A diáspora armênia no Brasil e no mundo

September 11, 2017 | Autor: Luis Torricelli | Categoria: Armenian History
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS

Trabalho Final:

“A diáspora armênia no Brasil e no mundo”

Aluno: Luiz Eduardo Torricelli Passarin

NºUSP: 5974329

Disciplina: FLO140 Cultura Armênia I Professor: Dra. Deize Crespin Pereira

São Paulo, 2014 -0-

Período: Vespertino

Introdução Constituindo um dos povos mais antigos do mundo, os armênios formaram a primeira civilização mesopotâmica. Oriundos possivelmente da grande migração dos indo-europeus, como os antepassados hurritas, sua constituição enquanto nação deu-se já no Reino de Urartu (séculos IX a VI a.C.). Porém desde o século XIV a.C. havia diversas pequenas nações de consanguinidade armênia que habitavam a região da Anatólia, a leste do monte Ararat, entre elas duas se destacavam por sua capacidade de aglutinação: os hais e os armens (tribos da Ásia Menor e do Cáucaso), que foram gradualmente penetrando no elemento urartiano. Dessa miscigenação surgiria a etnia armênia. Localizada entre o Mar Negro e o Mar Cáspio, a nação armênia possui uma história de muita luta, fé, sofrimento e perseverança; tanto que os armênios são um dos pouquíssimos povos da Antiguidade que sobreviveu até os dias atuais. Este trabalho visa discorrer sobre a diáspora desse povo a qual expressa tal perseverança, uma vasta dispersão armênia pelo mundo (incluindo o Brasil) impulsionada por um massacre sofrido nas mãos do Império Otomano a partir de fins do século XIX e ao longo de toda a Primeira Grande Guerra. Desse modo, o presente estudo consiste em uma sucinta análise da diáspora armênia no mundo e especificamente no Brasil, no âmbito de suas principais causas e desdobramentos.

Causa principal da diáspora: o genocídio dos armênios pelos turcos Alternando períodos de relativa independência com períodos de submissão aos impérios mais poderosos em diferentes momentos, a história do povo armênio é marcada pela chegada de sucessivos povos que cobiçavam seu território (devido à localização estratégica entre as civilizações do Oriente e Ocidente), invadiam suas terras e impunham sua cultura. Conforme se observa no breve histórico de invasões abaixo, ao longo dos séculos os armênios foram sendo comprimidos por duas ou mais potências, ora tendo seu território anexado ora reduzido. Entre os séculos sexto e quarto a.C. os persas exerceram grande influência com seu zoroastrismo, seguido dos gregos no século primeiro, quando da política de difusão da cultura helenista. Foi sob domínio grego, no reinado de Tigran, que o Reino da Armênia atingiu sua maior extensão: aproximadamente dez vezes maior que o território atual. Nos primeiros séculos d.C. os romanos dividiram com os persas politeístas o domínio cultural dos armênios, promovendo uma transição para o monoteísmo cristão. A influência religiosa romana foi tão grande que já em 301, sob comando do rei Tiridates III, a Armênia tornou-se a primeira nação cristã do mundo (antes mesmo de Roma), instituindo o cristianismo como religião oficial e convertendo as comunidades pagãs existentes através de missionários. -1-

No século X, era a vez dos impérios árabe e bizantino disputarem o território armênio. No século seguinte a conquista bizantina consolidou-se: em 1080 foi estabelecido o Reino Armênio da Cilícia no norte da Síria, que perdurou até o século XIV, marcando um período de prosperidade, riqueza literária e ocidentalização. Entre os séculos XV e XVIII, a Armênia foi dominada pelos turcos do Império Otomano e, novamente, pelos persas. No XIX, os russos também chegaram: após sua vitória na guerra russo-otomana (1877-78), a Rússia Czarista incorporou a Armênia oriental (antes dominada pela Dinastia Safávida do Irã); a Armênia ocidental permaneceria controlada pelos otomanos. Após um breve período de independência (de 1918 a 1920), a Armênia passaria por um processo de sovietização. Mas é sob domínio turco-otomano que começaria um sangrento episódio histórico: o genocídio1 de cerca de 1,5 milhão de armênios, o primeiro e mais longo do século XX. O início do genocídio armênio ocorreu a partir de alguns conflitos na década de 1890, em que a população da Armênia Turca, formada majoritariamente por agricultores e pastores, vivia sob condições de extrema pobreza (sobretudo nas províncias do interior) e sem dispor de direitos civis (uma vez que não eram considerados cidadãos), além de ser explorada tendo que pagar impostos altíssimos e diversos: “(...) vistos como meros servos, eles não tinham sequer direito à propriedade, ainda assim pagavam um número absurdo de impostos por não serem islâmicos (imposto sobre a produção agrícola, imposto sobre cada membro da família, imposto para trabalhar na terra, imposto para casar, etc.).” (HACIKYAN, 2005 apud PEREIRA, 2010, p.93). Nesse contexto, uma minoria armênia composta por banqueiros e pequenos comerciantes queria independência desse império: Sob a influência do nacionalismo europeu, esta elite intelectual vai criar movimentos que lutam pela independência do jugo estrangeiro e por reformas nas condições de vida dos armênios da Armênia Turca. Havia uma liderança tanto em Constantinopla (capital do Império Otomano) como na Armênia Russa, para melhorar as condições dos armênios nas províncias ocidentais. (PEREIRA, 2010, p.93).

Mas como resposta opressora à reivindicação de maior autonomia e mais direitos, o sultão Abdul Hamid II ordenou massacres e deportações de armênios em 1895 e 1896, ficando conhecido como o “sultão vermelho”. Com a queda de Constantinopla indicando um colapso otomano, Hamid foi deposto do poder pelos Jovens Turcos, que criaram o Comitê União e Progresso. Entretanto, juntando as tradicionais tentativas de “turquificação” do império à ideologia moderna do nacionalismo, o pacote de reformas dos Jovens Turcos em 1914 ampliou o alcance 1

Destruição metódica de um grupo étnico ou religioso pela exterminação dos seus indivíduos (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, http://www.priberam.pt/DLPO/genocidio) -2-

das políticas assimilacionistas como justificativa à intolerância religiosa, o que daria início a uma saga ainda maior desse sofrido e valente povo. Nas palavras de Heitor Loureiro: Várias cidades armênias na Turquia foram esvaziadas, seus moradores foram destituídos de seus lares e pertences. Com a alegação que estavam sendo levados para áreas seguras, longe da Guerra, os turcos levaram milhares de armênios para o meio do deserto da Síria. As famílias eram separadas, os homens mortos à baioneta, as mulheres eram violentadas, as grávidas tinham seus filhos retirados do ventre pelas espadas turcas, os bebês e crianças de colo eram jogados no rio Eufrates ou eram arremessados contra pedras até falecerem. (...) Com as caminhadas de quilômetros pelo deserto, sem água ou comida, morrendo pelos mais diversos e dolorosos meios, os armênios foram sendo riscados do mapa. A comunidade internacional estava voltada para a Primeira Guerra Mundial que destruía a Europa. Os turcos tinham o momento certo para eliminar o “vírus armênio” que estava dentro do corpo do Império. (LOUREIRO, 2007).

Esse genocídio atingiu seu ápice em 1915 com o assassinato de 200 intelectuais armênios em Constantinopla, num plano premeditado e sistematicamente executado, visando eliminar as lideranças que poderiam organizar alguma resistência. A matança dos armênios durou cerca de três décadas, estendendo-se até o ano de 1923. Com a esperança de se salvarem, famílias inteiras fugiram a pé para a Rússia; outros muitos tomaram navios para a Europa, e de lá também para outras partes do mundo, espalhando-se pelos cinco continentes. Assim, para além das motivações individuais e econômicas que podem ser causas de movimentos migratórios em todo o mundo, no caso da diáspora armênia (que será tratada a seguir) a principal causa foi a fuga da Armênia Turca entre o final do século XIX e as primeiras décadas do XX devido ao genocídio.

Diáspora armênia e identidade Na história milenar da nação armênia, houve vários momentos considerados diaspóricos, sendo o primeiro no século XI, rumo à Cilícia. Nos séculos XVII e XVIII, começa o movimento em larga escala para a Europa, como consequência de dominações e perseguições. Segundo Mônica Marcarian (2008, p.110), cidades como Amsterdã, Londres e Marselha possuem até hoje igrejas construídas naquela época, símbolos eternos da passagem deste povo cristão; também na Ásia existem registros de forte presença armênia. Mas é a partir do início das matanças sistemáticas de armênios no ano de 1895 que o movimento diaspórico se intensifica, especialmente para os Estados Unidos da América.

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Os sobreviventes dos massacres, agrupados em campos de refugiados sob a bandeira da Liga das Nações ou em orfanatos mantidos em geral pelas Igrejas Cristãs protestantes, viviam em situação precária, esperando pela oportunidade de emigrar. Além dessa população desenraizada, os armênios que moravam em diversos pontos do antigo Império Otomano começam a emigrar maciçamente, temendo novos massacres e fugindo não só da turbulência política e econômica, como também do serviço militar obrigatório no exército turco, que acabava de instituir a conscrição universal. (GRÜN, 1992, p.17). Desse modo, a diáspora armênia é originária principalmente de refugiados e exilados que escaparam do genocídio de seu povo entre 1895 e 1923. A maior parte dos armênios sobreviventes do genocídio foi acolhida na França e nos Estados Unidos, além de uma parcela menor que emigrou para a América do Sul, sendo a Argentina o país mais procurado, seguido do Brasil. Podem-se identificar cinco regiões principais da população armênia mundial: Oriente Próximo (Síria, Líbano, Irã, Grécia, Chipre, Egito e Israel), França, Rússia, América Anglo-Saxônica (Estados Unidos e Canadá) e América Latina (Argentina, Brasil, Uruguai, Chile, Venezuela e México).

Figura 1: Mapa da diáspora armênia (http://en.wikipedia.org/wiki/Armenian_diaspora)

O mapa acima mostra números estimados da etnia armênia pelo mundo. Observa-se que além dos armênios étnicos que habitam os países fronteiriços da atual Armênia (Turquia a oeste, Azerbaijão a leste, Geórgia ao norte e Irã ao sul), há uma população de mais de um milhão na Rússia e nos EUA, entre 100 e 500 mil na França e Ucrânia, 50 a 100 mil na Síria e no Líbano, além de Argentina, Alemanha, Canadá e Austrália, e entre 20 e 50 mil no Brasil e na Espanha. Apesar da variação das fontes, estima-se que a população total da diáspora (armênios e descendentes) gira em torno de quatro milhões. Somando-se os cerca de três milhões e meio de habitantes da Armênia propriamente dita - onde não há censo demográfico, temos uma estimativa entre 7 e 8 milhões de pessoas de origem armênia no planeta. -4-

Entre os habitantes da diáspora, uma complexa questão identitária passa a permear. Analisemos então a identidade armênia sob a luz da obra A identidade cultural na pós-modernidade, do sociólogo Stuart Hall, cuja tese central é a de que as identidades modernas estão sendo fragmentadas, “descentradas” do sujeito que perde uma identidade unificada e estável e passa a adquirir várias identidades, por vezes contraditórias ou não-resolvidas, revelando um processo de identificação que “tornou-se mais provisório, variável e problemático” (HALL, 2005, p.12). Ao discorrer sobre as identidades culturais em geral, Hall analisa os aspectos que surgem de nosso “pertencimento” a culturas étnicas, raciais, linguísticas, religiosas e, acima de tudo, nacionais. Afirma que há três elementos constituintes de uma cultura nacional enquanto “comunidade imaginada”: o desejo por viver em conjunto, as memórias do passado e a perpetuação da herança (HALL, 2005, p.58). Particularmente os dois últimos parecem bastante aplicáveis à identidade dos armênios e descendentes espalhados pelo mundo após a grande diáspora no início do século XX. O autor insere o caso da nação armênia no quadro geral de ressurgimento do nacionalismo na Europa Oriental, após o colapso da extinta União Soviética e dos regimes socialistas antes pertencentes ao seu território: A ambição para criar novos e unificados estados-nação (...) tem sido a força impulsionadora por detrás de movimentos separatistas nos estados bálticos da Estônia, Letônia e Lituânia, da desintegração da Iugoslávia e do movimento de independência de muitas das antigas repúblicas soviéticas (da Geórgia, Ucrânia, Rússia e Armênia até o Curdistão, Uzbequistão e as repúblicas asiáticas islâmicas do antigo estado soviético). (HALL, 2005, p.93).

Segundo Hall, esse “revival” do nacionalismo étnico alimentou-se de ideias tanto de pureza racial quanto de ortodoxia religiosa, aparecendo como fortes tentativas de se reconstruírem identidades purificadas para se restaurar a coesão, o “fechamento” e a tradição, frente ao hibridismo e à diversidade de uma era em que a integração regional nos campos econômico e político e a dissolução da soberania nacional caminham muito rapidamente na Europa Ocidental. A chamada crise de identidade é concebida por Hall como parte de um processo mais amplo de mudança que “está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social.” (HALL, 2005, p.7). Para o referido autor, todas as identidades estão localizadas no espaço e no tempo simbólicos, possuindo o que Said (1990 apud HALL, 2005) denomina geografias imaginárias: suas paisagens características e seu senso de “lugar” ou “casa” (referências espaciais) e tradições inventadas que ligam passado e presente em mitos de origem que projetam o presente de volta ao passado, em narrativas de -5-

nação que conectam o indivíduo a eventos históricos nacionais mais amplos e importantes (referências temporais). No caso armênio, essas referências espaciais remetem à língua armênia (que possui alfabeto próprio) e à religião cristã (a Igreja Apostólica Armênia é o movimento cristão mais antigo do mundo), dois pilares da identidade cultural desse povo que lhes permite certa resistência à assimilação nos países da diáspora. No que tange as referências temporais, a memória do genocídio e a luta por seu reconhecimento internacional parece constituir a base da questão armênia.

Armênios no Brasil O Brasil foi o segundo país que mais recebeu imigrantes armênios na América do Sul e o quarto nas Américas, após EUA, Canadá e Argentina. Com uma população armênia estimada de 40, 50 ou 70 mil dependendo da fonte, o Brasil possui uma das menores populações dessa diáspora; contudo, figura entre os 20 países acolhedores com a maior população armênia do mundo. Segundo Vartanian (1948 apud MARCARIAN, 2008), o início da formação da coletividade armênia no Brasil data já do final do século XIX, quando a família Gasparian chega a São Paulo. Seu patriarca Gaspar Gasparian, que chegou sozinho e foi trazendo os familiares, deu início à Comunidade Armênia do Brasil. Hoje essa população se concentra nos estados de São Paulo (sobretudo na capital paulista) e Rio de Janeiro. Mas há colônias armênias também no Ceará, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Distrito Federal. De acordo com Roberto Grün (1992), podem-se registrar duas fases de imigração armênia no Brasil. A primeira, pouco documentada, data do fim do século XIX quando vinham com o alvo principal de trabalhar nas obras dos portos do Rio de Janeiro e de Santos, na época em fase de remodelação. Boa parte desses pioneiros dedicou-se ao comércio ambulante e alguns constituíram indústrias, como o Lanifício Varam, Gasparian & Fileppo (das tradicionais famílias Keutenedjian e Gasparian). “Essa primeira leva de imigrantes se confunde facilmente com a dos sírios e libaneses, quer pela trajetória ocupacional, quer pelo seu pequeno número, quer ainda pelos costumes pouco diferenciados aos olhos dos nacionais.” (GRÜN, 1992, p.19). A segunda fase tem como marco bem definido a primeira metade dos anos 1920, quando aportou em Santos a maioria dos armênios que se fixaram no Brasil, os quais eram, em grande parte, sobreviventes dos massacres. Eles foram recebidos por seus antecessores da primeira leva, que estavam formando organismos de ajuda aos recém-chegados, fundamentalmente em torno da Igreja Apostólica, com destaque para o Conselho dos Quarenta, que reunia os principais integrantes da colônia engajados nessa ação comunitária. “Através da indicação do Conselho, a -6-

maior parte dos recém-chegados estabeleceu-se nas regiões do Mercado Municipal de São Paulo e na zona norte da cidade, em Santana e no Imirim. Um número menor de armênios foi para o distrito de Presidente Altino, numa região que mais tarde se transformou em parte do município de Osasco.” (GRÜN, 1992, p.22). Em concordância com Grün, Marcarian também destaca a década de 1920 como o período da chegada dos maiores contingentes de armênios ao Brasil: A Diáspora armênia no Brasil se formou, verdadeiramente, no período de 1924 a 1926 quando um grande número de imigrantes provenientes da Síria, Líbano, Egito e Turquia aportou em terras brasileiras. Eles eram sobreviventes do Genocídio Armênio de 1915 e num primeiro momento tinham conseguido refúgio nos orfanatos, hospitais e casas comunitárias mantidas por organizações armênias fundadas especialmente para dar abrigo e alimentar os armênios, estabelecidas em cidades como Beirute, Cairo, Jerusalém, Aleppo, Damasco. Esses imigrantes vieram com documentos sírios, libaneses, gregos, egípcios, turcos, ou mesmo com o passaporte nanseniano2. Na verdade, o destino de muitos não tinha sido sequer escolhido, era apenas a certeza de ir para a América, terra nova, de oportunidades, e não necessariamente ao Brasil (...) (MARCARIAN, 2008, p.110-11).

A grande maioria desses imigrantes rumou para São Paulo, atraídos pelas oportunidades de emprego na cidade. Embora muitos tenham atingido ascensão social, no começo viviam em condições precárias, habitando cortiços (juntamente com outros imigrantes pobres de origem portuguesa, espanhola, italiana e japonesa) e atuando em profissões diferentes de sua formação. A necessidade de manter tradições, costumes e língua milenares, de fortalecer o sentimento de armenidade nas gerações nascidas na diáspora, foi e é ponto de extrema importância para os armênios. Por isso preocuparam-se em manter escolas e igrejas, cursos de língua armênia e instituições beneficentes, culturais e regionais. (MARCARIAN, 2008, p.112). Segundo Grün, na condição de São Paulo “pátria de imigrantes”, as etnias que aqui viviam tendiam a reagir a pretensões de assimilação por parte da ideologia do governo brasileiro, através da criação de fronteiras simbólicas que os separassem dos grupos de indivíduos considerados como seus vizinhos no imaginário local. No caso dos armênios, as fronteiras que deviam ser demarcadas eram os brasileiros de um lado e os turcos de outro. Diferentemente dos brasileiros, os armênios recém-chegados se viam como muito trabalhadores, honestos, rigorosamente cristãos e cultuavam os valores familiares. Ao contrário dos turcos, seus opressores seculares, eles eram cristãos e, mais do que isso, o primeiro povo cristianizado do mundo (...) (GRÜN, 1992, p.27).

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Documento de autorização internacional expedido especialmente para sobreviventes do genocídio que não possuíam nenhum tipo de documento pessoal. O nome vem de seu criador, Fridtjorf Nansen. -7-

O “não ser turco” contextualizado no Brasil acaba virando um mais matizado “não ser nem sírio, nem libanês, nem judeu”, já que tais grupos correspondiam genericamente à figura do turco no imaginário brasileiro. Além disso, esse conjunto de etnias de história e tradições diferentes era confundido facilmente em São Paulo por causa de sua inserção econômica semelhante. (GRÜN, 1992, p.29).

No que se refere à inserção econômica mencionada acima, era o setor comercial a principal atividade econômica dos armênios e demais etnias do Oriente Médio que migraram para São Paulo. Os armênios paulistas destacaram-se no ramo dos calçados e, na verdade, muitos dos que se tornaram abastados fizeram fortuna dedicando-se à indústria calçadista. Num primeiro momento, o processo de ajuda mútua operante na colônia acabava direcionando os armênios para o ramo dos calçados; uma vez consolidada a posição do núcleo de negociantes nas sapatarias, desenvolvem-se os mecanismos de socialização étnicos que conduzem as novas gerações a manter a especialização. O autor levanta duas hipóteses para explicar essa concentração dos armênios no ramo: “a primeira delas seria uma possível especialização que acompanhou os armênios desde sua terra natal até o Brasil, e a segunda, o singelo aproveitamento de uma oportunidade, de um vazio existente na sociedade urbana paulista em formação.” (GRÜN, 1992, p.92). A grandeza que os armênios se auto-atribuíam era devido a esse sucesso comercial, por sua habilidade supostamente superior nos negócios, o que Grün denomina capitalismo étnico. Apesar de os armênios de Osasco e do interior paulista terem se estabelecido como criadores de gado leiteiro, as necessidades de auto-afirmação desses imigrantes no estado de São Paulo produz e valoriza positivamente uma identificação de qualidades sociais ligadas ao ramo dos calçados, por onde transitam as pretensões de diferenciação das classes médias não tradicionais, criando os suportes ideológicos que dão sentido às novas maneiras de se ocupar posições médias e altas na hierarquia social paulista. Nas palavras do autor: A rede de “sapateiros” que serviu de suporte para o estudo da etnia armênia nos mostrou um aspecto daquele processo de alcance mais geral, da criação de um espírito empreendedor que impulsiona os imigrantes e seus descendentes rumo a posições cada vez mais altas da estrutura social. Se em todas as sociedades urbanas industriais existem ou acabam aparecendo classes médias, nas condições da São Paulo “Terra do Café”, que começa a virar também a Pátria dos Imigrantes, essas posições sociais acabam marcadas pelos aportes das diversas etnias. Nos limites dados pela plasticidade das posições médias na sociedade, a criação das categorias de pensamento que referendam essas posições se constroem paralelamente à sua criação “efetiva”, a partir dos substratos ideológicos gerados pelas estratégias de criação e de manutenção de identidade dos imigrantes e de seus descendentes (...) (GRÜN, 1992, p.94). -8-

Porém, com o passar das gerações a “aculturação” e “assimilação” dos armênios na sociedade brasileira aumentou consideravelmente. Mais escolarizados e expostos aos códigos de conduta vigentes na sociedade multiétnica brasileira, os jovens da terceira geração tendem não só a diversificar suas atuações econômicas mas também a se casarem fora da colônia; essa “tendência desagregadora” é vista como um grande problema pelos antepassados, os quais alegam um enfraquecimento da continuidade da colônia armênia no Brasil. Se a segunda geração, já nascida em território estrangeiro, habituou-se ao biculturalismo, a primeira (composta por sobreviventes do genocídio e membros proeminentes da colônia) encontra dificuldades em controlar a homogamia étnica, as práticas religiosas e o conhecimento da língua-mãe de seus descendentes, em um contexto em que o pluralismo se acelera e o crescente processo de formação de identidades ganha complexidade, conforme ressaltou Hall. (...) Assimilação, como o pólo negativo de uma contraposição com o genuíno da etnia, foi e continua sendo usada no interior dos sistemas conceituais empregados pelos grandes das colônias e pelos membros das velhas gerações de um modo geral, para exprimir o repúdio às tentativas, demasiadamente rápidas, de integração na sociedade inclusiva, configurando-se assim como um instrumento de continuidade da dominação patriarcal sobre a conduta dos jovens e dos desviantes das colônias de maneira geral. (GRÜN, 1992, p.83-4).

Essa resistência à assimilação através da imposição da cultura religiosa do cristianismo apostólico, do conhecimento da língua e cultura armênias e da homogamia étnica por parte dos antepassados fundadores das colônias e suas instituições expressa, no limite, um racismo armênio. Entretanto, vale destacar que a literatura e a história mostram que o povo armênio é grato às nações que o ajudaram: “hoje, após tantas décadas, a comunidade mostra, por meio da cultura, da língua e do trabalho, que é grata ao Brasil que acolheu seus pais e avós e lhes deu oportunidade de progredir. A melhor forma que encontra para expressar sua gratidão é servir à pátria brasileira com dedicação.” (MARCARIAN, 2008, p. 114). Ademais, tal preocupação em transmitir a cultura e os costumes entre os descendentes também expressa uma tentativa de manter viva a memória do genocídio dessa civilização milenar, perpetuando a sofrida luta e a superação de um povo guerreiro, cuja sobrevivência lhes permite estar hoje contando sua história para todos. Assim, apesar de todas as contradições envolvidas nas ideias nacionalistas, há que se reconhecer que a Questão Armênia não é exclusivamente dessa nação, mas sim de qualquer pessoa que tenha compromisso com a verdade e com os direitos humanos. Desta forma, a Armênia una e única, a que sofreu o Genocídio e a República nova, livre e próspera, reflete hoje com muito orgulho sobre a sua identidade. E o faz com muita esperança. (...) Que esta esperança, artisticamente inscrita na mais profunda -9-

tradição cultural armênia, seja também a nossa, aqui e agora. Esperança de vida, de liberdade e de paz. (MARTINS, 2007, p.7).

Considerações Finais Ao analisar o contexto histórico da diáspora armênia, este breve estudo tratou do genocídio sofrido por esse povo em decorrência da intolerância dos turcootomanos com as minorias étnicas e religiosas de seu império enquanto impulso para uma migração forçada em busca de paz e prosperidade, em terras muitas vezes não escolhidas mas que os acolheriam e lhes garantiriam uma vida sem perseguições e com oportunidades econômicas. Tratou-se também de expor um panorama geral dos armênios da diáspora e, mais especificamente, dos que se estabeleceram no Brasil, contribuindo na composição de nossa sociedade multiétnica. A vida dos armênios no Brasil (uma das dezenas de nações que receberam esses imigrantes) revela, sobretudo no Estado de São Paulo, uma rápida integração econômica desse povo ao longo do processo de urbanização paulista e brasileiro. Mas se a integração econômica armênia ocorreu já na primeira geração, a cultural deu-se mais lentamente: somente a terceira geração assimilou “valores brasileiros” mais significativamente, apesar de forte resistência da colônia. Finalmente, essa cultura rica e antiga deve sim ser estudada e lembrada, dado o grande legado armênio para a humanidade: a força da esperança e do desejo de paz.

Referências Bibliográficas Anotações de aula da disciplina Cultura Armênia I. GRÜN, Roberto. Negócios e famílias: armênios em São Paulo. São Paulo, Sumaré, 1992. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A, 2005. LOUREIRO, Heitor. Alusivo à História da Armênia, em razão do 92º aniversário do Genocídio. Câmara Municipal de Fortaleza, 24 de abril de 2007. MARCARIAN, Mônica Nalbandian. Diáspora armênia no Brasil, in: Revista de Estudos Orientais, nº6, pp.109-115. São Paulo, 2008. MARTINS, Antônio H. C. O genocídio da primeira nação inteiramente cristã, in: Revista Ética e Filosofia Política, nº1, vol.10. Juiz de Fora, 2007. PEREIRA, Deize Crespin. O genocídio armênio e seus reflexos na literatura, in: Revista de Estudos Orientais, nº8, pp.91-105. São Paulo, 2010. - 10 -

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