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May 22, 2017 | Autor: Marcelo Silva | Categoria: Plato, Platão
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Universidade de Lisboa Faculdade de Letras Departamento de Filosofia

A dialéctica na beleza e a ascensão no saber

Marcelo Forte do Carmo Silva

Realizado no âmbito da cadeira de Estética

2017


A dialéctica na beleza e a ascensão no saber A forma como um triângulo é descrito por um matemático representa a Ideia de triângulo, Ideias estas que existem num mundo abstracto que é independente do das nossas mentes. Se tentarmos recriar a nossa versão da Ideia de triângulo, esta vai ser imperfeita, não dependendo nunca da nossa habilidade para o realizar, mas sim, da nossa capacidade para reconhecer a verdadeira Ideia de triângulo. Esta ideia de Platão revela bem a sua posição mais céptica em relação à nossa capacidade de alcançar um verdadeiro conhecimento, uma vez que o mundo das aparências, isto é, aquele a que temos acesso através dos sentidos, não é fiável em si, porque os objectos resultam da aplicação imperfeita da Ideia desses mesmos objectos. Ora, se para conhecer necessitamos de um objecto de estudo constante, não me parece que os objectos correspondentes às diferentes ideias que cada um de nós tem acerca da Ideia desse objecto o sejam. Pois certamente que cada um de nós o reproduzirá conforme a lucidez da sua recordação, afectando por esta razão o objecto final. Assim sendo, e tendo consciência que o mundo das aparências nos engana, bem como os nossos sentidos, como poderemos então conhecer? Para Platão esta resposta é óbvia. O conhecimento verdadeiro e fiável só é alcançado por aqueles que recordam de forma mais lúcida a realidade acima do mundo sensível. Mas, podemos nós perguntar agora, se tenho de recordar, significa que já tive acesso a esse outro mundo, quando? Mais uma vez, a resposta de Platão vai no sentido de afirmar que antes mesmo de nascermos, já vínhamos desse outro mundo, o das Ideias. Por essa mesma razão, as Ideias não podem ser aprendidas através de um método formal, nem podem sequer ser aprendidas. As Ideias são por nós de certa forma apreendidas aquando da nossa passagem por esse mundo de permanência, e depois recordadas por nós no mundo das aparências. Se quisermos pensar nisto num caso mais prático, imaginemos alguém que deseja construir barcos como carreira profissional. Esse alguém terá ter noção da Ideia de barco, de mastro, de velas, de madeira, para depois, as projectar de forma mais fiável possível à Ideia desses objectos. O melhor construtor de barcos, para Platão, não será aquele que tem mais perícia técnica com as ferramentas necessárias à execução do objecto final, mas sim aquele que conseguir melhor recordar as Ideias que se propõem a reproduzir. Deste ponto de vista, nem toda a gente está capacitada de mesma forma para desempenhar todas as funções. Aqueles que melhor recordam a Ideia de barco, provavelmente, não serem os melhores políticos da cidade, e vice-versa. Parece haver então um certo enviesamento, segundo Platão, para sermos melhores naquilo em que recordamos melhor.

    De seguida faço a transcrição de um excerto da República que expõe a questão das Ideias Platónicas:

     “     - Meu caro Gláucon, este quadro - prossegui eu - deve agora aplicar-se a tudo quanto dissemos anteriormente, comparando o mundo visível através dos olhos à caverna da prisão, e luz da fogueira que lá existia à força do Sol. Quanto à subida ao mundo superior e à visão do que lá se encontra, se a tomares como a ascensão da alma ao mundo inteligível, não iludirás a minha expectativa, já que é teu desejo

conhecê-la. O Deus sabe se ela é verdadeira. Pois, segundo entendo, no limite do cognoscível é que se avista, a custo, a ideia de Bem; e, uma vez avistada, compreende-se que ela é para todos a causa de quanto há de justo e belo; que, no mundo visível, foi ela que criou a luz, da qual é senhora; e que, no mundo inteligível, é ela a senhora da verdade e da inteligência, e que é preciso vê-la para se ser sensato na vida particular e pública. (…)     - Mas quem fosse inteligente - redargui - lembrar-se-ia de que as perturbações visuais são duplas, e por dupla causa, da passagem da luz á sombra, e da sombra à luz. Se compreendesse que o mesmo se passa com a alma, quando visse alguma perturbada e incapaz de ver, não riria sem razão, mas reparava se ela não estaria antes ofuscada por falta de hábito, por vir de uma vida mais luminosa, ou se, por vir de uma maior ignorância a uma luz mais brilhante, não estaria deslumbrada por reflexos demasiadamente refulgentes; à primeira, deveria felicitar pelas suas condições e pelo seu género de vida; da segunda, ter compaixão e, se quisesse troçar dela, seria menos risível essa zombaria do que se se aplicasse àquela que descia do mundo luminoso.” República, 517 b-c, 518a.

Interpretando estes excertos, podemos afirmar que existe uma certa heterogeneidade entre o conhecimento intelectual e o conhecimento sensível. A isto muito se deve a própria falibilidade dos sentidos humanos de que Platão tanto desconfia. O verdadeiro conhecimento só é alcançado através da ascensão a um mundo superior ao dos sentidos, onde tudo é constante e imutável, servindo assim de princípio ou fonte de conhecimento para tudo o resto. Por esta razão podemos afirmar que o mundo sensível participa do mundo das Ideias, isto é dizer que o que nós captamos pelos sentidos no “nosso” mundo é o resultado de uma interpretação de uma determinada Ideia, logo, e uma vez que está sujeita à nossa individualidade, não corresponderá à Ideia em si mesma, mas apenas a uma interpretação nossa. Assim sendo, uma Ideia será o que une o que há de comum em entes sensivelmente diferentes, mas essencialmente semelhantes. Ou, como dizem Juan Cordon e Tomas Martinez, “ as ideias são, portanto, princípio de unidade ante a pluralidade e dispersão do universo físico.”1

Este mundo superior das Ideias está organizado hierarquicamente. Platão refere as Ideias de Justiça, de Belo, de Bondade e de Bem como sendo das mais importantes, com destaque para a ideia de Bem, que segundo afirma, é aí que tudo culmina. O Bem é a ideia primeira porque pressupõe, simultaneamente, uma fonte de conhecimento práctico e teórico: o primeiro porque faculta “as normas de toda a organização moral e política”; a segunda, porque possibilita “a captação da ordem e da estrutura de todo o real”2 .

Um dos meios que Platão utiliza para começar a ascensão às Ideias é a dialéctica. Platão utiliza o diálogo para alcançar a verdade ou para, pelo menos, se aproximar o mais possível dela. O seu diálogo é marcado ora pela ironia, da qual se aproveita para apontar incongruências no discurso daqueles que conversam consigo, ora pela maiêutica, um conjunto de perguntas e respostas que conduzirá, espera-se, à

1

História da Filosofia, Vol.1 - Dos pré-socráticos à Idade Média

2

Idem

ascensão até à verdade. Esta verdade nem sempre é alcançada e muitas vezes os diálogos acabam em aporia, isto é, num ponto em que não conseguimos progredir mais, seja por falta de conhecimento ou por se cair num paradoxo para o qual não temos resposta. Isto acontece porque para Platão a descoberta da verdade envolve um processo por etapas ascensionais até atingirmos o verdadeiro conhecimento. Uma das tarefas a que Platão dedica mais esforços é em diferenciar a opinião do senso comum da da filosofia, ou então, tentar explicar de forma mais clara os problemas que este tipo de opinião menos estruturada e ponderada levantam. A opinião comum é muitas vezes particular e específica para um determinado caso, mas isso não satisfaz Platão, para este o verdadeiro conhecimento tem de ser universal e imutável. Esta relativização comum do conhecimento pende muitas vezes para dogmas incutidos na sociedade grega do seu tempo, mas isso, muitas das vezes está longe de ser a verdade porque, o que cultiva na cultura grega poderá ser diferente do que cultiva noutras culturas e, desta forma, o objecto de conhecimento será mutável, logo, não o poderemos conhecer verdadeiramente. Esta questão cultural reflete-se depois nas nossas preferências pessoais, às quais não podemos ceder aquando da busca da verdade, pois, caso assim fosse, limitar-nos-íamos apenas àquilo a que as nossas sensações indicavam, e não a um pensamento lúcido e objectivo em relação ao objecto em causa. Para Platão, superar o mundo das crenças é muito importante uma vez que estas são provenientes do mundo das aparências, e como tal, falíveis.

Como referi já anteriormente, a Ideia de Belo é considerada como uma das mais importantes na tal rede hierarquizada das Ideias platónicas. É também uma das mais difíceis de definir e de alcançar, mas o verdadeiro sábio consegue fazê-lo. No Hípias Maior, Sócrates procura extrair do seu interlocutor o conceito universal de Belo, mas esta tentativa sai frustrada porque todas as definições atribuídas são do domínio do particular.

Para explicitar a questão do Belo cito uma fala de Diotima no Banquete:

“Aquele que até aqui foi orientado nos mistérios do amor, que contemplou as coisas belas na sua ordem correcta e progressiva, já quase no termo da iniciação amorosa, avistará de súbito um espectáculo surpreendente - o Belo na sua verdadeira natureza, esse mesmo Belo, Sócrates, que era alvo de todos os esforços passados. Uma natureza eterna, antes de mais, que não nasce nem morre, não cresce nem murcha; depois, que não é bela deste modo ou feia daquele, ou bela num momento e noutro já não, ou em determinada perspectiva, bela e feia noutra, ou bela aqui e feia acolá, de modo que uns lhe achem beleza e outros não. Mais ainda: esse Belo não lhe surgirá aos olhos sob forma de um rosto, de mãos, do que quer que pertença a um corpo; tão pouco sob forma de pensamento, de conhecimento ou de qualquer coisa existente em algo diverso dele - por exemplo, um ser vivo da terra, do céu ou de qualquer outro sítio. Pelo contrário, surgir-lhe-á em si e por si, como Forma única e eterna, da qual participam todas as outras coisas belas por um processo tal, que a geração e a destruição de outros seres em nada a aumentam ou diminuem, e em nenhum aspecto a afectam.” Banquete, 210e

Nesta obra, sentados à mesa, vários personagens propõem-se a discutir o que é o Amor. Aqui, focar-me-ei mais no discurso de Sócrates e Diotima. Diotima é quem altera a visão de Sócrates relativamente ao Amor. Começa por explicar que o Amor não é bom, nem é belo, nem é vil, nem é feio, nem é sábio, nem é ignorante. O Amor é um meiotermo entre essas posições antagónicas, isto porquê? Uma coisa que não é bela não é necessariamente feia, assim como aquele que não é sábio também não é ignorante. O Amor é um processo. É o processo de busca daquilo que ainda não sabemos ou daquilo que desejamos. O facto do Amor ter estas características pode ser explicado pela sua origem, Eros (Amor) é filho de Pobreza e de Engenho, o que lhe garante, da parte da mãe (Pobreza) ignorância e paupérie, e da parte do pai (Engenho) riqueza e conhecimento. Desta forma Eros, herdando os traços dos seus pais, não é nem pobre nem rico, nem ignorante ou sábio. Sábio nunca o poderia ser por natureza porque esses são os Deuses, e não pode ser ignorante porque tem a noção da existência da sabedoria através do seu pai. Explicitado isto, podemos identificar o que é o filósofo: aquele que não é sábio por natureza, pois não é um Deus, mas que, ainda assim, procura a sabedoria. A sabedoria é o que mais há de belo, o amado, aquilo que se procura alcançar. Mas se a sabedoria é bela e é amada, aquele que a busca, o filósofo, também é belo. Daí a preponderaria do amante em relação ao amado que Diotima ensina a Sócrates e que rompe com as visões normais do seu tempo.

Para o filósofo empreender esta busca pelo Belo, mais uma vez, tem de ascender a escala dialéctica que o levará ao que mais deseja - a contemplação do Belo. Para isso, o filósofo necessita de um mestre que o oriente nesta fase inicial da ascensão, alguém que o ajude a identificar a beleza dos corpos, mas acima de tudo, que lhe desperte o amor pela sabedoria e que desta forma o faça recusar o mundo corpóreo, para aspirar a níveis mais próximos do Divino.

Saído deste plano de beleza corpórea, o filósofo começa a despertar interesse, já não pelos belos corpos, mas sim por belas acções. Começa a haver uma maior preocupação com o Ideia primeira, o Bem. Terminada esta fase, o filósofo dá agora, talvez, o maior passo em direcção ao Belo.

Quando este se dedica ao estudo e à investigação das belas ciências, saí do mundo sensível e alcança o mundo inteligível, o tal mundo das Ideias imutáveis, das quais todos os objectos predicam no mundo sensível.

O último passo será, como é óbvio, a contemplação do Belo e de todas as outras Ideias na sua forma mais pura. Apesar da busca pela sabedoria ser um processo interminável, uma vez alcançado este patamar, o homem mortal encontra-se no ponto mais próximo possível a um Deus, sendo, de certa forma, um daemon, um ente que não é Homem nem é Deus.





Bibliografia

1.

Platão - A República. Trad. e Introdução de Maria Helena da Rocha Pereira. 14ª Edição. Edições da Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa, 2014.

2.

Platão - O Banquete. Trad. e Introdução de Maria Teresa Schiappa de Azevedo. 1ª Edição. Edições 70. Lisboa, 2016.

3.

Manuel Navarro Cordón, Juan; Calvo Martinez, Tomás - História da Filosofia. 1o Vol. Dos pré-socráticos à Idade Média. Trad. Armindo Rodrigues. Lisboa; Edições 70, 1983.

4.

Koyré, Alexandre - Introdução à leitura de Platão.Trad. Hélder Godinho. 2ª Edição. Editorial Presença. Lisboa, 1984.

5.

Guthrie, W.K.C. - Os Filósofos Gregos - De Tales a Aristóteles. Trad. Maria José Vaz Pinto. 1ª Edição. Editorial Presença. Lisboa, 1987.

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