A Despersonalização do Superego e a mortificação do Ego na interpretação filosófica de Marcuse

September 21, 2017 | Autor: John Aquino | Categoria: Herbert Marcuse, Sigmund Freud, Psicanáliese E Psicologia Social, Filosofia Psicanalise
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A Despersonalização do Superego e a Mortificação do Ego na Interpretação Filosófica de Marcuse The Depersonalization of the Superego and Mortification of the Ego in a Philosophical Interpretation of Marcuse John Karley de Sousa Aquino1 – Universidade Estadual do Ceará (UECE)

Resumo: O presente artigo irá abordar a obsolescência do objeto da psicanálise, ou seja, o individuo, este enquanto encarnação do id, ego e superego, indivíduo este que se encontra em vias de extinção com a despersonalização do superego e a mortificação do ego e surgimento do homem massa. Com este trabalho pretendemos demonstrar a obsolescência da teoria freudiana no que diz respeito à constituição do indivíduo. Para tanto são utilizadas as obras de Marcuse Cultura e sociedade volume II e Eros e civilização, assim como uma obra complementar, A psicanálise de Freud - O complexo de Édipo na psicanálise e na análise de grupo, de Leão Cabernite e Paulo Dias Corrêa. Queremos demonstrar que o superego antes personificado na imagem do pai (onde era vivido e decidido em primeiro lugar o conflito entre o indivíduo e a sociedade), foi despersonalizado, o pai como representante simbólico do princípio de realidade perdeu seu valor, pois hoje a sociedade dirige diretamente o ego que está se constituindo, o que reduz o domínio e autonomia do ego. O artigo irá apresentar a massificação como fruto da despersonalização do superego e da mortificação do ego. Palavras-chave: Ego, Massificação, Sociedade, Superego. Abstract: This article will broach the obsolescence of the object of psychoanalysis, in other words, the individual, as a incarnation of the id, ego and superego, individual who is in process of extinction because of the depersonalization of the superego and ego and mortification of the ego and appearance of man mass. With this work we intend to demonstrate the obsolescence of the Freudian theory about the individual's constitution. For this used the Marcuse books Culture and Society and Eros and civilization, as well as a supplementary book named A psicanálise de Freud – O Complexo de Édipo na psicanálise e na análise de grupo, of Leão Cabernite and Paulo Dias Correa. We want to demonstrate that the superego before personified the image of the father (where was living and was decided in first place the conflict between the individual and society) was depersonalized, his father as a symbolic representative of the reality principle has lost his value, because today the society handles directly the ego witch is constituted itself reducing the ego’s domain and autonomy. The article will introduce the mass as a fruit of the depersonalization of the superego and the mortification of ego. Keywords: Ego, Massification, Society, Superego.

1Graduando em filosofia; Universidade Estadual do Ceará (UECE); Bolsista PIBID (CAPES); John_rpg2811@hotmail. Orientador(a): Alberto Dias Gadanha.

AQUINO, John Karley de Souza -6-

Introdução

E

ste artigo discutirá o objeto da psicanálise, o indivíduo, ele enquanto encarnação

do id, ego e superego, que está alterado e nas palavras de Marcuse “se tornou obsoleto na realidade social” (MARCUSE, 1998, pág. 91), para tanto iremos usar como objeto de estudo o artigo de Marcuse A obsolescência da psicanálise na obra Cultura e Sociedade volume II, onde ele irá discutir o desaparecimento da situação em que ego e superego se formavam na luta com o pai como o representante do principio de realidade, isto é uma situação histórica que deixou de existir com as transformações da sociedade industrial no período entre e pósguerras. Para melhor prosseguirmos e dar continuidade a tentativa de mostrar a que ponto as transformações minaram as bases da teoria freudiana iremos fazer uso também da obra Eros e civilização de Marcuse, assim como a obra de Leão Cabernite e Paulo Dias Corrêa, A psicanálise de Freud – o complexo de Édipo na psicanálise e na análise de grupo. Com este trabalho gostaríamos de mostrar a obsolescência da teoria freudiana ao que diz respeito à constituição do indivíduo, o id, ego e superego, demonstrarmos que o superego antes personificado na imagem do pai, onde era vivido e decidido em primeiro lugar o conflito entre o indivíduo e a sociedade, foi despersonalizado, o modelo clássico psicanalítico, segundo o qual pai e a família dominada pelo pai eram o agente de socialização psíquica, em que o pai era o representante simbólico do princípio de realidade, perdeu seu valor, pois hoje a sociedade dirige diretamente o ego que está se constituindo. Isso reduz o domínio e autonomia do ego, essas transformações em que a sociedade diretamente organiza o ego “prepara o terreno para o surgimento das massas” (MARCUSE, 1998, pág. 94), o indivíduo assim se torna um objeto administrado, e o ego se retrai e não consegue se manter como um eu distinto, a mediação entre o eu e o outro dá lugar a identificação imediata, a pluridimensionalidade na qual o individuo consegui e mantinha o equilíbrio entre a liberdade e a repressão, a autonomia e a heteronomia, entre outras dinâmicas, deu lugar a identificação imediata do individuo com os outros e com o principio de realidade administrado, o individuo passou a existir em um universo unidimensional. O ego desenvolve-se sem luta, se torna uma entidade fraca, incapaz de opor uma resistência ao principio de realidade, com isso o desaparecimento do pai e sua “substituição” por autoridades externas enfraquece a energia

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pulsional do ego e, por conseguinte, leva a sua mortificação. O ego se dissolve nas massas organizadas pelo aparato administrativo.

1. O homem e civilização na teoria freudiana

Segundo Freud, a história do homem é a história de sua repressão, isso foi aceito como axiomático na psicanálise, a proposição freudiana de que a civilização se sustenta na permanente subjugação dos instintos humanos. Essa repressão é tanto social quanto biológica, contudo essa coação é a precondição do progresso, pois se o homem tivesse liberdade de buscar seus objetivos, os desejos básicos, qualquer comunidade humana seria impossível. O Eros (instinto de vida) incontrolado é tão destrutivo quanto seu oposto, o Thanatos (instinto de morte), pois em estado primitivo o homem vive uma busca integral por prazer, como um fim em si mesmo, isso em qualquer momento, fazendo-o tirar qualquer obstáculo que houver em seu caminho e a satisfação do seu prazer. Portanto os instintos básicos devem ser desviados de seus objetivos, e quando isso ocorre dar-se inicio a civilização, ou seja, a civilização começa quando os objetivos primários, isto é, a satisfação total das necessidades é abandonada.

Sabemos que o princípio de prazer é próprio de um método primário de funcionamento do aparelho mental, mas que do ponto de vista da autopreservação do organismo entre as dificuldades do mundo externo ele é desde o início, ineficaz e até mesmo perigoso. Sob a influência dos instintos de autopreservação do ego, o princípio de prazer é substituído pelo princípio de realidade. (FREUD, 1976, p. 20)

Segundo Freud, o ser humano em estado natural vive sobre o principio de prazer, que pauta-se na satisfação imediata, no prazer, júbilo (atividade lúdica), receptividade e ausência de repressão, o homem é um feixe de impulsos animais. Mas o principio de prazer sem restrição entra em conflito com o meio natural e humano, o homem chega à compreensão traumática de que sua total gratificação é impossível, o homem “aprende” a renunciar o prazer imediato e momentâneo, e substitui-o pelo prazer adiado, restringido, mas garantido. Neste momento ele substitui o principio de prazer pelo de realidade, e aprende a adiar a satisfação, restringir o prazer, a esforçar-se (trabalhar), produzir e buscar segurança, assim o ser humano

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com o estabelecimento do principio de realidade converte-se em um ego organizado, desenvolve a função da razão, adquire a memória e o discernimento. O homem passa a viver como se em duas dimensões, o consciente e o inconsciente, o primeiro sobre o principio de realidade e o segundo sobre o principio de prazer, “o aparelho mental está efetivamente subordinado ao principio de realidade” (MARCUSE, 1978, pág. 35), apenas uma atividade mental é separada da nova organização mental e livre do principio de realidade, a fantasia, que está vinculada ao inconsciente. No entanto o ego é imposto de fora, daí em diante os seus desejos, e o próprio sujeito passa a ser “organizado” pela sociedade. Em uma palavra: é impossível a felicidade plena, ou qualquer projeto de felicidade é realizável, pois a resignação é o princípio fundamental da civilização, daí seu permanente mal-estar. O grande acontecimento traumático no desenvolvimento do homem é a substituição do principio de prazer pelo de realidade, na teoria freudiana esse evento não foi único, pois, repete-se ao longo da história da humanidade e de cada um dos indivíduos, a submissão é continuamente reproduzida, e isso indica que o principio de realidade tem de ser continuamente restabelecido no desenvolvimento do homem, e que o triunfo do principio de realidade sobre o de prazer jamais é completo e seguro, a civilização não põe fim a um estado natural, ela domina e reprime. Sobrevivendo no inconsciente, o principio de prazer excluído pela realidade externa, afeta de várias maneiras a própria realidade que superou o principio de prazer, Freud chama essas manifestações de retorno do reprimido.

Este último princípio (i.e. realidade) não abandona a intenção de fundamentalmente obter prazer, não obstante exige e efetua o adiamento da satisfação, o abandono de uma série de possibilidades de obtê-la, e a tolerância temporária do desprazer como uma etapa no longo e indireto caminho para o prazer. (FREUD, 1976, p. 20)

A repressão na qual a civilização se apoia, não é natural, mas um fenômeno histórico imposto pelo próprio homem, essa cadeia repressivo-dominadora tem seu início na horda primordial, com a dominação imposta pelo pai primordial, que é deposto pela rebelião do clãfraterno, e inicia a reação em cadeia de escravidão, rebelião e dominação reforçada. Mas a repressão externa sempre foi apoiada pela repressão interna, a dinâmica da civilização se dar interna e externamente.

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2. Id, ego e superego

Freud divide a estrutura mental em camadas, as quais ele denomina de id, ego e superego. O id é o reino do principio de prazer, é o inconsciente. Com influencia do meio externo, uma parte do id, a que está capacitada da percepção, e proteção contra os estímulos, sofreram um desenvolvimento e torna-se o ego, ela é a camada intermediaria entre o id e o mundo externo, a consciência. Segundo Freud “a divisão do psíquico em o que é inconsciente e o que é consciente constitui a premissa fundamental da psicanálise” (FREUD, 1976, p. 25). O ego é representante do mundo externo para o id, e tem a “responsabilidade” de protegê-lo, o ego lar do principio de realidade. O ego retira o principio de prazer do controle, e coloca o principio de realidade que promete maior segurança e êxito. Os processos do ego são chamados de processo secundários, e os do id de primários. Enquanto o ego se desenvolve durante o período da infância, enquanto a criança vive na dependência dos pais, e quando se torna “independente” sobre a sombra do meio, que é um prolongamento da influência parental, uma última camada se desenvolve e diferencia do ego, é o superego, e é a mando do superego que o ego efetua as repressões e restrições externas. O ego enfrenta uma batalha de duas frentes, externa e interna, pois “o ego é aquela parte do id que foi modificada pela influência direta do mundo externo (...) além disso, o ego procura aplicar a influência do mundo externo ao id e as tendências deste e esforçar-se por substituir o princípio de prazer, que reina irrestritamente no id” (FREUD, 1976, p. 39) O ego que exerce a repressão coagido pelo superego, está defrontando-se com o mundo externo, e este mundo não é algo natural ou biológico, mas um mundo histórico-social especifico de cada realidade. Freud em seu esboço sobre a psicanálise diz que “o superego pode colocar novas necessidades em evidência, mas sua função principal permanece sendo a limitação das satisfações.” (FREUD, 1996, p. 161). Marcuse aprofunda-se nos estudos psicológicos de Freud, acrescenta dois termos inéditos na psicologia, e diz que eles derivam do componente histórico-social que está submetido todo o aparelho psicológico, além dos limites biológicos, são estes os termos de Marcuse: maisrepressão e principio de desempenho.

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No principio de realidade que Freud nos mostra em suas obras, o homem compreende a realidade como insuficiente, um mundo carente, que não possui o necessário para todos, um mundo demasiado pobre e fundamentado na carência, em que qualquer satisfação que seja possível necessita de labuta, ações mais ou menos penosas para a obtenção dos meios de satisfação das necessidades, e enquanto o trabalho dura, o que equivale a praticamente toda a existência do individuo maduro, o prazer é suspenso e o sofrimento físico prevalece. No entanto essa escassez passou a ser imposta por uma organização. A carência que existia deixou de existir em nossa situação atual e passou a ser imposta uma distribuição hierárquica da escassez, que visa não à prometida satisfaça, mas a dominação organizada, essa dominação é imposta primeiramente de modo violento, e depois pelo uso racional do poder. Segundo Freud essa escassez é algo natural, já Marcuse faz sua critica a essa posição ao declarar que A carência, ou escassez, predominante tem sido organizada de modo tal através da civilização (embora de modos muito diferentes), que não tem sido distribuída coletivamente de acordo com as necessidades individuais, nem a obtenção de bens para a satisfação de necessidades tem sido organizada com o objetivo de melhor satisfazer as crescentes necessidades dos indivíduos... a gradual conquista da escassez foi vinculada e modelada pelo interesse de dominação... a dominação que é exercida por um determinado grupo ou individuo (MARCUSE, 1998, 107).

Analisando toda essa estrutura, Marcuse denomina de mais-repressão os controles adicionais gerados pelas instituições especificas de dominação, ela é uma restrição requerida pela dominação social, e distingue-se da repressão básica e necessária, que são as modificações dos instintos necessárias a perpetuação da raça humana em civilização. O individuo no seu desenvolvimento “normal” vive a sua repressão livremente e aceita toda a ordem e moral existente como um fato eterno e imutável (como o que é). E aceita como leis objetivas externas e “a autoridade social é absorvida na consciência e no inconsciente do individuo, operando como seu próprio desejo, moralidade e satisfação” (MARCUSE, 1978, pág. 59). A formação do sujeito na sociedade repressiva Freud denomina ontogênese.

3. A mortificação do ego

Segundo Marcuse o ego, passando por esse processo de enfraquecimento, se une a outros indivíduos por meios de vínculos, e assim formam as massas, essa análise não é do próprio Marcuse, mas de Freud em Psicologia de grupo e análise do ego, segundo esta teoria

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das massas, os vínculos que unem os indivíduos para formar as massas são vínculos sentimentais, impulsos inibidos quanto à meta, e “pertencem a uma forma enfraquecida e empobrecida do ego e representam assim uma regressão a estágios primitivos de desenvolvimento, em última instancia a horda primitiva” (MARCUSE, 1998, pág. 96), segundo Marcuse na perspectiva de Freud a regressão acompanha a constituição das massas, que é o “desaparecimento da personalidade individual consciente, orientação do pensamento e sentimento na mesma direção, preponderância da efetividade e da vida psíquica inconsciente, tendência a executar imediatamente as intenções que surgem” (MARCUSE, 1998, pág. 97), nesse caso o individuo abandona seu ideal do ego, e troca pelo do grupo. Assim o ego atrofia e sua resistência a imposições externas reduzem. Esses sinais regressivos encontrados por Freud na igreja e no exército são observados na atual sociedade de massas como um todo (vide a obra Psicologia de grupo e análise do Ego de Sigmund Freud). O enfraquecimento do ego esclarece porque os homens se submetem aos desejos externos da administração total, inclusive “a preparação total para um fim trágico” (MARCUSE, 1998, pág. 98). O ego livre do pai e emancipado da família é “bem preparado” com as imagens e fatos da vida como são apresentados pela indústria cultural de massas, o filho e a filha se deparam como um mundo feito com o qual eles precisam se entender. O ego perdeu sua liberdade individual devido à socialização imediata, e pelo controle e manipulação do tempo, e a dissolução da área privada nas massas. O ego “livre” do poder de negação e juízo crítico se esforça por encontrar uma identidade, e se depara com um caminho, a aceitação aos modos de comportamento e pensamento exigidos e estabelecidos, identificando seu ego ao dos outros, uma não aceitação dessa realidade levará o sujeito ou ao isolamento ou a algum transtorno por não suportar a rejeição dos outros. Assim os indivíduos estão “predestinados” a aceitar e fazer tudo que a sociedade (seu superego) lhe ordene. O indivíduo de ego atrofiado não decide nada a partir de si mesmo, mas através do ideal do ego exteriorizado, o principio de realidade estabelecido. A sociedade manipuladora ataca em massa, por meio da mídia, indústria cultural, por meio dos colegas e associações dominadas e organizadas pela sociedade, tudo é a sociedade. O indivíduo é somente um objeto, uma imagem congelada da sociedade, um ser unidimensional. A criança desde cedo “aprende” que os “companheiros de brincadeira, os vizinhos, o chefe do bando, o esporte e o cinema que são autoridades no que se refere ao comportamento

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intelectual e corporal adequado” (MARCUSE, 1998, pág. 99), nesse desenvolvimento o indivíduo aceita docilmente toda a ordem e moral existente como um fato eterno e imutável, e a aceita como leis objetivas externas e “a autoridade social é absorvida na consciência e no inconsciente do individuo operando como seu próprio desejo, moralidade e satisfação” (MARCUSE, 1978, pág. 89). Os povos (as massas) assim são feitos ignorantes pela administração que os distraem enquanto estão na labuta, com informações e entretenimentos e a vida está quase completamente mecânica. As relações entre sujeitos converteram-se em relações de sujeitos-objeto com sujeitos-objeto, todos sujeitos a administração. E esse sujeitoobjeto ignorante e reprimido se sente feliz, sente-se satisfeito e seguro, estão anestesiados, anestesia que gera a felicidade à custa da liberdade. Hoje nas sociedades industriais do ocidente há uma crescente dessublimação, nos costumes sexuais e comportamento sexual, nas relações sociais e na cultura (acesso a cultura de massas). A sexualidade é uma atração comercial, uma mercadoria e sua “posse” simboliza status. Freud, segundo Marcuse acreditava que a sexualidade deveria ser controlada ou regressaríamos a barbárie, Reich acreditava que a “libertação sexual per se convertesse, (...), numa panacéia para as enfermidades individuais e sociais” (MARCUSE, 1978, 206). Para Freud a sexualidade (princípio de prazer) e a sociedade (princípio de realidade) estão em um confronto eterno, mas hoje o conflito entre o principio de prazer e o de realidade é dirigido por meio de uma liberalização controlada “que realça a satisfação obtida com aquilo que a sociedade oferece” (MARCUSE, 1998, pág. 106), a sexualidade perde sua qualidade emancipatória que Reich vislumbrava, e com a integração dessa esfera ao caminho dos negócios e divertimento, a própria sociedade não ampliou a liberdade individual, e sim aumentou seu controle sobre o indivíduo, o princípio de realidade penetra e controla mais e mais o princípio de prazer. Assim a sociedade ao aumentar a liberdade e igualdade, controla os indivíduos e os mantém subordinado as suas exigências, assim:

Temos aqui um estágio de civilização altamente desenvolvido, em que a sociedade, ao ampliar a liberdade e a igualdade, subordina os indivíduos às suas exigências, em outros termos, em que o princípio de realidade se impõe por meio de uma dessublimação mais ampla, porém mais controlada. Sob essa forma histórica nova do princípio de realidade o progresso pode atuar como veículo de repressão. A satisfação melhor e maior é bem real, e, no entanto repressiva em termos freudianos, na medida em que reduz, na psique individual, as fontes do princípio de prazer e da liberdade: a resistência pulsional e intelectual contra o princípio de realidade (MARCUSE, 1998, pág. 107).

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A resistência espiritual (intelectual) se enfraquece também com este controle repressivo e disfarçado que mortifica o eu. A administração domina também a cultura “superior”, a sociedade de massas difunde de forma maciça a literatura, arte, filosofia e música, elas também perdem sua função emancipadora. A arte, a música e a filosofia antes, acusavam e transcendiam a realidade estabelecida, a denunciavam, mas agora, estão integradas a sociedade, “o poder do principio de realidade encontra-se consideravelmente ampliado” (MARCUSE, 1998, pág. 107), a música e as artes em geral se tornam mercadorias a serem consumidas, os sujeitos se sentem iguais uns aos outros ao estarem “consumindo” as mesmas coisas, e livres para escolherem obedecer da melhor forma o sistema. As massas “transforma-se em objeto da administração” (MARCUSE, 1998, pág. 107). O resultado de todo esse “progresso” é a formação do ego no seio das massas e através das massas, assim o ego se retrai, “ao mesmo temo, o valor social do indivíduo é medido, primordialmente, em termos de aptidões e qualidades de adaptação padronizada, em lugar do julgamento autônomo e da responsabilidade pessoal” (MARCUSE, 1978, pág. 96). A organização repressiva organiza o ego coletivamente, o ego é prematuramente socializado por todo um sistema. O ego nessa sociedade é mortificado, deixa de existir, ou se encaminha para a extinção do eu.

4. Despersonalização do superego

Na psicanálise tradicional o pai é o representante do principio de realidade, e o superego do filho, lhe impondo as restrições ao seu ego e ao seu id. Mas essa situação em que o ego se formava na luta contra o pai deixou de existir, devido a alguns fatos históricos como “a passagem da concorrência livre a concorrência organizada, concentração nas mãos de uma administração técnica, cultural e política onipresente, produção e consumo de massa que se expandem automaticamente, sujeição de dimensões outrora privado e antissociais da existência ao adestramento, manipulação e controle metódicos” (MARCUSE, 1998, pág. 94). Tudo isso abateu o papel do pai e a teoria clássica do superego como herdeiro do pai. Na

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nossa sociedade de massas a grande maioria já não é atormentada pela imagem do pai. Todas essas transformações fazem parecer invalida a interpretação freudiana do individuo. Segundo Freud há um líder que é uma força unificadora, ele representa a imagem do pai. Assim diz Marcuse em relação à posição de Freud, que “os vínculos libidinais que ligam os membros das massas ao líder e entre si, seriam uma modificação idealista das relações da horda primitiva, onde todos os filhos se sabiam perseguidos da mesma maneira pelo pai primitivo, o qual temiam da mesma maneira” (MARCUSE, 1998, pág. 100), mas Marcuse discorda dessa posição de na atual sociedade de massas identificar o líder como força unificadora com a imagem do pai. Há vários lideres e sublíderes na atual sociedade, mas nenhum são os herdeiros do pai primordial, esses líderes são funcionários de uma autoridade mais alta, que já não se encarna numa pessoa, Freud diz que seria possível a substituição de um pai na imagem de uma pessoa por uma idéia, isto é, “refiro-me a distinção entre grupos sem líderes e grupos com líderes” (FREUD, 1976, p. 119), e se “uma idéia, uma abstração não pode tomar o lugar do líder” (FREUD, 1996, p. 127) e “surgiria então à questão de saber se o líder é realmente indispensável à essência de um grupo” (FREUD, 1996, p. 127). Essa idéia é o que Leão Cabernite denomina de lei liderante,

O líder utiliza-se para o exercício do seu poder de uma força que é a mesma que o mantém neste poder. Denomino esta força de lei liderante. A lei lidernate é a mantenedora na dinâmica grupal da coesão social. O seu papel grupal corresponde ao da libido na psicodinâmica e ao da lei paterna no conflito edípico. A sua natureza é de uma força catéxica (uma energia capaz de impregnar de potência um objeto) a serviço da socialização. A identidade do líder é, pois, o resultado de sua identificação plena com a lei liderante (CABERNIE, 1976, pág. 111).

A lei liderante é essa idéia que Freud diz que pode substituir o líder, e Leão Cabernite diz que sem essa idéia (lei liderante) o líder não pode exercer sua liderança e perde sua força. A lei liderante é um passo para a massificação, pois ela é uma idéia reificada acima dos homens inclusive do representante simbólico do pai, o líder. Segundo Leão Cabernite embora somente os indivíduos possam fazer existir os grupos, os grupos sufocam os indivíduos. Segundo Leão “do próprio grupo e nunca do individuo, despertam forças e fenômenos que seguem suas próprias leis. Deles se originam a linguagem, a tecnologia e a relação de parentesco” (CABERNITE, 1976, pág. 87).

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Leão Cabernite mantém a estrutura clássica freudiana, o líder e a idéia liderante são representantes do pai e do superego, mas não percebe que a própria idéia liderante é uma despersonalização do superego, e ela pode no sistema sociopolítico “ser repartido entre vários poderes: a religião, judiciário, legislativo, força militar, códigos, ensino, etc.” (CABERNITE, 1978, pág. 111), tornando o superego ainda mais despersonalizado, a própria autoridade do aparato de produção dominante que devora líderes e liderados, o sistema é dirigido e organizado por indivíduos, “mas seus fins e os meios para alcançá-los são determinados pelas exigências de manter, aumentar e proteger o aparato” (MARCUSE, 1998, pág. 103), a teoria freudiana de líder como herdeiro do superego e a de lei liderante são “ultrapassadas” por uma sociedade totalmente reificada, em que existem leis bem sólidas que movem o sistema e determina o comportamento dos sujeitos, “o indivíduo tem que se submeter ao determinismo das leis sociais” (CABERNITE, 1976, pág. 87), o pai (representante do superego) limitado na família e na autoridade biológica individual, volta muito mais poderoso na “administração que preserva a vida da sociedade e nas leis que salvaguardam a administração” (MARCUSE, 1978, pág. 93), o antigo conflito modelo pai-filho deixa de existir na medida em que a família deixa de ser responsável direta e decisiva na preparação do indivíduo, o conflito modelo muda e já mudou. Antes “era a família que para o bem ou para o mal, criava e educava o indivíduo”(MARCUSE, 1978, pág. 96), antes os valores dominantes eram transmitidos pessoalmente, e a repressão era vivida individualmente, com traumas e cicatrizes individuais próprias de cada um, o que gerava uma espécie de não-conformidade privada. Contudo na sociedade atual a organização repressiva passa a ser coletiva por meios extrafamiliares, como a escola, rádio e televisão que fixam padrões para a conformidade, visando impedir a rebelião, no decorrer da história o pai foi substituído de sua posição de superego e seu papel foi assumido por um sistema de administração objetiva, com a sociedade atual (a de massas) a repressão se tornou despersonalizada e objetiva, os líderes se tornaram associados burocratas, parte de um todo repressor, e não o próprio repressor, mas alguém que reprime e é reprimido. Hoje o próprio todo, o sistema objetivo e impessoal é o superego dos indivíduos. O “pai” agora é o sistema de ordem e dominação. Assim o superego se desprende de sua origem. Os meios de comunicação de massa transmitem os valores requeridos “oferece treino perfeito em eficiência, dureza, personalidade, sonho e romance” (MARCUSE, 1978, pág. 97). Hoje os “substitutos” paternos é um sistema de administração objetiva, o superego torna-se despersonalizado. Antes o superego era o senhor, o chefe ou o patrão, representavam o Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET –Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei –ANO IX –Número VIII–Janeiro a Dezembro de 2013

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principio de realidade, eram “implacáveis e benévolos, cruéis e reconhecidos, provocavam e puniam o desejo de revolta, a imposição da conformidade era sua função e responsabilidade pessoal” (MARCUSE, 1978, 98), no entanto esses líderes e as imagens do pai desapareceram nas instituições, o sistema trabalha com o anonimato, mesmo os lideres parecem impotentes diante das leis da engrenagem que movimenta o sistema. A responsabilidade pela organização da vida e do todo reside no sistema que é o superego despersonalizado, a sociedade de massas fez “florescer” a distopia orweliana em que o “big brother” está de olho em todos. O ego (ou o que sobrou dele) obedece a um superego onipresente e onipotente e perde-se nas massas, não mais existe o ego, o sujeito não é nada sem os outros que junto a ele formam as massas. Se um grupo consome a música e livro predeterminado pela obsolescência programada do sistema o ego mortificado também irá consumir, é a massificação o fruto da despersonalização do superego e mortificação do ego.

Conclusão

Para Freud o conflito entre o indivíduo e a sociedade é vivido e decidido em primeiro lugar com o pai, na confrontação com o representante simbólico do pai primordial. É o pai que impõe as restrições do princípio de realidade ao princípio de prazer, “a rebelião e o acesso à maturidade são estágios da luta com o pai” (MARCUSE, 1998, pág. 93), na teoria clássica a primeira “socialização” do indivíduo é com a família, o ego do indivíduo se desenvolve na esfera e no refúgio do privado. Mas como apontei essa situação histórica deixou de existir “as obrigações e o comportamento socialmente necessário já não são apreendidos e interpretados na longa luta com o pai” (MARCUSE, 1998, pág. 94). Freud deu um passo da psicologia individual à psicologia grupal ao analisar o indivíduo como membro de um grupo, em que o pai é encarnado na pessoa do líder, um agente externo que os indivíduos se ligam para transforma-se em massas para dele fazerem seu ideal do ego, o superego por identificação. O líder segundo Freud é o herdeiro do pai primordial em um grupo, na horda primordial todos os membros eram iguais, reduzidos ao status de filhos, e igualmente perseguidos, tinham do pai o mesmo medo “os membros do grupo não podiam desenvolver seu próprio ego nem seu ideal do ego” (MARCUSE, 1998, pág. 97), Freud diz que as massas regridem a essa atividade primária de inícios pré-históricos, eles renunciam seu ideal do ego, e o trocam pelo ideal do grupo, que é encarnado no líder, que é o representante da lei liderante como diz Cabernite.

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Nesse processo da passagem do pai ao líder, e do líder a idéia liderante, chega-se a atual sociedade de massas, com a divisão da lei liderante em vários poderes no sistema sociopolítico, até que o próprio sistema “toma” o lugar do superego e usurpa o poder do pai. Assim a consciência moral e responsabilidade pessoal desaparecem na burocratização total, onde desaparece a autonomia e o “aparato determina a autonomia pessoal, pondo-se acima dela” (MARCUSE, 1998, pág. 98), o eu deseja o que a massa quer, a liberdade é o preço que se paga pela segurança e despreocupação e assim “as descobertas da psicanálise contribuem essencialmente para esclarecer à assustadora despreocupação com que os homens se submetem as exigências da administração total” (MARCUSE, 1998, pág. 98). O ego fica isento do juízo critico e do poder da negação, ele se esgota na tentativa de encontrar identidade, e isso ao preço de doenças psíquicas e afetivas que levam aos psicanalistas e tratamento e acompanhamento psicológico, ou ele se submete aos comportamentos e pensamentos exigidos de forma padronizada, alinhando seu eu ao grupo. O ego é mortificado. Na psicanálise tradicional o controle social e político, mesmo o mais objetivo e complexo, deve ser encarnado em uma pessoa, deve ser personificado, os vínculos sentimentais é o que prende o “senhor aos escravos, o chefe aos subordinados, o líder aos liderados, o soberano ao povo” (MARCUSE, 1998, pág. 102), esse vínculos ainda existem, os políticos e os popstars são um exemplo, mas agora eles são apenas funcionários de uma autoridade mais elevada, autoridade essa que não é mais personalizada “parece que estamos perante uma realidade que na psicanálise só foi encarada superficialmente, a sociedade sem pai” (MARCUSE, 1998, pág. 101). Mas a massificação não é o ponto final da mortificação do ego e despersonalização do superego, a identificação imediata e sem confronto de um ego em vias de extinção com seu ideal do ego, libera energia agressiva que era voltada a uma pessoa, mas como não há mais essa pessoa, as massas voltam à agressão contra os inimigos externos ao grupo. A energia agressiva encontra um objeto, no inimigo comum exterior ao grupo “o estudo da hostilidade de um grupo social ao outro já foi feito por Freud que viu na necessidade do grupo de manter os maus objetos, o inimigo, do lado de fora” (CABERNITE, 1976, pág. 85), e a propaganda e a informação transmitida pela mídia constroem as imagens do inimigo, os mulçumanos, os terroristas, os drogados e traficantes são os inimigos a serem odiados, eles devem ser o alvo de toda agressividade concentrada e isso é um perigo, “o perigo na constituição das massas,

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talvez o menos passível de controle, consiste no quantum de energia destrutiva que é ativada” (MARCUSE, 1998, pág. 105). Massificação e agressividade caminham lado a lado. Concluindo definitivamente, a psicanálise pode ajudar o paciente a viver com sua própria consciência e individualidade, o que pode significar recusa ao estado estabelecido, assim a força da psicanálise está na sua obsolescência, sua insistência nas necessidades e possibilidades individuais, atropeladas pelo desenvolvimento da sociedade industrial. Assim, concluo com as palavras de Marcuse “os conceitos freudianos invocam não apenas um passado que está atrás de nós, mas também um novo futuro a ser conquistado... a verdade da psicanálise consiste em manter a fidelidade as suas hipóteses mais provocadoras” (MARCUSE, 1998, pág. 110).

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Referências Bibliográficas FREUD, Sigmund. Além do princípio de Prazer. Tradução de Christiano Monteiro Oiticica. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976. FREUD, Sigmund. O Ego e o Id. Tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976. FREUD, Sigmund. Esboço de Psicanálise. Tradução de Maria Aparecida Moraes Rego. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996. FREUD, Sigmund. Psicologia de Grupo e a análise do Ego. Tradução de Jaime Salomão. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976. CABERNITE, Leão; CORRÊA, Paulo Dias. O complexo de Édipo na psicanálise e na análise de grupo. Rio de Janeiro: Imago editora LTDA, 1976. MARCUSE, Herbert. Cultura e sociedade: volume II. Tradução de Wolfgang Leo Maar, Isabel Maria Loureiro e Robespierre de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. 8°edição. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1978.

Submetido em: 12/02/2013 Aceito em: 20/11/2013

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