos de afetividade e fidelidade incompatíveis com a ortodoxia
caracteristicamente presente nos modelos sociais do utopismo. Além disso, o
caráter educacional intrínseco à formação individual no seio da família foi
considerado, por muitos utopistas, como um agente desestabilizador da
homogeneidade ideológica necessária para a manutenção da estabilidade em
suas projeções idealísticas. O presente artigo tem como objetivo analisar a
forma pela qual Aldous Huxley problematiza, desconstrói, rearticula e
oblitera a estrutura tradicional do núcleo familiar em dois dos seus
principais romances utópicos: Admirável mundo novo, publicado em 1931, e A
ilha, publicado em 1961. Ao longo da análise das unidades familiares
representadas em cada texto, caracterizaremos não apenas o aparente diálogo
entre as duas narrativas, mas também a relevância desse processo de
desconstrução na obra do autor e para a literatura utópica como um todo.


Palavras-chave: Utopia. distopia. família. Huxley.




Em primeiro lugar, é importante salientar que o ideal da estabilidade
é uma característica intrínseca dos textos da literatura utópica. Desde A
república de Platão, a idealização do modelo social previa não apenas um
ethos harmonioso, mas também a sua ilimitada continuidade. Tais aspirações
parecem constituir um silogismo interno à própria imaginação utópica: se a
busca pela perfeição é uma marca indelével do utopismo e, ainda que
ficcionalmente, esse objetivo é alcançado, conseqüentemente, não haveria
qualquer razão para que uma estrutura perfeita necessitasse evoluir ou
sofrer qualquer tipo de adaptação. Especificamente em relação às utopias
modernas, Zygmunt Bauman afirma que "as utopias modernas diferiam em muitas
de suas pormenorizadas prescrições, mas todas elas concordavam em que o
mundo perfeito seria um que permanecesse para sempre idêntico a si mesmo,
um mundo em que a sabedoria hoje aprendida permaneceria sábia amanhã e
depois de amanhã, e em que as habilidades adquiridas pela vida conservariam
a sua utilidade para sempre" (BAUMAN, 1998, p. 21).
Diante disso, as criações dos utopistas foram taxadas como a-
históricas e alienadas em relação ao constante processo de desenvolvimento
técnico e humano. "The attempt of utopian writers to freeze history – the
fight of utopia against history – has prompted severe criticism of the
whole utopian enterprise; but the attempt has been merely one way in which
man has tried to arrive imaginatively at the condition of paradise on
earth"[1] (ELLIOT, 1970, p. 10). Críticas como essas se destinavam,
principalmente, às utopias de tempo e lugar, nas quais um aparente impulso
escapista poderia ser apreendido.
As obras Admirável mundo novo e A ilha poderiam ser incluídas nas
respectivas categorias. Entretanto, nos parece que nem o escapismo nem o
suposto congelamento da história podem ser apontados nas narrativas. Na
distopia da década de 30, percebe-se um claro esforço de aperfeiçoamento
dos mecanismos reguladores da comunidade. Já no último romance de Huxley,
os ideais de industrialização e progresso sustentados externa e
internamente à sociedade palanesa fazem com que o núcleo utópico não apenas
se transforme, mas também seja destruído pelo fluxo da História. Há de se
convir, no entanto, que ambos os espaços tem como prerrogativa a
conservação da estabilidade social e a permanência das características
gerais dos regimes formados.
A manutenção ou a dissolução do núcleo familiar é tradicionalmente uma
questão polêmica na literatura utópica. Enquanto certos autores, como por
exemplo, Tommaso Campanella, descrevem parcamente essa instituição em seus
projetos; outros, dentre eles, Thomas More, analisam longamente as
vantagens e as inconveniências da esfera doméstica para a estabilidade de
suas idealizações. Indubitavelmente, as diferentes perspectivas que cercam
as projeções utópicas ilustram as resignificações e os questionamentos que
permearam a estrutura familiar desde a Antiguidade.
Zygmunt Bauman afirma que o conceito moderno de família - que em
grande medida ainda é tido como paradigma na contemporaneidade - surgiu a
partir de mudanças sociais profundas deflagradas há pelo menos cinco
séculos.

A "revolução educacional" que acompanhou o nascimento da
sociedade moderna teve lugar na Europa ocidental, entre os
séculos XVI e XVIII, embora precisasse de um século mais
para que seus frutos amadurecessem plenamente. A revolução
consistiu em três desvios fundamentais: primeiro, em
separar uma certa parte do processo da vida individual como
o estágio da "imaturidade", isto é, uma fase repleta de
perigos, mas também caracterizada por necessidades
especiais e que requer, assim, um ambiente, um regime e
processo todo seu; segundo, na separação espacial daqueles
que precisam de tal tratamento peculiar e na sua submissão
ao cuidado de especialistas deliberadamente instruídos; e;
terceiro, em conferir à família especiais responsabilidades
de supervisão no processo de "amadurecimento" (BAUMAN,
1998, p. 177).

Além desse papel de supervisão e direcionamento, a esfera familiar
assume durante a modernidade a significação de um espaço íntegro e seguro
diante da corrente de transformações que afetava as sociedades. Tal
idealização se revelou especialmente importante para a classe burguesia em
seu processo de afirmação e legitimação de seu próprio modo de vida. André
Lázaro, ao se referir à idealização familiar burguesa consolidada no século
XVIII, afirma que "a burguesia esperava da família um ambiente de ordem e
estabilidade, em oposição ao mundo instável que, para além da porta da
casa, perdia a nitidez" (LÁZARO, 1996, p. 157).
É justamente esse modelo familiar que os distopistas do século XX
problematizam em suas obras. Porém, esses autores discutem a família em
justaposição ao arquétipo social que objetivam representar. Isso se dá
porque a estabilidade dos regimes distópicos e a sua possível distinção
enquanto comunidade orgânica depende da supressão das individualidades e a
máxima integração de seus membros na estrutura constituída. Assim, a
existência de um sub-núcleo social com o qual o sujeito desenvolve laços de
carinho e fidelidade pode representar um risco para a normalização
pretendida pelo regime.

Essa família será o grande dilema, o martírio e o naufrágio
dos utopistas. Nela fervilham o visceral, o primitivo, o
obscuro, o orgânico. Certamente o estado poderia negociar
com a família, ou, melhor ainda, atá-la a regras estritas,
impor-lhe a camisa de força. Isso mais tarde é feito por
muitos estados despóticos, que, entretanto, sempre terminam
por se render ante a resistência da família. Platão, mais
astuto, escolhe a solução radical: consciente de que a
família colocará perpetuamente em xeque o Estado absoluto,
prefere aniquilá-la (LAPOUGE apud PASOLD, 1999, p. 41).

Em seu romance distópico, Aldous Huxley adota o mesmo procedimento de
Platão em A república e apaga qualquer traço da esfera familiar na
comunidade ficcional, aspecto claramente facilitado pelo método de
reprodução artificial nela vigente. Para o autor, a extinção das figuras
materna e paterna representaria um estágio fundamental não somente para a
obliteração do conceito de família, mas também para a preservação do estado
"puro" de cada indivíduo, ou seja, alheio a possíveis influências
sentimentais e ideológicas. Ironicamente, a eliminação do protecionismo
familiar pode ser entendida, a princípio, como um estímulo à construção da
individualidade de forma autônoma por meio da ruptura com os valores
normativos que na modernidade definiram a organização familiar. Contudo,
essa aparente liberdade é imediatamente tolhida por uma força coercitiva
indiscutivelmente maior, uma vez que ela deriva de todos os mecanismos
institucionais disponíveis. Sem a ingerência dos progenitores,
potencialmente danosa sob essa perspectiva, os processos de sugestão
hipnopédica e condicionamento pavloviano podem alcançar seus objetivos sem
maiores obstáculos, trazendo como conseqüência a transformação da liberdade
é transformada em inclusão e da individualidade em enquadramento. Como
satiriza a personagem Mustafá Mond, "Os registros ainda existem. Discursos
sobre a liberdade individual. Liberdade de ser ineficiente e miserável.
Liberdade de ser uma cavilha redonda num orifício quadrado [...] Cada um
pertence a todos, afinal" (HUXLEY, 1982, p. 71).
Nesse contexto, a própria linguagem é alterada pela eliminação de
determinados conceitos e suas respectivas significações enquanto
referências a um passado de instabilidade e desordem há muito transcendido.
Dentre elas, a noção de família e os ideais que a cercam se tornam símbolos
arcaicos do caos social. Jenni Calder enfatiza que

Words like marriage, monogamy, family and childbirth are
unmentionable, signs of the hideous crudities of the past.
The family was a breeding ground for squalid, intense
relationships, extremes of love and aggression, which can
have no place in a stable society"[2] (CALDER, 1976, p.
27).

Em resumo, para os arquitetos e dirigentes do Admirável mundo novo, o
espaço familiar representava uma das causas primordiais para o
desequilíbrio emocional dos indivíduos, característica que,
inevitavelmente, comprometia a harmonia da coletividade. Neste ponto cabe
ressaltar que os argumentos que justificam o desaparecimento da família na
distopia compõem uma crítica que se desdobra em dois planos.
Primeiramente, os espaços físicos compartilhados pelos membros do
grupo familiar são, genericamente, considerados insalubres e propícios para
a reprodução descontrolada, representando, dessa forma, um agente
facilitador da explosão populacional. Assim percebemos no discurso
inflamado de Mustafá Mond diante de um grupo de estudantes:

Procurem imaginar o que significava viver com a família
[...] Lar, lar – alguns quartos exíguos e sufocantes
habitados por um homem, uma mulher, periodicamente grávida,
um bando de meninos e meninas de todas as idades. Sem ar,
sem espaço; uma prisão sem condições de esterilidade;
escuridão, doença, mau cheiro. (A evocação feita pelo
Dirigente era tão viva que um dos rapazes, mais sensível do
que os outros, ficou pálido com a simples descrição e
estava a ponto de ter náuseas) (HUXLEY, 1982, p. 59, 60).

Além disso, o Dirigente ressalta, enquanto porta-voz dos preceitos de
toda a comunidade, o comprometimento psicológico e emocional que o convívio
familiar produzia em seus integrantes. No universo distópico, a família é
entendida como um espaço de conflito e desorientação ao invés do abrigo
protetor idealizado durante a modernidade.

O lar era tão sujo psíquica quanto fisicamente.
Psiquicamente, era uma toca de coelho, um monturo, fervente
de atritos da vida apertada e amontoada, enfumaçado pelas
emoções. Que intimidades sufocantes, que relações
perigosas, insanas, obscenas entre os membros do grupo
familiar! [...] O mundo era cheio de pais – estava,
portanto, cheio de miséria; cheio de mães – portanto cheio
de toda a espécie de perversão, do sadismo à castidade;
cheio de irmãos e irmãs, tios, tias – cheio de loucura e
suicídio (HUXLEY, 1982, p. 61, 62).

Percebemos, dessa forma, os motivos pelos quais o ethos familiar é
completamente apagado em Admirável mundo novo. Para os arquitetos da
sociedade modelo, o nível de estabilidade almejado é incompatível com a
conservação da família. Isso se dá porque, como vimos na passagem anterior,
entende-se que as relações domésticas e os conseqüentes laços de afeto e
dependência comprometiam sobremaneira a integridade física e psicológica
dos indivíduos ao longo de sua formação, produzindo cidadãos avessos ao
princípio fundamental da homogeneização enquanto regulador social. Nesse
sentido, a harmonia na estrutura social distópica se relaciona diretamente
com um modelo padronizado de desenvolvimento humano. Como salienta Mustafá
Mond: "Não há civilização sem estabilidade social. Não há estabilidade
social sem estabilidade individual" (HUXLEY, 1982, p. 65).
O mesmo silogismo pode ser apreendido na organização social figurada
em A ilha. Entretanto, a categorização do romance no gênero utópico não
significa necessariamente que seus elementos constitutivos sejam
diametralmente opostos àqueles da obra distópica.
Na ilha de Pala descrita na obra, os processos de fecundação e
gestação não foram substituídos por procedimentos científicos, de forma que
as figuras materna e paterna ainda estão presentes. Contudo, a estrutura
que norteia as relações familiares é sensivelmente distinta do modelo
tradicional. Tal diferenciação pode ser percebida já na dimensão simbólica
do uso de determinados termos. O vocábulo mãe, por exemplo, não denota um
sentido de posse ou responsabilidade permanente, uma vez que a relação
materna se sustenta, de forma natural, enquanto a criança necessita de
proteção e atendimento às suas necessidades básicas. Ao atingir certa
maturidade e independência, os filhos e filhas são desobrigados da
obediência que até então deviam aos pais e podem, a partir de então, viver
a liberdade que lhes cabe como direito natural. Como salienta a personagem
Susila ao se referir à sua própria relação com sua mãe:

Em nosso pequeno mundo, "mãe" é estritamente o nome de uma
função e esse título é prescrito quando a missão foi
devidamente cumprida. A ex-criança e a mulher que era mãe
estabelecem um novo tipo de relações; quando se entendem
bem, continuam se vendo com regularidade. Caso contrário,
separam-se. Ninguém espera que permaneçam apegadas, pois o
apego não pode ser comparado ao amor e por isso não pode
ser encarado como qualquer coisa particularmente digna de
crédito (HUXLEY, 1967, p. 116).

Para os palaneses, o desprendimento característico dessa visão
permite que os laços familiares não apenas comprometam a liberdade inata de
cada sujeito, mas também que se tornam simples convenções sociais de
caráter dogmático. Além disso, a desconstrução de um discurso hierárquico
e, muitas vezes, dominador permite que cada indivíduo aprenda a valorizar a
sua autonomia e a sua individualidade nas relações humanas, consciência que
favorece a sua atuação e o seu discernimento na sociedade política.
Tais aspectos da retórica do autor britânico em A ilha parecem
remeter às reflexões de um dos filósofos que mais influenciou a
sensibilidade romântica do século XIX: Jean-Jacques Rousseau. Em A situação
humana, coletânea de ensaios publicada em 1978, Huxley admite ser um
romântico tardio e essa sua auto-categorização pode ser apreendida por meio
de diversos temas e referências em sua vasta bibliografia literária e
crítica. No caso da problematização do ethos familiar em seu último
romance, nos parece que as considerações de Rousseau sobre os arquétipos
sociais foram recuperadas de forma aparente.
Em Do contrato social, Jean Jacques Rousseau enaltece a esfera
familiar como o ethos primário e o único verdadeiramente natural na
existência humana. Para o filósofo, a família se distingue de outras
modelos de interação pelos laços de dependência, afeição e fidelidade que a
definem.

A mais antiga de todas as sociedades, e a única natural, é
a da família [...] É a família, portanto, o primeiro modelo
das sociedades políticas; o chefe é a imagem do pai, o povo
a imagem dos filhos, e havendo nascido todos livres e
iguais, não alienam a liberdade a não ser em troca de sua
utilidade. Toda diferença consiste em que, na família, o
amor do pai pelos filhos o compensa dos cuidados que estes
lhe dão, ao passo que, no Estado, o prazer de comandar
substitui o amor que o chefe não sente por seus povos
(ROUSSEAU, 2010, p. 24).

Porém, Rousseau considera que as principais atribuições da estrutura
familiar são a proteção e o provimento dos infantes enquanto estes
permanecem incapazes, física e intelectualmente, de gerir suas próprias
existências. O filósofo acredita que, assim que o sujeito atinge um uso
consistente de suas faculdades racionais, deve ocorrer um desligamento com
a ética familiar e a inclusão definitiva do indivíduo na sociedade política
organizada. Se esse processo não se efetiva, a união da família não obedece
mais a um princípio natural de associação, transformando-se, dessa forma,
em uma convenção social.

As crianças apenas permanecem ligadas ao pai o tempo
necessário que dele necessitam para a sua conservação.
Assim que cesse tal necessidade, dissolve-se o laço
natural. As crianças, eximidas da obediência devida ao pai,
o pai isento dos cuidados devidos aos filhos, reentram
todos igualmente na independência. Se continuam a
permanecer unidos, já não é naturalmente, mas
voluntariamente, e a própria família apenas se mantém por
convenção. Esta liberdade comum é uma conseqüência da
natureza do homem. Sua primeira lei consiste em proteger a
própria conservação, seus primeiros cuidados devidos a si
mesmo, e tão logo se encontre o homem na idade da razão,
sendo o único juiz dos meios apropriados a sua conservação,
torna-se por si seu próprio senhor (ROUSSEAU, 2010, p. 24).

Diante dessas colocações, é perceptível o retorno de Huxley ao
princípio da liberdade natural como elemento que deve orientar a vida
sociopolítica do indivíduo e que não pode ser influenciada ou restringida
pela hierarquia familiar.
Em A ilha, as ações para a preservação dessa condição primária do
homem defendida por Rousseau não se esgotam em alterações simbólicas e
ideológicas do uso da língua, mas se estendem para níveis pragmáticos de
atuação.
Primeiramente, a criança insatisfeita com o ambiente ou a ética de
sua família biológica pode requisitar a sua própria transferência para
outro domicílio considerado mais apropriado para o seu desenvolvimento.
Dessa maneira, o indivíduo não encontra na submissão o seu papel social ou
no cultivo da rebeldia a afirmação de sua individualidade, mas aprende a
importância e a responsabilidade que derivam do seu próprio livre-arbítrio.
Como esclarece a personagem Susila,

Deixe-me explicar – continuou – em termos do meu caso
partícula: o caso de uma filha única de duas pessoas que
não podiam se compreender e estavam sempre se desentendendo
e mesmo discutindo. Nos velhos tempos, uma menina desse
ambiente se transformaria em um destroço, numa rebelde ou
numa conformista hipócrita ou resignada. Porém, sob o novo
regime, não tive que suportar sofrimento desnecessário e
por conseguinte não fui forçada a me tornar um destroço,
uma rebelde ou uma resignada. Por que? Porque, desde o
momento em que comecei a andar, era livre para fugir [...]
Fugir – explicou ela – está no novo sistema. Em qualquer
tempo em que o "lar, doce lar" se torna insuportável a
criança tem permissão, ou melhor, é ativamente encorajada
(e todo o peso da opinião pública está por trás desse
encorajamento) a emigrar para um outro lar (HUXLEY, 1967,
p. 117).

Na sociedade palanesa, há, inclusive, uma instituição criada com o
propósito de contribuir com o desenvolvimento das crianças e, quando
necessário, de encaminhar os filhos insatisfeitos para novos lares. Todos
os habitantes da ilha pertencem a esse organismo e, de forma direta ou
indireta, participam da formação de novos cidadãos.

Todos nós pertencemos a um CAM (Clube de Adoção Mútua).
Cada CAM é composto por quinze ou vinte casais diferentes.
Casais jovens, mais velhos e com filhos em idade de
crescimento, avós e bisavós, todos os do clube se adotam
mutuamente. Além dos nossos parentes consangüíneos,
dispomos de uma porção de mães, pais, tias, tios, irmãos,
irmãs, nenéns e adolescentes que nós mesmos elegemos
(HUXLEY, 1967, p. 117).

Parece-nos evidente que a estruturação de uma instituição coletiva
como essa e a conseqüente ampliação da abrangência do núcleo familiar afeta
diretamente o modelo de significação social dos indivíduos em Pala. Para
esses sujeitos, o conceito de família extrapola os limites da relação
consangüínea, englobando uma comunidade muito mais vasta e heterogênea.
Assim, a criança não apenas estabelece relações plurais sob o mesmo ideal
de família, mas também constrói a sua própria identidade a partir do
espelhamento com os múltiplos perfis identitários que a rodeia. Além disso,
a sensação de pertencimento ao corpo social como um todo é favorecida e
estimulada pela própria conotação ética a ele atribuída. Nesse contexto, a
caracterização de Rousseau de ethos doméstico e ethos político enquanto
espaços, ao mesmo tempo, distintos e complementares perde a sua nitidez. Em
outras palavras, a comunidade palanesa constitui, em última análise, um
grande núcleo familiar.

A Adoção Mútua protege a criança contra a injustiça e
outras conseqüências ainda piores da inépcia dos pais; não
as protege contra a disciplina ou contra o fato de ter de
aceitar os seus encargos. Ao contrário, aumenta o número
das suas responsabilidades e as expõe a grande variedade de
disciplinas [...] Aqui, as crianças se desenvolvem num
mundo que é um modelo de sociedade em pleno funcionamento e
que é uma miniatura perfeita do ambiente no qual terão de
viver quando atingirem a idade adulta (HUXLEY, 1967, p.
120).

É importante salientar que outros fatores, como por exemplo, o
arcabouço ideológico e a religioso, influenciam sobremaneira a eficiência
desse modelo. Não obstante, os resultados desse alargamento da fronteiras
da família para a esfera pública são valorizados pelo contraste imediato
com a realidade experimental. A personagem Susila compara ironicamente
esses dois universos da seguinte forma:

- "Tome um assalariado sexualmente incapaz, uma mulher
insatisfeita, dois (ou mesmo três) pequenos viciados em
televisão e faça um escabeche misturando uma porção de
freudismo e uma solução fraca de cristianismo". Arrolhe bem
num apartamento de quatro cômodos e cozinhe tudo isso no
próprio caldo. A nossa receita é bastante diferente: "Tome
vinte casais sexualmente satisfeitos, juntamente com a sua
prole. Adicione ciência, intuição e humor em partes iguais.
Ingresse no Budismo Tantrik e ponha a mistura a ferver ao
ar livre, lenta e indefinidamente, numa panela aberta,
colocada sobre a chama viva da afeição".
- E o que resulta dessa panela aberta?
- Uma espécie de família completamente diferente da do
"seu" mundo e onde não existe nada de exclusivismo, de
predestinado e de compulsório (HUXLEY, 1967, p.117-118).

Ainda que o sistema de mútua colaboração descrito até aqui possa
incitar o reconhecimento de elementos dos modelos sociais comunistas –
percepção que pode ser enfatizada por aspectos gerais da literatura utópica
-, Huxley constantemente reafirma o seu deliberado afastamento de qualquer
teoria ou arquétipo organizacional particular. A sociedade palanesa
corresponde, na verdade, a um amálgama de paradigmas capitalistas e
comunistas que, uma vez associados, compõem uma estrutura considerada
modelar. No que se refere especificamente ao núcleo familiar, o autor
britânico idealiza novos parâmetros de relação interpessoal que,
influenciados por aspectos de diferentes correntes ideológicas e mesmo
espirituais, possibilitam um desenvolvimento individual calcado na
liberdade e na responsabilidade. Tendo em vista essa questão em particular,
recorremos, uma vez mais, ao discurso da personagem Susila como forma de
salientar a singularidade do regime projetado por Huxley em A ilha:

Nada poderia ser menos parecido com uma comuna do que o
CAM. Um CAM não é controlado pelo governo e sim pelos seus
membros. Além disso, não somos militaristas e não estamos
interessados em nos tornar "bons membros do partido"... O
nosso único objetivo é nos tornarmos bons seres humanos.
Não incutimos dogmas e não tiramos as crianças de seus
pais. Pelo contrário, damos alguns pais adicionais. E aos
pais, oferecemos filhos adicionais., Mesmo no berçário,
gozamos de um certo grau de liberdade. Essa liberdade
aumenta à medida que crescemos e que vamos nos capacitando
a lidar com responsabilidades mais amplas e mais sérias
[...] As coisas são consideravelmente melhores na parte do
mundo de onde você vem. Melhores, porém ainda assim
bastante más. Vocês escapam às "domesticadoras de bebês"
designadas pelo Estado, porém a sua sociedade condena
alguém a passar a infância numa família composta dos pais e
de um par de irmãos que lhe foram impostos pela
predestinação hereditária. Não há nenhuma possibilidade de
se ficar livre deles. Não se pode ficar longe deles durante
as férias e muito menos ir viver com outra pessoa. Não
existe chance de uma mudança moral ou psicológica. Tem-se
liberdade, é verdade, mas a espécie que se tem dentro de
uma cabine telefônica (HUXLEY, 1967, p. 119).

À guisa de conclusão, devemos considerar alguns aspectos importantes
nas representações dos núcleos familiares nos dois romances de Huxley
abordados neste trabalho.
Em primeiro lugar, a sociedade figurada em Admirável mundo novo não é
intrinsecamente uma inversão da realidade experimental do século XX, mas
uma potencialização extremada do racionalismo capitalista enquanto fenômeno
sociopolítico moderno. Nesse espaço, o cientificismo e o consumismo
desenfreado são instrumentalizados como dispositivos de regulação e
normalização dos indivíduos, princípios essenciais para a manutenção da
estabilidade do regime. Para tanto, o conceito de núcleo familiar é
obliterado para que laços de afeição e fidelidade não se contraponham aos
padrões estabelecidos de conduta e pensamento. Dessa forma, Huxley valoriza
o potencial educativo e identitário do ethos familiar por meio de sua
própria exclusão no universo distópico.
Já em A ilha, o autor britânico descreve um ideal de família que se
distingue sensivelmente dos modelos tradicionais, tanto no sistema
capitalista quanto comunista. Na utopia, as relações inerentes ao convívio
familiar e consideradas positivas para o desenvolvimento individual são
preservadas, havendo, entretanto, uma socialização das obrigações
familiares para com as crianças. Dessa maneira, os indivíduos não apenas
são poupados de um discurso autocrático e homogeneizador no seio da própria
família, mas também aprendem o exercício da liberdade e da responsabilidade
que os acompanhará no âmbito da sociedade política.
Em síntese, a retórica de Aldous Huxley nos dois romances aqui
analisados não é discrepante ou contraditória como a princípio se poderia
afirmar. Na verdade, nos parece que a visão do autor sobre a constituição
do núcleo familiar nas sociedades modernas se torna ainda mais íntegra a
partir da aproximação das duas narrativas. Em ambos os textos, Huxley
problematiza o conceito tradicional de família, demonstrando que a formação
ética que se dá nesse espaço pode representar tanto um caminho para a
liberdade individual quanto um instrumento para a normalização coletiva.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1998.

CALDER, Jenni. Huxley and Orwell: Brave New World and Nineteen Eighty-Four.
London: Edward Arnold, 1976.

ELLIOT, Robert C. The Shape of Utopia: Studies in a Literary Genre.
Chicago: University of Chicago Press, 1970.

HUXLEY, Aldous Leonard. A ilha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1974.

____________________ . A situação humana. São Paulo: Círculo do Livro,
1977.

____________________ . Admirável mundo novo. São Paulo: Globo, 1995.

LÁZARO, André. Amor: do mito ao mercado. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.

PASOLD, Bernardete. Utopia X Satire in English literature. Santa Catarina:
Advanced Research in English Series (ARES), 1999.

PLATÃO. A República. São Paulo: Nova Cultural, 1999

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Porto Alegre: L&PM, 2010.
-----------------------
[1] Tradução livre: A tentativa dos escritores utópicos de congelar a
história – a luta da utopia contra a história – suscitou sérias críticas
sobre todo projeto utópico; mas essa tentativa tem sido apenas um dos
caminhos que os homens utilizam para chegar à condição de um paraíso
imaginário na terra.
[2] Tradução livre: Palavras como casamento, monogamia, família e
nascimento são impronunciáveis, sinais das terríveis imperfeições do
passado. A família era um espaço fértil para relacionamentos intensos e
miseráveis, extremos de amor e agressividade, os quais não têm lugar em uma
sociedade estável.
Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.