A Dicotomia da Multipolaridade

July 24, 2017 | Autor: Gabriela Cruz | Categoria: International Relations, International Security, Multipolarity
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A DICOTOMIA DA MULTIPOLARIDADE: FONTE DE PAZ OU CONFLITO? Gabriela Cruz*

RESUMO

O presente trabalho busca identificar, por meio de uma comparação histórica, os efeitos promovidos pela multipolaridade do Sistema Internacional. Defende-se a ideia de que o processo de multipolarização pode promover dois resultados diferentes: a promoção da paz, por meio do desenvolvimento das relações de cooperação e interdependência; ou o surgimento de conflito entre os países, devido ao choque de interesses entre os mesmos, provocando, dessa forma, o aumento da instabilidade internacional. Dentre as teorias das Relações Internacionais, os argumentos realistas e liberais ilustram posicionamentos opostos em relação ao impacto do surgimento de múltiplos atores e potências no cenário mundial, possibilitando o desenvolvimento de diferentes análises sobre a distribuição internacional de poderes. Palavras-chave: multipolaridade, segurança internacional, paz mundial, conflito.

INTRODUÇÃO

A questão da multipolaridade sempre dividiu pesquisadores e teóricos no estudo das relações entre os países. Entretanto, o que entende-se por multipolaridade? Para a finalidade desse trabalho, adotaremos como referência o conceito de Bobbio para Policentrismo (similar a multipolarismo, como o próprio autor assinala):

“A expressão Policentrismo é usada tanto quando se faz referência ao fenômeno da crise da liderança ideológica da URSS dentro do sistema de Estados de regime comunista e do movimento comunista internacional, quanto para indicar uma ordem do sistema internacional diversa do sistema bipolar. [...] No plano descritivo, fala-se de Policentrismo para indicar o resultado da progressiva decomposição do sistema bipolar. [...] Esta situação entrou em crise no decorrer dos anos 60 e 70, com o surgir de novos "centros" ou "pólos" (daí a expressão "multipolarismo", preferida, em geral,

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Bacharel em Relações Internacionais pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Atualmente, trabalha na Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil). Contato: [email protected], br.linkedin.com/pub/gabriela-cruz/92/793/923/.

2 pelos estudiosos de relações internacionais), mais ou menos eficazmente autônomos em relação às superpotências”1.

O autor vincula o conceito ao contexto específico da Guerra Fria, para indicar uma configuração da ordem mundial diferente da bipolar. Entretanto, durante o decorrer deste trabalho, utilizaremos esse conceito de maneira mais ampla, sem limitá-lo a nenhum período histórico específico. Dessa forma, temos que multipolarismo, ou multipolaridade, representa uma configuração na distribuição de poder entre os atores internacionais onde três ou mais ocupam lugares centrais, com certa autonomia em relação aos outros atores. Em relação à dicotomia da multipolaridade, serão analisados dois períodos históricos em específico. Para um, a consequência da multiplicidade de potências promoveu resultados negativos; para o outro, positivos. No primeiro cenário buscar-se-á identificar como o desequilíbrio na balança de poder europeia, no início do século XX, resultou na I Guerra Mundial. As políticas expansionistas adotadas pelas potências ocasionaram disputas cada vem mais intensas sobre o controle de territórios. O início dos conflitos reduziu o avanço do desenvolvimento da produção industrial e do comércio internacional, intensificadas após a Revolução Industrial inglesa. No segundo, consideraremos o período após o final da Guerra Fria. Durante os anos seguintes à 1991, observou-se o desenvolvimento e crescimento do número de Organizações Internacionais, a adoção de tratamentos diferenciados aos países em desenvolvimento e em menor desenvolvimento relativo, a ampliação de programas de cooperação horizontais e verticais, etc. Em suma, a diversificação dos atores no sistema internacional e o crescimento de outros, que adquiriram cada vez mais capacidade de oposição aos interesses das potências tradicionais. Atualmente a definição do impacto da multipolaridade é mais subjetiva. Pode-se argumentar que a complexidade das relações entre os países contribui para manutenção de relativa estabilidade. Por outro lado, a existência de muitas potências no cenário internacional pode levar ao surgimento de controvérsias entre as mesmas. Também estamos sujeitos à atuação de grupos extremistas independentes, como, por exemplo, as FARC e o Estado Islâmico (EI), que não representam um Estado, nem uma Organização Internacional. As ameaças à paz mundial são múltiplas: existência de vários países com posse de armas nucleares, condução de atividades 1

BOBBIO, Norberto et al. Dicionário de Política. 11ª Edição. Brasília: Editora UnB, 1998. p. 943.

3 de espionagem entre os países, adoção de políticas unilaterais cada vez mais autoritárias e agressivas, formação de grupos terroristas, entre outras. Como embasamento teórico para os argumentos a serem desenvolvidos ao longo do texto, utilizaremos como referência duas das teorias clássicas das Relações Internacionais; realismo e liberalismo. As correntes teóricas mencionadas possuem análises opostas em relação a estruturação e funcionamento dos indivíduos e dos Estados. As diferenças são observadas logo no início, pois ambas partem de princípios contrários em relação a natureza do homem, que representa a base para o desenvolvimento de toda a corrente de pensamento. Dado o exposto, pretende-se evidenciar diferentes maneiras de analisar o processo de multipolarização no sistema internacional. Para tanto, serão apresentados os princípios mais importantes referentes a cada uma das correntes a serem utilizadas, e, em seguida, a contextualização dos períodos analisados.

1 A Perspectiva Realista

A teoria realista das Relações Internacionais decorre principalmente do pensamento de Maquiavel (1469 – 1527), importante pensador renascentista italiano. Sua principal obra, “O Príncipe”2, descreve os mecanismos necessários para que um soberano conduza seu governo. Ele defende, como elemento principal, a centralização do poder político como a melhor alternativa de administração do Estado. Destaca a importância de organização de um exército próprio, mantido pelo Estado, como forma de garantir a segurança, e não o emprego de mercenários (comandantes de milícias independentes que trabalhavam para qualquer Estado disposto a contratá-lo), prática muito comum durante a Idade Média. Outro importante filósofo do pensamento realista foi Thomas Hobbes3, sua principal contribuição reside na definição da natureza humana como sendo egoísta e violenta. O surgimento da sociedade e do Estado dependeria da concessão de grande parte das liberdades individuais em troca de proteção. O governante é o responsável por evitar guerras, que representa a condição do homem no seu Estado de Natureza. Para tanto, são delegados ao

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MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Florença, 1513. Disponível em . Acesso em 01 out. 2014. 3 HOBBES, Thomas. O Leviatã. Londres, 1651. Disponível em . Acesso em 06 out. 2014.

4 soberano poderes que restringem direitos dos cidadãos. A legitimidade do governante só é questionada se o mesmo falhar em garantir a proteção de sua população. O Estado é comparado ao Leviatã, monstro mitológico assombrador que amedrontava navegantes protegendo outros animais marinhos, o papel do governo era evitar as invasões bárbaras, protegendo assim sua população. As principais características da teoria realista destacadas por Nogueria e Messari 4 são as seguintes: sobrevivência, poder, auto ajuda e anarquia. Para os realistas clássicos, os Estados são os únicos atores do sistema internacional, e vivem em anarquia, uma vez que são soberanos. Seu comportamento será sempre direcionado para a manutenção de sua sobrevivência e aquisição de mais poder em relação aos outros. O posicionamento e alianças aderidos podem ser alterados de acordo com cada situação, segundo o interesse próprio de cada um, funcionendo em um modelo de auto ajuda. A segurança é uma questão central para essa corrente teórica, representa a preocupação central do governo. Em decorrência da anarquia internacional, e do comportamento individualista dos Estados, a desconfiança de todos contra todos é uma constante. Em razão disso, é importante manter a capacidade militar não inferior à dos outros países. Nesse sentido, a multipolaridade não garantiria a paz internacional. Por não agirem cooperativamente, as potências estariam sempre buscando aumentar seu poder em relação às outras. Entre os países periféricos, a busca por um posicionamento mais favorável tornaria o cenário ainda mais instável, uma vez que todos buscam o mesmo objetivo. Entretanto, assim como todas as outras teorias, o realismo possui algumas limitações. O avanço das Organizações Internacionais e o contínuo empoderamento e atuação da Sociedade Civil colocou em questionamento a exclusividade dos Estados como atores das Relações Internacionais. Adicionalmente, o aumento das relações de cooperação, bilaterais e multilaterais, confronta a ideia de que o comportamento dos países é exclusivamente motivado por interesses próprios. Como expõe John J. Mearsheimer5, os teóricos realistas defendem o argumento de que as instituições internacionais (Organizações Internacionais, Organizações Não Governamentais Internacionais, Blocos Regionais, Empresas Multinacionais e Transnacionais, etc.) refletem a 4

MESSARI, Nizar & NOGUEIRA, João Pontes. Teoria das Relações Internacionais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. 5 MEARSHEIMER, John J. The False Promise of International Institutions. International Security, vol. 19, nº 3 (inverno 1994/1995), p. 5-49.

5 distribuição de poder do sistema internacional. Os Estados a utilizam como instrumento para alcançar seus objetivos. A desconfiança é predominante, as alianças e relações de cooperação são temporárias, e depende dos interesses de cada uma das partes naquele momento especifico, sobre um tema determinado. Em alternativa à visão realista, a corrente liberal fornece uma interpretação diferenciada da organização e funcionamento do sistema internacional. Como veremos a seguir, ela proporciona uma análise mais otimista em relação ao comportamento e interesses dos Estados, e prevê a manutenção da paz por meio da cooperação e das instituições.

2 A Perspectiva Liberal

O pensamento liberal tem como o seu principal tema a liberdade. Os principais precursores dessa corrente foram Hugo Grotius (1583 – 1645), e Immanuel Kant (1724 – 1804). Grotius, ao desenvolver sua filosofia sobre o Direito Internacional, defendia a ideia de que todos os Estados estão sujeitos ao Direito Natural, que é inerente ao homem, compreende princípios morais e noções sobre o que é justo e injusto, certo ou errado. Por sua vez, a contribuição de Kant consiste na relevância da Filosofia Moral. Segundo ela, o indivíduo é livre ao obedecer as leis que ele próprio elabora, por isso é fundamental a participação e representação eficiente dos cidadãos nos processos de elaboração. Para garantir a obediência às leis, é necessário que os indivíduos subordinados a ela a aceitem, concordando com suas definições. Kant argumentava que, mesmo não possuindo poder coercitivo, o Direito Natural seria respeitado devido ao “imperativo ético”, também inerente aos seres humano. Outro aspecto muito defendido pela corrente liberal é a importância desempenhada pelo comércio internacional na manutenção da paz mundial. Um dos principais precursores dessa ideia foi Adam Smith, e a defesa da manutenção de um comércio livre de barreiras, que possibilitaria ganhos mútuos pelos Estados, pois cada um se especializaria naquilo em que possui vantagem absoluta em relação aos outros países. Nesse sentido, Woodrow Wilson (1856 – 1924) – presidente dos EUA de 1912 à 1921 – ao final da I Guerra Mundial, apresentou 14 pontos para manutenção da paz, em 1918. Entre eles estava prevista a criação de uma organização onde os Estados pudessem estabelecer discussões e negociações, de maneira a evitar novas Guerras. Defendia, também, a importância da

6 intensificação das relações comerciais internacionais, por meio da remoção de barreiras e respeito aos pactos internacionais. Dessa forma, seria possível estabelecer uma rede de interdependência entre os Estados, aumentando os níveis de confiança e cooperação entre eles. Mais recentemente, Keohane6, defensor do institucionalismo, argumenta que as instituições internacionais desempenham grande importância no estabelecimento da estabilidade e paz mundiais. Para o autor, a existência dessas organizações reduz a desconfiança entre os países, criando condições mais favoráveis para estabelecimento de relações de cooperação. Adicionalmente, reduzem os custos de transação, uma vez que as intenções dos Estados e as informações são mais acessíveis. Os novos teóricos liberais têm se preocupado cada vez mais com o tema da justiça, juntamente com a defesa da liberdade. O problema da desigualdade é, recorrentemente, assunto central nas discussões político-econômicas atuais. John Rawls (1921 – 2002) é um dos expoentes dessa tendência, propõe a teoria da justiça, responsável por gerar muitos debates no ambiente acadêmico. Oliver Nay7, ao apresentar as ideias de Rawls, identifica, dentro da teoria da justiça, a necessidade de uma distribuição mais justa das riquezas, apesar de não ser a favor de uma distribuição igualitária. A teoria da Rawls supõe que todos os indivíduos possuam as mesmas condições no princípio, pois o exercício das liberdades está condicionado ao posicionamento social dos sujeitos. Para a viabilidade da aplicação de sua teoria nas sociedades reais, Rawls admite a necessidade das pessoas partirem do “véu da ignorância”, que consiste no desconhecimento de sua posição social e econômica dentro da sociedade, para que assumam condições iniciais justas. Outra condição essencial é o reconhecimento do dever de civilidade, segundo a qual cada cidadão deve possuir consciência de seu papel para construção de uma sociedade livre e justa. Dado o exposto, percebe-se que, para os liberais, o sistema internacional é composto por mais atores além dos Estados, como as Organizações Internacionais, Organizações NãoGovernamentais Internacionais, e, mais recentemente o indivíduo (principalmente após a resolução da Corte Interamericana de Justiça de 2001, que permite participação direta dos

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KEOHANE, R. O. After Hegemony: cooperation and discord in the world political economy. Princeton, Princeton University Press, 1984. 7 NAY, Oliver. História das idéias políticas. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2007.

7 indivíduos nos procedimentos da organização). Todas esses possuem um papel relevante na construção de um ambiente pacífico, cooperativo e justo. 3 A Primeira Guerra Mundial

Como apresentado no início desse trabalho, seguiremos nosso raciocínio com a exposição de dois momentos históricos que possibilitam interpretações diversas sobre o papel da multipolaridade no Sistema Internacional. Um dos pontos principais de reflexão dentro das teorias de Relações Internacionais é a manutenção da paz mundial. As Organizações Internacionais, em sua maioria, também têm a paz como objetivo central para suas atuações. Antes de 1914, o mundo nunca antes tinha vivenciado um conflito nas proporções da I Guerra Mundial. O resultado da guerra prejudicou a economia, os governos, e a sociedade profundamente. Posteriormente, a possibilidade de novos conflitos, com impacto igual ou maior, passou a assombrar os países. Tomando como base a análise desenvolvida por Hobsbawm8 do que ele próprio interpreta o “longo século XIX”, temos um período em que o mundo passa por um processo de transformação política, econômica e social. Essas mudanças configuram o cenário que dá início ao último século do milênio. No final do século XIX e início do século XX evidenciamos a desconfiguração da ordem mundial existente até a I Guerra Mundial; a transformação da economia pós Revolução Industrial, que nunca mais voltou aos níveis de produção antecedentes; o desenvolvimento da capacidade das sociedades se organizarem e mobilizarem, se tornando capazes de derrubar até mesmo Impérios centenários, como na Revolução de Outubro, em 1917. Após a depressão do final da década de 1870 – provocada pelo avanço exponencial da produção, possibilitado pela Revolução Industrial, sem uma elevação proporcional do consumo – os Estados passam a possuir economias rivais, pois não direcionavam mais seus fatores produtivos para aquilo em que tinham vantagem. Entre 1875 e 1914, os Estados iniciaram a busca pelo aumento e desenvolvimento de suas capacidades de produção industrial, sob uma forte influência de teorias nacionalistas. Esse cenário possibilitou a ampliação das bases industriais do mundo, e o surgimento de economias cada vez mais fortes.

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HOBSBAWM, Eric J. A Era dos Impérios 1875 - 1914. 16ª Ed. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2013.

8 Outra tendência observada nesse período foi a crescente democratização dos governos. Essa tendência ameaçava a unidade política e estabilidade econômica dos Estados. Com a inserção das massas na política, os sistemas de alianças entre os setores empresarial e industrial com o governo se tornavam mais complicadas, uma vez que colidiam com os interesses sociais. A adoção do parlamentarismo ou repúblicas democráticas foi a alternativa mais utilizada na gestão do aumento da participação popular. Seguindo na narrativa de Hobsbawm sobre o “longo século XIX”, são identificados dois principais motivos que deram origem à I Guerra Mundial: o desequilíbrio da balança de poder na Europa, e a adoção de políticas de expansão imperialista por parte das potências. O desenvolvimento das economias capitalistas ampliou a rivalidade entre as nações, possuidoras de interesses que se chocavam. O desenvolvimento de marinhas de outros países, colocou em cheque a supremacia britânica (pax britannica), que dependia enormemente do controle dos fluxos marítimos para consolidação dos seus interesses. Os ingleses, até meados do século XIX, possuíam uma marinha que superava todas as outras existentes juntas. Considerando o cenário que se formou no final do século XIX, é compreensível entender porque o nível de desconfiança entre Estados aumentou, e, consequentemente, o número de divergências e conflitos. A partir de 1905, três fatores contribuíram para a elevação do nível de inquietação nas Relações Internacionais: o aumento das tensões entre Alemanha e Grã Bretanha (choque de interesses comerciais e expansionistas); o enfraquecimento do Império Czarista com o início do que viria a ser a Revolução Russa; e a Revolução Turca, que desestabilizou o Oriente Médio permitindo a anexação de território pela Áustria. Nesse contexto, a diplomacia e a democracia se mostram ineficientes para resolução de controvérsias.

3.1 Multipolaridade no Pré-Guerra

No período que antecede a I Guerra Mundial, a ascensão de novas potências, como os EUA e Alemanha, ameaçava a supremacia inglesa. A Grã-Bretanha, além do pioneirismo em relação a industrialização – anfitriã da Revolução Industrial –, também possuía vantagem na área naval, na política expansionista (várias colônias), e na localização do centro financeiro do mundo na época (City of London).

9 Paul Kennedy9 destaca a importância da Conferência de Berlim para esse período, realizada entre o final de 1884 e o início de 1885. Nessa ocasião foram definidos os limites das potências coloniais no continente africano. A conferência foi proposta por Portugal, e organizada pelo Chanceler alemão, Otto von Bismark. Além dos dois países, o evento contou com a participação da Grã-Bretanha, França, Espanha, Itália, Bélgica, Holanda, Dinamarca, Estados Unidos, Suécia, Áustria-Hungria, e Império Otomano. As debilidades da Grã-Bretanha, segundo o autor, eram essencialmente duas: a contribuição para o desenvolvimento das bases industriais de outras potências, que passaram a competir com os produtos ingleses, e a crescente dependência do comércio internacional como forma de manutenção da hegemonia. A falta de investimentos para expansão do setor militar contribuiu para a vulnerabilidade nos períodos de conflitos e guerras. Nesse sentido, podemos entender a desconfiguração da hegemonia britânica no final do século XIX como um período em que novas potências surgiram. Segundo a definição de Bobbio sobre Policentrismo – apresentada no início deste trabalho – novas economias passaram a desenvolver maior autonomia em relação à Grã-Bretanha, marcando, dessa forma, o surgimento de novos centros de poder comercial e militar. O posicionamento das potências foi sendo construido por meio das alianças militares que surgiram no final do século XIX. A consolidação final dessa configuração deu origem aos dois blocos, Tríplice Aliança (Império Alemão, Império Austro-húngaro e Reino da Itália), e Tríplice Entente (Reino Unido, França, Império Russo, e, posteriormente, EUA). O assassinato do arquiduque austríaco – herdeiro do trono Austro-húngaro –, Francisco Ferdinando, por um estudante sérvio em Saravejo precipitou a explosão da guerra, que vinha se tornando inevitável. Um dos principais fatores contribuintes para o início dos conflitos foi o apoio total da Alemanha às reivindicações feitas pela Áustria à Sérvia (Ultimato de Julho), e a mobilização dos blocos militares após o homicídio. Considerando o contexto apresentado, percebe-se que a ascensão de novas potências no final do século XIX, juntamente com a adoção de políticas expansionistas, criou um ambiente para o desencadeamento do maior conflito até então visto. Pode-se argumentar que a multipolaridade, nesse cenário, favoreceu a explosão da guerra, seguindo uma visão mais

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KENNEDY, Paul. Ascensão e Queda das Grandes Potências: Transformação Econômica e Conflito Militar de 1500 a 2000. 17º Edição. Rio de Janeiro: Editora Elsevier, 1989.

10 realista. Entretanto, também é possível a interpretação de que a principal causa foi, na realidade, a falta de cooperação, solidariedade e diálogo entre os Estados, adotando, dessa forma, uma postura mais liberal. Cada corrente teórica apresenta suas próprias interpretações e conclusões, em um debate que dificilmente terá fim. De qualquer forma, a I Guerra Mundial aconteceu, causando um prejuízo de mais de 9 milhões de vidas. Os Estados foram incapazes de evitá-la, e tampouco a II Guerra Mundial. Essas evidências históricas contribuem para a defesa do argumento realista, onde os governos vão sempre seguir seus interesses, e a busca pelo poder e sobrevivência é constante.

4 O Final da Guerra Fria

Após o final da II Guerra Mundial, e a consequente ascensão de duas potências ideologicamente opostas, EUA e URSS, o mundo foi dividido por uma “cortina de ferro”, isolando países do bloco socialista da economia capitalista globalizada. Esse cenário só foi alternado após o colapso da URSS e a queda do muro de Berlim, em 1989. Joseph Nye10 destaca a importância da globalização na nova configuração mundial, o autor defende que, após o final da Guerra Fria, a economia passou a ocupar papel central na política internacional. O desenvolvimento da globalização, a redução dos custos de transportes, o surgimento de novas tecnologias da informação, tudo isso contribuiu para que as empresas passassem a ter mais opções sobre lugares e os métodos de produção. Dessa forma, os fatores de produção de cada país ganharam uma importância a mais, pois começaram a representar um atrativo para as empresas multinacionais e transnacionais. A partir desse momento, as perdas relativas à não participação nessa rede de interdependência se tornaram altíssimos. Os Estados que não se integrassem perderiam competitividade de suas mercadorias, devido aos custos de produção maiores para os outsiders. Joseph Nye também estabelece a diferença entre dependência e interdependência. A primeira remete à ideia de necessidade de um em relação ao outro, já a segunda está relacionada aos acontecimentos em uma parte do sistema, que geram consequências em outra parte, mútua e simultaneamente. No contexto da interdependência a distinção entre o que é interno e externo

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NYE, Joseph S. Cooperação e Conflito nas Relações Internacionais: uma leitura essencial para entender as principais questões da política mundial. São Paulo: Editora Gente, 2009.

11 não é bem definida. Essa rede de relacionamentos, cada vez mais complexos e sensíveis, aumentam o nível de vulnerabilidade dos países e a instabilidades no Sistema Internacional. O século XX foi cenário para muitas transformações, que impactaram diretamente na configuração e organização das Relações Internacionais. Entretanto, a globalização, cada vez mais intensificada pelas novas tecnologias, não é um fenômeno novo, existem autores que defendem sua existência desde a realização das grandes navegações, durante os séculos XV e XVI. A partir do desenvolvimento dos novos meios de comunicação, já no século XX, o alcance e velocidade da transmissão de informações, movimentações financeiras, avanço nos meios de transportes, entre outros, potencializou os efeitos dela nas Relações Internacionais. O final do século XX foi marcado por uma série de crises, conforme narra Hobsbawm 11, além das crises relativas ao controle do petróleo pelos países da OPEP, o autor destaca o impacto da “Revolução Social”, as transformações dos valores, configuração das famílias e modo de vida das sociedades em geral. Ao longo do século, o mundo se tornou mais individualista, mais conectado e mais violento. O processo de independência das antigas colônias após as Guerras Mundiais, muitas vezes desconsiderando aspectos de identidade cultural, adicionalmente ao avanço da globalização, diminuiu o poder das antigas potências. Os Estados, em geral, se tornaram mais enfraquecidos, o que também pode ser percebido por meio da propagação de movimentos sociais de oposição e/ou identidade. O conceito de sociedade civil global passa a ser mais analisado no contexto pós guerra fria, nos anos 1990, como exemplifica Ana Carolina Evangelista12. A atuação social passa a ser mais forte, por exemplo nas Conferências no âmbito da ONU; organização de movimentos sociais antiglobalização (Seattle, 1999; Gênova, 2000); surgimento de fóruns sociais, como o Fórum Social Mundial; aumento do número de Organizações Não Governamentais Internacionais, entre outras. Dentro desse mesmo raciocínio, percebemos a crescente preocupação com a opinião pública, necessária para a legitimação da atuação dos Estados e instituições. O surgimento de novos atores, com poderes de influência e pressão cada vez mais relevantes, contribuiu para o surgimento e desenvolvimento de novos centros de poder. Diferentemente do

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HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: O breve século XX 1914 - 1991. 2ª Edição. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2013. 12 EVANGELISTA, Ana Carolina Pires. Perspectivas sobre a 'sociedade civil global' no estudo das Relações Internacionais. Dissertação de Mestrado em Relações Internacionais, PUC-SP, 2006.

12 contexto pré Guerra, as potências não representavam mais só os Estados, mas sim uma variedade de atores, como os citados anteriormente.

4.1 Multipolaridade no pós Guerra

Tendo em vista as transformações vivenciadas desde o final da II Guerra Mundial, percebemos que os custos de entrar em uma guerra aumentaram após a intensificação das relações de interdependência entre os países. A atuação das Organizações Internacionais também desempenha um papel importante da mediação de desavenças entre eles. Apesar das frequentes crises, como, por exemplo, os diversos conflitos no Oriente Médio e a ameaça à integridade nacional da Ucrânia pela Rússia, os Estados estão mais resistentes em iniciar um confronto militar direto. Essa realidade pode ser explicada de diferentes formas, os liberais vão defender a ideia de que a atuação das Organizações Internacionais e os relacionamentos de cooperação e solidariedade entre os países são os responsáveis pela manutenção de uma relativa paz mundial. Por sua vez, os neorrealistas, como Robert Jervis13, defendem a ideia de que os “realistas ofensivos” só se envolvem em guerras que valem a pena, pois admitem que os custos do conflito são altos, e buscam alcançar seus objetivos de formas mais eficientes. Utilizam as instituições multilaterais como instrumentos de atingir seus interesses. Considerando o momento atual, a multipolaridade desempenha um papel importante na manutenção da paz mundial, entendida aqui como a ausência de um conflito generalizado entre blocos de países opostos entre si. As relações de cooperação política e econômica entre os Estados cria um ambiente mais favorável para o aumento dos níveis de confiança entre eles. Os diversos fóruns internacionais fornecem espaço para exposição de problemas, gerando oportunidades de estabelecimento de debates buscando uma solução mais justa e acordada entre as partes. A Sociedade Civil também desempenha uma função essencial, exercendo pressão sobre seus governos e instituições, demandando uma atuação mais eficiente e transparente. A existência de vários centros de poder cria mais alternativas de negociação para países em desenvolvimento e em menor desenvolvimento relativo. Também contribui para a ampliação

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JERVIS, Robert. Realism, neorealism and cooperation: understanding the debate. International Security, Vol. 24, No. 1 (Summer 1999), p. 42–63.

13 dos ganhos e eficiência, uma vez que promove a competição entre as potências. Apesar de, ao mesmo tempo, aumentar as chances de desencadeamento de conflito entre elas. O comércio internacional é o foco da atenção dos liberais. Para eles é por meio das trocas entre países e regiões que se constrói um relacionamento mais estável e pacífico no Sistema Internacional. De fato, podemos observar que, com o passar dos anos, as grandes empresas multinacionais e transnacionais concentram cada vez mais poder e influência. A guerra atrapalha as negociações, vendas, e não é de interesse das grandes corporações que ela ocorra. A atuação do setor privado também contribui para a busca de maior estabilidade, garantindo melhores condições de desenvolvimento do comércio. A postura dos países mudou no pós guerra, eles passaram a se preocupar mais com a competitividade relativa de suas economias, e com o avanço de seus indicadores sociais e níveis de desenvolvimento, do que com a conquista de novos territórios. A necessidade de colaboração na resolução de problemas que ultrapassam fronteiras, como a questão ambiental e o terrorismo, por exemplo, exige a união de forças. Os governos, de maneira geral, encontram-se mais favoráveis em aderir programas de cooperação, e passaram a utilizar, de forma mais efetiva, os mecanismos pacíficos de solução de controvérsias como alternativa ao confronto armado.

CONCLUSÃO

A multipolaridade é objeto de muitas interpretações e debates atualmente, por isso ocupa uma posição importante nos temas contemporâneos de política e economia internacionais. Não é o objetivo deste trabalho apresentar uma única visão sobre seus efeitos e consequências nas Relações Internacionais, pelo contrário, busca-se fornecer uma breve ideia sobre a variedade de análises possíveis. É importante destacar que as teorias não constituem verdades absolutas, funcionam como tentativa de melhor contribuir para um entendimento sobre o funcionamento do sistema de forma geral. Por meio da análise histórica e atual sobre o comportamento dos atores, estabelecem um padrão que possibilita constituir previsões e justificar a atuação dos mesmos. Para a finalidade deste artigo, foram consideradas somente as correntes teóricas realista e liberal, mas outras, como por exemplo o estruturalismo e a teoria crítica, não devem ser ignoradas por aqueles que buscam uma visão mais completa e aprofundada do tema.

14 Após a apresentação dos períodos analisados, percebe-se que o impacto da multiplicidade de potências atuando do Sistema Internacional depende mais das intenções e das políticas adotada pelas mesmas do que da própria configuração de poder. As duas Guerras Mundiais deixaram muitos traumas e sequelas para humanidade, principalmente para a população civil. Desde o final da II Guerra Mundial, houve um aumento da quantidade das Organizações Internacionais, abrangendo vários temas e setores. Dentre as principais, podemos citar como exemplos as seguintes: a criação da Organização das Nações Unidas, em 1945, e a constante criação de novos programas, comitês e conferências ligados à ela; a institucionalização do Acordo Geral de Tarifas e Comércio pela formação da Organização Mundial do Comércio em 1995; a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, em 1961, substituindo a organização para Cooperação Econômica Europeia, de 1948; entre outras. O mundo passou por muitas transformações nos últimos dois séculos, desde as Revoluções Francesa e Industrial, entre o final do século XVIII e início do XIX, até a Revolução Social de meados do século XX. As mudanças, a partir de então, são cada vez mais profundas e rápidas. Essa nova realidade demanda um novo tipo de organização e comportamento dos Estados, que antes não precisavam, por exemplo, se preocupar com a opinião pública – local, regional e internacionalmente – de forma a garantir a legitimidade de sua atuação. Outros desafios surgiram, nos quais os países não possuem individualmente a capacidade de resolução, entre eles estão a questão ambiental, o avanço do terrorismo, a regulamentação dos padrões de comércio internacional... Nesse novo contexto, as correntes teóricas são importantes pois fornecem interpretações sobre a configuração atual, na tentativa de melhor entender os processos que nos trouxeram até aqui. Os liberais institucionalistas defendem que a relativa paz e estabilidade atuais são devidas à expansão das Organizações Internacionais. Por meio delas os Estados submetem-se a “governança global” compartilhada, onde os costumes, tradições e boas práticas incentivados pelas instituições impactam em um comportamento mais colaborativo por parte dos membros. Por outro lado, os realistas e neorrealistas defendem que os Estados continuam atuando de acordo com seus interesses, mas que, devido ao elevado custo de envolvimento em conflitos armados, preferem buscar outras alternativas para alcançar seus objetivos. Dessa forma, as instituições funcionam como um instrumento político dos governos, e representam um espelho da configuração de poder do sistema, ou seja, as grandes potências possuem mais influência nas decisões, e os países menores se submetem a suas vontades, sem necessidade de guerras.

15 Independentemente da interpretação adotada, podemos considerar que o mundo atual, apesar de sofrer ameaças de novos atores independentes e fundamentalistas, vive em uma realidade mais pacífica do que no começo do século atual. A possibilidade de um novo conflito, entretanto, sempre existirá. O desenvolvimento dos armamentos e a potencialização de seus poderes de destruição é um agravante na possibilidade de configuração de uma nova Guerra Mundial. Outro fator que contribui para a facilitação do estabelecimento de uma rede de relações interdependente entre os Estados é a globalização. Ela possibilita o acesso e a transmissão mais rápida de informações para todo o mundo, maior eficiência no transporte de bens e pessoas, múltiplos canais de comunicação entre regiões distantes e remotas... Entretanto, também contribui para o empoderamento de grupos extremistas, facilitando sua capacidade de atuação. O funcionamento do Sistema Internacional é complexo, e envolve cada vem mais a inclusão de novos atores, interações e agendas. O estabelecimento e manutenção da paz é de interesse de todos, mas demanda um alto nível de comprometimento e cooperação de todos Estados, instituições, grupos e sociedades. Sabemos que é impossível prever o futuro, mas é necessário manter uma postura otimista, de forma a criar um ambiente mais favorável para o desenvolvimento da estabilidade e harmonia internacionais.

16 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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