A Descriminalização do Aborto na Assembleia Nacional Constituinte (1987-88): uma análise dos discursos dos

July 6, 2017 | Autor: D. Hartmann | Categoria: Artigos Científicos
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A Descriminalização do Aborto na Assembleia Nacional Constituinte (1987-88): uma análise dos discursos dos Constituintes Diogo Mateus Zini Hartmann1 Mateus Gamba Torres2

Resumo A presente comunicação visa analisar discursos proferidos por parlamentares durante a Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88. Serão analisados os debates da Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher. Buscamos compreender os elementos que compõem os discursos e identificar em que parcelas da sociedade estes se legitimam. A partir de nossas observações, lançamos luz sobre um passado ainda presente e, portanto, não separamos em momento algum a nossa análise de nossos questionamentos mais atuais sobre a temática do aborto. Palavras Chave: Aborto; Assembleia Nacional Constituinte; Discursos; Direito à vida

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Graduando do curso de Licenciatura em História da Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS Campus Chapecó. 2 Professor Assistente nível I da Universidade Federal da Fronteira Sul, campus Chapecó. Doutorando em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS

Introdução

O presente artigo tem como objetivo abordar os debates que ocorreram durante a Constituinte de 1987-88, mais especificamente as discussões sobre o aborto. Devido a grande variedade de fontes, aqui abordaremos apenas as discussões de uma das comissões em que se dividiram os Constituintes, a Comissão da Soberania e dos Direitos do Homem e da Mulher. Buscamos perceber não apenas o que se falou sobre o aborto, mas também verificar quais são os ecos dos discursos dos políticos. Uma vez que estas pessoas que debateram a nossa Constituição estão também inseridas na sociedade e que representam interesses que se referem tanto a suas próprias convicções quanto a de outros grupos sociais, procuramos observar que tipo de discurso foi utilizado para se referir ao aborto. É importante que fique claro que não procuramos algo que esteja escondido no discurso, mas tão somente nos interessamos pelas suas referências, pelas relações que o formam. Como coloca Michel Foucault (2014):

”Não procuramos, pois, passar do texto ao pensamento, da conversa ao silêncio, do exterior ao interior, da dispersão espacial ao puro recolhimento do instante, da multiplicidade espacial à unidade profunda. Permanecemos na dimensão do discurso.” (FOUCAULT, 2014, p. 91).

O autor demonstra que o que nos interessa é o que realmente é perceptível no discurso, não buscamos nada que o transcenda, tampouco uma origem mágica. Compreendemos o discurso como algo que não está isolado, que faz referência a outros discursos o tempo todo, e compreendemos os políticos como sendo pessoas que reproduzem discursos que também estão na sociedade. A pesquisa histórica se refere aos questionamentos que nos fazemos no presente, e, portanto, são questionamentos sobre esse presente. Os debates mais recentes sobre o aborto, as polêmicas envolvendo a reformulação do PL 478 de 2007 (o chamado Estatuto do Nascituro) e as discussões sobre a antecipação terapêutica do parto em caso de anencefalia, motivaram esta pesquisa, e também as perguntas que buscamos fazer. Procuramos compreender o porquê os debates sobre aborto encontram tantas dificuldades

não apenas para avançar em termos de políticas públicas, mas também para que haja uma discussão ampla e clara sobre esse tema na sociedade e nas instituições que a representam. E nesse aspecto, principalmente do debate nas instituições representativas, a Constituinte de 1987-88 foi o momento onde, talvez, se tenha dado maior importância para esse debate, seja pelas disputas políticas, ideológicas ou de crenças, mas o aborto foi discutido de modo exaustivo. A Comissão da Soberania e dos Direitos do Homem e da Mulher foi um dos espaços onde esse debate ocorreu. É claro que este não foi o único tema debatido pela comissão, mas com certeza foi um dos mais polêmicos e controversos. Os posicionamentos foram os mais diversos, havia quem não concordasse com o aborto em nenhum caso e que queriam criminaliza-lo, tinham aqueles que o aceitavam apenas nos casos já previstos em lei, havia quem era favorável ao aborto plenamente, mas estes eram minoria, e os que não acreditavam que era na Constituição que ele deveria aparecer. Em todo caso, no quadro que se apresenta hoje não verificamos grandes mudanças em relação àquela época, o aborto permanece presente apenas no Código Penal, segue não regulamentado e gerando as mais variadas interpretações, mesmo nos casos em seria permitido, e é justamente por isso que nos surgem diversas indagações de caráter histórico. Nosso foco aqui não será o de propor as soluções ou políticas, nem o de debater as leis de um ponto de vista dos juristas, esse não é um papel que cabe ao historiador. O que estamos nos propondo fazer é analisar os discursos e os elementos presentes nele que possam responder o porquê tem sido tão difícil avançar nos debates sobre esse tema e, identificar aspectos de ordem social, cultural, política e até mesmo econômica que nos permitam compreender melhor o que está em torno deste debate sobre o aborto. Para isto, dividimos este artigo em dois momentos. O primeiro deles visa analisar os discursos dos que se opuseram veementemente ao aborto e que defenderam a proteção da vida desde a concepção, e, portanto, que pretendiam criminalizar o aborto. É importante que fiquem claros dois aspectos sobre esse primeiro momento. Inicialmente que não é nossa proposta debater o princípio da vida, tampouco fazer um juízo de valores sobre os que defenderam sua proteção a partir da concepção, nos propomos sim a identificar que elementos compõem esses discursos e de que maneira se colocaram no debate. Em segundo lugar, que os discursos, mesmo que apresentem muitas semelhanças, são heterogêneos e, sendo assim, não devem ser analisados em um único bloco.

Na segunda parte nos debruçamos sobre a demanda que se opunha a criminalização do aborto. Incluímos nessa análise grupos que se opunham ao aborto de modo geral, mas que não acreditavam que este era um tema para a Constituição, os que eram faráveis a descriminalização do aborto e também os que eram contrários a criminalização do aborto e que apresentaram proposta para alargar as possibilidades em que o aborto seria permitido e garantir o atendimento das mulheres, que necessitassem fazer o procedimento, na rede pública de saúde. É possível perceber que dividimos a discussão entre os que desejavam que o aborto fosse criminalizado e os que eram contrários a sua criminalização na Constituição, o que demonstra mais uma vez que para debater este tema não podemos analisar os diferentes discursos de forma homogênea. Os discursos são compostos por outros discursos, não é diferente no caso do aborto, não há fatores determinantes nas tomadas de posição, as opções ideológicas, os traços culturais, os aspectos econômicos e sociais são fatores que influenciam o debate, mas não há um deles que o determine. .

Direito à vida desde a concepção

A perspectiva de defender a vida desde a concepção esteve muito presente nos debates da Constituinte, tendo sido este um dos aspectos que polarizou as disputas em torno da temática do aborto. É importante para que possamos compreender a análise que estaremos fazendo aqui saber que os debates na comissão forma um segundo momento dos debates da constituinte, houve antes debates nas comissões de onde vieram propostas das mais diversas e que em alguns momentos estes primeiros debates poderão ser referenciados. Optamos por esse documento por acreditarmos que a partir dele já é possível fazer um debate minucioso sobre os discursos presentes, e que pretendemos utilizar as demais fontes em trabalhos futuros. Um questionamento que sempre é feito sobre os debates em torno do aborto é o de como a influência religiosa interfere nas discussões, inclusive sendo por vezes colocada como um fator preponderante para que não haja avanços em termos de políticas públicas e de debates amplos na sociedade. De maneira alguma nos propomos aqui ignorar que este é um dos

fatores que surgem neste debate, porém, buscamos lançar outra problemática, que é a de que o aborto não tem sido tomado como uma bandeira pelos parlamentares:

Entre 2003 e 2008, apenas 519 discursos pronunciados no plenário da Câmara dos Deputados mencionaram as palavras “aborto” ou “abortamento” ou a expressão “interrupção da gravidez” ou interrupção voluntária da gravidez” - num total de 124.318 pronunciamentos no período […]. São dados eloquentes sobre a quase ausência de vozes em favor ao direito ao aborto no legislativo brasileiro. (MIGUEL, 2012, p. 668-669)

Como já dissemos anteriormente, não ignoramos neste trabalho a influência religiosa nos debates, isso ficará muito claro em nossa análise, mas que acreditamos ser importante não negarmos que a omissão de muitos parlamentares tem sido um entrave no que diz respeito ao tema. Ao dizermos isso não estamos afirmando que não há parlamentares que tenham se colocado favoráveis ao aborto, houve casos em que se colocaram, mas que hoje não temos parlamentares que priorizem, como ponto de pauta, a descriminalização do aborto e que durante a constituinte alguns poucos que se posicionaram favoravelmente, eram vozes solitárias. Lançada esta questão nos proporemos agora a nos debruçar sobre os discursos em si e de que maneira eles foram influenciados pelos aspectos supracitados, para tanto iremos tratar primeiramente dos discursos em que se propunha a criminalização do aborto. Nas primeiras páginas dos documentos, ou seja, nas primeiras atas dessa comissão já aparecem posicionamentos veementes por parte de alguns parlamentares, em sua maioria se colocando contrários ao aborto e pedindo sua criminalização. Como é possível perceber na fala do Constituinte Costa Ferreira:

Então, nós nos posicionamos contra o aborto, porque compreendemos que não é uma medida adequada, para que se evite a proliferação da família com elevado número de pessoas. Acreditamos que poderíamos deter esse acontecimento através do planejamento familiar assistido pelo Estado, porque este, sim, poderia dar assistência à família e, assim, equilibrar o controle da natalidade, sem que as mulheres fossem submetidas a essa atrocidade, a esse tipo de sofrimento a que muitas vezes são induzidas, na esperança de se livrarem de ter mais filhos. (Ata da Reunião do dia 27 de maio de 1987, p. 16)

Neste trecho surge um elemento que apareceu algumas vezes nas discussões, que é a do aborto como uma forma de controle populacional. Esta fala surgiu em alguns momentos como argumento contrário ao aborto e em outros que defendiam que caso não houvesse planejamento familiar, devido ao rápido aumento demográfico, iríamos ter que recorrer ao aborto para controlar os índices de natalidade. Como já foi dito, os discursos que se opunham ao aborto são heterogêneos. O são devido à dinâmica das Comissões que se caracterizava por um universo bastante grande de discussões em uma mesma reunião, constituintes participarem de várias comissões e, consequentemente, não acompanhar todas as discussões, tornou os debates dispersos (tendo vários debates concomitantes e prolongando questões debatidas por muitas reuniões, sem que se chegasse a uma conclusão). Essa dispersão fez com que os debates fossem retomados por várias vezes e que se concentraram em alguns parlamentares, trazendo uma variedade de colocações dos debatedores, o que para analisar aspectos que falem mais da cultura, das formas de sociabilidade e em que parcela da sociedade esse discurso está se referenciando, são discursos muito interessantes. Um debate que se estendeu por diversas reuniões, foi o debate em que se discutiu justamente se na Constituição o aborto deveria ser criminalizado e se o feto deveria ser protegido por lei específica (debate este que traz a questão “do direito à vida”, do nascituro, desde a concepção – e aqui houve debates sobre o princípio da vida). E esse debate será nosso principal objeto de análise nesta primeira parte. O Deputado Constituinte Costa Ferreira, referente a proposta do Relator da mesa, argumenta:

[...] o que está aqui, com relação à mulher, é o seguinte: “A vida intra-uterina, inseparável do corpo que a concebeu, é responsabilidade da mulher”. Quando fala em responsabilidade da mulher, aqui, há uma presunção de que, como é de responsabilidade dela, a ela cabe tomar a decisão que quiser com relação aquele feto. (Ata da Reunião do dia 1º de Junho de 1987: 7ª reunião, p. 37)

O constituinte questiona o fato de que nesta parte a mulher ganha o direito de dispor como bem entender sobre a vida do feto, e que não pode concordar com uma proposta que permitiria a mulher acabar com uma vida que carregaria dentro de si. O Relator, Sr. Paulo Bisol argumenta o seguinte:

Estou por conseguinte, defendendo a vida. Não entendo de onde possa emergir a interpretação de que aqui há uma maliciosa intenção de permitir o aborto. Isso é responsabilidade da mulher. Não posso assumir essa responsabilidade, retirando-a do corpo da mulher, é evidente. E comporta expectativa de direito, segundo a legislação atual. Eles mantêm a tradição jurídica do Brasil. (Ata da Reunião do dia 1º de Junho de 1987: 7ª reunião, p. 39)

Aqui o relator coloca que está garantida a vida do nascituro, uma vez que a mulher é responsável pelo feto, o é tanto para abortá-lo quanto para sofrer as consequências que essa prática pode acarretar. Isso significa que o Estado pode restringir os casos em que o aborto seria permitido, seja através de regulamentação ou prevendo na Constituição, mas que não era possível exercer controle sobre o ato da mulher, sendo punida ou não a decisão de prosseguir com a gravidez, em última instância é dela. Nesse aspecto, foi contra argumentado que o Estado não poderia ser permissivo quanto a isso, e foi neste ponto o entrave das discussões, as interpretações sobre a proposta iam de encontro uma a outra. No seguimento dessa discussão o constituinte, Sr. Farabulini Júnior apresenta a seguinte proposta:

Prefiro Sr. Presidente e nobre Relator, preservar a vida intra-uterina. Então, escrevo: “A preservação da vida intra-uterina, inseparável do corpo que a concebeu, é responsabilidade da mulher”. Eu preservo a vida intra-uterina e remeto à responsabilidade da mulher a sua preservação. Esta, sim, será protegida por lei, isto é, a vida intra-uterina. (Ata da Reunião do dia 1º de Junho de 1987: 8ª Reunião, p. 43)

Prossegue abordando essa proposta, fazendo uma justificativa da mudança que acredita que deva ser feita:

O que quer dizer que não se permitirá, a não ser nas exceções, o aborto. As exceções serão consignadas. É o caso do estado de necessidade, quando da opção entre a vida da mulher e a vida do nascituro que cumpre eleger. Sobre a gravidez produto do estupro, também cumpre verificar se preserva ou não. Entendo que, quanto à gravidez gerada de estupro, a decisão deverá pertencer totalmente à mulher. Ela é que deve saber o que fazer. Trata-se do estado de necessidade absoluto. (Ata da Reunião do dia 1º de Junho de 1987: 8ª Reunião, p. 43)

Em um primeiro momento, o constituinte faz uma proposta que responsabiliza a mulher por resguardar a vida do nascituro, porém, essa não é uma função que tenha que ser dada à mulher, é um direito que ela possui e que é inerente a vontade do Estado, é o direito de decidir sobre o seu corpo. O que se propõe é uma tutela do Estado sobre o nascituro, e

consequentemente sobre a mulher que o carrega no ventre e a inviabilidade de discussões futuras sobre o aborto, visto que a partir de agora a mulher deve preservar um nascituro que têm direitos como qualquer cidadão. Quando o constituinte fala nos casos em que o aborto é previsto na lei nos remete a um ponto interessante, a uma problemática que se coloca há anos e que não foi superada. O aborto é permitido em alguns casos, sim, mas o único local onde isso aparece é no Código Penal, ou seja, o aborto pode ser já considerado um crime, exceto em alguns casos, como bem colocam as autoras Wilza V. Villela e Regina M. Barbosa (p. 18, 2011), é regulado pelo “[...] Código Penal de 1940, ainda em vigor, no qual todo o aborto passou a ser considerado crime, exceto quando para salvar a vida da mãe e nos casos de gestação decorrente de estupro”. As autoras afirmam ainda que:

Apesar desses permissivos legais, durante muito tempo não houve qualquer mobilização do poder público no sentido de permitir sua efetivação, e apenas ao final dos anos 1980 começam a ser estruturados serviços de saúde para a prática de interrupção de gestações decorrentes de estupro. Quase ao mesmo tempo, começavam a haver solicitações de autorização judicial para haver abortos em fetos anencefálicos. (VILLELA e BARBOSA, 2011, P. 18).

O aborto ainda aparece no Código Penal como crime. No entanto, atualmente, devido a um processo que tramitou no STF (Supremo Tribunal Federal), a ADPF 54, foi dada uma decisão favorável ao pedido do CNTS (Conselho Nacional de Trabalhadores da Saúde) para realizar a antecipação terapêutica do parto em casos de anencefalia. Isso significa que poucos avanços ocorreram em termos de políticas públicas relacionadas ao aborto no Brasil, hoje não há qualquer regulamentação específica ao assunto e as leis que mais tem repercutido e que tocam no tema são as que visam proteger o nascituro – caso do PL 478 de 2007, que foi reformulado em 2010, gerando debates e mobilizações por parte de movimentos que apoiavam ou que eram contra o projeto –, ou seja, o debate sobre a proteção à vida, do nascituro, desde a concepção ainda está presente e o número de adeptos a essa questão tem aumentado cada vez mais, como analisa Luis Felipe Miguel se referindo às eleições presidenciais de 2010:

Essa capitulação se entende, é claro, como uma manobra de realismo político, no momento em que as candidaturas conservadoras de José Serra e Marina Silva se

encontravam na ofensiva. No terreno da especulação, é possível dizer que uma resposta diferente naquele momento teria colocado em risco a vitória eleitoral. É possível. Mas o realismo político possuí implicações. Ao se alinhar ao discurso de seus adversários – ainda que, muitas vezes, com evidente relutância – e, em especial, ao assinar o documento destinado a apaziguar o eleitorado fundamentalista (a “Mensagem da Dilma”, divulgada em 15 de outubro de 2010) Rousseff abriu mão de compromissos políticos de primeira grandeza […]. E a condenação do direito ao aborto é não apenas a renúncia ao enfrentamento de um grave problema de saúde pública, mas a aceitação de que as mulheres não serão cidadãs por inteiro. (MIGUEL, 2012, p. 657-658).

Aqui o autor defende que em nome de apaziguar uma parcela do eleitorado, parcela esta em que estavam se apoiando seus principais adversários, Dilma Rousseff abriu mão de debater temas de fundamental importância para o país. Neste momento surge novamente a problemático que já citamos, de que apesar de setores ligados à instituições religiosas influenciarem neste debate, a omissão daqueles que poderia estar fazendo o enfrentamento tem uma influência tão grande quanto. Na constituinte se debateu muito a questão de que talvez não fosse aquele o momento de debater o aborto, de que a Constituição deveria ter outras preocupações, que a Constituinte deveria discutir apenas os direitos fundamentais. O fato de o aborto não ser incluído no texto Constitucional é o que tem gerado as discussões de que falamos a pouco, o que se tem debatido em torno do aborto não é apenas a sua legalização, mas também a regulamentação dos casos em que ele já é permitido. Na parte que discutiremos a seguir, iremos abordar exatamente os discursos que tiveram como objetivo a não criminalização do aborto e, que em sua maior parte, forma discursos que defendiam que o aborto deveria ser debatido em outro momento, e que sua criminalização, legalização ou regulamentação deveria ser discutida através de Lei Ordinária.

Os discursos contrários à criminalização do aborto

Os discursos que defendiam a criminalização do aborto, como já dissemos, eram heterogêneos. E não era diferente com os discursos que se opunham à sua criminalização, sendo que, talvez, nestes últimos houvesse ainda mais controvérsias do que nos que lutavam pela criminalização do aborto.

Quando analisamos as falas dos constituintes, percebemos que a construção dos discursos, apesar de haver pontos que possam aproximar um discurso do outro, são muito diversos. Não se fala de tudo o tempo todo, isso é perceptível visto que por diversas vezes parlamentares que lutaram contra a criminalização do aborto, ao serem questionados sobre se eram a favor ou contra o aborto, se colocavam como sendo contra – mas, não em quaisquer casos. Isso nos faz refletir que falar em aborto naquele momento não era algo que fosse discutido tão abertamente, aparenta uma hesitação em se falar sobre este tema. Essa questão molda os discursos, faz com que não se fale tudo o que possa ser falado sobre o tema, essa seleção do que aparece ou não no discurso é chamada por Foucault de “regimes de exclusão”:

[…] se levantamos a questão de saber qual foi, qual é constantemente, através de nossos discursos, essa vontade de verdade que atravessou tantos séculos da nossa história, ou qual é, em sua forma muito geral, o tipo de separação que rege nossa vontade de saber, então é talvez algo como um sistema de exclusão (sistema histórico, institucionalmente constrangedor) que vemos desenhar-se. (FOUCAULT, 2011, p. 14).

Quando o autor fala de uma “vontade de verdade” aborda principalmente a questão da formulação das leis e trata de nossa necessidade de estar sempre referenciando nosso discurso em algo que o legitime (a ciência, por exemplo). Coloca ainda que essa legitimação se baseia em ignorar que as verdades são historicamente construídas. E nesse sentido, os discursos feitos contra a criminalização do aborto buscaram legitimação no direito e na ciência, e quando os constituintes que defendiam essa proposta eram questionados sobre sua opinião em relação ao aborto em si, se colocavam contra. O que queremos dizer com isso é que é possível perceber, que neste momento, os discursos sobre o aborto eram vistos de uma maneira muito depreciativa, não era um tema que podia ser debatido abertamente, como ainda não o é. Reside nesta questão da dificuldade de se falar em aborto a heterogeneidade dos discursos, pois nem todos os Constituintes se propuseram a levar este tema adiante. Mas mesmo assim, quando o tema se colocava, sempre havia quem defendesse que este era um debate complexo e que deveria ser discutido posteriormente, sobre isso o Relator José Paulo Bisol coloca o seguinte:

Vou entrar, na devida oportunidade, com um emenda para que a questão da interrupção voluntária da vida intra-uterina seja decidida por consulta plebiscitária. Além desta indagação na consulta plebiscitária, nós sugerimos, nessa emenda, que se faça uma consulta plebiscitária assim: primeiro, se quer a penalização da interrupção voluntária da vida infra-uterina: segundo, se quer desde a concepção; terceiro, se quer a partir dos três meses – que são as hipóteses discutidas ai. (Ata da Reunião do dia 8 de Junho de 1987: 9ª Reunião, p. 57-58)

Fica bastante claro ai o que dissemos anteriormente, de que havia uma proposta de que o aborto fosse debatido em outro momento, e isso ficou assim encaminhado, o debate sobre o aborto foi encaminhado para um outro momento e apesar de ter sido debatido posteriormente, não se chegou a avançar realmente no tema. Em relação ao seu posicionamento sobre criminalizar ou não o aborto, o Relator ainda diz o seguinte:

Sou contra o aborto. Mas sou contra a penalização do aborto. Porque ela [a penalização] é má. E isso qualquer juiz de Direito pode testemunhar. Só conseguimos punir as mulheres pobres. Não conseguimos punir as mulheres as mulheres da nossa classe ou da classe rica. Não conseguimos, não há estrutura para isso. E não há consuetudo, o que é muito mais importante! Falam tanto em costumes, aí! E o que É costume? Precisamos ser coerentes. O que é costume? Não há o costume do aborto na sociedade brasileira? Ele não está institucionalizado nas classes média e rica? Ah, e em nome de Deus e da moral nós vamos punir os pobres! Quando me derem a convicção de que a Justiça tem condições de punir todas as mulheres que fizerem aborto, eu admitirei a discussão da sua penalização. Antes, não! É uma posição. (Ata da Reunião do dia 8 de Junho de 1987: 9ª Reunião, p. 57)

Aqui há uma clara tomada de posição, o Relator se coloca contra a criminalização do aborto, inclusive o faz de forma exaltada, mesmo assim, como já citado anteriormente, não acredita que seja este um tema a ser deliberado pela Assembleia Nacional Constituinte. Outro aspecto interessante de sua fala são as indagações que faz, o Relator afirma que só podemos criar uma lei que seja válida para todos e todas e que se fosse aprovada a criminalização do aborto essa condição não seria respeitada, pois, segundo ele, o Estado não teria condições estruturais de fiscalizar as mulheres que tinham condições de pagar para realizar abortos em condições muito boas, que estivessem muito bem assistidas (mesmo com o aborto criminalizado). Mesmo em discursos moderados, que não se colocam claramente contra a criminalização do aborto ou a favor dela, ficam implícitas algumas questões importantes que já citamos aqui. Uma delas é justamente a dificuldade de debater o aborto, visto que havia

grande cobertura da mídia na Constituinte e que a sociedade pouco se debruçava sobre esse tema, inclusive o via com “maus olhos”, então como é que poderia ser feito um debate amplo e que garantisse aos constituintes a legitimação popular aos seus posicionamentos. O que observamos é que o aborto era um tema que era negado, que apesar de haver posicionamentos contrários à sua criminalização havia receio em dizer que era a ele favorável. No debate entre os Constituintes Anna Maria Rattes e Ferreira Costa, quando este último questiona o fato de ser delegado à mulher a continuação de sua gestação – essa discussão se baseia no trecho já mencionado aqui “a vida intra-uterina, inseparável do corpo que a concebeu, é responsabilidade da mulher” –, ela lhe responde da seguinte maneira, “Permita-me, Excelência. Não cabe a ela, só cabe a ela. Existem, no Brasil, milhares e milhares de mulheres que morrem porque fazer aborto com talo de couve. V. Ex.ª sabia disto? Que lei vai impedir isto?” (Ata da Reunião do dia 1º de Junho de 1987: 7ª reunião p. 37). Coloca-se assim claramente contrária ao aborto, traz algumas questões que seriam necessárias para debate-lo, mas que raramente foram levadas em conta. E, na sequência deste mesmo debate, quando indagada se era a favor ou contra o aborto, ela disse ser contra, mas que não era contra em qualquer caso, e que era ai que residia sua preocupação:

Acho que devemos ter uma garantia constitucional de que essas exceções sejam previstas e garantidas, porque este termo que está aqui, como estava no substitutivo da Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais, vai, inclusive contra o nosso Código Penal. E V. Ex.ª estão querendo retrocesso. (Ata da Reunião do dia 1º de Junho de 1987: 7ª reunião, p. 37).

Aqui surge mais uma vez a questão dos casos previstos em lei, a Constituinte fala também da importância de garantir na Constituição que essas exceções sejam regulamentadas. Como dissemos o aborto só aparece no Código Penal, não há regulamentação sobre esse tema em lei específica, isso gera questões como a da ADPF 54 da qual já tratamos. Nas análises realizadas poucos se declararam favoráveis ao aborto, porém houve também quem o fizesse. Foi o caso do Constituinte José Genoíno, que faz uma fala em defesa do aborto e diz que irá propor sua descriminalização:

É necessário, portanto, abrir um pouco a mente para essa questão. Não se trata, aqui, como alguns companheiros Constituinte disseram de estarmos chegando ao fim

daquilo que, para eles, é essencial defender no texto constitucional. Não! Trata-se, apenas e simplesmente de uma visão democrática. Mesmo com relação a um tema tão polêmico em relação ao aborto! A legalização do aborto não significa ser favorável necessariamente, à sua prática. A legalização do aborto coloca o problema como de foro íntimo para as pessoas que, por uma determinada concepção, por uma determinada situação concreta, optem – principalmente a mulher – pela interrupção da gravidez em determinado ponto. Isso não significa que as pessoas vão necessariamente praticá-lo ou que as pessoas que são contra o façam. Isto é um direito garantido a todas as pessoas para que espontaneamente o usem. (Ata da Reunião do dia 09 de Junho de 1987: 11ª Reunião, p. 89).

Nesta fala fica expresso o posicionamento do Constituinte, que em outro momento falou que iria propor uma emenda pela legalização do aborto. Mas mais do que seu posicionamento o que é interessante nesta fala são os argumentos utilizados, muitos dos quais são bandeiras de movimentos pró-aborto, que nada mais são do que a cobrança para que os direitos individuais da mulher sejam, na prática, direitos seus. O quadro que se apresenta para nós é o de uma tentativa do Estado de tutelar o nascituro e as mulheres, uma tutela que se estende às parcelas menos favorecidas de nossa sociedade e que em nome da defesa da vida (a do nascituro) suprime o direito à vida de muitas mulheres, como bem colocam Villela e Barbosa (2011):

A relação entre a criminalização do aborto e o óbito materno comprova que aqueles que defendem a criminalização do aborto tomando como argumento a defesa da vida estão equivocados. A criminalização do aborto não protege a vida, e sim provoca a morte, pois não inibe a prática e tira a vida de muitas mulheres. (VILLELA E BARBOSA, 2011, P. 58).

Isso traduz um pouco da dificuldade que há em debater o tema, que gera polêmica sempre que citado e que dificilmente é debatido com o interesse de que realmente seja um debate amplo, que apresente a problemática dos óbitos que ocorrem todos os anos decorrentes, direta ou indiretamente, da prática do aborto e que pense em políticas efetivas que garantam a liberdade das mulheres e o apoio do Estado para que as mulheres não tenham que se submeter a práticas completamente inseguras para abortar. O que temos é uma lei que criminaliza uma prática, mas é uma lei que se aplica apenas às parcelas da população que não tem condições de buscar clínicas que realizem o procedimento de maneira adequada, tanto isso é verdade que os dados sobre aborto no Brasil se baseiam nos índices de mulheres que procuram ajuda depois de tentar o aborto:

É difícil saber o número exato de abortos praticados no país a cada ano. Sendo considerado um ato ilegal, não há registro da sua ocorrência. Assim, as estimativas de sua magnitude são feitas por métodos indiretos, como inferências a partir das internações por complicações decorrentes do aborto, ou a partir de métodos diretos, como inquéritos populacionais ou realização de entrevistas domiciliares. (VILLELA e BARBOSA, 2011, P. 60).

Os dados sobre o aborto são inconclusivos, o são por que não conseguem identificar o número exato de aborto que ocorrem por ano. Como as autoras colocam isso se deve às dificuldades de mapear todos os casos, que devido ao fato de ser uma prática criminalizada nem sempre chegam ao conhecimento do setor público. Porém, ainda assim, os números são alarmantes, as autoras apresentam uma estimativa de 1,04 milhão de abortos no início dos anos 2000. Acredita-se que o debate em torno do aborto não deva se centrar em um juízo de valores morais, mas sim que o problema de sua criminalização tem gerado é bastante grande. A partir das análises aqui realizadas é possível fazer algumas observações. A primeira delas é que não é função do Estado tutelar o corpo das mulheres, restringindo seus direitos e punindo atos de forma indiscriminada. Sua função é garantir condições dignas tanto à mulheres que deseja ter seus bebês, prestando a elas toda a assistência, como também que deve orientar às mulheres que procurarem os serviços públicos de saúde para interromper a gravidez, e que se estas optarem, após esse acompanhamento, por realizar o aborto então deve fazê-lo em condições dignas e seguras. O segundo ponto é a dificuldade de compreender como um tema tão importante para as mulheres pode ter uma maioria esmagadora de homens com função deliberativa sobre o tema. Os discursos aqui citados, em sua maioria proferida por homens, são fiéis à proporção de mulheres e homens Constituintes. Significa que além de tuteladas pelo Estado as mulheres têm sido tuteladas por um Estado predominantemente masculino, e essa realidade se apresenta ainda hoje, basta buscarmos saber a proporção de parlamentares homens e mulheres. Por fim, a descriminalização do aborto não visa suprimir os direitos do nascituro, porém, não acreditamos que os direitos da mulher à sua vida e a seu corpo devam ser suprimidos, nem pelo nascituro e nem pelo Estado. Este debate, apesar de todos os problemas e dificuldades que tem em ser feito, não deve ser ignorado. Não há como pensar em um país mais justo e em que os anseios gerais

estejam representados, se há temas que nem se cogita debater, como é o caso hoje do aborto, que em âmbito político só tem sofrido ataques e sobre o qual pouquíssima informação circula para que as pessoas saibam o quadro que se apresenta hoje. O primeiro passo para avançarmos é que o debate ocorra de forma ampla, livre de paixões e visando sempre o bem estar social. Como historiadores, temos a função de compreender esse processo, tanto das lutas que buscam avanços, quanto dos debates que ocorrem nas instituições representativas. Temos a possibilidade de analisar aspectos dos mais variados em torno dessa discussão, como, por exemplo, o fato de a política eletiva ainda ser um campo eminentemente masculino – esta era uma realidade nos debates da Constituinte e continua sendo – e de que maneira isso reflete nas decisões políticas. Não podemos nos abster nessa discussão, temos que tomar posição e contribuir para possibilitar novos olhares sobre o aborto.

Referências

FOUCAULT, Michel. As Regularidades Discursivas. In. A Arqueologia do Saber. 8. ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. P. 22-92 VILELA, Wilsa Vieira e BARBOSA, Regina Maria. Aborto, saúde e cidadania. São Paulo: Editora Unesp, 2011. MIGUEL, Luis Felipe. Aborto e democracia. In. Revista de Estudos Feministas, Florianópolis 20(3): 384, setembro-dezembro, 2012. P. 657-672

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