A diferença entre menção e caracterização dos endoxa na filosofia de Aristóteles

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Textos da V Jornada Nacional de Pesquisa na Pós-Graduação em Filosofia da UFSM

José Lourenço Pereira da Silva Kariel Antonio Giarolo Evandro Oliveira de Brito (Organizadores)

Textos da V Jornada Nacional de Pesquisa na Pós-Graduação em Filosofia da UFSM

Promoção Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFSM

Parceiro Editorial Editora Centro Universitário Municipal de São José 2015

COMITÊ CIENTÍFICO Presidente Prof. Dr. José Lourenço Pereira da Silva Membros Prof. Dr. Frank Thomas Sautter Prof. Dr. Rogério Passos Severo Prof. Dr. Silvestre Grzibowsk Capa Estevan Garcia Poll Projeto gráfico e diagramação: Kariel Antonio Giarolo e Evandro Oliveira de Brito Revisão e correção ortográfica: Kariel Antonio Giarolo

Parceiro Editorial Editora Centro Universitário de São José 100 M433i

Textos da V Jornada Nacional de Pesquisa na PósGraduação em Filosofia da UFSM / José Lourenço Pereira da Silva, Kariel Antonio Giarolo, Evandro Oliveira de Brito (organizadores) – São José : Centro Universitário Municipal de São José, 2015. 261 p. ISBN 978-85-66306-14-9 (e-book) 1. Análise da Linguagem e Justificação 2. Ética Normativa e Metaética 3. Fenomenologia e Compreensão I. Silva, José Lourenço Pereira. II Giarolo, Kariel Antonio. III. Brito, Evandro Oliveira. IV. Título. CDD 100

Atribuição - Uso Não-Comercial Vedada a Criação de Obras Derivadas

COMISSÃO ORGANIZADORA

Docentes Prof. Dr. José Lourenço Pereira da Silva Prof. Dr. Evandro Oliveira de Britto Doutorando Kariel Antonio Giarolo

Equipe de Apoio Álan Arruda Matos Aline Ibaldo Gonçalves Allana Focking Bruna Brambatti Bruno Martinez Portela Cecília Noemí Rearte Terrosa Cristina Gabriela Feiber Guilherme de Freitas Soares Guilherme Pinto Ravazzi Karen Giovana V. C. Naidon Mateus Romanini Paulo Gilberto Gubert

Promoção Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFSM

Apoio Institucional Universidade Federal de Santa Maria - UFSM Centro de Ciências Sociais e Humanas Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFSM Departamento de Filosofia

Textos da V Jornada Nacional de Pesquisa na Pós-Graduação em Filosofia da UFSM SUMÁRIO José Lourenço Pereira da Silva (UFSM) Apresentação ........................................................................... 11 Alexandre Neves Sapper (UFPel) O estado de natureza no plano internacional sob a perspectiva de Thomas Hobbes e a impossibilidade de paz perpetua ........ 13 Andrei Pedro Vanin (UNIFESP) Scientia e contingência diacrônica e sincrônica em Duns Scotus ................................................................................................. 25 Artur Ricardo de Aguiar Weidmann (UFSM) Sartre e as relações intersubjetivas: entre o conflito e a generosidade............................................................................ 39 Dinno Camposilvan Zanella (UFPel) Linguagem sensitiva e linguagem intelectiva em Santo Agostinho ................................................................................ 57 Evandro Oliveira de Brito (UFSM) Franz Brentano crítico de Franz Miklosich: considerações brentanianas acerca do trabalho sübjektlose sätze .................. 77

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Felipe Bragagnolo (UFSM) Consciência intencional: uma análise levinasiana .................. 91 Giovane Martins Vaz dos Santos (PUC-RS) Tiago Porto Pereira (PUC-RS) Acerca do tempo: história, metafísica e virtualidade ............ 107 Kátia Marian Correa (UFSM) Consciência e intencionalidade: Sartre e a fenomenologia ... 125 Leonardo Edi Ignácio (UFSM) Paul Feyerabend: desfazendo mal-entendidos ...................... 135 Luana Talita da Cruz (UFPel) Considerações acerca da influência de diferentes correntes lógicas da antiguidade em boécio ......................................... 145 Marcelo Vieira Lopes (UFSM) Da analítica existencial à metafísica do dasein: o tema da liberdade ................................................................................ 153 Mariane Farias de Oliveira (UFRGS) A diferença entre menção e caracterização dos endoxa na filosofia de aristóteles ........................................................... 167 Paulo Henrique de Toledo (UFSM) Thomas Nagel e a sorte moral............................................... 179

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Rômulo Eisinger Guimarães (UFSM) ÉDIPO-REI NO STADTTHEATER KÖNIGSBERG ......... 191 Rudimar Barea (UFSM) Fato e essência no método fenomenológico de Husserl ....... 207 Susie Kovalczyck dos Santos (UFSM) Emoções e intencionalidade .................................................. 223 Vinícius dos Santos Brittes (UFSM) Verdade e metafilosofia em Richard Rorty........................... 233

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APRESENTAÇÃO

As Jornadas de Pesquisa na Pós-graduação em Filosofia da UFSM chegam a sua quinta edição firmes no objetivo de promover o debate e a divulgação das pesquisas de discentes e docentes de Programas de Pós Graduação em Filosofia. O encontro, já consolidado como evento nacional, tem contado com significativa participação de estudantes e professores estrangeiros. No mesmo propósito de ser um momento especial de interlocução entre pesquisadores nos diversos estágios e níveis de pesquisa e dos diferentes campos de investigação filosófica, a V Jornada Nacional de Pesquisa na Pós-Graduação em Filosofia da UFSM teve em sua programação palestras representativas de três linhas de pesquisa de nosso PPG Filosofia: Análise da linguagem e Justificação, Ética Normativa e Metaética, Fenomenologia e Compreensão; desse modo os participantes puderam assistir e envolver-se nas discussões sobre temas variados da tradição filosófica e que são tratados sob perspectivas distintas. Os trabalhos selecionados (majoritariamente de mestrandos e doutorandos) aqui publicados indicam o progresso e a qualificação no sistema de Pós-Graduação em Filosofia no Brasil. A promoção da Jornada de Pesquisa é uma contribuição que o Programa de PósGraduação em Filosofia da UFSM e o Departamento de Filosofia buscam oferecer para esse processo. É pois, com muita satisfação que publicamos os artigos dos participantes desse encontro, com o propósito de 11

consolidar o enriquecimento estimulado pelo debate e pelo intercâmbio de ideias. José Lourenço Pereira da Silva

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O ESTADO DE NATUREZA NO PLANO INTERNACIONAL SOB A PERSPECTIVA DE THOMAS HOBBES E A IMPOSSIBILIDADE DE PAZ PERPETUA Alexandre Neves Sapper1

Introdução O presente artigo pretende problematizar e analisar a impossibilidade Kantiana de Paz Perpétua na perspectiva da filosofia política de Thomas Hobbes, principalmente no que diz respeito à formação do Estado (e de sua soberania) na filosofia deste autor, sua representação e as três causas da guerra elencadas no capítulo XIII do Leviatã, quais sejam: competição, desconfiança e glória (HOBBES, T. 2004). Também é pertinente salientar, para uma maior delimitação do problema proposto, o retorno ao Estado de natureza no âmbito internacional após a personificação do Estado soberano perante outros Estados, estabelecendo-se um estado de guerra constante no cenário internacional, voltando ao status quo ante e tornando obsoletos o conceito de soberania, sua importância e fundamento. Neste sentido, o próprio Kant coloca sobre a concepção de guerra que cada Estado vive em relação ao outro na condição de liberdade natural e, portanto, numa 1

E-mail: [email protected]; Titulação: Bacharel em Direito pela UCPel; Licenciado em Filosofia, Mestre em Ciências Sociais e Mestrando em Filosofia na UFPel. Professor de Filosofia nas Redes Públicas Estadual, Municipal e na Rede Particular na disciplina de Filosofia. 13

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condição de guerra constante (CAYGILL, H. 2000, p. 167). Ainda corroborando com a questão, o próprio autor acrescenta sobre a concepção de paz, deixando uma lacuna sobre sua eficácia, dizendo que na obra intitulada “A fundamentação da metafísica dos costumes”, Kant descreveu a paz perpétua como o “sumo bem político” e uma ideia de razão prática em relação à qual “devemos agir como se fosse algo real, embora talvez não o seja” (Idem, p. 251).

Conforme a citação acima e, sabendo-se que Kant é ícone do idealismo alemão (WOOD, A. W. 2008), como seria possível, então, uma unificação real cosmopolita que formule uma liga de povos (KANT, 2008, p. 31)? O professor Terry Nardin, da Universidade de Wisconsin – Milwaukee, contrasta a questão afirmando que a justiça requer a independência e a igualdade legal entre os Estados, o direito de autodefesa, o dever de não -intervenção, a obrigação de se cumprir os tratados e as restrições sobre a conduta de guerra (NARDIN, T. 1987, p. 270).

Kant propôs uma federação de Estados em conformidade com os dizeres acima referidos, sendo esta federação inserida no contexto do direito internacional, marcando importante etapa da realização da ideia de Paz perpétua. Na sua formulação, o autor alemão não pretendeu desintegrar as soberanias dos Estados, mas estabelecer uma liga de nações, não devendo envolver nenhuma autoridade soberana da qual os Estados podem

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sair e cujos termos eles podem renegociar (CAYGILL, H. 2000, p. 147). O professor Wolfgang Kersting, colabora com a questão no que tange ao projeto Kantiano, ensinando que Entre os superadores estatais do status naturalis, prevalece o mesmo status naturalis, que as fortalezas territoriais reduzem a meros provisórios jurídicos, pois a proteção jurídica interna do Estado pode ser destruída por uma guerra repentina entre os estados (ftp://ftp.cle.unicamp.br/pub/kant -eprints/vol.3-n.2-2004.pdf).

Na concepção de Hobbes, porém, a integração de Estados em uma confederação não prosperaria, pois além de entrar em contradição com a concepção de Soberania 2 proposta pelo autor inglês no capítulo XXIX do Leviatã, que menciona a contrariedade total da essência do Estado em poder ser dividido (HOBBES, 2004), também colidiria com as três causas da guerra acima descritas, partindo da argumentação de que o Estado personificado seria um indivíduo uno e entraria no Estado de natureza no campo internacional. Kersting, comentando, agora, sobre a questão de Hobbes, coloca enfaticamente o seguinte: O que é lícito para os indivíduos é, contudo, vetado para os Leviatãs. Uma transição organizadora de um pluriverso político para um universo político glo bal, um árbitro global, não pode acontecer nos estados hobbesianos. No nível da 2

Conceito originalmente proposto por Jean Bodin na obra intitulada “Os seis livros da República”. 15

O estado de natureza

soberania estatal, a estratégia pacificadora do despojamento de todos os direitos e de todo o poder não pode ser repetida. Os Leviatãs permanecem eternamente no status naturalis. (Idem).

Assim, as três causas da guerra propostas na teoria de Hobbes tomam um sentido exterior à formação do Leviatã, pois este último surge para sanar o Estado de natureza e a concepção de guerra entre todos contra todos. Mas, em uma concepção internacional, os “Leviatãs” retornariam a um novo Estado de natureza, pois não existiria soberano exterior ao próprio Leviatã, retornando, então, ao estado de guerra constante. Como poderia, então, ser plausível um projeto de Paz perpétua sob os auspícios de Kant em um Estado de natureza internacional? O referido texto, então, tentará demonstrar as impossibilidades da proposta de Kant para uma integração perfeita entre Estados, sob os mandamentos da soberania e da Guerra propostos na obra de Hobbes.

1. Conceituação e histórico da concepção de soberania 1.1 Conceito de Soberania na história e filosofia

Os referidos conceitos, como foram previamente anunciados na introdução, são de extrema pertinência e têm um caráter ilustrativo para uma melhor compreensão dos capítulos sequenciais.

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Conceito de Soberania se congrue no poder preponderante ou supremo do Estado, considerado pela primeira vez como caráter fundamental em 1576, pelo francês Jean Bodin 1 , que ditou “Os seis livros da República”, onde pretendeu caracterizar de forma pétrea o âmago da República ao enunciar o célebre conceito. Assim, no Capítulo VIII do Livro I diz: “... a Soberania é o poder absoluto e perpétuo de uma República, palavra que se usa tanto em relação aos particulares quanto em relação aos que manipulam todos os negócios de estado de uma República”. O conceito expresso pelo jurista francês sofrerá inúmeras variações no desenvolver histórico, conforme a evolução do pensamento político e da realidade histórica. Como se pode ver pela ordem dada no desenvolver do conceito, que tem como autor sequencial Hegel 2 , que assim preceitua sobre o tema: As duas determinações, de os negócios e os poderes particulares do Estado não serem autônomos e estáveis nem em si mesmo, nem na vontade pessoal dos indivíduos, mas de terem raízes profundas na unidade do Estado - que outra coisa não é senão a identidade deles - constituem a soberania do Estado.

Hegel esclarece esta noção dizendo 3 :

1

Citação compilada do artigo de José Blanes Sala, do livro “Contratos Internacionais e Direito Econômico no Mercosu l”. CASELLA, Paulo Borba São Paulo: LTr, 1996, p. 707. 2 HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito, (tradução Orlando Vitorino). São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.57. 3 Ibidem. 17

O estado de natureza

O idealismo que constitui a soberania é a mesma determinação segundo a qual, no organismo animal, as chamadas partes deste não são partes, mas membros, momentos orgânicos cujo isolamento ou existência por si é enfermidade.

Essas determinações últimas de Hegel são dirigidas contra o princípio afirmado pela Revolução Francesa, de que a Soberania está no povo. Rousseau qualificara de Soberano o corpo político que nasce com o contrato social 4 e assim definia o seu poder: O corpo político ou soberano, cujo ser deriva tão somente da santidade do contrato, nunca pode obrigar-se, nem mesmo em relação a outros, a nada que derrogue aquele ato primitivo, que seria a alienação de alguma parte de si mesmo ou a sua submissão a outro Soberano. Violar o ato graças ao qual existe significaria anular-se; e o que nada é nada produz.

Portanto, no dizer do referido autor, o princípio da soberania é ser o poder mais alto em certo território: não significa poder absoluto ou arbitrário. Para a moderna teoria do direito, a Soberania pertence à ordenação jurídica, sendo entendida como a característica em virtude da qual “acima da ordenação jurídico-estatal não existe outra”. 5

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ROUSSEAU, Jean Jacques. O Contrato Social. São Paulo: Martins fontes, 2005, p. 16. 5 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo, Martins Fontes; Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1990, p. 45. 18

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Segundo Kelsen, se admitirmos a hipótese da prioridade do Direito Internacional, o Estado pode ser considerado soberano apenas em sentido relativo; se admitirmos a hipótese da prioridade do direito estatal, pode ser chamado de Soberano no sentido absoluto e originário da palavra.

1.2 A soberania em Hobbes

O ponto de partida para a apresentação da concepção de soberania em Hobbes deve ser a sua intenção para com outros Estados e sua convivência pacífica. À sua obra não são encontradas referências que pudessem buscar uma tentativa de integração entre Estados. Nesse sentido, Paulo Paiva diz o seguinte acerca do tema proposto: Em Hobbes, as relações internacionais são um meio, não um fim como na dimensão interna da soberania que teorizou. Não se está à procura da cristalização positiva da lei natural, mas de uma postura racionalmente dirigida, onde as relações internacionais (sejam elas pacíficas ou belicosas) são mais um instrumento para que o soberano mantenha estável sua autoridade interna. Deste prisma, portanto, as relações internacionais não só são fundamentais para a soberania e prosperidade dos cidadãos (e em Hobbes estes dois conceitos não se separam) de

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O estado de natureza

uma Cidade, como é provável que a levem ao choque com uma outra Cidade. 3

A colocação acima relata bem o aspecto Hobbesiano no que diz respeito a lógica da formação de um Estado, pois esta lógica é fundada intrinsecamente nas relações humanas e suas respectivas paixões 4, que levam o ser humano a nunca estar completo, satisfeito. Ou seja, no âmbito “macro” (ou de Estados), o surgimento e permanência de um Estado se dá em contraposição a outro Estado soberano, segundo Hobbes, evidenciando o “estado de guerra de todos contra todos” (HOBBES, 2004) na esfera de Estados. O fundamento da soberania nesse sentido está justamente delimitada para proteger os Estados de outros Estados, entrando necessariamente em outra orbita que será analisada a seguir, que diz respeito a proposta elaborada por Kant para uma “Paz Perpétua”.

2.

A impossibilidade de uma sociedade cosmopolita: a guerra de Hobbes

O projeto kantiano visou especificamente uma comunidade de iguais para assegurar o desenvolvimento e convivência pacífica entre os Estados. Kant previa sobre a Paz perpétua o seguinte: Para frear o ímpeto dominador dos Estados e a homogeneização indiscriminada dos povos, a natureza conta 3

http://www.unieuro.edu.br/downloads_2005/consilium_02_08.pdf O respectivo tema sobre as paixões não será abordado no presente trabalho por não ser objeto de estudo do mesmo. 4

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com os diferentes idiomas e religiões que, por outro lado, contém sementes de ódio pela diversidade e incitam guerras fundadas na intolerância. Se isso era verdade na época de Kant, também o é hoje, como mostram os movimentos fundamentalistas e os conflitos na Irlanda, entre tantos outros. 5

Segundo a citação acima sobre o tema, Kant previa a polarização de Estados com mais condições de sobrepujar os delimitantes, seja no âmbito econômico, político ou cultural. A ONU foi uma tentativa de unificar os Estados em um bem comum, pois Kant mesmo afirmava que a paz não é algo natural, como pode-se auferir a seguir: Uma idéia central na concepção de Kant é de que a paz não é um estado natural e que, por isso, precisa ser instituída por meio de um contrato entre os povos. Na verdade, é o mesmo entendimento da paz que está no âmago do trabalho atual da Organização das Nações Unidas, que também foi constituída com o fim de trazer a paz. 6

À citação acima parece concordar com a necessidade de um contrato para uma convivência pacífica entre as nações. No entanto, Kant não é tido como um autor contratualista pelos seus comentadores, ao contrário de Hobbes, que formulou a sua teoria

5

http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/view File/407/304 6 http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/view File/407/304 21

O estado de natureza

baseado em um contrato entre os súditos para eleger 7 o soberano. Para contrastar com esta proposta kantiana e manter o objeto do presente texto, serão apresentadas as três causas da guerra que Hobbes originalmente formulou para delinear a guerra de todos contra todos, mas que neste texto será transposta para a questão dos Estados, que são: competição, desconfiança e glória (HOBBES, 2004, p. 111). É redundante a afirmação de que as causas da guerra mencionada por Hobbes e descritas acima podem ser apontadas para a relação entre os Estados, beligerantes ou não. Porém, a sua consequência implica diretamente no cancelamento da proposta feita por Kant de uma sociedade (federação) de Estados que delegam algo em prol de uma comunidade pacífica. Os Estados estão constantemente em movimentação de competição e desconfiança, podendo a glória ser atribuída aos movimentos nacionalistas que surgem e re-surgem constantemente na ordem mundial. Hobbes é enfático ao dizer sobre a guerra que Na guerra, a força e a fraude são duas virtudes cardeais. A justiça e a injustiça não fazem parte das faculdades do corpo e do espírito. [...] Não há propriedade nem domínio, nem distinção entre o meu e o teu; só pertence a cada homem aquilo que ele é capaz de conseguir, e apenas 7

É comum ocorrerem equívocos na interpretação do contrato em Hobbes na questão que diz respeito aos súditos, pois estes elegem um soberano, mas este, por sua vez, não estipulou nenhum contrato com os súditos. Esta afirmação deixou diversas lacunas na história da filosofia, na qual diversos autores passaram a denominar o autor Thomas Hobbes como autor autoritário, ou absolutista. Na verdade, objetivamente, não há obrigação formal entre os súditos e o soberano, pois este foi instituído no cargo, e não convencionado. 22

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enquanto for capaz de conservá-lo. É pois esta a miserável condição em que o homem realmente se encontra, por obra da simples natureza. (HOBBES, 2004, p.110)

O autor inglês encerra a questão colocando que o medo da morte e o desejo daquelas coisas que são confortáveis são motivados pelas paixões. Especificamente quanto à questão abordada no presente artigo, pode-se auferir que somente por medo da morte (violenta) os homens estabelecem acordos. No caso dos Estados soberanos pode-se dizer, então, que são feitos acordos. Mas com um Estado mais forte, ou, com “soberano dos soberanos”. Neste caso, uma ideia cosmopolita mostra não ter respaldo de prosperidade na teoria política apresentada até o momento.

Conclusões O presente artigo tentou ilustrar sob uma perspectiva realista das relações internacionais, na qual o idealismo kantiano ilustrado em sua Paz Perpétua não teria validade (ou receptividade) na contraposição a obra de Hobbes, principalmente, como foi demonstrado, sob as concepções de Estado, Soberania e Guerra à obra do filósofo inglês. A perspectiva realista das relações internacionais defende o fato de os Estados viverem, nas suas relações recíprocas, sem a existência de um governo mundial, significando essencialmente um estado de anarquia no âmbito internacional. De maneira formal, há uma igualdade de direitos e obrigações entre os Estados, mas 23

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a materialidade e as circunstâncias (ou paixões..) fazem com que esses direitos e obrigações sejam dirimidos por um Estado mais forte. Ou seja, não há força coercitiva, de forma supra-estatal, para coagir o Estado com maior força. Assim, fica caracterizada situação anárquica internacional. Nesse sentido, o conceito de soberania que vinha sendo diluído pelos defensores do processo de integração, independente do lócus, volta a sua posição de destaque, pois este conceito é imprescindível à manutenção do Estado.

Referências Bibliográficas ARON, Raymond. Paz e Guerra Entre as Nações. Brasília: 1962. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofa. São Paulo: Martins Fontes, 2003. CAYGILL, Howard. Dicionário Kant. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000. HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2005. KANT, Imannuel. A paz perpétua e outros opúsculos. Trad. Artur Morão. Lisboa: Ed. 70, 2008. NARDIN, Terry. Lei, moralidade e as relações entre os Estados. São Paulo: Forense Universitária, 1987. WOOD, Allen w. Kant. Porto Alegre: Artmed, 2008.

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SCIENTIA E CONTINGÊNCIA DIACRÔNICA E SINCRÔNICA EM DUNS SCOTUS Andrei Pedro Vanin1

Introdução A comunicação tem por objetivo apresentar a noção de contingência e de scientia em Duns Scotus. Para tal, primeiramente apresenta-se a distinção entre contingência diacrônica e sincrônica, seguindo a interpretação de Knuuttila (1981) e Pich (2008). A seguir deter-nos-emos na noção de scientia buscando esclarecer o modo pelo qual ocorre o conhecimento. A escolha desses temas se justifica basicamente por representarem um importante marco no pensamento e na filosofia de Duns Scotus. Mas não é só isso. As análises do franciscano a respeito da noção de contingência e, em decorrência disso, de modalidade lógica têm chamado a atenção das pesquisas recentes. A noção sincrônica de modalidade – que, em síntese, permite possibilidades alternativas em dado momento de tempo – e a noção de possibilidade lógica sugerem que Scotus tenha sido o primeiro a pensar tais noções e, por consequência, influenciado o desenvolvimento da noção de mundos possíveis, seja em Leibniz, seja as desenvolvidas no final do século XX (NORMORE, 2013, p. 169 e 203-204; VOS, 2006). Já a noção de scientia em Duns Scotus, como observa Pich (2013, p. 43), “[...] não é importante só como um capítulo 1

Mestrando em Filosofia da UNIFESP. Bolsista Capes. E-mail: [email protected] 25

Scientia e contingência

da história da recepção da epistemologia aristotélica, ao final do século 13; acima e antes disso, ela é importante para a epistemologia como tal e como um capítulo central da própria filosofia scotista”. Deve-se notar que as interpretações a respeito de tal noção, seja no próprio Scotus, seja buscando um paralelo com a noção de episteme em Aristóteles, contemporaneamente, não são unânimes. Seguindo rapidamente a apresentação de Pich (2013), pode-se eleger pelo menos quatro pontos de vista a respeito do tema. O primeiro ponto a respeito da noção de scientia é se Scotus “aceita a concepção aristotélica tradicional de conhecimento científico” (PICH, 2013, p. 37) tal e qual. O segundo consiste nas interpretações de Sondag (1996) e Boulnois (1998), segundo as quais o modelo scotista de scientia representa, de fato, um novo relato do conhecimento científico (PICH, p. 38). A terceira interpretação é a de Lauriola (1981), segundo a qual Scotus, no Prólogo da Ordinatio, apresenta duas definições de ciência (PICH, p. 42). Por fim, a interpretação baseada especialmente em Lectura d. 39 q. 1-5, a respeito do “[...] conhecimento verdadeiro de Deus acerca dos futuros contingentes [...]” (PICH, 2013, p. 42), apresentada por Vos Jaczn et al (1994) faz parte do que Scotus considera como parte da scientia. O que pretende-se porém nesta comunicação é rapidamente apresentar as características que cumprem o papel de scientia e explicitar as noções de contingência diacrônica e contingência sincrônica.

1. Contingência diacrônica e contingência sincrônica No prólogo da Ordinatio p. 4, q. 1-2, n. 208, Scotus atribui quatro condições para se ter conhecimento científico, scientia: certeza, necessidade, evidência das premissas e método silogístico. Estando a necessidade posta numa das condições para algo poder ser dito possuidor de scientia,

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Andrei Pedro Vanin

exclui-se, a princípio, a possibilidade desta surgir de verdades contingentes. Para o correto entendimento desta problemática se faz necessário investigar o modo pelo qual Scotus entende a noção de contingente. O modo pelo qual Scotus procura responder os problemas relacionados ao conhecimento de entes futuros pressupõe o entendimento do conceito de contingente (e, por sua vez, a noção de tempo), bem como a noção de vontade (PICH, 2010, p. 249). Antes de explicitar tais noções em Scotus, é pertinente observar que o desenvolvimento destas questões tem como plano de fundo a problemática do necessitarismo greco-árabe, que em síntese pode ser apresentado por estes três modos: a) algo é de si formalmente necessário, mas, ao mesmo tempo, causado através de um outro; b) algo é de si formalmente necessário, mas, ao mesmo tempo, depende de um outro; c) algo é de si formalmente possível, mas necessário por meio de um outro, quando este outro causa com necessidade (PICH, 2008, p. 36).

Scotus é obrigado a abandonar tal tese por basicamente dois motivos: 1) vai contra a crença da teologia que Deus criou o mundo livremente; 2) se há contingência no mundo, sustentar tal tese acarreta filosoficamente “[...] a inexistência de uma mediação causal que se responsabilize pelo contingente” (idem, p. 36). Provando a existência da contingência no mundo, Scotus deve, por plausibilidade filosófica, demonstrar que esta tem início na causalidade do primeiro ente necessário e imutável (PICH, 2008, p. 37), já que, caso contrário, não teria como explicar a relação da primeira causa com as coisas contingentes e nem o fato de Deus ter a capacidade de agir livremente. Scotus opta, portanto, por um indeterminismo para explicar os contingentes futuros, ao invés de um determinismo. 27

Scientia e contingência

O determinismo, em síntese, defende que tudo o que acontece é determinado causalmente por algo que aconteceu, e que nada pode acontecer diferentemente do que acontece (PICH, 2006, p. 129). Para sustentar um indeterminismo, Scotus precisa provar que o primeiro princípio – causador de todas as coisas – age, ele mesmo, de forma não necessária, e também provar que há contingência no ato volitivo do ser humano (PICH, 2008, p. 42-43). Antes de avançar, faz-se necessário relembrar que Aristóteles buscou uma interpretação indeterminista, mas que, em última análise, parece ser mais correto afirmar que ele defende um determinismo. Na obra Da Interpretação (19 a 723), o Estagirita abre espaço para uma interpretação indeterminista ao afirmar que, de enunciados futuros singulares em matéria contingente, não se tem como determinar se o evento é verdadeiro ou falso antes que este ocorra. Para sustentar tal tese, necessita-se restringir o princípio de bivalência e, em decorrência, os primeiros princípios, o que forçaria uma interpretação, especialmente do livro IV da Metafísica, um tanto quanto dúbia e, por isso, alguns comentadores sustentam ser errado atribuir a Aristóteles uma roupagem indeterminista ou trivalente da verdade. A noção de modalidade em Aristóteles se dá em momentos sucessivos no tempo: segundo Aristóteles, a afirmação “A senta” é verdadeira, mas será falsa depois que A se levantou. Os valores de verdade referidos à modalidade estão sujeitos à frequência temporal, de modo que se pode dizer que “se um enunciado verdadeiro ora, é verdadeiro todas as vezes que é proferido, ele é necessariamente verdadeiro. Se o seu valor de verdade muda no tempo, ele é possível. E se um enunciado é falso todas as vezes que é

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proferido, ele é impossível” (GHISALBERTI, 2013, p. 189).

Arthur Lovejoy, ao formular o princípio de plenitude – “nenhuma possibilidade genuína permanece para sempre nãorealizada” –, afirma que Aristóteles não aceitaria o princípio por inteiro, porque este rejeita o fato de tudo aquilo que é exclusivamente atual ser também possível (Metafísica, IX, 3, 1046 b 29-32). Não obstante, se cada possibilidade genuína, por ser verdadeira, deve ser verificada num determinado momento do tempo (GHISALBERTI, 2013, p. 189), então deve-se admitir que, se Aristóteles não aceitaria tal princípio, ao menos o princípio de plenitude formulado por Lovejoy está intimamente inspirado na concepção de modalidade desenvolvida pelo Estagirita. O mérito de Aristóteles está em unir temporalidade e modalidade, mas, para manter coerência com a teoria da verdade exposta na Metafísica, ele não pode defender um indeterminismo. Tal digressão textual deve-se ao fato que, na Idade Média, buscaram-se soluções contra o determinismo, mas que permaneceram sendo aristotélicas (PICH, 2008, p. 40), baseadas, em sua maioria, por confusões e análises falaciosas de proposições modais temporalmente não qualificadas (KNUUTTILA, 1981, p. 167). Seguindo a interpretação de Pich (2008) e Knuuttila (1981), pode-se afirmar que a base do problema está na distinção entre proposições modais in sensu composito e in sensu diviso, ou seja, proposições de dicto e de re, que são ambíguas em Aristóteles porque a possibilidade pode se referir a uma suposta realidade em predicados ao mesmo tempo, ou em momentos diferentes. Quando se analisa uma proposição possível, e diferencia-se, segundo uma modalidade lógica, em sensu composito ou em sensu diviso, tal proposição é analisada em termos de uma distinção “entre a simultaneidade e a não simultaneidade da realização dos predicados”. Esta teoria é 29

Scientia e contingência

denominada estática porque, segundo Knuuttila (1981, p. 169), “[...] as noções modais são, em última análise, reduzidas a termos extensionais, que significam apenas meios de classificar o que acontece em um e em nosso mundo, em diferentes momentos no tempo”. Para apresentar a resposta de Scotus, a teoria estática da modalidade deve-se, como já apontado acima, provar que há contingência no ato volitivo do ser humano e provar a contingência do ato volitivo da primeira causa causadora de todas as coisas. Para a primeira consideração, precisa-se analisar a obra Lectura I, d. 39 q. 1-5 n. 45-52. Ao deter-se nesse texto, se torna clara a distinção entre contingência sincrônica e diacrônica. Já para a segunda consideração, seria necessário analisar o texto de Lectura I, d. 39 q. 1-5 n. 53-61. Com efeito, Duns Scotus se afasta da interpretação estática ou de uma interpretação diacrônica do contingente: [...] segundo o qual, nenhuma autêntica possibilidade pode permanecer não realizada na sucessão temporal, e institui um modelo sincrônico, com base no qual se admite que alguma coisa, que existe ou acontece, possa ser ou acontecer de modo diverso no mesmo instante de tempo. Por isso a contingência exprime a “possibilidade” que se deem “simul” dos opostos. Esta possibilidade é estabelecida em relação a uma ação causal que proceda através da inteligência e da vontade (GHISALBERTI, 2013, p. 189).

Para entender como se estrutura tal questão, faz-se mister apresentar rapidamente a noção de possibilidade lógica (ou potência). Num primeiro aspecto, semântico, entende-se uma potência lógica “[...] quando os extremos são de tal modo unidos, ainda que não repugnam um ao outro, mas podem ser unidos, ainda que não haja uma possibilidade na realidade [...]”

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(SCOTUS, Lectura I, d. 39, q. 1-5, n 49, p. 110). Em outras palavras, uma possibilidade lógica se diz, então, da relação de termos que não se repugnam (termos que não encerram contradição) e podem unir-se a uma proposição possível (PÉREZ-ESTÉVES, 2006, p. 289). Contudo, há outro aspecto da possibilidade lógica a considerar, a saber: o fato de a vontade livre, no mesmo instante de tempo que produz um ato volitivo a, poder também produzir um ato volitivo oposto, não a (PÉREZ-ÉSTÉVES, 2006, p. 289). Esta possibilidade lógica, porém, não é segundo o fato de a vontade ter sucessivamente, mas sim no mesmo instante: pois, no mesmo instante no qual a vontade tem um ato de querer, no mesmo e para o mesmo [instante] ela pode ter um ato oposto de querer, – tal como se for considerado que a vontade tão-somente tem existência por um único instante e que, naquele instante, quer algo, em que, então, não pode querer e desquerer sucessivamente, e, contudo, para aquele instante e naquele instante no qual quer a pode desquerer a, pois querer para aquele instante e naquele instante não é da essência da própria vontade, e nem é uma propriedade natural dela; portanto, [isso] se segue dela acidentalmente (SCOTUS, Lectura I, d. 39, q. 1-5, n 50 , p. 111).

Essa passagem já aponta para alguns aspectos da contingência sincrônica, já que a possibilidade lógica atribui à vontade o fato de que, no mesmo e para o mesmo (in eodem et pro eodem) instante que esta tem uma volição, pode ter um ato oposto (PICH, 2008, p. 55). Entendendo Scotus que a liberdade – tanto humana como divina – é a capacidade que a vontade tem de, no mesmo instante que quer algo a, poder querer não querer (desquerer) algo (diga-se não a), isso implica conceber a liberdade como oposta a toda determinação. Pelo fato de, no

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mesmo e para o mesmo instante de tempo que a vontade tem uma volição a, poder querer uma volição não a, – seu oposto –, implica conceber a liberdade como uma indeterminação, isto é, ter a possibilidade de querer sempre entre duas alternativas distintas o seu contrário (PÉREZ-ÉSTÉVEZ, 2006, p. 289). Feita essa rápida caracterização da possibilidade lógica, podese avançar para algumas definições a respeito do contingente. O ‘contingente’ existente numa ação e no mundo se origina sempre de algo querido para o ser atual, quando o contrário disso também poderia se dar, exatamente quando aquele se dá. O contingente é, em oposição à definição aristotélica, não tudo aquilo que é non-necessarium ou nonsempiternum – contingência em termos de uma ‘possibilidade simétrica’ de ser e de não ser – dentre os componentes do mundo infralunar. Antes, o contingente metafísico deve ser entendido, [...], através da causalidade contingente da vontade com base num conceito de contingência sincrônica. Nesse sentido, o conceito de contingência sincrônica, além de servir à sua concepção de liberdade da vontade, é o cerne da conhecida crítica de Scotus à interpretação estatística da modalidade, segundo a contingência diacrônica (PICH, 2006, p. 133-134). O correto entendimento do conceito de contingente em Scotus está calcado no esclarecimento da noção de contingência sincrônica, que se passa a analisar a partir das passagens na obra Lectura I, d. 39 q. 1-5 n. 47-52. O primeiro ponto a considerar é que não há vontade na liberdade “[...] enquanto ela quer, ao mesmo tempo, objetos opostos, porque [esses] não são simultaneamente termo de uma única potência” (SCOTUS, Lectura I, d. 39 q. 1-5 n. 47), já que isso implica em uma impossibilidade lógica. Agora, do fato de a vontade ter “[...] liberdade para atos opostos, com respeito a objetos opostos” (idem, n. 47) tem-se dupla possibilidade e contingência: “[...] a vontade se rende sucessivamente a objetos opostos [...]”; e o segundo – que já foi explicitado acima

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quando apresentava-se a noção de possibilidade lógica – é quando “[...] os extremos são de tal modo possíveis que não repugnam um ao outro, mas podem ser unidos ainda que não haja uma possibilidade na realidade” (ibidem, n. 49). Em outras palavras, a dupla possibilidade e contingência da vontade são “a de querer sucessivamente objetos opostos e a de querer contemporaneamente objetos opostos, que, porém, não podem ser na realidade escolhidos porque ela opera de modo sucessivo” (GHISALBERTI, 2013, p. 190). De se notar que em Lectura I, d. 39 q. 1-5 n. 45, Scotus apresenta três maneiras pelas quais a vontade é dita livre: 1) para atos opostos; 2) por meio dos atos opostos é livre para objetos opostos; e 3) é livre em relação aos efeitos que produz. Todavia, não basta para a definição “[...] de contingência que a vontade possa querer objetos opostos – através de atos opostos – ‘na sequência do tempo’ (successive). A liberdade da vontade exige mais do que uma possibilidade diacrônica” (PICH, 2008, p. 53). Se, para definir a contingência, bastasse entender a capacidade que a vontade tem de querer objetos opostos na sequência de tempo, proposições de possibili estruturadas em termos opostos seriam verdadeiras segundo o sensum divisionis (PICH, 2008, p. 53). Scotus apresenta tal problemática do seguinte modo: E, segundo esta possibilidade, são distinguidas proposições de possibilidade que são feitas de [termos] extremos contrários e opostos, tal como ‘algo branco pode ser negro’: e, segundo o sentido de divisão, [esta] é uma proposição verdadeira, conforme os extremos são entendidos como tendo uma possibilidade para tempos diversos, como ‘algo branco em a pode ser negro em b; donde essa possibilidade resulta na sucessão. E assim também esta [proposição] ‘a vontade que ama algo pode odiar [esse] algo’ é verdadeira, no sentido de divisão (SCOTUS, Lectura I, d. 39 q. 1-5 n. 48) 33

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Scotus, todavia, almeja mais do que simplesmente entender a contingência da vontade como atos que ocorrem sucessivamente. Permanecer neste ponto seria sustentar, ainda, uma contingência diacrônica: a “[...] vontade teria temporalmente antes uma relação contingente com o querer e só depois uma relação contingente com o desquerer” (PICH, 2006, p. 136). O que está em questão é o fato de a vontade, no mesmo e para o mesmo instante de tempo, querer a, e, no mesmo e para o mesmo instante, não querer a. Tal consideração pode ser chamada, como aponta Pich (2008, p. 54), de “fórmula scotista da sincronia de possibilidade”: “[...] no mesmo instante no qual a vontade tem um ato de querer, no mesmo e para o mesmo [instante] ela pode ter um ato oposto de querer [...]” (SCOTUS, Lectura I, d. 39 q. 1-5 n. 50). O contingente, assim caracterizado, leva à conclusão de que o indeterminismo presente no mundo está fundado na liberdade e na contingência da vontade (PICH, 2008, p. 61). A contingência, entendida sincronicamente, torna possível a explicação da contingência no mundo, e permite a Scotus explicar o motivo pelo qual algumas coisas não são determinadas, já que, com tal caracterização, o contingente segue-se do contingente. A noção de scientia deve ser entendida tendo como pano de fundo essa noção de contingente. Uma alternativa para tal problemática é elucidar a diferença entre conhecimento intuitivo e abstrativo em Scotus – que não entraremos em maiores detalhes aqui. Apenas a título de conclusão como afirmou-se acima, é inegável a existência da contingência no mundo. A pergunta que resta é como então pode algo possuir scientia, se uma das condições desta é não se basear em verdades contingentes? O conhecimento abstrativo capta as quididades, ou seja, aquilo que há de necessário nos entes contingentes, já que este conhecimento capta o objeto

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indiferente a sua existência, podendo assim alcançar algo de necessário nas coisas contingentes (CEZAR, 1996, p. 20) e estabelecer assim, a scientia baseada nos entes contingentes, já que o conhecimento abstrativo consegue captar o que há de necessário no contingente. Em última análise não estou plenamente satisfeito que apenas a distinção entre conhecimento abstrativo e intuitivo consegue satisfazer a noção de scientia. A noção de possibilidade, vontade e contingência sincrônica, como tentou-se elucidar, cumprem um papel importante na teoria do conhecimento de entes contingentes em Scotus.

Considerações finais O objetivo desta comunicação foi apresentar rapidamente a noção de contingência e suas implicações com a noção de vontade e possibilidade lógica, para evidenciar, então, a distinção entre contingência diacrônica e sincrônica, bem como a maneira pela qual Scotus consegue defender um indeterminismo sem incorrer em maiores problemas.

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SARTRE E AS RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS: ENTRE O CONFLITO E A GENEROSIDADE Artur Ricardo de Aguiar Weidmann 1

Introdução O presente estudo assume como tarefa a tentativa de responder a seguinte pergunta: “É possível afirmarmos a compatibilidade entre as teses presentes em O ser o nada relativas à alteridade e a liberdade, e as teses sobre as mesmas temáticas expostas nos Cahiers pour une morale?”. A questão acima apontada e sua referência à moralidade, em Sartre, demonstra uma aparente incompatibilidade. Uma vez que em O ser e o nada a liberdade radical está referida a uma subjetividade demasiado independente e que vive as relações intersubjetivas sob o signo do conflito. Já nos Cahiers pour une morale a liberdade pode converter-se em autêntica e esta mesma dimensão da autenticidade, quando referida aos outros, pode tornar-se uma relação harmônica. Assim, tomando por base as obras acima citadas, se poderia oferecer uma resposta, satisfatória, sobre a importância e o que representa uma moral da conversão e seu papel quanto às relações intersubjetivas. Por outro lado, é somente a partir da análise conjunta da obra sartriana que é possível demonstrar que a conversão da 1

UFSM – Universidade Federal de Santa Maria, RS. E-mail: [email protected] 39

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liberdade, contida nos Cahiers pour une morale, é compatível com as teses expostas em O ser e o Nada. No entanto, o problema da moralidade, em Sartre, quando pensado em relação a alteridade, somente pode ser pensado se levarmos em consideração a forma paradoxal como este se apresenta em seu pensamento. Por um lado, a moral parece ocupar um lugar de destaque em suas preocupações filosóficas. Isto pode ser evidenciado desde os seus primeiros esboços filosóficos das décadas de 1930-1940 contidos em Diário de uma guerra estranha, em O ser e o nada, na conferência O existencialismo é um humanismo, em depoimentos e entrevistas cedidas ao longo de sua vida. Por outro lado, mesmo com a publicação póstuma dos Cahiers pour une morale, parece haver uma inconsistência teórica entre os resultados presentes entre este e O ser e o nada. Pois, nesta última, Sartre descreve uma liberdade solitária que procura totalizar-se enquanto projeto de ser e que busca mascarar essa sua estrutura fundamental, além disso, descreve as relações com o Outro sob a perspectiva do conflito. Já nos Cahiers pour une morale, Sartre desenvolve uma teoria da conversão que, mesmo formalmente, descreve a possibilidade desta mesma subjetividade tematizar o fracasso de seu projeto fundamental e escapar da má-fé, e, fora isso, descreve a relação com os outros sob a perspectiva da generosidade, ou seja, uma relação harmônica. Para início da reflexão, se é necessário colocar as seguintes perguntas: Seria possível assumir um projeto marcado pela autenticidade e não mais pela má-fé? Poderia se pensar na relação com os outros não mais sob o signo do conflito? Haveria como conciliar duas perspectivas da liberdade e sua relação com a alteridade? Pensa-se que estas perguntas podem ser respondidas se pudermos compreender essas duas perspectivas sobre a liberdade do Para-si como momentos distintos de uma mesma liberdade, e que estas

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perspectivas, no plano teórico, se complementam mutuamente. Significa, sobretudo, que dos resultados alcançados em O ser e o nada surge a possibilidade de se pensar em possíveis implicações morais, e que estas, podem ser encontradas em grande parte nos Cahiers pour une morale, principalmente quando Sartre trata da teoria da conversão da liberdade.

1. A dimensão ontológica do conflito das liberdades: as relações intersubjetivas n’O ser e o nada N’O ser e o nada a relação com os outros é descrita por Sartre sob o ponto de vista do conflito, como o mesmo afirma: “As descrições que se seguem devem ser encaradas, portanto, pela perspectiva do conflito. O conflito é o sentido originário do Para-si.” (SN, p. 454). O conflito na relação intersubjetiva se dá pelo fato de que cada Para-si capta o Outro, a maneira de um objeto, ou seja, como um Em-si2. A objetivação do Outro revela que este pode tornar-se parte do projeto fundamental de um Para-si, e ao mesmo tempo pode se tornar meio para realização do projeto deste outro Para-si que o revela, já que ambas as subjetividades estão imersas no seio de um mesmo mundo. Trata-se da tensão contínua da afirmação da liberdade individual e da fuga da objetificação do Para-si pelo olhar do Outro. É a partir disso que Sartre caracteriza as relações com o Outro. N’O ser e o nada as relações intersubjetivas são descritas sob a perspectiva do conflito, e, portanto, um âmbito de relações em que não há espaço para a autenticidade. Sob esse aspecto, a presença do Outro representa a perda do mundo 2

“O sentido profundo da análise de Sartre é que a relação sujeito-sujeito não consegue deixar de ser uma relação sujeito-objeto; no fundo, ele pensa a relação do para-si com o para-si a partir da relação do para-si com o emsi”. (BORNHEIM, 2000, p. 93). 41

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do Para-si, pois o que ocorre é que “[...] o Para-si tenta assimilar a liberdade do outro.” (SN, p. 454). Por esta razão a conduta fundamental é a reassunção daquilo que foi perdido procurando suprimir o Outro. Entretanto, para a constituição do mundo do Para-si, há a necessidade do Outro, e, portanto, é preciso preservá-lo em certo sentido. O reconhecimento do Outro ultrapassa os limites de uma experiência de conhecimento marcada pela relação entre sujeito e objeto. O Outro é visto como um Para-si, uma subjetividade além de um corpo. Nesse reconhecimento da alteridade é possível apreender o Outro como sendo portador de um mundo, como sendo projeto e, portanto, reconhecer que possui os seus próprios fins e projetos. Dessa forma, o que é reconhecido não é apenas Outro corpo que se apresenta diante da percepção, mas se reconhece uma unidade sintética entre consciência e corpo. Sendo um Para-si, é uma transcendência captável e, portanto, não se limita a pura apreensão do dado. No entanto, se não há a possibilidade de apreensão do Outro em uma experiência de conhecimento, resta somente a ideia de que a sua apreensão é uma experiência originária e não a posteriori. Assim, a presença do Outro se dá na e para a consciência, pois, sua existência é parte da estrutura fundamental do Para-si. O reconhecimento do Outro surge graças ao poder de negação da consciência, pois para que este exista para a consciência é preciso que haja uma negação interna do Para-si, ou seja, apreender o Outro como não sendo o Para-si que “sou”, e, portanto, o reconhecimento de uma subjetividade e não um objeto do mundo. Além da negação interna, o que possibilita o reconhecimento da alteridade é a disposição fundamental do Para-si para ser visto. A consequência disso é que as subjetividades se reconhecem mutuamente pela disposição constante de olhar o Outro como um Para-si e ter consciência de ser visto pelo mesmo. Dessa forma, ver implica ser visto.

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Avançando nas descrições sobre o reconhecimento do Outro, Sartre aponta a possibilidade de reconhecimento dos projetos e da liberdade dos outros nessa relação originária. Esse reconhecimento é possível porque ao apreender o Outro é possível também, se observar as situações em que está engajado, apreendê-lo como se lançando rumo a diferentes fins futuros, e, portanto, o reconhecimento de que este é um projeto individual ou uma totalização em curso. Entretanto, a disposição original para ser visto implica uma série de novos problemas, como por exemplo: a própria constituição do Parasi e a objetificação de seu ser. A experiência de ser visto provoca no Para-si uma desagregação de seu mundo, e este passa a ser captado pelo Outro. Dessa forma, a descentralização do mundo do Para-si, faz com que este seja captado ao modo de um objeto entre outros. O aparecimento do Outro e a experiência do olhar modificam o Para-si tornando-o assim uma exterioridade, e, portanto, como parte do mundo, como um Em-si. Entretanto, para que o Para-si possa obter algum conhecimento objetivo sobre si necessita que esse dado objetivo passe necessariamente pelo juízo do Outro. Dessa forma, os juízos objetivos que o Para-si pode efetuar sobre si são mediados pela presença do Outro que o qualifica. O mesmo se dá com a apreensão do corpo que é captado pelo Outro como estando situado no mundo, como um corpo entre outros corpos espacializados e que pode servir para a realização de seus empreendimentos. Assim, o Para-si está impossibilitado de fazer uso de seu corpo como instrumento para si mesmo, pois como visto anteriormente, se constitui como uma unidade sintética, e, portanto, não poderia fazer uso de seu próprio corpo a partir de uma perspectiva exterior, como um instrumento. Essa objetividade do corpo e das qualificações do ser do Para-si é revelada, conforme Sartre (2005), pelo fenômeno do olhar. Trata-se, de um fenômeno em que o Outro capta o Para-si de

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uma forma que este jamais poderia se captar, do mesmo modo que o Para-si capta o Outro como este nunca poderá ser captado por si mesmo. O Para-si, por ser desejo de ser um Em-si-Para-si, se caracteriza como perpétua totalização em curso. No entanto, a apreensão do Outro pelo olhar se dá de maneira ambígua, pois ao mesmo tempo em que há o reconhecimento de que este é um projeto livre, há também a apreensão do Outro como uma totalidade acabada, e, portanto, como objeto, como coisa. Desse modo, o olhar do Outro, faz com que a liberdade do Para-si se veja ameaçada, uma vez que ao apreendê-lo enquanto coisa, o qualifica como ser acabado e não mais um projeto livre que por meio da transcendência procura se totalizar. No entanto, essa apreensão do Para-si pelo Outro como um Em-si, revela algo que o sujeito é incapaz de realizar por si mesmo: a objetivação de seu próprio ser. Essa objetivação do Para-si somente pode ser realizada a partir do Outro que o qualifica deste modo, pois é impossível ao Para-si ser ao mesmo tempo sujeito e objeto para si. Assim, portanto, a intersubjetividade em Sartre revela a essência da realidade humana enquanto falta ou inacabamento. Pois, a possibilidade de ser um Em-si-Para-si se encontra petrificada na apreensão que o Outro faz desse Para-si, e já que a subjetividade do Outro é impossível de se atingir ou vivenciar, o desejo de ser se encontra irrealizável no Outro que apreende o Para-si como totalidade acabada. Pelo olhar do Outro o Para-si é arrancado de seu mundo, e, assim, vê sua liberdade ameaçada, pois o Outro o apreende para realizar os seus próprios desígnios e o qualifica. Assim, de súbito, apareceu um objeto que me roubou o mundo. Tudo está em seu lugar, tudo existe sempre para mim, mas tudo é atravessado por uma fuga invisível e fixa rumo a um objeto novo. A aparição do outro no mundo

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corresponde, portanto, a um deslizamento fixo de todo o universo, a uma descentralização do mundo que solapa por baixo a centralização que simultaneamente efetuo (SN, p. 330)

Por conseguinte, o Para-si deixa de ser soberano nas qualificações de seu próprio ser. Nas palavras de Sartre: “[...] o ser-visto constitui-me como um ser sem defesa para uma liberdade que não é minha liberdade.” (SN, p. 344) A dimensão do conflito se instaura na medida em que há o reconhecimento de que a subjetividade alheia possui o poder de fazer uso do projeto livre do Para-si para a realização de seus fins e da impossibilidade de este ter controle absoluto sobre as qualificações alheias que fazem de seu ser. O Outro é assim uma presença descrita como ameaça constante dos possíveis projetos do Para-si, uma vez que a presença do Outro é original, não há como escapar desta. Nesse sentido se constitui a dimensão do conflito entre as liberdades. A relação ao Outro é descrita por Sartre como essencialmente conflituosa. Duas liberdades ao entrarem em contato, originariamente, para resgatar o seu ser que foi arrancado de si pelo Outro, tentam limitar a liberdade alheia por meio de diferentes expedientes, por isso, recorrem a diferentes tentativas de utilizar-se do Outro como meio para realização de certos fins. Estas tentativas de posse da liberdade do Outro se caracterizam em uma dimensão ontológica originária pelo simples fato de que a liberdade é o único limite para a mesma, o que, por conseguinte, revela que as atitudes em relação ao Outro são dadas a partir da tentativa de limitar a sua liberdade. “Em suma, o outro pode existir para nós de duas formas: se o experimento com evidência, não posso conhecêlo; se o conheço, se atuo sobre ele, só alcanço o seu ser-objeto e sua existência provável no meio do mundo. Nenhuma síntese dessas duas formas é possível.” (SN, p. 384) Assim, as relações humanas se dão basicamente sob duas formas principais: a) a

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tentativa de apoderar-se da liberdade do Outro reconhecendo a sua alteridade; b) o próprio conflito das liberdades. Para a primeira, Sartre descreve a conduta amorosa, a linguagem e o masoquismo, e para a segunda, a indiferença, o desejo e o sadismo.3 Se nenhuma das tentativas de apoderar-se da liberdade do Outro são possíveis de ser realizados, resta somente o desejo de suprimir o Outro para que este não seja mais o guardião dos juízos objetivos sobre o Para-si. Trata-se, aqui, do ódio, da tentativa de eliminar o Outro. No entanto, essa tentativa também se frustra, pois os juízos que o Outro faz do Para-si não deixam de ter existido com a sua eliminação. Além disso, com a morte do Outro, se elimina completamente a possibilidade do Para-si modificar os juízos alheios. Assim, a morte do Outro representa a derrota do Para-si, pois com a sua morte o conhecimento objetivo que tinha de si mesmo se desvanece, transformando-o em objeto petrificado, acabado. Afora a relação intersubjetiva marcada pelo conflito e as tentativas fracassadas de fuga da liberdade, Sartre anuncia a possibilidade de uma moral edificada sob o conceito de responsabilidade. A ontologia não pode formular de per si prescrições morais. Consagra-se unicamente àquilo que é, e não é possível derivar imperativos de seus indicativos. Deixa entrever, todavia, o que seria uma ética que assumisse suas responsabilidades em face de uma realidade humana em situação. [...] Todas essas questões [...] só podem encontrar sua resposta

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No entanto, não se descreverá aqui cada uma destas atitudes, pois o objetivo é demonstrar a tentativa de posse e o conflito das liberdades como relação originária descrita em O ser e o nada, para posteriormente confrontar com a descrição da intersubjetividade presente nos Cahiers pour une morale.

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no terreno da moral. A elas dedicaremos uma próxima obra. (SN, pp. 763; 765).

Essas respostas, além das que estão dispersas em diferentes escritos, podem ser visualizadas com maior evidência na obra póstuma Cahiers pour une morale (1983) ao se debruçar sobre o tema da conversão da liberdade. Nesta obra, trata-se, sobretudo, de uma liberdade que não vive mais intersubjetivamente no conflito, mas que adere a generosidade como possiblidade de relação harmoniosa, e, assim, em uma autêntica relação com os outros. Além disso, é caracterizada como autêntica liberdade individual, pois apesar de reconhecer o seu fracasso enquanto realização do desejo de ser um Em-siPara-si, se assume como única responsável pela constituição da realidade humana em situação. 2. O aspecto moral da liberdade convertida e a intersubjetividade harmônica Se em O ser e o nada Sartre nos mostra o olhar do Outro como revelador da subjetividade do Para-si, nos Cahiers pour une morale, nos mostra o Outro como um Para-si revelado. Na obra de 1943 a relação com o Outro é descrita sem levar em consideração o aspecto desta relação após a conversão. A relação autêntica descrita nos Cahiers pour une morale não é uma simples supressão do conflito das liberdades, mas a afirmação desta relação originária e também de uma possível relação harmoniosa. N’O ser e o nada há ausência da esfera do reconhecimento e da compreensão da liberdade do Outro, pois esta se revela como tensão constante, como luta, como afirmação de uma liberdade diante de outras liberdades. Na obra posterior é possível constatar justamente aquilo que faltava na anterior, ou seja, a dimensão do reconhecimento e da compreensão da liberdade do Outro como apelo e 47

Sartre e as relações intersubjetivas

generosidade. No entanto, é preciso ressaltar que esta relação não suprime a tensão e o conflito das liberdades, mas sim preserva e vivencia esta relação ao mesmo tempo em que vivencia a relação harmônica. Trata-se, portanto, de uma relação marcada pela ambiguidade, pois por um lado o Outro é tido como um objeto dado à consciência e por outro como liberdade que é apreendida em meio aos seus próprios fins. A vivência desta ambiguidade no plano moral é o que Sartre descreve como a possibilidade de autenticidade, e esta consiste na apreensão do Outro enquanto liberdade em seus próprios fins e não mais como objeto ou como possibilidade de incorporação na realização de fins puramente individuais; e, sobretudo, do reconhecimento da dimensão de sua contingência e vulnerabilidade diante do mundo. Sartre afirma: “Se eu entendi o que é um homem e operei a conversão, eu não quero simplesmente que o projeto seja realizado, eu espero que ele o seja pelo homem, ou seja, através da contingência e da fragilidade.” (CPM, p. 522). A relação autêntica descrita nos Cahiers pour une morale é uma relação de apreensão da liberdade do Outro como exigência para a realização da mesma. Por isso, a forma dessa relação se dá pela via do apelo e da generosidade. A relação autêntica com o Outro não comporta uma anulação do projeto individual ou negação do Para-si para a realização dos fins do Outro. O que está em jogo aqui, não é a elevação de uma liberdade sobre a outra, mas sim, o reconhecimento das mesmas como impensáveis sem a dimensão do projeto fundamental e sem a exigência do apelo e a generosidade da resposta de uma subjetividade que apreende a outra no seio de seu ser. Nas relações concretas com o Outro, a generosidade, apesar de descrita por Sartre em apenas um exemplo4, que deixa a desejar em termos concretos, indica a possibilidade de 4

Cf. CPM, p. 290. O exemplo em questão é o do homem que corre em direção a um ônibus. 48

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realização da mesma a partir de três atitudes fundamentais. A primeira atitude consiste no Para-si transcender o todo a partir de seus próprios fins, apreendendo a liberdade do Outro como objeto qualificado, o que, por conseguinte, significa a não compreensão e a supressão da liberdade do Outro. A segunda atitude do Para-si em relação ao Outro está próxima das descrições contidas em O ser e o nada, pois significa reconhecer os fins do Outro e ao mesmo tempo apropriar-se desses fins. O que continuaria em uma relação de inautenticidade, pois os fins do Outro se tornam objetos de realização dos fins do Para-si. A única forma de atitude autêntica descrita por Sartre seria compreender os fins do Outro, ao mesmo tempo em que se preserva a autonomia de realização desses mesmos fins, afirmando que: “A única forma autêntica do querer é querer que o fim seja realizado pelo Outro. E querer aqui é se engajar na operação. Mas não para realizar a si mesmo: para modificar a situação de tal sorte que o Outro possa operar.”(CPM, p. 290). A generosidade que ocorre na relação autêntica com o Outro, consiste em não abdicar dos próprios fins, mas a partir da compreensão dos fins do Outro, em um ato de generosidade, possibilitar que ele realize também os seus fins na medida em que o Para-si se dispõe livremente para realizar os fins do Outro. É possível afirmar que há uma ambiguidade na relação do Para-si autêntico com a realidade humana e nas suas relações com o Outro. Pois, ao mesmo tempo em que pretende uma busca por autenticidade pelo reconhecimento e tematização do projeto fundamental enquanto fracasso, existe a possibilidade de tornar esse fracasso edificante sob o pronto de vista moral. Seja a partir da construção da possibilidade de um mundo completamente humano, seja pelo reconhecimento da liberdade do Outro e da exigência de não abandonar os próprios fins, ou uma relação de generosidade na qual se adota livremente os fins do Outro. Como conciliar a ambiguidade

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Sartre e as relações intersubjetivas

entre o fracasso inevitável da realização do projeto fundamental e a dimensão do conflito presentes em O ser e o nada, e a realização da realidade humana por uma subjetividade que se reconhece autêntica e se relaciona com os outros sob uma perspectiva harmônica descrita nos Cahiers pour une morale? Nos Cahiers pour une morale Sartre dedica atenção ao tema da conversão moral, a qual consiste em uma conversão de uma liberdade alienada em liberdade autêntica. Assim, a conversão da liberdade torna-se a condição necessária para a efetivação de uma moral, entendida por sua vez como possibilidade de realização humana ao converter-se. Essa conversão é possível graças à reflexão pura que faz com que o Para-si se reconheça como o ser pelo qual toda realidade humana é possível, ao mesmo tempo em que reconhece que este empreendimento somente é realizável em sua absoluta contingência e finitude. Assim, se em O ser e o nada há a descrição do Para-si como fuga da liberdade e queda na má-fé, nos Cahiers pour une morale a moral viria a complementar os resultados de sua ontologia de modo a estabelecer uma autêntica liberdade, algo que não caberia nas descrições da obra de 1943. Pois, nesta, a liberdade era descrita sob o aspecto pré-moral. Não se trata de uma liberdade que se transforma em outra, mas sim, de uma liberdade que resgata a si de sua condição de “queda” na inautenticidade. Assim, a liberdade convertida é tratada como a passagem de uma liberdade que se encontra alienada e degradada para a descoberta da essência própria dessa liberdade. Na conversão, pela via da reflexão purificante, a consciência recupera o seu caráter espontâneo, e, desse modo, a moral em Sartre é pensada a partir de possibilidades autênticas de uma consciência purificada. Melhor dizendo: a consciência purificada deixa de negar a sua contingência absoluta, deixa de estar submersa na má-fé, deixa de procurar identificar-se com o

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Em-si, e assim, converte-se em autêntica. No entanto, é esta uma conversão permanente, pois não se baseia em novos valores absolutos, caso assim o fosse deixaria de ser livre. Trata-se de uma liberdade que necessita a todo instante afirmar-se como fundamento de tudo e que ao mesmo tempo nada lhe serve de fundamento além de si mesma. Assim, a conversão está associada à ideia de escolha, pois escolher e fazer a si mesmo implicam constantes “conversões” motivadas pelo estranhamento a si causado pela falta de nexo causal entre um projeto atual e outro passado. A conversão, portanto, adquire um sentido de ser permanente5, por isso a liberdade continua disposta para mudar ou permanecer como estava. Dessa forma a conversão se traduz em uma das múltiplas formas da liberdade. Para Sartre, “[...] a base única da vida moral deve ser a espontaneidade, isto é, o irrefletido.” (CPM, p. 12). Assim, a inautenticidade possui prioridade ontológica sobre a autenticidade, pois para que haja a conversão da liberdade – e esta se dá no plano reflexivo – é necessário haver também o plano irreflexivo como base fundamental a partir da qual se pode tematizar ou questionar as razões do fracasso do desejo de ser, pois “[...] a reflexão nasce como um esforço da consciência para se recuperar” (CPM, p. 19). As razões pelas quais o homem efetua a passagem de uma reflexão impura para uma pura é, em um primeiro momento, motivada pela experiência do Outro que leva o Para-si a descobrir que a sua liberdade inalienável é o motivo de sua própria alienação6. Outra razão é 5

“A moralidade: conversão permanente. No sentido de Trotsky: revolução permanente. Os bons costumes: não são nunca bons porque são costumes.” (CPM, p. 12). 6 “Por alienação entendemos um certo tipo de relação que o homem tem consigo, com o outro e com o mundo, e em que ele põe a prioridade ontológica do Outro. O Outro não é uma pessoa determinada, mas uma categoria ou, se quisermos, uma dimensão, um elemento. Não há objeto ou sujeito privilegiado que deva ser considerado como Outro, mas tudo pode 51

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a descoberta do fracasso de determinar-se como um Em-siPara-si. Por estes motivos, é que a inautenticidade é o ponto de partida para a possível conversão da liberdade, e esta conversão se dá, sobretudo, no terreno moral. No modo de ser autêntico ocorre a rejeição do projeto fundamental de ser um Em-si- Para-si. Assim, a ideia de não mais apropriar-se do Em-si se liga a assunção de uma existência que se reconhece em sua absoluta contingência, facticidade e finitude como estas vem à tona na reflexão pura. Como consequência, há também a rejeição da fuga na má-fé. Dessa maneira, o indivíduo autêntico mantem uma relação original com o seu próprio projeto, visto que o único valor que seus projetos possuem são aqueles eleitos pelo mesmo. Como afirma Sartre: “Chegamos, pois, ao tipo de intuição que desvelará a existência autêntica: uma contingência absoluta que não se tem senão a si para se justificar assumindo-se, e que não pode assumir-se senão no interior de si.” (CPM, p. 498). Contudo, esse desvelamento somente se dá por meio da ação concreta, e esta pressupõe criação de si e do Outro. Dessa forma, o modo de existir autêntico pressupõe a generosidade como estrutura fundamental, pois o Para-si “Salva o Ser que, com efeito, não será nunca Para-si mas para um existente que é para-si” (CPM, p. 500). A reflexão pura torna explícito que o modo fundamental do agir humano é a generosidade, o que em parte justifica a afirmação de que o Para-si é o ser que faz com que apareça o ser. Além do aparecimento do ser e de outras formas de generosidade, é possível citar o reconhecimento da liberdade do Outro e do reconhecimento de seus projetos individuais, o que possibilitaria uma livre eleição dos fins do Outro sem abdicar de seus projetos individuais. Dimensão esta, que caracterizaria ser Outro e Outro pode ser tudo.” (CPM, p. 396) Mais adiante: “Compreendo-me através de meus bens e das minhas obras e dou-me o tipo de ser do objeto.” (CPM, p. 484-485). 52

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as relações autênticas com os outros, e, portanto, um ponto de convergência do ambíguo tratamento que Sartre da ao problema moral da liberdade e seus empreendimentos intersubjetivos. N’O ser e o nada, como descrito anteriormente, as relações intersubjetivas estão marcadas pelo signo do conflito e nesse sentido a responsabilidade também se estende a essa perspectiva, pois “[...] os outros, enquanto transcendênciastranscendidas, tampouco são mais do que ocasiões e oportunidades, a responsabilidade do Para-si se estende ao mundo inteiro como mundo-povoado” (SN, p. 681, grifos do original). Por outro lado, em O existencialismo é um humanismo, descreve a esfera da responsabilidade sobre os outros em diversos momentos a partir do desejo de afirmação e conquista da liberdade dos outros, pois a liberdade individual estaria atrelada à liberdade alheia. “E querendo a liberdade, descobrimos que ela depende inteiramente da liberdade dos outros, e que a liberdade dos outros depende da nossa” (SN, p. 40). Dessa forma, afirma o aspecto moral da liberdade que não é destacado em O ser e o nada. Porém, esse mesmo aspecto moral da liberdade está presente em seu escrito póstumo de 1983, Cahiers pour une morale, no qual a liberdade é descrita em seu outro modo de ser. Uma liberdade autêntica capaz de reconhecer os fins dos outros e adota-los livremente sem abdicar dos seus projetos individuais. Nesta obra, Sartre procura tratar um outro aspecto da liberdade e da alteridade que faltam em O ser e o nada, no qual a liberdade é caracterizada essencialmente como má-fé e a intersubjetividade como conflito. É preciso ressaltar aqui que, apesar da publicação póstuma dos Cahiers pour une morale, o mesmo foi redigido no período de elaboração de O existencialismo é um humanismo, publicado pela primeira vez em 1946, e, talvez, a mudança de um discurso puramente ontológico para uma preocupação com o plano moral seja o reflexo de uma época

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Sartre e as relações intersubjetivas

em que suas preocupações estavam voltadas para exigências externas e preocupações pessoais acerca de uma fundamentação ética do existencialismo. A descoberta do Outro no período que se segue à publicação de O ser e o nada foi expresso publicamente da seguinte maneira: O outro é indispensável para minha existência, tanto quanto, ademais, o é para o meu autoconhecimento. Nestas condições, a descoberta do meu íntimo revela-me ao mesmo tempo, o outro como uma liberdade diante de mim, que sempre pensa e quer a favor ou contra mim. (EH, p. 34, grifo nosso)

Assim, afirma a possibilidade de ultrapassar a má-fé e pensar a intersubjetividade não mais sob o signo do conflito, mas como uma relação harmônica em que o que está em jogo não é mais a elevação de uma subjetividade sob a outra para a realização de seus projetos individuais, mas duas liberdade que colocadas diante uma da outra respondem ao apelo da outra sob diferentes formas de generosidade, como por exemplo, a possibilidade de reconhecer os projetos do Outro e adotar os seus fins em uma relação harmônica. Possibilidade esta, visualizada nos Cahiers pour une morale.

Conclusões inacabadas Nos Cahiers pour une morale, Sartre, põe em evidência o outro modo de ser da liberdade. Essa liberdade é descrita sob a possibilidade da autenticidade, a qual consiste em, por meio da reflexão pura, descobrir que o projeto fundamental de tornase um Em-si-Para-Si está fadado ao fracasso. No entanto, não se trata de uma resignação, mas a descoberta de que o homem é 54

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o único responsável pelo que faz de si mesmo e da realidade humana. Nas relações autênticas com os outros a dimensão do conflito não é suprimida, porém Sartre indica que há possibilidade de reconhecimento do apelo do Outro. Assim, procura demonstrar que nas relações autênticas é possível ultrapassar o conflito e estabelecer uma harmonia intersubjetiva mesmo que temporária. Essa harmonia se daria pela via de uma resposta moralmente responsável de uma subjetividade que reconhece os fins do Outro como apelo para generosamente adotar os seus fins. Portanto, a relação autêntica com o Outro significa, sobretudo, que existe a possibilidade de duas subjetividades que, colocadas uma diante da outra, não mais se relacionam como meios para realização de seus respectivos projetos, mas sim a livre adoção dos fins do Outro sem que seja necessário abdicar dos seus próprios fins. Se em O ser o nada o encontro das liberdades é marcado pelo conflito, nos Cahiers pour une morale Sartre abre a possibilidade do reconhecimento destas liberdades e, portanto, a possibilidade de resposta de uma subjetividade que apela pelo reconhecimento dos fins de sua ação em uma relação autêntica vivida sob uma perspectiva harmônica. Tratase, portanto, de uma moral fundada no apelo e na resposta de subjetividades que, colocadas diante uma da outra, possibilitam a autonomia de realização de seus respectivos projetos individuais. No entanto, é preciso levar em consideração que a exposição desse outro aspecto da liberdade contido nos Cahiers pour une morale, não resolve por completo as questões deixadas em aberto em O ser e o nada. Assim, se a proposta desta pesquisa é investigar a compatibilidade entre as teses sobre a liberdade e a alteridade, especialmente a partir de O ser e o nada e dos Cahiers pour une morale, é preciso investigar o percurso das intenções da filosofia moral de Sartre para que esta deixe de ser compreendida como um simples paradoxo

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insolúvel, e sim como uma ambiguidade necessária para a fundação de uma ontologia moral.

Referências bibliográficas BORNHEIN, Gerd A. Sartre: metafísica e existencialismo. São Paulo: Perspectiva, 2000. SARTRE, Jean-Paul. A Transcendência do Ego seguido de Consciência de si e Conhecimento de si. Trad. e intro. de Pedro M. S. Alves. Lisboa: Edições Colibri, 1994. [TE] _____. Cahiers pour une morale. Paris: Gallimard, 1983. [CPM] _____. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. 13ª ed. Trad. Paulo Perdigão. Petrópolis: Vozes, 2005. [SN] _____. O existencialismo é um humanismo. 3ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. [EH]

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LINGUAGEM SENSITIVA E LINGUAGEM INTELECTIVA EM SANTO AGOSTINHO Dinno Camposilvan Zanella1

Introdução Aurélio Agostinho, em latim Aurelius Augustinus, religioso e teólogo cristão, Doutor da Igreja sistematizou a doutrina cristã com enfoque neoplatônico. É considerado "o último dos antigos" e o "primeiro dos medievais", Santo Agostinho foi o primeiro filósofo a refletir sobre o sentido da história, mas tornou-se acima de tudo o arquiteto do projeto intelectual da Igreja Católica. Nasceu em Tagaste, atualmente Suk Ahras, na Numídia, atual Argélia, em 13 de novembro de 354 d.C. Seu pai chamava-se Patrício e era um homem pagão e de posses, que no final da vida se converteu ao cristianismo. Sua mãe era uma cristã de muita fé e chamava-se Mônica, e posteriormente tornou-se santa. Agostinho estudou retórica em Cartago, onde aos 17 anos passou a viver com uma concubina com quem teve um filho chamado Adeodato. Cada vez mais interessado pelo cristianismo, Agostinho, que era pagão, viveu longo conflito interior. Voltou-se para o estudo dos filósofos neoplatônicos, renunciou aos prazeres físicos e em 387 d.C. foi batizado por santo 1

Possui Graduação no curso de Filosofia na Universidade Federal de Pelotas. É atualmente Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Pelotas como bolsista CAPES. Tendo a orientação do professor Dr. Sérgio Ricardo Strefling para a realização deste artigo. E-mail: [email protected] 57

Linguagem sensitiva e linguagem intelectiva

Ambrósio, junto ao filho Adeodato. Tomado pelo ideal da ascese, decidiu fundar um mosteiro em Tagaste, onde nascera. Nesta época perdeu a mãe e, pouco depois, o filho. Ordenado padre em Hipona (391 d.C.), pequeno porto do Mediterrâneo, também na atual Argélia, foi em 395 d.C. feito bispo-coadjutor de Hipona, passando a titular com a morte do bispo diocesano Valério. Não tardou para que fundasse uma comunidade ascética nas dependências da catedral. Em sua vida e em sua obra, Santo Agostinho testemunha acontecimentos decisivos da história universal, como o fim do Império Romano e da antiguidade clássica. O poderoso estado que durante meio milênio dominara a Europa esfacelava-se em lutas internas e sob o ataque dos bárbaros. Em 410 d.C., Agostinho viu a invasão de Roma pelos visigodos e, pouco antes de morrer, presenciou o cerco de Hipona pelo rei dos vândalos, Genserico. Nesse clima, em que os cismas e as heresias eram das poucas coisas que prosperavam, ele estudou, ensinou e escreveu suas obras. As principais obras de santo Agostinho são: “Contra Acadêmicos”2, “De Trinitate”3, “De civitate Dei”4, “Confissiones”5, “De vita Beata”6 e “De libero arbitro”7. 2

Contra os Acadêmicos: No retiro de Cassicíaco, logo após sua conversão, Agostinho escreveu este diálogo. Realizando uma engenhosa argumentação sobre os sentidos como fonte de verdade. O erro está nos juízos que se faz sobre as sensações e não delas próprias. A sensação como tal não é falsa, mas quando expressa uma verdade externa ao próprio sujeito torna-se falsa. Assim, os céticos não poderiam refutar se alguém dissesse: “Eu sei que isto me parece branco.” Limito aqui a minha percepção encontrando ai a verdade, verdade da qual não pode ser negada, ou contestada. Agora se digo: “Isto é branco.” Aqui neste caso, há a possibilidade de se cometer erro. Pois, existiria uma verdade absoluta que estaria implicada na percepção do objeto. 3 Da Trindade: sistematização da teologia e filosofia cristãs, divulgada de 400 a 416 em 15 volumes. 4 A Cidade de Deus: divulgada de 413 a 426, em que são discutidas as questões do bem e do mal, da vida espiritual e material, e a teologia da 58

Dinno Camposilvan Zanella

Contra o maniqueísmo, sustenta a liberdade do homem; contra o pelagianismo, o valor da graça. A visão agostiniana da história é completamente diferente da visão da graça: não mais ciclos que se repetem periodicamente, mas um caminho em linha reta que sobe da terra para o céu. No pensamento de Santo Agostinho, o ponto de partida é a defesa dos dogmas (pontos de fé indiscutíveis) do cristianismo, principalmente na luta contra os pagãos, com as armas intelectuais que advém da filosofia helenístico-romana, em especial dos neoplatônicos como Plotino. Para pregar o Novo Evangelho, é indispensável história. Aqui Agostinho leva a argumentação a cerca do conhecimento, as ultimas consequências antecipando desta forma o cogito cartesiano com a afirmação: “Si fallor sum.” “Se me engano, eu sou, pois aquele que não é não pode ser enganado.” Assim, Agostinho afirmava a certeza da própria existência. 5 Confissões: sua autobiografia, divulgada por volta de 400; e muitos trabalhos de polêmica (contra as heresias de seu tempo), de catequese e de uso didático, além dos sermões e cartas, em que interpreta minuciosamente passagens das Escrituras. 6 A vida feliz: Solilóquios é o título que o próprio Agostinho deu a esta obra, que se compõe de 2 livros e 35 capítulos, 15 no Livro I e 20 no Livro II. A obra é inacabada, como se lê no fim do Livro II. Um terceiro livro estava previsto, no qual Agostinho trataria especificamente do tema da inteligência relacionado com a imortalidade da alma. Infelizmente não o temos, porque os trabalhos pastorais logo iriam absorver totalmente o tempo de Agostinho. Após sua conversão, ele retirou-se em Cassicíaco, uma aldeia ao norte da Itália, cuja localização atualmente dificilmente se pode identificar. Ali lhe fora cedido o uso de uma chácara por um nobre senhor de nome Verecundo, onde Agostinho passou os primeiros anos após sua conversão, em companhia de sua mãe Mónica e de seus amigos, para total dedicação ao estudo, à filosofia, à meditação e satisfação de seu anseio: a procura de Deus e da verdade, tema central desta obra. O método usado nesta obra e em outros diálogos escritos nessa época é o de perguntas e respostas. Era o método pedagógico utilizado na época, em que o instrutor ou professor dialogava com o discípulo, levando-o a uma conclusão através de raciocínios, às vezes até absurdos, para chegar à conclusão desejada. 7 O Livre-arbítrio: Afirma que o mal não deriva de Deus, mas das criaturas, à medida que não é uma realidade positiva, mas uma privação da realidade. 59

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conhecer a fundo as Escrituras, que só podem ser bem interpretadas por meio da fé, pois apenas esta sabe ver na revelação, a verdade divina. Compreender para crer e crer para compreender, tal é a regra a seguir. O problema8 a ser discutido é a relação entre linguagem, educação e fala. Enfatizando como acontece a comunicação no pensamento filosófico de Santo Agostinho. Problema que Agostinho tenta resolver em suas obras. O problema de como chegamos à verdade (“onde ela está?”). Com relação à linguagem questiona-se: “Como nos comunicamos?”, “Esta comunicação é realizada de que maneira?” A função da palavra numa tentativa de transmissão de conhecimento. “Uma linguagem exterior é capaz de mostrar a verdade, dar significado por si só?”. Para a solução destes problemas pretendo usar o conhecimento filosófico contido em algumas de suas obras, a saber: “Confissões” e “De Magistro”. Na obra “Confissões” pode-se perceber o desenvolvimento da temática acerca do conhecimento humano. Trata-se de conhecer as coisas a partir de uma confissão sincera, de quem busca, a partir dos erros e acertos cometidos na vida, assim conhecer a verdade. Esta busca é realizada na forma de oração: uma súplica a Deus para que o ilumine na tentativa de encontrar a verdade. Nesta reflexão, Agostinho questionará seus atos, questionará também o conhecer, em especial a busca pelo conhecimento verdadeiro: “Onde reside?” “Quando estamos falando ou escrevendo podemos errar em nossas afirmações?” “Estes erros cometidos por nós nos tornam 8

O primeiro problema filosófico abordado por Agostinho após sua conversão foi o dos fundamentos do conhecimento, pois, na época, era preciso de uma resposta urgente. Discussão que antes era realizada nos limites da “Nova Academia platônica”, sendo dominada pelas analises de Arcersilau (315-241 a.C) e Carnéades (214-129 a.C), que sustentavam a tese de que não é possível encontrar um critério de evidência absoluta e indiscutível, o conhecimento limitando-se ao meramente verossímil, provável ou persuasivo. 60

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ignorantes?” “Nossa memória intelectiva, ou o conhecimento interior, é capaz de fazer com que saibamos usar a comunicação de maneira adequada?” “O conhecimento só pode ser adquirido pelo estudo do mundo interior, pela alma?”. Na obra “De Magistro”, podemos perceber por meio do diálogo com o filho Adeodato, o desenvolvimento do problema da relação entre linguagem e educação. Problema resolvido no transcorrer do diálogo. Diálogo que parte de questionamentos do tipo: “O que se deseja quando se fala?”, ou seja, quando nos comunicamos temos alguma pretensão, algum desejo advindo daquela comunicação. “Qual é a pretensão que se tem quando estamos falando?” “Como é realizada a educação de uma pessoa, a relação entre ensinar e aprender?” “O conhecimento está no interior de cada ser humano?”. São questões que o santo aborda na tentativa de encontrar o conhecimento verdadeiro, do qual não se pode suspeitar ser falso ou conter erro. A obra de Santo Agostinho é imensa, de extraordinária riqueza. Antecipa o cartesianismo e a filosofia da existência; funda a filosofia da história e domina todo o pensamento ocidental até o século XIII, quando dá lugar ao tomismo e à influência aristotélica. Voltando à cena com os teólogos protestantes (Lutero e, sobretudo, Calvino), é hoje um dos alicerces da teologia dialética. Santo Agostinho morreu em Hipona, em 28 de agosto de 430 d.C. E nessa data, é festejado como doutor da igreja.

1. Linguagem sensitiva (primitiva) Na obra “De Magistro”, ou “Do Mestre”, Agostinho9 por meio de um diálogo com seu filho Adeodato10, apresenta 9

Nas citações Santo Agostinho aparecera como: AG. Nas citações Adeodato aparecera como: AD.

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Linguagem sensitiva e linguagem intelectiva

um texto com amplo aspecto para o pensamento filosófico quanto para pedagogia. O que tange entorno desta obra é, uma problematização filosófica acerca da educação, em um sentido de relacionar: linguagem, forma de comunicação, ensino e aprendizagem. O que a torna uma obra importante para a época e para a compreensão de uma epistemologia agostiniana. O “De Magistro” coloca-se, bem no meio da grande problemática filosófica da época, ou seja, esta no centro do problema filosófico inerente a educação, cultura e transmissão de conhecimento. Inicia os questionamentos na tentativa de responder a possíveis perguntas: “Como é possível à educação?” ou a outra pergunta anterior: “É possível efetivamente à educação?” Ou seja, pretende-se aqui tratar sobre a relação mestre e aluno, o que se mostra no capítulo primeiro da obra, que desta relação a uma constante entre ensinar, por parte do mestre e aprender, por parte do aluno. Agostinho começa sua obra não criando discussões sobre tais problemas, mas sim com possíveis soluções acerca de: “Como e possível à educação?” O que não é questionado logo de inicio, mas sim a “utilidade da linguagem”. Qual a utilidade da linguagem, para que serve e por que usamos do modo como a usamos? A linguagem é um instrumento prático através da qual estamos em grau de ensinar e de dar informações, de evocar a memória fatos ou conceitos e recordá-los aos outros: ela expressa a vontade de quem fala. O pensamento de Agostinho, ainda que não tematize diretamente o problema da pedagogia, parte, porém, de uma verdadeira e própria equação entre a educação ou, ao menos, o ensinamento, e a própria linguagem11.

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SANTOS, Bento Silva. O De Magistro de S. Agostinho e o Problema da Linguagem, p. 4. 62

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Todavia, o que Agostinho realmente questiona neste primeiro capitulo em relação à utilidade da linguagem é: “O que queremos quando falamos12?" AG — Que te parece que pretendemos fazer quando falamos? AD — Pelo que de momento me ocorre, ou ensinar ou aprender. AG — Vejo uma dessas duas coisas e concordo; com efeito, é evidente que quando falamos queremos ensinar; porém, como aprender? AD — Mas, então, de que maneira pensas que se possa aprender, senão perguntando? AG — Ainda neste caso, creio que só uma coisa queremos: ensinar. Pois, dize-me, interrogas por outro motivo a não ser para ensinar o que queres àquele a quem perguntas?13

Seu filho responde que se pretende: “ou ensinar, ou aprender” “aut docere, aut discere”. O que Agostinho não aceitou como resposta, em parte, pois não pretende negar, mas fazer alguns acertos, ou seja, reformular a resposta, corrigindo certos equívocos. Embora entre os termos: “aut docere, aut discere”, Agostinho prefira usar somente o termo: “docere”, pois quem fala também esta aprendendo além de ensinar, e com relação a esse ensina Agostinho ainda acrescentaria antes de “discere”, “commemorare”, que é o ensinamento não só para com os outros, mas também fixar o conhecimento em nós e em 12

A definição do que chamamos “falar” é dada no De Magistro I, 2: “Qui enim loquitur suae voluntatis signum foras dat per articulatum sonum” (“O que fala mostra exteriormente o sinal de sua vontade pela articulação do som”). Nesta definição entram os seguintes elementos: uma vontade interna, que dá a conhecer o que quer; alguns sinais com os quais manifesta seu desejo; alguns sons articulados, ou palavras, que são veículo de ideias: não são simples sons ou vozes, como os que podem emitir os animais, mas são articulados, formando grupos de sílabas que expressam uma realidade e emitem exteriormente o que há dentro da vontade e do pensamento. 13 AGOSTINHO, Santo. De Magistro, I. 63

Linguagem sensitiva e linguagem intelectiva

nossa memória, “quoddam genus docendiper 14 commemorationem” . Agostinho refutara esta posição de Adeodato com os exemplos do canto e da oração. Será que com o cantar não nos propomos também a ensinar e aprender como o que foi afirmado inicialmente que acontece com o falar? Quem canta só emite palavras, sons, não que quem escute de repente esteja interessado em ensinar. Uma das formas de ensinar que o Santo coloca como uma das mais valiosas é a recordação. Pois a usamos de dois modos: para ensinar e aprender, ao lembrarmos as recordações em nós mesmos e nos outros, como pode acontecer quando cantamos. O que Adeodato discorda porque, para ele, quando cantamos não nos interessamos pelas lembranças, mas sim um agradar-se, deleitar-se com os prazeres e a beleza do canto. AG — Compreendo o que queres dizer; mas não percebes que o que te deleita no canto não é senão uma certa modulação do som, que, pelo fato de se poder acrescentar ou subtrair às palavras, faz com que uma coisa seja o falar e outra o cantar? Em verdade, também com a flauta e a citara se emitem modulações, cantam também os pássaros, e nós mesmos, às vezes, entoamos um motivo musical sem palavras, o que se pode chamar canto, mas não fala; 15.

Portanto, segundo Agostinho, o canto não pode ser considerado como fala porque não haveria uma intenção de ensinar e aprender no cantar, como propomos no inicio, como fundamento para o falar. O que no canto estaria mais para uma 14

Este modo de ensinar per commemorationem parece aludir à doutrina platônica da reminiscência, mas Agostinho jamais admitiu o mito da preexistência das almas, e igualmente ignorou a teoria da reminiscência. A doutrina da iluminação supriu à da reminiscência platônica. 15 AGOSTINHO, Santo. De Magistro, I. 64

Dinno Camposilvan Zanella

relação de modulação de som e palavras em um ritmo. Não havendo uma pretensão de transmissão de conhecimento, um simples deleite dos prazeres sensoriais faz com que o animo da pessoa que canta para si, ouve ou canta para outros, fique em um estado de felicidade momentânea. Mas ainda não seria o auge de sua felicidade, o qual seria a paz. Com relação à oração, Adeodato irá questionar a respeito do que rezamos e também do que estamos falando. Se falamos, é porque estamos buscando ensinar e aprender. O que não pode ocorrer, pois, em uma oração. Não há a pretensão nem de ensinar e nem de aprender, ou ainda de relembrar algo a Deus. Como poderá ser observada na citação, essa é a resposta de Santo Agostinho ao questionamento sobre a oração. AG — Tenho a impressão de que não sabes que, se nos foi ordenado rezar em lugares fechados, expressão que significa o espaço secreto da alma, o foi porque Deus não quer ser lembrado de algo ou ensinado por nossas palavras, para conceder-nos o que desejamos. Quem fala, pois, dá exteriormente o sinal da sua vontade por meio da articulação do som: mas devemos procurar Deus e suplicar-lhe no mais íntimo recesso da alma racional, que se denomina o homem interior; quis Ele que fosse este o seu templo. Não leste no Apóstolo: "Não sabeis que sois o templo de Deus e que o espírito de Deus 1 Mt 6,6. habita em vós", e que "Cristo habita no homem interior?" E não reparaste no que diz o Profeta: "Falai dentro dos vossos corações e nos vossos leitos arrependei-vos: oferecei os sacrifícios da justiça e confiai no Senhor"? Onde crês que se podem oferecer os sacrifícios da justiça a não ser no templo da mente e no íntimo do coração? Onde se fizer o sacrifício, aí também se há de orar. Por isso não são de mister palavras quando rezamos, isto é, palavras soantes, exceto, talvez, no caso do sacerdote que expressa pela palavra 65

Linguagem sensitiva e linguagem intelectiva

o seu pensamento, mas não para que Deus, e sim os homens ouçam, e, por meio do consentimento na recordação, sejam elevados até Deus. Ou não pensas assim? 16.

Esta objeção criada por Adeodato, sobre o canto e a oração, demonstra que a linguagem nem sempre será uma instrução, mas toda a instrução será necessariamente uma forma de linguagem. Ao passo que sem falar, ou poder exprimir seus conhecimentos, um mestre jamais poderá ensinar. Do mesmo modo ocorre com a oração, pois não há uma intenção de lembrar Deus ou de ensiná-lo pelas palavras. Pois, na oração Deus não faz outra coisa senão ouvir a nossa oração. Acontece, pois, que o Senhor da vida não nos ensina as palavras, mas pelo significado delas, aquilo que devemos aprender, ou seja, as coisas que as pessoas pedem em suas preces. AG — Entendeste certo: creio também teres notado, apesar de haver quem não concorde, que, mesmo sem emitir som algum, nós falamos enquanto intimamente pensamos as próprias palavras em nossa mente; assim, com as palavras nada mais fazemos do que chamar a atenção; entretanto, a memória, a que as palavras aderem, em as agitando, faz com que venham à mente as próprias coisas, das quais as palavras são sinais17.

Podemos notar que, até mesmo quando não emitimos nenhum tipo de som, ou seja, quando não emitimos som algum, estamos, portanto, falando no interior da nossa mente, nos nossos pensamentos. O que caracteriza os sons que fazemos como maneiras de chamar a atenção pela memória. No entanto, a memória que as palavras aderem são as próprias coisas 16 17

Ibidem. Ibidem.

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Dinno Camposilvan Zanella

realmente ou sinais derivados das palavras produzidas a partir da mente.

2. Linguagem intelectiva (iluminação divina) O questionamento que faço agora é: “O ser humano conhece a verdade de que maneira?” Como aprendemos? Como temos um conhecimento das coisas, das palavras, dos significados que cada um dos sinais representa? Assim, chego à questão que Agostinho mostra no capítulo X do livro “De Magistro”: “Qual a diferença entre ensinar e significar?” Exposto na citação abaixo. AG — Ensinar e significar são a mesma coisa ou diferem em algo? AD — Creio que a mesma. AG — Fala corretamente quem diz que nós usamos de sinais (que significamos) para ensinar? AD — Sem dúvida. AG — Se alguém dissesse que ensinamos para usar sinais (para significar), não seria facilmente refutado pela afirmação precedente? AD — Seria. AG — Se, portanto, usarmos os sinais para ensinar, não ensinamos para usar os sinais: uma coisa é ensinar e outra é usar os sinais (significar). AD — Dizes a verdade, e eu não respondi corretamente dizendo que são a mesma, coisa. AG — Agora, responde a isto: quem ensina o que é ensinar o faz usando sinais ou diversamente? AD — Não vejo como o poderia fazer diversamente. AG — Então é falso o que há pouco disseste, isto é, que não se pode ensinar sem sinais a quem pergunte o que é ensinar, porque estamos vendo que nem isto sequer podemos fazer sem usar sinais, pois me concedeste que uma coisa é usar sinais (significar) e outra ensinar. Se são duas coisas diferentes e uma se mostra pela outra, quer dizer que não se mostra certamente por si, 67

Linguagem sensitiva e linguagem intelectiva

como te pareceu. Portanto, nada encontramos até agora que possa ser mostrado por si, salvo a palavra, que, entre as outras coisas, significa também a si mesma: porém, por ser ela também um sinal, nada temos que pareça poder ensinarse sem sinais.18.

No transcorrer do diálogo, entre Agostinho e seu filho, chegam ao questionamento exposto acima que: o “significado” e o “ensinar” seriam a mesma coisa e são correspondentes entre si ou não. Mesmo que inicialmente aparente alguma correspondência entre estes dois termos, a citação acima nos traz o entendimento de que não é bem deste modo que as pessoas têm o conhecimento, detém o saber, ou melhor, são capazes de chegar à verdade. Entendamos esta relação entre ensinar e significar. Segundo Agostinho, é correto que sejam usados os sinais, também entendidos como significado, para podermos ensinar. Pois, é este significar que dá a explicação sobre aquilo que se pretende ensinar, ou seja, é o sinal de representação de um objeto, gesto ou som, por exemplo, que seria o ensinar. E o ensinar seria buscar os sinais, ou o seu significado. Diante disso afirmamos como verdade: ensinar e significar seriam a mesma coisa. Agostinho discorda dessa posição, pois se usamos sinais para ensinar, não podemos ensinar para aprender sinais. Todavia, uma coisa é ensinar e outra coisa deve ser o significar. Então, é falso que ensinar e significar são iguais, e que não se pode ensinar sem que emitamos sinais. E uma coisa se mostra pela outra, mas não que sejam mostradas por si, como sendo iguais. Por não poder mostrar por si, a única coisa que até o momento pode significar a si mesma é a “palavra” e que não se pode ensinar sem sinais. Desta forma o conhecimento se dá pelos sinais que se apresentam por meio 18

AGOSTINHO, Santo. De Magistro, X.

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das palavras, gestos e sons entre outras formas de comunicação. Mas este conhecimento que se dá pelos sinais, ou pelo que aprendemos das palavras, é o conhecimento verdadeiro, a verdade? O bispo irá afirmar que as palavras mostram que nós não aprendemos nada além de palavras: “porque, se o que

não é sinal não pode ser palavra, não sei também como possa ser palavra àquilo que ouvi pronunciado como palavra enquanto não lhe conhecer o significado”19. Só se pode ter conhecimento depois que temos o conhecimento das coisas. Logo, o conhecimento completo das palavras não é dado só pelo que ouvimos, pois somente com o som das palavras não temos capacidade de entender nem mesmo as palavras que imaginamos saber ou conhecer o significado. “Com efeito, não tivemos conhecimento das palavras que

aprendemos nem podemos declarar ter aprendido as que não conhecemos, senão depois que lhes percebemos o significado, o que se verifica não mediante a audição das vozes proferidas, mas pelo conhecimento das coisas significadas20”. Ao serem proferidas palavras, é perfeitamente razoável que se diga que nós sabemos ou não sabemos o que significam; se o sabemos, não foram elas que no-lo ensinaram, apenas o recordaram; se não o sabemos, nem sequer o recordamos, mas talvez nos incitem a procurá-lo. Se disseres que daqueles objetos que servem para cobrir a cabeça e dos quais temos o nome (coifas) apenas através do som podemos adquirir noção só depois de vê-los; e que, portanto, nem sequer o seu nome conhecemos completamente senão depois de conhecermos os próprios objetos; e se acrescentares que, no 19 20

Idem, XI. Ibidem. 69

Linguagem sensitiva e linguagem intelectiva

entanto, de nenhum outro modo, senão pelas palavras, conseguimos aprender o que se narra a respeito dos três jovens, isto é, que com sua fé e religião venceram o rei e as chamas, quais foram os hinos de louvor que cantaram a Deus, quais as honras que mereceram do próprio inimigo, responder-te-ei que todas as coisas significadas por aquelas palavras já eram de nosso conhecimento. Pois eu já tinha na minha mente o que significa três jovens, o que é forno, o que é fogo, o que é rei, o que quer dizer ser preservado do fogo e, finalmente, todas as outras coisas significadas por aquelas palavras. Mas desconhecidos, como aquelas "saraballae" (coifas), ficam para mim os jovens Ananias, Azarias e Misael; nem os seus nomes me ajudaram ou poderiam ajudar a conhecê-los. E confesso que, mais que saber, posso dizer acreditar que tudo aquilo que se lê naquela narração histórica aconteceu naquele tempo assim como foi escrito; e os próprios historiadores a que emprestamos fé não 21 ignoravam esta diferença. .

“Certamente não diria isto se não julgasse necessário pôr uma diferença entre as duas coisas”22. Portanto, creio tudo o que entendo, mas nem tudo que creio também posso entender. Tudo o que compreendo conheço, mas nem tudo que creio tenho o conhecimento verdadeiramente. “E não ignoro quanto é útil crer também em muitas coisas que não conheço, utilidade que encontro também na história dos três jovens”23. Pois, não podendo saber a maioria das coisas, sem, porém o quanto é útil acreditar nelas. No que diz respeito a todas as coisas que compreendemos, não consultando a voz de quem fala, a qual soa por fora, mas a verdade que dentro de nós 21

Ibidem. Ibidem. 23 Ibidem. 22

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reside à própria mente incitada talvez pelas palavras a consultála. Quem é consultado ensina verdadeiramente e este é Cristo, ser que habita no homem interior, isto é, a virtude incomutável de Deus e a sempiterna Sabedoria que toda alma racional consulta, mas que se revela a cada um quanto é permitido pelas sua própria boa ou má vontade. “E se às vezes há enganos, isto não acontece por erro da verdade consultada, como não é por erro da luz externa que os olhos, volta e meia, se enganam: luz que confessamos consultar a respeito das coisas sensíveis, para que no-las mostre na proporção em que nos é permitido distingui-las”24. Ou seja, a verdade habita o interior do ser humano. Não são as simples coisas, ou os sinais, ou as simples palavras que é o conhecer. Mas, sim o mais intimo do homem, no seu interior, ai está à verdade, o conhecimento, o verdadeiro saber. Ou como escrito acima: “Quem é consultado ensina verdadeiramente, e este é Cristo”. Ao recordar-vos, ultrapassei todas aquelas partes da memória que os animais também possuem, porque não vos encontrava entre as imagens dos seres corpóreos. Cheguei àquelas regiões onde tinha depositado os afetos da alma. Nem mesmo lá vos encontrei. Entrei na sede da própria alma, na morada que ela tem na memória – pois o espírito também se recorda de si mesmo –, e nem ai estáveis. Assim a alegria, a tristeza, o desejo, o temor, a lembrança, o esquecimento e outras paixões semelhantes, assim também não podeis ser o meu espírito, porque sois o seu Senhor e seu Deus. Tudo isso muda. Vós, porém, permaneceis imutável sobre todas as coisas, e, apesar disso, dignastes-Vos

24

Ibidem. 71

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habitar na minha memória, desde que Vos 25. conheci.

A solução de Agostinho ao problema da linguagem tem, portanto, um caráter metafísico-teológico: a verdade como tal não é engendrada em nós pelas palavras do magistério humano, mas pela presença de uma “Verdade Interior”, que transcende a alma. A experiência pensante é adquirida paralelamente à experiência sensível. Podemos constatar a lei de interioridade fora da alma, há agentes estimuladores ou admoestadores e sinais; a espontaneidade da alma permanece intacta, pois ela se apropria destes sinais e os interpreta: é do seu próprio interior que ela tira a substância do que aparentemente lhe é mostrado pelos sinais que vem das coisas que temos acesso pelos sentidos, ou por alguma outra forma de comunicação.

Considerações finais Após estudarmos e analisarmos o tema, certificamo-nos quanto é, e o quanto foi importante para a sociedade medieval e para a história, a doutrina filosófica de Santo Agostinho, em especial a sua “teoria do conhecimento”. Constatou-se que no limiar da Era Cristã, houve a necessidade da criação de uma teoria educacional, uma epistemologia que compreendesse os problemas do conhecimento. Em contrapartida, houve o surgimento de homens brilhantes e corajosos que efetivaram a conjunção do pensamento histórico para dar uma urgente resposta ao ceticismo da época. Mas, a verdade religiosa encontrada pelo bispo africano, um dos mais importantes da Igreja, oriundo de Tagaste, mais tarde consagrado Agostinho de Hipona, pode ser considerada como a grande resposta da época para o problema do conhecer verdadeiramente as coisas. 25

Idem, X, 25, p: 284.

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Agostinho apresenta primeiro um tratado sobre a linguagem e a educação sensitiva, exterior, primitiva. Linguagem que percebe como não verdadeira, pois, o conhecimento advindo desta relação de comunicações não transmite nenhum tipo de conhecimento. São palavras, gestos por si mesmos, sem que haja qualquer tipo de significado. Muito menos nossas falhas de compreensão ou no entendimento das conversas, que nos tornam ignorantes, por não querermos admitir, ou perceber a verdade, como se um véu encobrisse a nossa razão. O filósofo africano, como dito acima, dá uma resposta satisfatória para época. A sua resposta tem fundamentação na “teoria da Iluminação Divina”. Doutrina que visa explicar como é possível para o homem ter o conhecimento das verdades eternas. Doutrina que seja absolutamente verdadeira, que não seja um engano ou uma falha na compreensão humana. Esta teoria proposta pelo bispo faz parte de uma metáfora recebida por meio da leitura de Platão, que mostra na alegoria da caverna ser o conhecimento (em última instância, o bem, e o sol que ilumina o mundo inteligível). Onde todas as proposições são verdadeiras, há realmente verdade porque elas são previamente iluminadas pela luz divina. Agostinho aproxima-se de Platão segundo o qual todo o conhecimento é “reminiscência”, mas Agostinho afasta-se ao entender a percepção do inteligível na alma, não como um conteúdo do passado, mas como irradiação divina no presente. Deus é a luz eterna de onde procede a Verdade. Acredito que a grande mensagem deixada pelo filósofo seja: “Crer para entender, entender para crer”26. Mostra a necessidade de termos fé para que possamos entender e assim conhecer a verdade que reside no interior do ser humano.

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Sl 43. 73

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FRANZ BRENTANO CRÍTICO DE FRANZ MIKLOSICH: CONSIDERAÇÕES BRENTANIANAS ACERCA DO TRABALHO SÜBJEKTLOSE SÄTZE

Evandro Oliveira de Brito 1

Introdução A Em 1889, Brentano publicou sua teoria ética e, abandonando definitivamente o expressivismo proposto na Psicologia do ponto de vista empírico (1874), sustentou um cognitivismo moral2 ao afirmar que este se fundamentava na descrição da consciência desenvolvida segundo os critérios de sua Psicologia descritiva, a qual seria publicada em pouco tempo (BRENTANO, 1969, p. 3-4). Essa obra sobre ética, intitulada A origem do conhecimento moral (Vom Ursprung sittlicher Erkenntnis), trouxe como apêndice uma resenha já publicada em 1883, na qual Brentano havia analisado as pesquisas do linguista Miklosich sobre os verbos impessoais nas línguas eslavas. Ora, merece uma cuidadosa atenção o fato de que Brentano iniciou sua resenha afirmando que o título, Subjektlose Sätze (Proposições sem sujeito), atribuído por Miklosich para a segunda edição, era de fato o mais 1

Bolsista de pós-doutorado CAPES/PNPD no Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFSM. [email protected] 2 Este tema foi tratado detalhadamente em Psicologia e ética – o desenvolvimento da ética na filosofia do psíquico de Franz Brentano (BRITO, 2012). 77

Franz Brentano crítico de Franz Miklosich

apropriado, pois “o autor não se preocupava apenas com a natureza de um grupo de línguas; ele estava preocupado com uma tese de significância muito mais extensa" (BRENTANO, 1971, p. 183). Com isso, Brentano pretendia sustentar que o novo título se adequava melhor aos propósitos do trabalho porque indicava o caminho para a grande descoberta ocorrida na linguística, lógica e teoria do conhecimento, da qual ele mesmo participara com sua teoria exposta na obra Psicologia do ponto de vista empírico (1874) e aprimorara nos trabalhos que constituíram a obra Psicologia descritiva, escritos entre 1889 e 1891. No intuito de expor a relevância do trabalho de Miklosich para a filosofia brentaniana do psíquico, tomaremos como objeto da nossa apresentação a questão principal da investigação do linguista, apontada por Brentano, quando este afirmou que Miklosich não se preocupou com a natureza de apenas um grupo de línguas, uma vez que estava interessado em uma tese de significância muito mais ampla. A saber: a tese de que uma proposição é, fundamentalmente, um conceito (concebido como uma função) e não uma síntese entre sujeito e predicado. Assim, trataremos de reproduzir alguns pontos da análise brentaniana, os quais afirmavam que a extensão universal de tal tese consistiria no fato de que toda expressão linguística estaria estruturada sobre uma única forma proposicional, ou seja, todas as proposições seriam constituídas da mesma forma lógica. As seguintes definições, apresentadas por Inwood (1992, p. 200), servirão para esclarecer, mais adiante, o ponto principal do texto, uma vez que se trata de apontar a identidade entre a forma lógica da proposição (Satz) e a estrutura formal do juízo (Urteil) que fundamentaria a lógica, tal como Brentano a concebia. Neste sentido, proposição (Satz) e juízo (Urteil) são tomados ambiguamente do seguinte modo.

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Evandro Oliveira de Brito

Satz deriva de setzen (assentar, colocar, por, fixar etc.) e é, pois, alguma coisa posta no chão ou posta em determinada situação ou condição. Tem grande variedade de sentidos (por exemplo, sedimento e resíduos), mas o seu significado comum em filosofia e no uso corrente é o de "sentença”, “proposição". Enquanto que Urteil consiste em conceitos, Satz consiste em palavras: é um Urteil expresso em palavras. Mas, está frequentemente mais perto de "proposição" do que de "sentença": por exemplo, o que denominamos a "LEI" ou “PRINCÍPIO" de (NÃO-) CONTRADIÇÃO é, em alemão, o Satz de contradição”.

Para tornar compreensível, então, a recepção brentaniana da teoria desenvolvida por Miklosich, nós exporemos dois pontos específicos de sua resenha, a saber: i) Miklosich segundo Brentano: como Brentano interpretou a questão fundamental do trabalho de Miklosich? ii) Brentano para além de Miklosich: como Brentano identificou os resultados da investigação de Miklosich com os resultados sua própria teoria do conhecimento? Vamos ao primeiro ponto.

1. Miklosich segundo Brentano. Com o proposito de contextualizar esta apresentação, faremos primeiramente menção a alguns elementos relevantes da biografia de Miklosich.

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Franz Brentano crítico de Franz Miklosich

Franz Miklosich3 nasceu em 20 de novembro de 1813 em RadomerŠČak, Eslovênia, e morreu em 07 de março de 1891, em Viena. Formou-se na Universidade de Graz e, entre 1850 e 1886, lecionou na Universidade de Viena. Portanto, foi colega de Brentano nessa universidade a partir de 1874. Miklosich ficou conhecido como o linguista austríaco e esloveno, pois foi o fundador dos estudos históricocomparativos de gramática em línguas eslavas. Franz Miklosich fez uma importante contribuição aos estudos eslavos com a publicação de textos eslavos medievais, incluindo Codex Suprasliensis (1851), Apostuluse codice monasterii ŠiŠatovac paleoslovenice (1853), Nestor’s Chronicle (1860) e as fontes sobre a história dos eslavos (Monumenta serbica, 1858). Ele estudou literaturas eslavas e foi o fundador do estudo comparativo da poesia épica eslava, além de ter estudado também direito eslavo e etnologia. As principais obras de Miklosich trataram da lexicologia e gramática comparativa das línguas eslavas (vols 1-4., 1852-1875). O primeiro e o terceiro volumes deste trabalho foram, mais tarde, completamente revisados e publicados na segunda edição revisada do vol. 1 (1879) e vol. 3 (1876). Ele também estudou as influências transversais das línguas eslavas e as línguas dos povos vizinhos, incluindo os húngaros, romenos, albaneses e a língua dos ciganos. Apresentados, assim, alguns dos temas vinculados ao trabalho de Miklosich, podemos retornar ao nosso ponto por meio da recolocação da pergunta que nos interessa responder na primeira parte desta apresentação. A saber: como Brentano interpretou a questão fundamental do trabalho de Miklosich? Nas palavras do próprio Brentano, esta questão foi apresentada do seguinte modo:

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As informações biográficas sobre Miklosich estão em The Great Soviet Encyclopedia e foram citadas pelo The Free Dictionary on-line. 80

Evandro Oliveira de Brito

Nós queremos aqui, no entanto, considerar especialmente a questão principal e esclarecer de modo breve do que se trata realmente. É uma antiga asserção da lógica que o juízo consiste essencialmente em uma ligação ou separação, em uma relação de representações uma para com outra. Mantida quase unanimemente por mais de dois mil anos, ela também exerceu influência sobre outra disciplina. E, assim, nós encontramos com os gramáticos, desde a antiguidade, a doutrina de que não é dada e não pode se dar qualquer forma simples de expressão de juízos, além da categórica, a qual liga um sujeito com um predicado (BRENTANO, 1971, p. 184. Tradução nossa).

O núcleo do problema explicitado por Miklosich, como afirmou Brentano nesta citação, estava no fato de que tanto a lógica como a gramática afirmavam que o juízo se definia basicamente como uma ligação ou separação entre uma representação e outra. Deste modo, e exatamente por conta desse pressuposto, havia surgido a dificuldade de explicar a natureza de certas proposições, tais como es regnet (chove), es blitzt (relampeja) e es rauscht (há ruído). Em língua portuguesa, essa questão é clara. Pois, se, de um lado, estivesse o pressuposto lógico de que a estrutura proposicional teria a forma do juízo categórico (S é P), do outro lado, estariam as proposições que não se encaixariam nessa estrutura, pois elas não possuem sujeito (ou, em certos casos, predicado). Elas são exatamente as proposições que Miklosich investigou e Brentano retomou: chove; relampeja; e há ruído. Assim, ao menos em língua portuguesa, fica explícita a impossibilidade de se encontrar a forma do juízo categórico (S é P) em tais proposições sem sujeito. De modo análogo ao que se explicita na língua portuguesa, as proposições “chove” e “há ruído” evidenciaram o paralelo encontrado por Miklosich e Brentano entre a língua 81

Franz Brentano crítico de Franz Miklosich

alemã e as línguas eslavas. Pois, tal como a língua portuguesa nos mostra, o sujeito explicitamente inexistente nas proposições “chove” e “há ruído” não poderia ser considerado como algum tipo de sujeito oculto, pressuposto pelo pronome neutro ‘es’ presente na língua alemã. Assim, o pressuposto de que uma proposição teria a forma do juízo categórico (S é P), vinculado ao modo de conceber a função do pronome neutro ‘es’ da língua alemã (ou seu correlato nas línguas ocidentais), havia ocultado algo tão evidente para todos os pesquisadores da tradição ocidental. Considerada essa a questão central, Brentano ressaltou, a partir da análise de Miklosich, algumas tentativas fracassadas de explicar a suposta existência de tal ligação entre sujeito e predicado naquelas proposições sem sujeito (Subjektlose Sätze). Seguindo o linguista, ele descreveu algumas das propostas de solução para mostrar a razão do seu fracasso. Na primeira proposta de solução destacada por Brentano, Miklosich avaliou as tentativas de se estabelecer o sujeito, tanto para a proposição es regnet (chove), como para a proposição es rauscht (há ruído). No caso específico da proposição es regnet (chove) havia a sugestão, proposta por antigos pesquisadores, a qual afirmava que o sujeito seria Zeus. Neste caso, ressaltou Brentano seguindo a recusa da solução apresentada por Miklosich, “tal como alguns pensaram, quando se diz es regnet (chove), o sujeito não nomeado, designado pelo ‘es’ indefinido, seria Zeus e o sentido seria Zeus regnt (Zeus chove)” (BRENTANO, 1971, p. 185). O problema estava no fato de que está solução simplória se tornava imediatamente falsa quando aplicada à proposição es rauscht (há ruído), pois, continuou ele, “quando se diz es rauscht (há ruído) seria evidente, então, que Zeus não poderia ser o sujeito” (BRENTANO, 1971, p. 185). Nem mesmo seria válida a segunda proposta de solução, a qual havia afirmado que “aqui o sujeito seria das Rauschen (o ruído) e, então, o sentido da

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proposição seria das Rauschen rauscht (o ruído rui)” (BRENTANO, 1971, p. 185). Se isso fosse possível, no caso da proposição es regnet (chove) tal solução estabeleceria das Regnen (a chuva) como seu sujeito, uma vez que a proposição seria, então, der Regen regnet (a chuva chove). A falha nessas tentativas de procurar um sujeito oculto para as proposições sem sujeito, como uma tentativa de justificar a forma da proposição categórica, também ficava evidente no caso das proposições es fehlt an Geld (falta dinheiro) e es gibt einen Gott (é dado um Deus ou há um Deus). A análise de Miklosich citada por Brentano é a seguinte. Quando se diz es fehlt an Geld (falta dinheiro), então consequentemente o sentido deveria ser das Fehlen an Geld fehlt an Geld (a falta de dinheiro falta dinheiro). Mas isso não é aceitável. E, então, em vez disso, se esclarece aqui que o sujeito seria Geld (dinheiro) e o sentido da proposição seria Geld fehlt an Geld (dinheiro falta dinheiro). Certamente isso seria, a rigor, uma violação mais grave contra a unidade desejada da explicação. E se, tapando os olhos, talvez se pudesse escondê-la, não seria mais possível alcançar um sentido aceitável quando se encontrasse proposições como es gibt einen Gott (é dado um Deus ou há Deus), onde novamente nas proposições einen Gott Geben gibt einen Gott (um Deus dá um Deus) ou das Geben gibt einen Gott (o Dado dá um Deus) ou, ainda, Gott gibt einen Gott (Deus dá um Deus). (BRENTANO, 1971, p. 185. Tradução nossa).

Ao apresentar a evidência manifesta pelas proposições sem sujeito enunciadas em línguas eslavas, análogas a evidência que encontramos em tais proposições quando enunciadas na língua portuguesa, a análise de Miklosich impôs à Brentano uma nova questão. Pois, afirmou ele, “seria preciso 83

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pensar, aqui, em um modo de explicação totalmente diferente. Mas onde seria possível encontrá-la?”. 2. Brentano para além de Miklosich: Como Brentano identificou os resultados da investigação de Miklosich com os resultados sua própria teoria do conhecimento? Segundo Brentano, a análise das proposições sem sujeito (tais como chove, relampeja etc.) levou Miklosich a se opor a duas teses comumente aceitas pela tradição, a saber: a tese lógica; e a tese gramatical. a. A tese lógica afirmava que “o juízo consistia essencialmente em uma ligação ou separação, em uma relação de uma representação com outra” (BRENTANO, 1971, p. 184). b. A tese gramatical afirmava que “não havia uma forma expressão mais simples do juízo que a categórica, a qual ligava um sujeito a um predicado” (BRENTANO, 1971, p. 184). Essa oposição de Miklosich, ainda segundo Brentano (1971, p. 186), estava dirigida contra aqueles que, como Steinthal, negavam toda a correlação entre gramática e lógica e refutava, ao mesmo tempo, os ataques que, precisamente em razão dessa correlação, os psicólogos e os lógicos poriam contra sua teoria. Portanto, a grande virtude encontrada por Brentano nesse ataque, levantado por Miklosich, consistia em reconhecer a verdadeira estrutura dos juízos a partir da estrutura das proposições sem sujeito, pois a ele pareceu ser falso que um conceito fosse relacionado a outro em todo juízo,

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uma vez que “frequentemente o juízo é apenas a afirmação ou negação de um fato simples” (BRENTANO, 1971, p. 187). Este era, então, o ponto fundamental da interpretação de Brentano, pois, segundo ele, a tese de Miklosich não apenas estava correta, mas ela também havia chegado às mesmas conclusões que ele mesmo chegara nas investigações psicológicas desenvolvidas em sua Psicologia do ponto de vista empírico (1874) e aprimorara nos trabalhos que compuseram sua Psicologia descritiva, elaborados entre 1888 – 1891. A tese brentaniana envolvia um conjunto de especificidades que foge aos propósitos deste trabalho. No entanto, é preciso ressaltar que ela, supondo os fundamentos da filosofia do psíquico aprimorados para a Psicologia descritiva (1888 – 1891), sustentava os três pontos seguintes, os quais permitiram recepcionar os resultados do trabalho de Miklosich. b) Toda proposição pode ser descrita na forma de um juízo existencial. c) Todo juízo existencial pode ser descrito como uma relação intencional de segunda classe (diploseenegie), sendo, portanto, um fenômeno psíquico que pressupõe uma representação (relação intencional de primeira classe). d) Enquanto relação intencional fundamental, toda representação consiste num ato intencional dirigido a um objeto imanente. Tal como analisamos pormenorizadamente em outro trabalho4, esses três pontos resultaram conjuntamente do aprimoramento da filosofia brentaniana, apresentado entre 1888-1891.

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A esse respeito, conferir BRITO (2013), especialmente o terceiro capítulo intitulado Os fundamentos da descrição dos fenômenos no contexto da obra Psicologia descritiva (p. 125-180). 85

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Nesse contexto de época, Brentano corrigiu sua primeira teoria da intencionalidade apresentada na obra Psicologia do ponto de vista empírico (1874) e chamou passou a chamar a atenção para aquela que seria a correta separação entre a classe das representações (ideae) e a classe dos juízos (judicia), tal esta como fora apresentada por Descartes à história da filosofia. Segundo a análise brentaniana, a correta separação cartesiana entre a classe das representações (ideae) e a classe dos juízos (judicia) resultava da seguinte descrição. O juízo seria descrito como um ato de afirmação ou rechaço da representação (e não mais como um ato de afirmação ou rechaço do conteúdo representado, como em 1874). Isso significava que a descrição do juízo seria orientada pela estrutura de predicação encontrada em Aristóteles, ou seja, [(A)é] ou [(A é b)é], mas, além disso, Brentano reconhecia na teoria cartesiana uma especificidade desse mesmo ato. Tratavase da afirmação ou do rechaço da relação intencional que constituiria o ato de representar, ou seja, da representação (e não do representado), pois a análise brentaniana descrevia a ideae como uma função assimétrica para redefinir a noção de representação.5

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É interessante anteciparmos uma parte do comentário de Twardowski que desenvolveremos adiante. O próprio Twardowski fez referência ao modo como Brentano concebeu essa noção de representação e, também, deixou indicada a recepção cartesiana, pois Twardowski afirmou que a noção brentaniana de objeto secundário era o ato e o conteúdo tomado em conjunto. Além disso, como veremos adiante, essa representação consistia no objeto ao qual o juízo se referia intencionalmente. “Embora Brentano designe como objeto primário o objeto da representação, tal como é feito aqui (na obra de Twardowski), ele entende por objeto secundário de uma representação o ato e o conteúdo tomados em conjunto, na medida em que ambos, durante a atividade de representar um objeto, são apreendidos pela consciência interna, e aí a representação torna-se assim consciente”. Twardowski, Kasimir. Para a doutrina do conteúdo e do objeto das representações, Uma investigação psicológica, p. 62-63, nota 2. 86

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Aqui está, então, o ponto tangencial que nos interessa nessa posição epistemológica, pois Brentano não reconhecia a noção moderna de juízo (relação entre ideias) no âmbito da teoria do conhecimento cartesiana. A análise brentaniana esclareceu que a noção cartesiana de juízo não poderia ser descrita como uma atribuição de um sujeito a um predicado [A é B]. Tal como descreve a citação a seguir, Brentano nos fez lembrar, também em 1889, que uma composição de “ideias” ou uma “ideia composta”, por si só, nada mais seria que uma parte (ou o correlato) da representação (ou do ato). Do mesmo modo, uma “ideia” simples seria também uma parte (ou o correlato) da representação (ou do ato). Isso significava que a representação, como um ato intencional, estava referida a um objeto imanente, portanto, tendo uma representação como base, um juízo seria uma referência intencional a essa representação, fosse ela um ato que se referisse a um correlato simples ou composto: Sempre que se queira, é possível juntar e referir várias representações umas às outras. Por exemplo, quando dizemos: uma árvore verde; uma montanha de ouro; um pai de cem filhos; um amante da ciência. No entanto, se nada for feito além disso, não se expressa juízo algum. Também é certo que o julgar, como o desejar, implica sempre um representar. Mas, não é certo que várias representações se refiram umas às outras como sujeito e predicado. Isto acontece quando digo: Deus é justo. Mas, não quando digo: existe um Deus. (BRENTANO, 1969, p. 17. Tradução nossa).

Esse era o ponto convergente entre Descartes e Brentano, tal como expõe a citação acima. Ora, se Brentano estabeleceu que não haveria como conceber a noção de ideia hobbesiana e lockiana em sua filosofia do psíquico, então não haveria também como 87

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conceber juízo ou conhecimento como relação entre ideias, segundo a fórmula do juízo categórico (S é P). Tendo esse pressuposto em elaboração, o trabalho de Miklosich serviu perfeitamente para corroborar sua teoria do psíquico. Conclusão Tal como expusemos, Brentano se valeu da tese fundamental de Miklosich, a qual estabelecia que, a partir da sua forma, as proposições sem sujeito explicitavam que o juízo seria apenas a afirmação ou a negação de um fato simples. Em outras palavras, Brentano utilizou o fenômeno linguístico estudado por Miklosich para corroborar sua teoria de que todo juízo sintético é redutível a um juízo tético, pois todo juízo possui a forma de ato intencional de segunda classe. Ao pressupor sua própria teoria, Brentano incorporou algumas reformulações à tese de Miklosich com o exclusivo propósito de complementá-la e consolidá-la filosoficamente, embora as tenha classificado como reformulações secundárias. De modo breve e alusivo, podemos dizer que tais complementações estabeleceriam que: a) por um lado, as proposições denominadas proposições sem sujeito também seriam, por definição, proposições sem predicado; e b) por outro lado, a forma da proposição seria, na verdade, universal e sua extensão seria ilimitada. Não poderemos analisar aqui, no escopo desta apresentação, os pressupostos e as implicações das complementações brentanianas propostas para a teoria de Miklosich, pois esta será a tarefa de um trabalho futuro.

Bibliografia

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CONSCIÊNCIA INTENCIONAL: UMA ANÁLISE LEVINASIANA Felipe Bragagnolo1

Introdução Ao iniciarmos nossos estudos sobre a fenomenologia defrontamo-nos com conceitos como consciência e intencionalidade, ambos conceitos centrais dessa área de estudo. Esses conceitos, distantes de fazerem referência às análises realizadas pela neurociência, ou seja, que parte de métodos com bases empíricas, na fenomenologia, são pensados antes como condições de possibilidade do conhecimento. Tanto a consciência como a intencionalidade nos remetem a uma tradição longínqua do pensamento filosófico, onde pensadores como Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, Guilherme de Ockham a tradição empirista inglesa envolveram-se profundamente na discussão desses temas. No entanto, o que faz da fenomenologia a fenomenologia, essa que surge em meados do século XIX, é a reflexão realizada pelo pensador Edmund Husserl. Sua reflexão sobre a consciência e a intencionalidade, que se iniciaram com a influência de seu professor e mestre Franz Brentano, e, a partir de questões trazidas pela tradição antes referida, principalmente aquelas realizadas pelos empiristas e naturalistas do século XIX e seus antecessores, oportunizaram conclusões até então desconhecidas. De forma bastante 1

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Consciência intencional

resumida e até demasiadamente simplória, podemos dizer que a concepção de intencionalidade fornecida pela tradição filosófica, que destacava-se diante das demais até Husserl, era a de que a intencionalidade seria algo como uma ponte entre a realidade empírica e a consciência, ou ainda, a intencionalidade era como um atributo, uma característica da consciência (LEVINAS, 2004, p. 68ss). Husserl desfaz essas concepções. A intencionalidade na fenomenologia não é, somente, concebida como meio para explicar a relação da consciência com a realidade empírica, nem mesmo, para responder estritamente a questão acerca de como o sujeito cognoscente alcança o objeto empírico. A intencionalidade na fenomenologia surge como uma ideia teórica riquíssima que nos revela uma perspectiva bastante distinta daquela proposta pela tradição antecessora de Husserl. Nesse breve artigo, nosso objetivo torna-se, além de apresentar brevemente a concepção da intencionalidade proposta por Husserl a partir da leitura de Levinas, apresentar a esfera da consciência denominada de esfera passiva. Essa discussão está perpassada pela leitura do livro La teoria fenomenológica da intuição de Levinas, mais especificamente o capítulo denominado “Teoria fenomenológica do ser: a intencionalidade da consciência”. Esse trabalho justifica-se quando percebemos em Levinas o desejo de mostrar um outro lado da consciência não estudado por Husserl com tamanho rigor como a consciência teórica. Acreditamos que o valor fim de tal investigação está em possibilitar uma nova compreensão sobre a sensibilidade e a ideia da ética, tão bem desenvolvidas posteriormente por Levinas.

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1. Consciência intencional A consciência na fenomenologia husserliana não seria mais compreendida como uma substância fechada em si mesma, concepção essa que perpassava o período medievo (LEVINAS, 2004, p. 70). Entretanto, a consciência somente seria consciência enquanto ato intencional, ato que se transcende. A intencionalidade em Husserl apresenta-se para além da compreensão de uma ponte entre a consciência e o mundo, como também, ultrapassaria a compreensão de um atributo da consciência. A intencionalidade é pensada na fenomenologia husserliana como constituinte da subjetividade mesma do sujeito. “A intencionalidade constitui a subjetividade mesma do sujeito. Sua substância mesma consiste em transcender-se” (LEVINAS, 2004, p. 69, grifo do autor). No entanto, o que significa esse transcender-se da consciência? Significa que Husserl coloca no coração da consciência a necessidade do contato direto, sem mediação, com o mundo e os objetos. A intencionalidade, originariamente, nos coloca em relação com algo exterior a consciência, nos lança para fora da esfera imanente. Mas longe de resumirmos a questão da intencionalidade ao problema do conhecimento, “[...] a ideia de intencionalidade nos permite ir mais além do problema sujeito-objeto” (LEVINAS, 2004, p. 70). Ao analisarmos mais profundamente a intencionalidade percebemos que a relação sujeito e objeto não é a única forma de doação da consciência. A intencionalidade não se reduziria a esfera do conhecimento, da doação do objeto, mas sim, relacionar-se-ia com as mais diferentes formas do sujeito se posicionar diante do mundo e das coisas, como na esfera afetiva, na esfera prática e na esfera estética (LEVINAS, 2004, p. 71). Essas formas de vida também se caracterizariam por sua relação com o objeto (LEVINAS, 2004, p. 71), entretanto, possuiriam sua

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particularidade, não se constituiriam da mesma forma que a esfera teórica da consciência, que sempre nos revelaria o objeto. “Toda valoração é valoração de um Wertverhalt (estado de valores), todo desejo, desejo de um Wunschverhalt, etc. O atuar vai dirigido a ação; o amar, ao amado; a satisfação, ao satisfatório, etc.” (HUSSERL, 2006, § 117, grifo do autor). Seria em função de a intencionalidade não fazer somente referência à esfera teórica da consciência que a mesma poderia se dar de uma maneira diferente dessa (LEVINAS, 2004, p. 7273). Os atos volitivos e afetivos possuem modos específicos de transcenderem-se, de tenderem para algo fora de si (LEVINAS, 2004, p. 72). Nas palavras de Husserl, O modo como uma ‘simples representação’ de um estado-de-coisas visa a este seu ‘objeto’ é diferente do modo do juízo que toma o estadode-coisas por verdadeiro ou falso. Mais ainda, uma coisa é o modo da suposição e outra o da dúvida, o modo da esperança e do temor, da satisfação e do desprazer, do desejo e da aversão [...]. (HUSSERL, L.U., 2012, V, § 10, grifo do autor).

Esses diferentes modos de visar algo revelariam a intencionalidade da consciência. Segundo a análise de Husserl, o sujeito ao dirigir o seu olhar para algo visaria um determinado objeto a partir desses diferentes modos. O objeto vivido intencionalmente pelo sujeito teria “em seu modo mesmo de ser vivido, uma autêntica prerrogativa de ser” (LEVINAS, 2004, p. 72), sendo a vida consciente a fonte mesma da ideia de ‘ser’ do objeto. Logo, não seria somente a esfera teórica da intencionalidade que revelaria a vida concreta, no entanto, a vida concreta, a vida vivida seria revelada também pelos diferentes atos intencionais que a constituem. Conforme a leitura apresentada por Levinas, os atos volitivos e

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afetivos seriam os atos responsáveis por inserir o sujeito na vida concreta (LEVINAS, 2004, p. 72). Para esse filósofo, “[...] vemos que o mundo real não é simplesmente um mundo de coisas relativas ao ato perceptivo (ato puramente teórico). O mundo real é um mundo de objetos de uso prático e de valores” (LEVINAS, 2004, p. 72, grifo do autor). Parece-nos que Husserl não teria dado tamanha ênfase ao estudo que Levinas está propondo, ou ainda, que a própria tradição filosófica não teria visto esse tema como central nas análises de Husserl. Mas, esse possível fato não exclui a importância e os apontamentos já realizados por Husserl sobre esse tema, tanto que temos nesse uma obra bastante densa e volumosa sobre a esfera passiva da intencionalidade denominada Analyses Concerning Passive and Active Synthesis: Lectures on Transcendental Logic (2001), dentre outras. Logo, sabendo da centralidade desse tema, Levinas volta a sua atenção para esse campo de estudo, pois As qualidades inerentes as coisas que fazem que essas nos importem (Bedeutsamkeitsprädikate), que fazem que nos sejam apaixonantes, que as temamos, que as queiramos, etc., não devem ser excluídas da constituição do mundo, não devem ser tão só atribuídas a reação ‘inteiramente subjetiva’ do homem com o mundo. (LEVINAS, 2004, p. 72)2.

Seria a partir dos atos volitivos e afetivos da consciência que as qualidades inerentes das coisas apareceriam, revelando, assim os objetos e o mundo como algo que importariam ao sujeito, que o interessaria, que o cativaria. 2

O conceito “Bedeutsamkeitsprädikate” em alemão pode ser traduzido para o português como: predicados de importância. 95

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Esses diferentes atos, como bem lembra Levinas, “[...] não devem ser excluídos da constituição do mundo” (LEVINAS, 2004, p. 72) e não devem ser, tão somente, questões atribuídas a esfera ‘subjetiva’ do homem que está no mundo. “Essas ditas qualidades se dão em nossa vida como correlativas as intenções, sendo necessário considerá-las como pertencentes à esfera objetiva” (LEVINAS, 2004, p. 72) da consciência, em outras palavras, essas ditas qualidades se dão juntamente com a esfera que nos revela o objeto enquanto tal. Dizer que esses atos pertencem à esfera objetiva da consciência não significa dizer que o modo como eles se apresentam partem de uma representação de base. A intencionalidade não se apresenta somente a partir desse modo de doação. Conforme Levinas, a noção husserliana de intencionalidade é mais ampla (LEVINAS, 2004, p. 72). Atentamos para a explicação fornecida por ele sobre essa questão: A intencionalidade “[...] expressa unicamente o eixo geral de que a consciência se transcende, de que se dirige para algo que não ela mesma, e que, possui um sentido. No entanto ‘ter um sentido’ não equivale a representar” (LEVINAS, 2004, p. 72-73, grifo do autor). Logo, nem todos os atos tem algo claro em sua base como uma representação, contudo, possuem algo, possuem um sentido. “O ato de amor tem um sentido, no entanto, isto não quer dizer que possua uma representação do objeto amado e um sentimento puramente subjetivo, desprovido de sentido, que acompanharia aquela representação” (LEVINAS, 2004, p. 73, grifo do autor). É próprio do ato de amor dar-se enquanto uma ‘intenção de amor’, “intenção irredutível a representação puramente teórica” (LEVINAS, 2004, p. 73). Esses diferentes atos, dentre eles os volitivos e afetivos, revelam-se como ultrapassando a representação, indo para além dela, não se limitando a esse modo de dar-se da consciência.

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Levinas radicaliza a sua análise mostrando que as coisas e o mundo não podem ser compreendidos com base no ato teórico da consciência. Para esse, as coisas e o mundo sempre escapam ao ato teórico da consciência. Almejando exemplificar essa questão apresentemos o exemplo que ele apresenta: [...] um livro [...] não se reduz ao mero eixo de estar aí, diante de nós, como um conjunto de propriedades físicas. É mais bem seu caráter prático e usual o que constituem sua existência. Esse nos é fornecido de uma maneira completamente distinta de uma pedra, por exemplo. (LEVINAS, 2004, p. 73).

Levinas, através desse exemplo, apresentaria um outro modo de dar-se das coisas que fariam delas algo para nós diferente daquele modo proposto pelo ato teórico da consciência. O ato teórico objetivante3 do mundo não seria aqui excluído, no entanto, cederia o lugar central da doação de significado de algo para o ato da esfera valorativa, afetiva e etc. Retirar-se-ia a atenção da esfera teórica da consciência e colocar-se-ia na esfera prática, na esfera existente. Tais características, perceber as coisas e o mundo a partir de seu caráter prático e usual, revelariam as coisas e o mundo como algo que não poderiam ser reduzidos somente a esfera da consciência teórica, pois as coisas e o mundo nos seriam apresentados para além de seus predicados objetivos, nos seriam apresentados enquanto objetos de interesse ou não do sujeito. Desse modo,

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Alguns atos da consciência são chamados de ‘atos objetivantes’. Tais atos se caracterizam especificamente por fornecerem algo sobre as coisas e o mundo. Nas Investigações Lógicas esses atos não levam em consideração os atos volitivos, afetivos da consciência, pois esses atos não revelariam nada sobre as coisas (LEVINAS, 2004, p. 90). 97

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A vida concreta, fonte da existência do mundo, não é puramente teórica, apesar da especial dignidade que esta tem para Husserl. A vida concreta é uma vida de ação e de sentimento, de vontade e juízo estético, de interesse e desinteresse, etc. (LEVINAS, 2004, p. 73, grifo do autor).

O mundo correlativo dessa vida prática certamente seria o mundo teórico, no entanto, esse mesmo mundo objetivado pela vida teórica consistiria em um mundo querido, sentido, mundo de ação, de beleza, de bondade, de feiura e de maldade (LEVINAS, 2004, p. 73). A compreensão da vida enquanto atividade teórica e, também como, atividade volitiva e afetiva a partir da intencionalidade apresentam-se como algo extremamente importante no pensamento levinasiano. Segundo o filósofo francês, essas diferentes noções da intencionalidade “constituem na mesma medida a existência do mundo, compõem sua estrutura ontológica na mesma medida que as categorias puramente teóricas da espacialidade, por exemplo” (LEVINAS, 2004, p. 73, grifo do autor). Como em Husserl a esfera teórica da consciência obtivera, em certa medida, mais atenção, agora Levinas busca mostrar que existem outras esferas merecedoras de tamanho destaque, tendo em vista que também possuem papel central na constituição da estrutura ontológica do ‘ser’. Porque vontade, desejo, etc., são intenções que constituem, na mesma medida que a representação, a existência do mundo e não se reduzem a serem elementos da consciência desprovidos de toda a relação com o objeto, a existência mesma do mundo possui uma estrutura rica, sempre distinta de acordo com os diferentes domínios. (LEVINAS, 2204, p. 7374).

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A intencionalidade revela-se para nós como constitutiva de todas as formas de consciência. “No entanto até esse momento temos nos ocupado da consciência explícita, desperta, ‘ativa’, como Husserl a chama” (LEVINAS, 2004, p. 74, grifo do autor). Entretanto a consciência não se limita a sua esfera de claridade e distinção, aonde cada ato se articula nitidamente. Ao realizarmos a epoché direcionamos nossa atenção para a compreensão da articulação desses diferentes atos. Porém, alguns atos revelam-se com maior facilidade de mapeá-los, já outros atos não nos parecem ser tão claros como aqueles. Não conseguimos com a mesma facilidade mapear os atos e seus correlatos nessa outra esfera da consciência, a esfera passiva, dos atos volitivos e afetivos. Como se apresentaria essa nova esfera da consciência? O que essa esfera da consciência nos revelaria? Tal esfera da consciência é distinta da esfera objetiva, teórica e atual? A intencionalidade seria o ato constitutivo de todas as formas de consciência. “No entanto, até esse momento temos nos ocupado da consciência explícita, desperta, ‘ativa’, como Husserl a chama” (LEVINAS, 2004, p. 74, grifo do autor). Entretanto a consciência não se limita a sua esfera de claridade e distinção, aonde cada ato se articularia nitidamente. Por um lado, como vimos até esse momento, temos a esfera da consciência ativa, teórica, que nos doa o mundo e os objetos. Por outro lado, defrontamo-nos com a esfera passiva, inatual da consciência. Essa esfera nos revelaria a vida em sua radicalidade, a vida em sua concretude. Vida que é perpassada pela ação, pelos sentimentos, pela vontade, por juízos estéticos (LEVINAS, 2004, p. 73). Conforme avançamos na análise da esfera passiva da consciência parece-nos que deparar-nos-íamos com a concepção de um ‘eu’ envolvido com o mundo e os objetos que o circundam. Um ‘eu’ que não somente compreende o mundo e

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os objetos, mas que vive através deles, que está envolvido junto a eles. Assim, a atividade teórica da consciência parece como que partilhar o mesmo espaço do ato intencional com a esfera passiva. A vida consciente não se articularia somente a partir da esfera de claridade e distinção dos atos, esfera ativa. Todavia, na esfera passiva da consciência os atos que a compõem não se revelariam da mesma forma que na esfera ativa. Conforme Levinas, retomando Husserl, a esfera passiva da consciência também apareceria como ‘consciência de algo’ (LEVINAS, 2004, p. 74). No entanto, o plano de fundo da consciência ativa não é nem conteúdo de consciência, nem sua matéria desprovida de intencionalidade (HUSSERL, Ideias I, 2006, § 84). O plano de fundo da consciência é uma esfera objetiva (LEVINAS, 2004, p. 74). A diferença existente entre a esfera ativa e a esfera passiva pressupõem a intencionalidade. Ambas esferas são diferentes modalidades da intencionalidade (LEVINAS, 2004, p. 74). O ponto central de análise dessas diferentes modalidades está na ‘atenção’ depositada sobre o ato por elas realizado. “Dentro de cada intencionalidade, a atenção traduz a maneira em que o eu se relaciona com seu objeto. No ato de atenção, o eu vive ativamente; é, em certa medida, espontâneo e livre” (LEVINAS, 2004, p. 74). Já nos atos desprovidos de ‘atenção’, “na esfera potencial, o eu não se ocupa diretamente com as coisas dadas. Não se dirige ativamente e espontaneamente para o objeto” (LEVINAS, 2004, p. 74). O foco de Levinas, com base na constatação acima, está sobre o ‘eu’ que vive nos diferentes atos da consciência (LEVINAS, 2004, p. 78). Isso se dá em função de Levinas desejar aprofundar a sua investigação diante do caráter pessoal da consciência, pois “a vida psíquica não é uma corrente anônima no tempo. O vivido pertence sempre a um eu”

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(LEVINAS, 2004, p. 78)4. A intencionalidade não pode assim, ser reduzida unicamente a sua esfera constituinte do mundo e dos objetos, mas também, deve ser considerado a esfera que apresenta o ‘eu’ como passividade. Versaria dessa consideração a descoberta de um ‘eu’ que viveria nos diferentes atos da consciência e que se revelaria de diferentes modos – enquanto ‘receptividade’, ‘espontaneidade’ e ‘intencionalidade’ – nos diferentes atos da consciência. Nos atos de atenção, nos atos de juízo criativo e de sínteses, de afirmação e de negação, esta atividade do eu, esta espontaneidade, em todas as suas formas, deve ser respeitada e levada em conta pela descrição antes de toda interpretação. Em alguns destes atos ‘posicionais’, o eu vive não como passivamente presente neles, se não como um centro de radiação, ‘como a fonte primeira de sua produção’. (LEVINAS, 2004, p. 79, grifo do autor).

Nesses diferentes atos posicionais algo como um fiat do ‘eu’ seria revelado (LEVINAS, 2004, p. 79). Levinas, nessa citação, apresenta um ‘eu’ que vive em seus diferentes atos, um ‘eu’ que apareceria como imerso nessas vivências. Levinas 4

Husserl modifica sua postura da obra Investigações Lógicas para Ideias I no que se trata o ‘eu’ e a intencionalidade. Na primeira obra citada Husserl nega o ‘eu’ como um elemento das intenções. “O eu se identifica com a totalidade das intenções que preenche um lapso de tempo e que são reciprocamente complementárias” (LEVINAS, 2004, p. 78). Já em Ideias I, o ‘eu’ aparece “como um elemento irredutível da vida consciente. Os atos surgem, por assim dizer, de um eu que vive em ditos atos” (LEVINAS, 2004, p. 78-79). Essa nova visão apresentada por Husserl permite que façamos a distinção entre os diferentes modos de vivência do ‘eu’ nos atos. Esse se apresenta como ‘receptividade’, como ‘espontaneidade’ e como ‘intencionalidade’ da consciência (LEVINAS, 2004, p. 79). 101

Consciência intencional

evidência a compreensão de que em muitos dos atos da consciência o ‘eu’ seria o centro de radiação desses diferentes atos. Logo, o ‘eu’ participaria como fonte primeira de produção de sentido, de significado de alguns dos atos da consciência. Levinas, ao se referir aos atos que possuem algo como um fiat do ‘eu’, desvela a esfera potencial do ‘eu’, a esfera passiva. Mas embora o eu seja ativo e possa ser percebido no cogito explícito, atual, não deixa de ter relação com a esfera potencial da consciência, e isso precisamente porque se encontra, de um certo modo, apartado da mesma. Esse eixo, esse afastamento determina de maneira positiva a esfera potencial: essa deve sua potencialidade precisamente em função de o eu se apartar dela. A possibilidade mesma, própria do eu, de afastar-se do campo potencial e de regressar a ele, pressupõem uma filiação de princípio de dito campo ao eu. O plano de fundo da consciência pertence ao eu como seu; é, por assim dizer, o campo da sua liberdade. (LEVINAS, 2004, p. 79).

Essa possibilidade mesma acabaria por apresentar um campo próprio do ‘eu’. O ‘eu’ seria compreendido fundamentalmente como aquele que não se revela em sua totalidade em seus atos teóricos, mas que sempre permanece, mesmo que em partes, velado, encoberto. A capacidade que o ‘eu’ possui de sair e regressar desse campo revela uma pertença de princípio do ‘eu’ a essa condição (LEVINAS, 2004, p. 79). Diante dessas considerações, o campo potencial da consciência apresenta-se como pertencendo ao ‘eu’ como ‘seu’. O ‘eu’ não se reduziria a um ponto vazio puramente formal de onde emanariam todos os atos de consciência, pelo contrário, o ‘eu’ teria um caráter de pessoa (LEVINAS, 2004,

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p. 78). O que parece interessar a Levinas é analisar a relação existente entre a intencionalidade e o ‘eu’, pois o eu não é uma parte real da cogitação como, por exemplo, as sensações. O eu se anuncia na cogitação de uma maneira especial que permite Husserl conceber sua presença na consciência como uma ‘certa transcendência na imanência da consciência’. ‘O eu puro não é uma vivência (Erlebnis) como outras, nem uma parte constitutiva da vivência’5. (LEVINAS, 2004, p. 80, grifos do autor).

O ‘eu’ revelar-se-ia para além da esfera ativa da consciência. O ‘eu’ se anunciaria nessas diferentes cogitações, mas a sua forma pura, o ‘eu’ puro, estaria para além da vivência imanente dos atos da consciência. Por isso, nos parece, que Husserl afirma uma certa transcendência na imanência. O ‘eu’ em sua pureza sempre parece permanecer escondido, revelando-se pouco a pouco, de momento em momento, nas suas diferentes vivências. Para Levinas a intencionalidade nos revela a transcendência do ‘eu’ na imanência da consciência. Essa revelação não supõe nenhuma alteração da noção de intencionalidade, somente apresenta um novo campo de investigação (LEVINAS, 2004, p. 80). A consciência não se converte de novo, com a introdução do eu, em uma ‘substância que descansa sobre si mesma’ e que teria necessidade da intencionalidade para transcender-se. Ela é primeiramente intencionalidade. É só dentro desse fenômeno, respeitando seu modo transcendental de existir, que podemos distinguir um lado subjetivo e outro objetivo, um eu e um objeto. Podemos 5

O sentido da palavra real nessa citação é de que o ‘eu’ não é parte constitutiva da realidade de algo (LEVINAS, 2004, p. 80). 103

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falar de um eu, de um ponto do qual emergem os atos, apenas como característica interna da intencionalidade. (LEVINAS, 2004, p. 80, grifo do autor).

A noção de ‘eu’ pressuporia a noção de intencionalidade (LEVINAS, 2004, p. 80). O ‘eu’, contudo, pertenceria e somente seria revelado em sua radicalidade a partir da noção de intencionalidade apresentada pela fenomenologia.

Considerações finais A teoria fenomenológica de Husserl nos oportunizou um campo vasto e rico de investigações vindouras. Levinas representa o filósofo que, tendo estudado o pensamento de Husserl e tido a oportunidade de conviver junto a ele, posteriormente pode, em certa medida, vislumbrar novas leituras, ou ainda, aprofundar temas somente apontados por seu mestre. Como percebemos no decorrer desse artigo, Levinas mostrou que a atenção de Husserl sobre a consciência estava em torno principalmente dos ‘atos objetivantes’ do mundo e das coisas. Todavia, Levinas volta sua atenção para outro âmbito da consciência, retirando o seu olhar da esfera teórica da consciência e buscando aproximar-se da esfera passiva. A vida que não se resume a vida teórica, a vida contemplativa, mas, apresenta-se também como vida afetiva, vida volitiva, perpassada, roubada de certa maneira pelos desejos, pela vontade, pelo interesse ou desinteresse do sujeito diante daquilo que o cerca. A intencionalidade também nos revela a passividade e um ‘eu’ que vive em seus atos objetivantes. Um ‘eu’ implicado com os objetos e o mundo, uma subjetividade, em certa medida, encarnada nos atos da consciência. A noção de 104

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intencionalidade é radicalizada em Levinas, radicalizada porque aprofunda a análise do ‘eu’ que vive juntos aos atos da consciência. Tais atos que compõem a esfera passiva da consciência foram apresentados por Levinas não como quaisquer atos da consciência, mas, que em certa medida constituem da mesma forma que os atos da esfera ativa a estrutura ontológica do ‘eu’. Com essa nova abordagem da intencionalidade, da vida objetivante somos levados a navegar em novas águas, a buscar novas terras, a mudarmos nossa atenção da esfera ativa para a esfera passiva. Acabamos por assim dizer, sendo roubados pela vida concreta. Findamos assim essa análise, que ainda continua em andamento, questionando-nos para onde seremos levados, para onde seremos conduzidos a partir dessa nova abordagem fenomenológica sobre a vida em sua radicalidade. A fenomenologia de Levinas, analisada desde sua rica influência husserliana, desafia-nos a aprofundar cada vez mais nossa investigação, não deixando de lado ou esquecendo a vida que atravessa, que perpassa a nossa existência.

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ACERCA DO TEMPO: HISTÓRIA, METAFÍSICA E VIRTUALIDADE Giovane Martins Vaz dos Santos1 Tiago Porto Pereira2

Introdução O conceito de tempo é definido na filosofia, inicialmente, como a ordem mensurável do movimento. Essa conceitualização esteve presente na Antiguidade e no Medievo e não era de difícil aceitação, já que o movimento, as relações de causa e efeito e o deslocamento no espaço não sofriam grandes problematizações. A maior questão em relação ao tempo estava ligada à oposição entre o mundo terreno e o mundo divino ou inteligível, sendo a temporalidade exclusivamente terrena e responsável pela mensuração dos objetos físicos. Porém, a criação de novos meios de transporte e comunicação, as descobertas sobre as mudanças ocorridas em ciclos temporais e a existência de espaços sem objetos físicos criaram novos problemas que apontaram para a necessidade de novas reflexões sobre o conceito. Com o advento do ciberespaço, a virtualização do espaço e do tempo trazem novos problemas para a filosofia e as ciências sociais, 1

Acadêmico de Filosofia da PUCRS, bolsista de iniciação científica pelo CNPq. E-mail: [email protected] 2 Mestrando em Filosofia pela PUCRS, bolsista pelo CNPq. E-mail: [email protected]

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modificando as relações de causa e efeito e o modo como percebemos a passagem do tempo. A seguir, faremos a exposição da concepção de tempo em Newton e em Leibniz. Posteriormente, trataremos da questão da existência do tempo, analisando os argumentos de J.M.E. McTaggart. Por fim, trataremos do tempo virtual, analisado pelo sociólogo Manuel Castells.

1. Newton e a tese do espaço e do tempo absolutos Na sua obra intitulada Principia Mathematica, Newton defende a existência do tempo e do espaço absolutos. Sobre o tempo absoluto, Newton utiliza a distinção da astronomia entre o tempo relativo e o tempo absoluto: a equação do tempo era utilizada para corrigir diferenças que surgiam na passagem do dia solar, o padrão de contagem de tempo da época. Durante um ano, por exemplo, a duração de um dia solar pode variar em até vinte minutos. A visão de uma taxa de rotação constante da Terra, representada pelo sistema ptolemaico e pela cosmologia aristotélica, foi superada pelo matemático e astrólogo alemão Johannes Kepler (1571-1630), que afirmou que a rotação da Terra pode ocorrer com maior velocidade quando o planeta está mais próximo do Sol. A necessidade de uma equação do tempo, para Newton, se sustenta no fato de que nenhum movimento é uniforme. Todo movimento é subjetivo, sofrendo alterações de forças que o aceleram ou retardam. O tempo absoluto, por sua vez, não é nada mais do que a duração da existência das coisas, não sofrendo, portanto, a influência de qualquer força externa. Nas palavras do cientista: O tempo absoluto, verdadeiro e matemático flui sempre igual por si mesmo e por sua natureza,

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sem relação com nenhuma coisa externa, chamando-se com outro nome “duração”; o tempo relativo, aparente e vulgar é certa medida sensível e externa de duração por meio do movimento (seja exata, seja desigual), a qual vulgarmente se usa em vez do tempo verdadeiro, como são a hora, o dia, o mês, o ano. (NEWTON, 1996, p. 24)

Assim como o tempo, o espaço também poderia ser definido como sendo relativo e absoluto: O espaço absoluto, por sua natureza, sem nenhuma relação com algo externo, permanece sempre semelhante e imóvel; o relativo é certa medida ou dimensão móvel desse espaço, a qual nossos sentidos definem por sua situação relativamente aos corpos, e que a plebe emprega em vez do espaço, como é a dimensão do espaço subterrâneo, aéreo ou celeste definida por sua situação relativamente à terra. Na figura e na grandeza, o tempo absoluto e o relativo são a mesma coisa, mas não permanecem sempre numericamente o mesmo. (NEWTON, 1996, p. 24-25)

Em outras palavras, quando apontamos uma dimensão do espaço, estamos falando do espaço relativo, que é parte do espaço absoluto. O espaço absoluto, que “ permanece sempre semelhante e imóvel”, não pode ser referido a partir de um observador ou a partir de outros objetos. Para Newton, o espaço e o tempo absolutos são “atributos de Deus”, sendo o espaço infinito o atributo da Imensidade de Deus e o tempo infinito o atributo da Eternidade divina. Leibniz, por meio de correspondências com Clarke, se opôs às afirmações de Newton sobre o espaço e o tempo absolutos. Leibniz (2000) se opõe, inicialmente, à afirmação de Newton de que o espaço e o tempo absolutos são “atributos de

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Deus”. Leibniz expõe em três argumentos principais os motivos que tornam a tese de Newton insustentável: a) se o espaço absoluto é uma propriedade de Deus, então o espaço faz parte da essência divina. Ora, segundo Newton, o espaço tem partes. Logo, a essência de Deus também tem partes; b) se o tempo é identificado como a imensidão divina, então os objetos que estão no tempo também fazem parte da essência de Deus; c) seguindo o Princípio da Razão Suficiente e considerando a hipótese da existência de um espaço e de um tempo absolutos, não é possível encontrar uma razão para que Deus coloque as coisas em um lugar do espaço e não em outro, assim como não há razão para criar o mundo em um tempo e não em outro, já que o espaço e o tempo absolutos são uniformes e imutáveis. Após rejeitar a existência do espaço e do tempo absolutos de Newton, Leibniz formula sua própria teoria acerca dos dois temas. Para o filósofo, o espaço e o tempo são constituídos por relações, onde a) o tempo é um conjunto de acontecimentos temporais; e b) se observarmos todos os instantes do mundo em um único instante de tempo, perceberemos a existência das relações espaciais entre todos os objetos. Todos os acontecimentos mantém uma relação temporal com todos os outros acontecimentos. Um acontecimento pode ocorrer antes, simultaneamente ou depois de outro acontecimento. Assim, o tempo não pode existir em si mesmo, mas somente nas relações temporais. Neste sentido, Leibniz não encontra grandes problemas para justificar sua tese. Sobre o espaço, no entanto, o filósofo é confrontado com a seguinte objeção: em um determinado instante de tempo, podemos notar a existência de um espaço vazio entre dois ou mais objetos, de modo que estes fiquem isolados e não exista qualquer relação espacial entre eles. A saída que Leibniz encontra está nas relações possíveis: o espaço não é apenas um conjunto de relações efetivas, mas também um conjunto de relações

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possíveis que não existem mas poderiam existir. Deste modo, o espaço vazio que há na nossa galáxia, por exemplo, pode ser imaginado como um conjunto de relações possíveis entre objetos. Após analisarmos a questão do tempo e do espaço absoluto em Newton e Leibniz, discutiremos o tema do tempo na filosofia contemporânea, onde o filósofo McTaggart trouxe importantes contribuições.

2. McTaggart e a irrealidade do tempo O filósofo inglês J.M.E. McTaggart (1866-1925) estudou e lecionou durante grande parte de sua vida no Trinity College, em Cambridge, tendo sido membro fundador da escola do idealismo britânico. Seu campo de estudos era principalmente metafísica, ficando conhecido pelos seus argumentos contra a realidade do tempo e sobre a definição de duas séries temporais: A e B, conforme dissertaremos abaixo em linhas gerais. Para começar a nossa exposição da teoria do filósofo inglês, consideremos duas posições acerca da posição no tempo, da forma com que ele se apresenta a nós diretamente: de um lado, cada posição é presente, passado e futuro, não deixando espaço para distinções; de outro, temos um evento que é anterior a outro e posterior a um terceiro, havendo distinções permanentes. Quanto a essas duas considerações, McTaggart nomeia a primeira de série A e a segunda de série B. Qualquer evento pode pertencer a uma ou outra série, ainda que haja diferenças substantivas entre elas. Analisando mais profundamente, podemos afirmar que para a série A os eventos mudam constantemente de lugar, ou seja, existe um movimento dinâmico entre eles. Por outro lado, a posição dos eventos na série B não muda (GARRET, 2008, p. 81), havendo apenas uma passagem de um status (ou marcação temporal) a outro:

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um evento futuro torna-se presente e, logo, se tornará passado. Sendo assim, se um acidente automobilístico ocorreu ontem à noite na minha rua, sempre foi e sempre será verdadeiro que ocorreu de fato ontem à noite. Feita essa breve introdução às séries do tempo, gostaríamos de abordar a polêmica tese do filósofo. Ainda que estabeleça essa diferenciação entre as duas séries temporais, McTaggart argumenta no relevante artigo intitulado The unreality of time (1908) que a existência do tempo é uma ficção, ou seja, o tempo é irreal. Parece altamente paradoxal afirmar que o tempo é irreal e que todas declarações que envolvem sua realidade são errôneos. Tais afirmações envolvem uma saída da posição natural da humanidade que é muito maior do que o envolvido na declaração da irrealidade do espaço ou a irrealidade da matéria. Para cada experiência do homem há uma parte – seus próprios estados conhecidos por ele por introspecção – que nem mesmo parecem ser espaciais ou materiais. Mas nós não temos experiência que não pareça temporal. Mesmo nossos julgamentos que o tempo é irreal aparecem eles mesmos no tempo. 3 (McTAGGART, 1993, p. 23)

3 Tradução nossa para a passagem: “It seems highly paradoxical to assert that time is unreal, and that all statements which involve its reality are erroneous. Such an assertion involves a departure from the natural position of mankind which is far greater than that involved in the assertion of the unreality of space or the unreality of matter. For in each man's experience there is a part – his own states as known to him by introspection – which does not even appear to be spatial or material. But we have no experience which does not appear to be temporal. Even our judgements that time is unreal appear to be themselves in time”. 112

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Metodologicamente, antes de lidar com a tese central do seu artigo, o filósofo questiona qual série é fundamental para a realidade do tempo, A ou B, realizando uma análise dos dois conceitos. Procedendo dessa forma, McTaggart conclui que se tempo implica mudança, a série A pode prevalecer, considerando que as mudanças devem mudar suas relações com o tempo, assim como suas qualidades relacionais: a queda de um castelo de areia na Inglaterra muda a natureza das pirâmides do Egito (exemplo de McT). Se analisarmos a hipótese pelo outro lado, a que a série B constitui o tempo independente da série A, as mudanças precisam ser possíveis fora desta. Se supormos que as distinções de passado, presente e futuro não se aplicam à realidade, como que a mudança se aplicaria a ela? A série B do tempo não permite mudanças, visto que um evento N sempre se situará após um evento M e antes de um evento O. Independente de como seja analisado, as posições são fixas: tomemos, por exemplo, a Copa do Mundo de Futebol ocorrida em 2014 aqui no Brasil; sabemos que ela ocorreu após a Copa de 2010 e que antecede o evento de 2018. Nada poderá mudar esse fato. Para que houvesse uma mudança nessa série, um evento M deveria deixar de ser M gradualmente para se tornar N, ou seja, haveria um devir de M para N. Contudo, tal coisa é impossível para a série B do tempo, pois ela é dependente de relações permanentes entre eventos, não deixando espaço para estes deixarem de existir como eventos ou se transformarem em algo diferente. Para o filósofo, o que caracteriza a mudança somente pode ser encontrado quando investigamos a série A do tempo. Segundo sua teoria, se tomarmos um evento como referencial – retornemos ao nosso exemplo anterior, o da Copa do Mundo de 2014 – em uma perspectiva anterior – digamos em 2008 –, esse evento estaria em um futuro ainda distante; conforme avançamos, esse futuro se aproxima gradualmente até se tornar

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nosso presente e, em seguida, fazer parte do nosso passado. Essas características são as únicas que aceitam mudança, estando elas presentes somente na série A. Portanto, se não houver a série A, não existe mudança real. Se isso é correto, então a série B sozinha não é suficiente para constituir o tempo, uma vez que tempo envolve mudança e esta só consegue existir como temporalidade, como anterior ou posterior, onde essas relações que conectam tais eventos são relações de tempo. A conclusão que McTaggart chega é de que a série B depende da série A para existir, pois sem esta não existe tempo, logo não há a possibilidade daquela existir. Sendo assim, a série A é mais fundamental que a B para o tempo. Estabelecidas as diferenciações entre os tipos de séries referentes ao tempo e com a conclusão de que a série A é mais fundamental para o tempo, o filósofo retorna para a sua tese central do artigo, a de que o tempo é irreal. Partindo da refutação da série que há pouco parecia defender, chegamos ao que ficou conhecido como o Paradoxo de McTaggart. Para compreendermos essa teoria, consideremos as seguintes asserções: a) Todo evento é passado, presente e futuro. b) Nenhum evento pode ser passado, presente e futuro. Logo: c) A série A do tempo é contraditória. Explicando as posições, na premissa a) é exposto que todos eventos carregam em si as três posições: um dia foi futuro, agora é presente e logo será passado; na premissa b), McTaggart assume que essas três posições são incompatíveis, não podendo estar presentes ao mesmo tempo; logo, a conclusão c) afirma a contradição dentro da série A do tempo, visto que nada pode possuir características contraditórias sob o ponto de vista lógico. De acordo com suas observações, cada evento deve ocupar uma posição por vez, não as três ao mesmo tempo. Isso

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significa que quando dizemos que um evento é passado, afirmamos que ele não está mais presente e que ele não ocorrerá em seguida. Essa característica exclusiva é um ponto essencial para a mudança e, portanto, para o tempo. Sendo assim, as únicas mudanças que podemos ter é do futuro para o presente e do presente para o passado (McTAGGART, 1993, p. 32). Contudo, se aceitarmos que essas características são incompatíveis somente enquanto simultâneas, ou seja, que não há contradição quando elas se apresentam sucessivamente, teremos um sentido em que a premissa a) é verdadeira, mas b) é falsa; um sentido em que b) é verdadeira e a) é falsa; logo, o argumento a-c é inválido, pois possui premissas conflitantes. A saída oferecida por McTaggart dessa objeção é evitarmos a acusação de contradição nas três posições – passado, presente e futuro – da série A, recorrendo a três posições secundárias: N é presente, foi futuro e será passado. O problema é que agora existem nove posições nessa série secundária! Além disso, todo evento ocupa cada uma dessas posições da série A. Como resolver esse problema? Segundo o filósofo, podemos recorrer à distinções de flexões verbotemporais mais complexas, passando assim para um terceiro nível. Contudo, ainda teremos posições que conflitarão entre si, sendo necessário passar para um quarto nível. Sendo assim, sempre podemos avançar um nível para escapar de contradições; contudo, em cada novo nível que se escalona o discurso, as contradições persistem (McTAGGART, 1993, p. 32-3; GARRET, 2008, p. 86). Dessa forma, conforme assinala Garrett (2008), “a 'resposta óbvia' [de McTaggart], afinal de contas, não é assim tão óbvia” (GARRET, 2008, p. 86). A conclusão do filósofo inglês é que a realidade da série A do tempo é contraditória, logo deve ser descartada, assim como mudança e tempo, visto que estas necessitam desta série. Além disso, a série B também deve ser rejeitada, pois ela depende do tempo, estando, assim, atrelada à série A. A

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polêmica conclusão defendida por McTaggart é a de que nada muda nem está no tempo: o que existe é a nossa percepção presente das coisas, que as captura mais ou menos como elas não são, ou seja, nossa percepção se apoia em uma ilusão das coisas mesmas. A realidade da série A, então, leva a uma contradição e deve ser rejeitada. E, desde que nós temos visto que mudança e tempo requerem a série A, a realidade da mudança e tempo deve ser rejeitada. E também a realidade da série B, uma vez que ela requer o tempo. Nada é realmente presente, passado ou futuro. Nada é realmente anterior ou posterior do que outra coisa ou temporariamente simultânea. Nada realmente muda. E nada está realmente no tempo. Sempre que nós percebemos algo no tempo – que é a única maneira na qual, em nossa experiência presente, nós percebemos as coisas – nós o estamos percebendo mais ou menos como ele não é na realidade.4 (McTAGGART, 1993, p. 34)

3. Sociedade em rede: intemporalidade e simultaneidade

Apesar das observações filosóficas de J.M.E. McTaggart e outros teóricos, tempo e espaço são conceitos que comumente se encontram relacionados, tanto na natureza 4 Tradução nossa para a passagem: “The reality of the A series, then, leads to a contradiction, and must be rejected. And, since we have seen that change and time require the A series, the reality of change and time must be rejected. And so must the reality of the B series, since that requires time. Nothing is really present, past, or future. Nothing is really earlier or later than anything else or temporally simultaneous with it. Nothing really changes. And nothing is really in time. Whenever we perceive anything in time – which is the only way in which, in our present experience, we do perceive things – we are perceiving it more or less as it really is not.” 116

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quanto na sociedade. O espaço, na teoria social, representa um suporte material para o compartilhamento do tempo nas ações sociais, ou seja, implica a construção da simultaneidade. Para acadêmicos como Manuel Castells, o desenvolvimento de tecnologias de comunicação podem ser entendidas como um processo de descolamento gradual da contiguidade proporcionada pelo espaço e o compartilhamento do tempo, sendo o espaço de fluxos uma oportunidade organizacional e tecnológica de se praticar a simultaneidade sem necessitar da contiguidade (CASTELLS, 2009, p. 34). Esses avanços tecnológicos se refletem na nossa sociedade ao passo que influenciam diversas instituições, passando do mercado financeiro até o mundo do trabalho. Na presente seção do nosso trabalho, buscamos expor como se dá a construção desse “novo” tempo, constituído na sociedade em rede5. Presente na sociedade em rede, temos uma virtualização do tempo conferida por um sistema multimídia eletronicamente integrado proporcionado pela Internet. Dessa forma, Castells (1999) assinala que dentro dessa configuração o tempo transformou-se de duas formas, reportando-se à simultaneidade e à intemporalidade. O fluxo contínuo e instantâneo de informações em escala global em conjunção com a cobertura em tempo real de acontecimentos locais tornam a instantaneidade temporal de eventos socioculturais uma realidade. Uma vez que o acesso a esses acontecimentos é dinâmico, todos indivíduos podem participar das construções históricas em movimento. Além disso, a comunicação mediada por computadores (CMC) nos oferece a possibilidade de manter conversações em tempo real com as mais diversas pessoas, independente de sua localização geográfica, o que nos

5 Termo cunhado por Manuel Castells que representa a atual configuração social permeada pelos usos de dispositivos multimídia conectados à Internet, constituindo uma rede orgânica entre pessoas e corporações. 117

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proporciona a possibilidade de discussões multilaterais, sendo isso possível de forma escrita ou a partir de videoconferências. Castells (1999) ressalta que “a intemporalidade do hipertexto de multimídia é uma característica decisiva de nossa cultura, modelando a memória das crianças educadas no novo contexto cultural” (CASTELLS, 1999, p. 486-7). Tal fenômeno é constatado ao observarmos as novas gerações e a sua facilidade com que crianças e jovens se adaptam aos usos de ferramentas multimídias eletrônicas nos usos cotidianos, seja com finalidades recreativas ou educacionais. Respondendo a finalidades específicas, na Internet a temporalidade das informações são ordenadas de forma que o resultado final seja um tempo não-sequencial que representa, de certa forma, uma totalidade da produção cultural à disposição humana. O sociólogo põe em contraste essa ordenação com a que outrora era utilizada pelas enciclopédias: esta catalogava uma série de conhecimentos humanos a partir de uma ordem alfabética, enquanto aquela oferece as informações conforme os impulsos do agente ou decisões previamente estabelecidas pelos produtores do conteúdo. Sendo assim, Castells (1999) observa que “[…] toda a ordenação dos eventos significativos perde seu ritmo cronológico interno e fica organizada em sequências temporais condicionadas ao contexto social de sua utilização. Portanto, é simultaneamente uma cultura do eterno e do efêmero” ( CASTELLS, 1999, p. 487. Grifo do autor). A eternidade se dá pois abrange passado e futuro das expressões culturais, enquanto sua efemeridade resulta da dependência sofrida pela sua organização aos contextos e objetivos das construções culturais solicitadas. Na sociedade em rede, a ênfase no sequenciamento é reversa. A relação ao tempo é definida pelo uso de tecnologias de informação e comunicação em um implacável esforço de aniquilar o tempo ao negar a sequência: de um

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lado, por comprimir o tempo (como em transações financeiras globais ocorridas em frações de segundos ou a prática de multitarefas generalizadas, comprimindo mais atividades em um tempo estabelecido); por outro lado, por obscurecer o sequenciamento de práticas sociais, incluindo passado, presente e futuro em uma ordem randômica, como no hipertexto da Web 2.0 ou obscurecimento de padrões do ciclo da vida, tanto no trabalho quanto na paternidade.6 (CASTELLS, 2009, p. 35)

Para o sociólogo espanhol, a teoria de Leibniz acerca do tempo é valiosa. Segundo ela, simpliciter, o tempo é a ordem de sucessões de coisas: não havendo as coisas, não haveria o tempo. De acordo com sua argumentação, nossos conhecimentos científicos atuais não conflitam com essa conceitualização leibniziana, sendo ela uma forma de melhor compreendermos as mudanças atuais da temporalidade. Isto posto, Castells sustenta que seu conceito de tempo intemporal – isto é, a temporalidade atual – “ocorre quando as características de um dado contexto, ou seja, o paradigma informacional e a sociedade em rede, causam confusão sistêmica na ordem sequencial dos fenômenos sucedidos naquele contexto” (CASTELLS, 1999, p. 489). Entende-se disso que a intemporalidade é uma anomalia causada por um evento na linha de tempo em que está inserida. A confusão que ocorre, nesse caso, pode ser representada como uma compressão dos 6 Tradução nossa para a passagem: “In the network society, the emphasis on sequencing is reversed. The relationship to time is defined by the use of information and communication technologies in a relentless effort to annihilate time by negating sequencing: on one hand, by compressing time (as in split-second global financial transactions or the generalized practice of multitasking, squeezing more activity into a given time); on the other hand, by blurring the sequence of social practices, including past, present, and future in a random order, like in the electronic hypertext of Web 2.0, or the blurring of life-cycle patterns in both work and parenting.” 119

Acerca do tempo

fenômenos, com vistas à instantaneidade, ou na forma de descontinuidade randômica dentro dessa cadeia de eventos. Como exemplos empíricos desse tempo intemporal abstrato, Castells ressalta as transações financeiras das bolsas de valores realizadas em frações de segundos, empresas que utilizam jornadas de trabalho flexíveis, indeterminação do ciclo de vida, guerras instantâneas, tempo variável de serviço, entre outros. Todos esses fenômenos misturam sistemicamente a ocorrência de distintos tempos (CASTELLS, 1999, p. 489). Ponto importante a ser ressaltado é que o tempo intemporal pertence ao espaço de fluxos, enquanto o tempo biológico, a disciplina tempo e a sequencialidade posta socialmente oferecem os lugares onde se aplicam, ao passo que estruturam ou desestruturam a segmentação das sociedades. Seguro dessa argumentação, o sociólogo afirma que na nossa sociedade o espaço modela o tempo, realizando a inversão de um modelo histórico: “fluxos induzem tempo intemporal, lugares estão presos ao tempo” (CASTELLS, 1999, p. 490). Toda a ideia de progresso que fundamenta a nossa sociedade há dois séculos baseia-se nos movimentos da história norteada pela razão e fazendo vistas a um impulso de forças produtivas, passando ao largo de restrições sociais e culturas vinculadas ao espaço. Dessa forma, o domínio do tempo e o controle do ritmo dominaram superfícies e, com o avanço da crescente industrialização, transformaram o espaço a partir do processo de constituição do estatismo e do capitalismo. Ainda que a análise de Castells abarque várias amostras empíricas de temporalidades, a experiência humana não se reduz apenas a estas, visto que a construção do tempo e do espaço são diferenciados socialmente. A multiplicidade espacial de lugares desconectados uns dos outros apontam para diversas temporalidades, desde o tempo biológico ao tempo

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disciplinar imposto pelo relógio7. Algumas funções e indivíduos conseguem transcender a esse tempo multifacetado, enquanto outros simplesmente se resignam e seguem a sua vida da maneira que conseguem. Contudo, Castells observa que existe lugar para a contradição nesse sistema, encarnado em movimentos sociais que buscam substituir esse modelo predominante da sociedade em rede. Dessa forma, em vez de simplesmente aceitarem a configuração dada tais como uma máquina aceita sua programação passivamente, grupos ambientais propõem viver a vida na sua totalidade, a partir de uma perspectiva cosmológica. Esses grupos tendem a considerar nossas vidas como parte de um processo evolutivo da espécie, em conexão direta com um sentimento de responsabilidade para com as gerações futuras (CASTELLS, 2009, p. 35).

Considerações finais Os conceitos de tempo analisados no nosso trabalho não sofrem sua extinção ao longo do tempo, ou seja, não são eliminados e substituídos por um novo conceito mais atual que passa a predominar por um novo período de tempo. As análises de Newton e Leibniz no século XVII, McTaggart no século XX e Castells atualmente, acerca do tempo, ainda fazem sentido em diferentes setores sociais e espaciais da sociedade contemporânea. O cálculo criado por Newton para a medida do tempo por meio do movimento é pré-requisito fundamental em qualquer currículo escolar. A definição de Leibniz de que o tempo é um conjunto de relações temporais ainda encontra fundamentação no mundo atual, repercutindo na tese defendida 7 Nos seus livros publicados em 1999 e 2009, Castells explora mais a fundo esses e outros tipos paralelos de tempo, o que não faremos neste trabalho devido a sua extensão. 121

Acerca do tempo

por Castells. No entanto, essa definição não é mais predominante: em uma sociedade em rede, o acesso aos eventos ocorridos no mundo inteiro e aos objetos virtuais pode ser instantâneo, problematizando a relação temporal entre eventos de Leibniz, e dando base para a tese de Castells sobre o tempo intemporal.

Referências bibliográficas BENNETT, Jonathan (Comp.). Exchange of papers between Leibniz and Clarke. 2007. Disponível em: . Acesso em 22 nov. 2014. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. CASTELLS, Manuel. Communication Power. New York: Oxford University Press, 2009. GARRETT, Brian. Metafísica: conceitos-chave em Filosofia. Porto Alegre: Artmed, 2008. LEIBNIZ. Novos ensaios sobre o entendimento humano. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2000. McDONOUGH, Jeffrey K. Leibniz's Philosophy of Physics. The Stanford Encyclopedia of Philosophy. 2014. Disponível em: . Acesso em 22 nov. 2014. McTAGGART, John. “The unreality of time”. In: Le POIDEVIN, Robin (ed.); MACBEATH, Murray (ed.). The philosophy of time. Oxford: Oxford University Press, 1993, p. 23-34. NEWTON. Princípios matemáticos. Coleção Os Pensadores . São Paulo: Nova Cultural, 2000.

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RYNASIEWICZ, Robert. Newton's Views on Space, Time, and Motion., The Stanford Encyclopedia of Philosophy. 2014. Disponível em: . Acesso em 22 nov. 2014.

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CONSCIÊNCIA E INTENCIONALIDADE: SARTRE E A FENOMENOLOGIA Kátia Marian Correa1

Num denso e conciso estudo (Uma idéia fundamental da fenomenologia de Husserl: a intencionalidade na obra Situações I – críticas literária)2, Sartre propôs uma leitura ousada das teses nucleares da fenomenologia husserliana e, principalmente, sobre o conceito de intencionalidade. Isso se explica por ser a concepção de intencionalidade muito cara à tradição fenomenológica, sendo inclusive retomada por muitos filósofos, entre eles, o próprio Sartre. Em sua obra magna O ser e o nada: ensaio de Ontologia Fenomenológica Sartre teve a preocupação de explicitar os elementos de sua filosofia existencial em perspectiva fenomenológica, mas há outras obras que poderiam ser citadas, aqui, tais como O imaginário, Esboço para uma teoria das emoções, A transcendência do Ego, etc. Nossa proposta é examinar o referido estudo sobre a intencionalidade. Sartre parte de teses de filósofos contemporâneos seus (idealistas e realistas), dizendo que 1

Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: [email protected] Trata-se de uma pequena consideração de Sartre à respeito da intencionalidade de Husserl. A mesma foi originalmente publicada em La Nouvelle Reveu Française, n. 304, janeiro de 1939, pp-129-31 [N.T]. Posteriormente o texto foi adicionado à obra Situações I – Críticas Literárias, compondo um dos volumes das Situations, ensaios políticos e literários escritos entre os anos 1947 e 1965. 2

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Consciência e intencionalidade

predomina entre eles um conceito assimilador de conhecimento. Objetos tais como uma mesa, um rochedo e uma casa são, numa perspectiva epistemológica estrita, realidades que deverão perder sua alteridade para entrar no domínio do sujeito. Eles se tornarão conteúdos da consciência. O conhecer seria, assim, assimilação, unificação e, finalmente, identificação. Tudo, em certo sentido, se torna uma realidade mental. Não há, por assim dizer, um contato direto e autêntico da consciência com o mundo, mas sim redução de tudo o que é exterior ao domínio da mente devoradora. Eis, para Sartre, o modelo teórico que será posto em causa pela originalidade da noção husserliana de consciência. Como se dá este questionamento? A consciência em sentido fenomenológico não absorve o mundo exterior fazendo dele algo imanente. Por quê? Porque, em fenomenologia, a consciência é doadora de sentido. Relacionamo-nos às coisas por que estas aparecem a nós, se mostram como dotadas de interesse, de repulsa, de indiferença, etc. Ora, a palavra relação é esclarecedora, pois a consciência humana está essencialmente voltada a objetos. A intencionalidade é uma saída para o mundo, ou ainda: é um estar junto a objetos, antes de estar em si mesma. O que se percebe empiricamente não é uma informação que possa prescindir das significações intencionais que somente a consciência poderia trazer. Vale, no entanto, ressaltar que não se trata de um dualismo consciência-mundo, uma vez que, ao intencionar algo, a consciência não está apenas representando subjetivamente este algo, e sim, encontrando um “objeto” tal como este fora visado por ela. Dizer consciência é dizer relação intencional a objetos, mas, para Sartre, este direcionamento implica mais do que relação teórica, pois para ele nós somos no mundo, existimos em meio às coisas e aos outros e, sendo assim, a própria consciência é presença no mundo.

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Kátia Marian Correa

Perguntamos, agora: o que entender por fenômeno? Para Sartre trata-se de algo que pode ser explicado do seguinte modo. “O que o fenômeno é, é absolutamente, pois se revela como é. Pode ser estudado e descrito como tal, porque é absolutamente indicativo de si mesmo” (Sartre, 2011, p. 16). Sartre afirma, retomando Husserl, que não se podem dissolver as coisas na consciência. O conhecimento não é o ato pelo qual as coisas se tornam conteúdos mentais. Em certo sentido, é a consciência que já está sempre fora de si mesma, ou seja, é sempre orientação intencional a algo de outro. Eis por que a consciência não pode ser naturalizada, vale dizer, não se enquadra numa perspectiva filosófica que faz da natureza física a realidade em sentido forte, transformando todo fato psíquico num fenômeno derivado dos acontecimentos causais do mundo físico. Ora, em fenomenologia, mundo e consciência não são realidades separadas. Dizer que a consciência é intencionalidade é propor que, mesmo que sejamos seres da natureza, tudo o que é significativo depende de uma atividade constituinte da própria consciência, inclusive as teses que filósofos e cientistas sustentam em relação ao mundo empírico e factual. O mundo exterior, que faz de nós corpos reais existentes como tantos outros, não pode desmentir a atividade intencional que permite pensá-lo como “coisa material”, “ser real”, “fatos”, “objetos culturais”, etc. Todos esses termos dependem, por essência e necessidade, da atividade constituinte da consciência. Husserl toma a consciência como fato irredutível, isto é, que não pode ser reduzido a nenhuma realidade objetiva, uma vez que ela é, antes de tudo, um fluxo de vivências intencionais. A consciência, mesmo sendo um acontecer psicológico ou empírico-real, pode ser vista como consciência pura, isto é, como uma vida espiritual que não cessa de doar sentido, isto é, de encontrar o mundo sob a forma de atos de percepção, de intelecção, de valoração, de realizações práticas, etc. Dessa

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Consciência e intencionalidade

maneira, pode-se afirmar que a consciência sai de si mesma, “explode para o mundo”, para dizer segundo os próprios termos de Sartre. Tal interpretação da fenomenologia mostra que não há, na consciência, um interior, como se ela fosse um recipiente contendo pacotes de ideias e representações. Nas palavras de Sartre: “ela (a consciência) não é nada senão o exterior de si mesma, e é essa fuga absoluta, essa recusa de ser substância, que a constitui como uma consciência.” (2005, p. 56). Eis a luta incessante da consciência para não se tornar um em-si, ou seja, uma substância, uma coisa. Retomemos Husserl. Uma vez que a consciência possui correlatos intencionais, então não fica difícil perceber por que ela abarca todos os vividos. Esta possibilidade, para Husserl, remete ao trabalho de um Ego, de um Eu puro ou transcendental. “Dessa maneira, a consciência possui em si mesma um ser que é seu, que não é alcançado em sua essência mesma absoluta pela eliminação fenomenológica.” (HUSSERL, 2006, p. 83-84). É mediante a ciência fenomenológica que se podem estudar e aprofundar-se as questões relativas às estruturas e peculiaridades da consciência. Não seria, então, forçar as coisas dizendo que, em sentido fenomenológico, a consciência é abertura ao mundo? Husserl não é um idealista que fez da intencionalidade um viver subjetivo que faz do mundo uma construção dominada egologicamente? Eis, para nós, a importância da interpretação sartreana de Husserl. Mesmo discordando do pai da fenomenologia sob muitos aspectos (a importância que o Ego tem para Husserl é um deles), Sartre nos diz que, pela intencionalidade, já é possível notar uma preocupação com as questões que perpassam a mundaneidade, e é exatamente isso que pode posteriormente explicitar ou pelo menos descrever elementos fundamentais da existência humana. Aqui, vale mencionar o influxo da filosofia de Heidegger sobre as análises sartreanas

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Kátia Marian Correa

do existir humano, lembrando que, para o autor de Ser e Tempo, importa principalmente buscar incessantemente explicitar o sentido do ser, tomando-se como ponto de partida um ente que se convencionou chamar de ser-aí (Dasein), que não é senão o próprio existente humano que se encontra aí, lançado no mundo. No caso de Sartre, estar-no-mundo implica a ideia de movimento. Em suas palavras: “Ser é explodir para dentro do mundo, é partir de um nada de mundo e de consciência para subitamente explodir-como-consciência-nomundo.” (2005, p. 56-57). A consciência tem necessidade de existir como consciência de outra coisa que ela mesma (em termos husserlianos isto se chama intencionalidade). Husserl e outros fenomenólogos não tomam a consciência humana somente em sua atividade teórica. O conhecimento é apenas uma entre outras maneiras possíveis da consciência. Conforme Sartre, a consciência pode ser descrita de múltiplos modos: consciência que ama, que manifesta temor, que odeia, etc. sendo que, em todas essas modalidades, o existente humano pode encontrar algo do próprio mundo, ou ainda, pode compreender que o mundo, graças à intencionalidade, se desvela a nós de modos imprevisíveis e sempre mais ricos. O sentimento de ódio que alguém nutre em relação a outrem, por exemplo, também é uma maneira de explodir em direção ao mundo, de modo tal que outrem lhe aparece ou se revela como sendo repugnante, odioso, irritante, etc. Nas palavras de nosso autor: “Eis que essas famosas reações “subjetivas” – ódio, amor, temor simpatia – que boiavam na malcheirosa salmoura do Espírito de repente se desvencilham dele: são apenas maneiras de descobrir o mundo.” (2005, p. 57). Portanto, com essa citação de Sartre, pode-se concluir que é o próprio mundo que, instantaneamente, se desvenda para os homens tendo em vista as várias modalidades intencionais (amor, ódio, juízo estético, valor, etc.).

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Consciência e intencionalidade

A interpretação de Sartre é aguda e ousada: “Husserl reinstalou o horror e o encanto nas coisas.” (2005, p. 57). Por quê? Porque mostrou que o que chamamos mundo não é outro senão aquele que se revela a nós mediante os vários modos de ser visado e vivenciado pela consciência. A ideia de uma “vida interior” se esvai, uma vez que o movimento intencional faz de nós, do início ao fim, realidades humanas imersas no mundo, e é aí que podemos nos descobrir em nossa própria condição: existentes que nunca são isto ou aquilo de modo fixo, acabado, determinado. Somos, fundamentalmente, seres indeterminados, livres, responsáveis por conferir ao existir um sentido que ninguém poderá, de fora, nos trazer. Ao resgatar as contribuições de Husserl e com isso da tradição fenomenológica que antecede sua filosofia existencial, Sartre não deixa de criticar a ideia husserliana de Ego (a consciência de estar consciente). Por quê? Porque não é preciso que o Para-si se lembre de que todos os movimentos que realizou foram feitos por um “Eu”. Caso alguém pergunte: “o que se está fazendo?” não é necessário responder remetendo ao mesmo “Eu”. Sartre explica que, na consciência instantânea, não é necessário à presença de um Ego transcendental. Basta apenas um fluxo consciente da ação em processo, em movimento. “A consciência é consciência de si, antes ou depois da reflexão.” (Rodrigues, 2010, p. 27). Expliquemos um pouco mais esta crítica. Sartre explica que a consciência é de dois tipos: a refletida e a irrefletida. O segundo tipo de consciência também é consciência de si, sendo necessário para a reflexão, porque fornece a unificação de toda a consciência, ou seja, conserva a “corrente” da consciência consciente de si mesma. Aqui não se têm o intuito de discutir e desenvolver as concepções de consciência refletida e irrefletida, mas, sim salientar ao leitor que a consciência dita irrefletida manifesta um cogito pré-reflexivo que é

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indispensável, sendo mesmo a condição de possibilidade para que possamos falar de um cogito, em sentido cartesiano. Mas vale ressaltar o seguinte: é graças ao cogito, em sentido cartesiano, que se pode revelar uma vivência do tipo irrefletida. É ele que, em última instância, pode ver que o Ser da consciência se apresenta antes dele. Ora, esse ser da consciência não pode reduzir-se a um saber teórico. Ele é apenas a condição da consciência, uma manifestação espontânea da mesma. Husserl já falava que a consciência não é possível antes de ser (fato), isto é, de seu próprio viver, e isso, na nossa perspectiva, explica por que Sartre insistiu sobre a fórmula: no existencialismo, a existência precede a essência (Sartre, 1987). Concluamos com algumas ponderações críticas presentes na obra O Ser e o Nada. Com Husserl, Sartre afirma que a consciência possui um existir irredutível a toda objetivação. Mas, por outro lado, afastar-se-á do pensamento husserliano no que diz respeito ao ser do fenômeno. Para Sartre, após ter escrito as Investigações lógicas, Husserl teria assumido uma posição e uma orientação extremamente idealista. Além do mais, Sartre entende que Husserl não evita que se caia de novo no dualismo, a saber, aquele do finito e do infinito. É verdade que as reflexões de Sartre caminham para uma espécie de “ontologização” do problema do conhecimento com os recursos da fenomenologia husserliana, mas tal fenomenologia não via uma possibilidade efetiva da abordagem do problema do ser. O que se percebe é que ambos os propósitos, a saber, de Husserl e Sartre são distintos, e isso pode ser ilustrado pela seguinte passagem da obra Ideias I de Husserl: “A passagem à subjetividade transcendental não deseja conduzir-nos ao fundamento do mundo, mas sim ao ‘fundamento radical de todas as funções de conhecimento” (1950, p. 37).

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Consciência e intencionalidade

No que diz respeito a Sartre, pode-se dizer que ele chega a um problema de ordem ontológica: o Ser do fenômeno. Se for verdade que, para que exista uma consciência, é necessário já existir de antemão um objeto a ser transcendido, algo que é anterior a ela mesma, e da qual ela nasce, será também verdade que o ser do fenômeno não depende da consciência para existir. Por quê? Porque o ser do Ser do fenômeno já está dado anteriormente de alguma maneira. Assim, conclui-se que a própria consciência transforma-se em “prova ontológica” da existência do Ser do fenômeno. O ser do fenômeno deve ser algo transfenomenal, isto é, deve ser irredutível às leis da aparição. Eis por que, com a ideia de intencionalidade, chega-se não só ao problema teórico enriquecido pelas análises rigorosas da consciência e de seus objetos, mas também e, sobretudo, de uma discussão ontológica da própria consciência no mundo como um Nada, um movimento interminável de negação, de compromisso com o mundo, de liberdade.

Referências bibliográficas HUSSERL, Edmund, Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica: introdução geral a fenomenologia pura. Tradução Márcio Suzuki. Aparecida, São Paulo: Ideias & Letras, 2006. RODRIGUES, Malcom Guimarães, Consciência e má-fé no jovem Sartre: a trajetória dos conceitos. São Paulo: ED. UNESP, 2010. SARTRE, Jean-Paul, Críticas Literárias (Situações I), São Paulo: EDUSP, 2009.

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Kátia Marian Correa

SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo; A imaginação; Questão de método. 3ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Os pensadores). SARTRE, Jean-Paul, O ser e o nada – Ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução Paulo Perdigão, 20ed. Petrópolis: Vozes, 2011.

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PAUL FEYERABEND: DESFAZENDO MALENTENDIDOS Leonardo Edi Ignácio1

Um dos pensadores mais polêmicos e que obteve muitas críticas mal dirigidas e, na esmagadora maioria das vezes, infundadas no território da filosofia da ciência foi, sem dúvida, Paul Feyerabend. Austríaco e detentor de uma formação plural que inclui Física, Matemática, Astronomia, Teatro e Produção de Óperas, esse filósofo teve ampla repercussão dentro da chamada “nova filosofia da ciência”, sendo frequentemente caracterizado negativamente pelos “grandes metodologistas”. Esta formação acadêmica plural, a nosso ver, inequivocamente desempenhou um papel fundamental para a consagração do seu mal-entendido e infame “vale-tudo” (anything goes) e que, para alguns de seus críticos lhe rendeu à insígnia de “o pior inimigo da ciência”. Algumas outras críticas a ele endereçadas são muito pesadas, tal como a de que sua filosofia da ciência é um conto de fadas, ou mesmo a mais corriqueira delas, a saber, a que Feyerabend despreza a ciência. Pretende-se, nesse trabalho, demonstrar que Feyerabend, ao contrário do que é frequentemente exposto, oferece critérios para a atividade científica, assim como seu anarquismo teórico não é irracional, mais precisamente, que racionalidade prática/teórica e ciência são coisas distintas, não se podendo incluir uma na outra. Um dos livros que mais causou impacto na filosofia da ciência depois da “Estrutura das Revoluções Científicas” de Thomas Kuhn foi, indubitavelmente, “Contra o Método” de 1

Universidade

Federal

de

Santa

Maria.

E-mail:

[email protected] 135

Paul Feyerabend

Paul Feyerabend. Lançado em 1975, Feyerabend o escreveu sob a influência de seu grande amigo Imre Lakatos ao qual também dedicou essa obra que, segundo o nosso autor, era um dos poucos que entendia sua filosofia. Neste livro, Feyerabend tenta responder três questões fundamentais, a saber; O que é ciência? O que há de tão formidável na ciência? Como devemos usar a ciência, e quem decide a questão? Além destas questões ele também defende a ideia de que “tudo-vale”, dito de outro modo, isso caracterizaria o que o autor veio a denominar mais tarde de anarquismo teórico, ou, dadaísmo epistemológico, isto é, uma corrente pluralista que propõem igualdade de condições tanto para a pesquisa especializada, assim como para diletantes e, além destes, para campos que, na visão dos “racionalistas2”, não são considerados ciência tais como a magia, vodu, acupuntura, alquimia, além de outros. Esta ideia que tudo-vale é tomada frequentemente como um princípio de Feyerabend, o que é um erro, visto que, para Feyerabend: Tudo-Vale não é um ‘princípio’ que sustento — não penso que princípios possam ser proveitosamente usados e discutidos fora da situação concreta da pesquisa que supostamente afetam — mas é a exclamação aterrorizada de um racionalista que examina a história mais de perto (FEYERABEND, 2011a, p.08).

O leitor pouco familiarizado com Feyerabend pode ter dificuldades para entendê-lo, uma vez que nosso autor não se prende a uma única forma de método seja ele escrito ou não. Dizemos isso, pois algumas páginas adiante Fayerabend afirma o seguinte sobre o anarquismo teórico:

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Racionalista aqui significa, antes de tudo, um crente no método da ciência.

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Leonardo Edi Ignácio

Está claro, então, que a ideia de um método fixo ou de uma teoria fixa da racionalidade baseia-se em uma concepção demasiada ingênua do homem e de suas circunstâncias sociais. Para os que examinam o rico material fornecido pela história e não têm a intenção de empobrecê-lo a fim de agradar a seus baixos instintos, a seu anseio por segurança intelectual na forma de clareza, precisão, “objetividade” e “verdade”, ficará claro que há apenas um princípio que pode ser defendido em todas as circunstâncias e em todos os estágios do desenvolvimento humano. É o princípio de que tudo vale3 (FEYERABEND, 2011a, p.42).

Embora possa parecer, para alguns autores, que Feyerabend nada mais está fazendo do que atribuir um novo conjunto de regras para a ciência, não é essa a pretensão do filósofo aqui estudado, pois: Essa impressão certamente seria errônea. Minha intenção não é substituir um conjunto de regras por um conjunto da mesma espécie. Minha intenção, ao contrário, é convencer a leitora ou leitor que todas as metodologias, até mesmo as mais óbvias, têm seus limites4. A melhor maneira de exibir isso é demonstrar os limites e mesmo a irracionalidade de algumas regras que ela ou ele tende a considerar básicas. No caso da indução (inclusive a indução por falseamento), isso significa demonstrar quão bem o procedimento contraindutivo pode ser apoiado por argumentação. Recorde-se, sempre, que as demonstrações e a retórica empregada não expressam nenhuma “convicção profunda” de minha parte. Elas apenas mostram quão fácil é fazer, de maneira racional, que alguém nos 3 4

O grifo é de Feyerabend. O grifo é de Feyerabend. 137

Paul Feyerabend

siga cegamente. Um anarquista é como um agente secreto da Razão de modo que solape a autoridade da Razão (FEYERABEND, 2011a, p.47).

Podemos perceber que Feyerabend tenta eliminar a crença cega na Razão5 e isso não implica em dizer que o autor menospreze a ciência. Na verdade, Feyerabend chega a afirmar que a ciência está doente e que o anarquismo por ele defendido vem de encontro à ciência como um remédio. Ora, todo e qualquer remédio que tomamos, nós o fazemos por um determinado tempo e é essa a intenção de Feyerabend, isto é, libertar a ciência de dogmas infundados e mesmo prejudiciais à própria atividade cientifica, os quais são resultantes da crença cega no racionalismo. Não obstante, há outros autores que sugerem que o anarquismo teórico de Feyerabend deve ser entendido como um alargamento do falibilismo, ou seja: O melhor ângulo para compreender o conjunto da obra de Paul Feyerabend é considera-lo como um alargamento do falibilismo. O que Feyerabend procura, uma e outra vez, é mostrar que não há nenhuma forma de garantir a verdade nem a falsidade de uma teoria científica, mesmo com recurso a experiência; que é irrealizável o projeto de encontrar um fundamento seguro para o conhecimento, mesmo que o fundamento procurado seja 5

A palavra Razão sempre aparece em seus escritos do modo exposto acima. Isto significa dizer que Feyerabend critica o dogmatismo presente na ciência, ou seja, procura demonstrar que o método científico é apenas mais um entre muitas metodologias diferentes e divergentes, e é um erro pensar que é o único método verdadeiro. Essa comparação poderia ser exemplificada através do papel que a Igreja desempenhou na Idade Média quando ela arrogava ser a única religião verdadeira e o mesmo, para o nosso autor, ocorreria com o cientista que postularia que sua metodologia é a verdade absoluta e deve se sobrepor aos demais campos. 138

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empírico; que não passa de uma ilusão a pretensão de que, se garantimos uma adequada base empírica às teorias científicas, cada nova teoria científica aceite pela comunidade cientifica será necessariamente melhor como representação do real do que suas antecessoras (PORFÍRIO, 2010, p.01).

Para Feyerabend, não existe tradição boa e nem tampouco má, as tradições simplesmente são boas ou más somente na medida em que participamos de alguma delas como observadores ou participantes. Assim sendo, quando estamos imerso em alguma tradição na qualidade de observadores “normalmente dizemos que certos grupos aceitam determinados padrões, ou falam muito bem desses padrões, ou querem que os adotemos” (2011b, p.30). De outro modo, “quando falamos como participantes, igualmente usamos com frequência os padrões sem qualquer referência a sua origem ou aos desejos daqueles que usam” (2011 b, p.30). Poderíamos aclarar melhor essa última aduzindo que, por vezes, “dizemos que as teorias devem ser falsificáveis e livres de contradição e não quero que as teorias sejam falsificáveis e livres de contradição” (2011b, p.30). A partir disso, podemos identificar dois modos diferentes pelos quais os participantes ou observadores de uma determinada tradição decidem uma questão coletivamente, isto é, através de um intercâmbio guiado, ou de um intercâmbio aberto. “No primeiro caso, alguns ou todos os participantes adotam uma tradição específica e aceitam apenas aquelas respostas que correspondem a seus padrões” (2011b, p.38). O debate racional, diga-se de passagem, se enquadraria como uma forma de intercâmbio guiado ao qual Feyerabend não demonstra muito apreço como já podemos perceber, uma vez que “uma sociedade baseada na racionalidade não é inteiramente livre” (2011b, p.39) afinal de contas, teríamos que fazer o jogo dos intelectuais. Com respeito ao intercâmbio aberto, ele “é 139

Paul Feyerabend

orientado por uma filosofia pragmática e a tradição adotada pelas partes não é especificada no começo e se desenvolve à medida que o intercâmbio vai ocorrendo” (2011b, p.39). Dentro de um intercâmbio aberto “os participantes mergulham nas maneiras de pensar, nos sentimentos e nas percepções uns dos outros” (2011b, p.39) de um modo tal que as ideias deles, e mesmo suas percepções de mundo estão sujeitas a se transformarem completamente, ou seja, “passam a ser pessoas diferentes, participando de uma tradição nova e também diferente” (2011b, p.39). Esta última abordagem, como já fora dito, leva em consideração a teoria pragmática da observação, a qual que não será aqui objeto de estudo pormenorizado. Thomas Kuhn, na “Estrutura das Revoluções Científicas” (2007) também fez considerações semelhantes às de Feyerabend e isso se dá precisamente em períodos pós-revolucionários, pois de acordo com o primeiro “os proponentes de paradigmas competidores discordam seguidamente quanto à lista de problemas que qualquer candidato a paradigma deve resolver. Seus padrões científicos ou suas definições de ciência não são os mesmos” (KUHN, 2007, p.190). Além disso, Kuhn também chega a afirmar que, após uma revolução científica os cientistas trabalham em um novo mundo o que aqui se assemelha a passagem anterior de Feyerabend. Outra coisa que temos que ter em mente é a crítica de Feyerabend as cosmologias e aos padrões usualmente aceitos e que, por sinal, são dois, a saber, o Idealismo e o Naturalismo. Não obstante, uma terceira posição é sugerida como alternativa, ou seja, o anarquismo ingênuo. “O idealismo pode ser dogmático e crítico. No primeiro caso, as regras propostas são consideradas finais e imutáveis; no segundo, há a possibilidade de mudança” (2011b, p.42). O idealismo também peca, segundo Feyerabend, por não levar em consideração as práticas, mas somente os padrões abstratos, isto é, as regras e a

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lógica. Já com respeito ao naturalismo, “regras e padrões são obtidos por uma análise das tradições” (2011b, p.43) e o problema aqui é justamente saber qual tradição escolher haja vista que a ciência “não é uma tradição, e sim muitas, e, portanto, faz surgir diversos padrões parcialmente incompatíveis” (2011b, p.43). No que toca ao anarquismo ingênuo, aqui nós encontramos uma resposta aos critérios oferecidos por Feyerabend para a escolha de teorias, vez que o anarquista ingênuo reconhece as limitações das regras e dos padrões oferecidos pelas teorias científicas. O anarquista ingênuo está na posse de duas possibilidades, a saber, a primeira estabelece que “tanto as regras absolutas quanto as dependentes de contexto tem seus limites” (2011b, p.42) e disso ele pode inferir uma segunda possibilidade, ou seja, “que todas as regras e padrões não têm qualquer valor e devem ser abandonados” (2011b, p.42). Feyerabend concorda com a primeira, mas não com a segunda, mais precisamente: Argumento que todas as regras têm seus limites e que não há uma racionalidade abrangente; não defendo que devemos proceder sem regras ou padrões. Também argumento em favor de uma explicação contextual, mas, uma vez mais, as regras contextuais não devem substituir as regras absolutas, apenas complementá-las6. Além disso, sugiro uma nova relação entre regras e práticas. É essa relação, e não uma regra específica que caracteriza a posição que desejo defender (FEYERABEND, 2011b, p.43).

Deve-se observar aqui que a posição demonstrada no parágrafo anterior exibe a fase “madura” de Feyerabend por assim dizer, uma fase em que as afirmações anteriormente sustentadas são reformuladas e algumas abandonadas. A partir 6

Os grifos são de Feyerabend. 141

Paul Feyerabend

disso é possível observar uma grade diferença entre o seu livro “Adeus a Razão” e “A ciência em uma Sociedade Livre” uma vez que a posição de complemento das regras é mantida nesse último livro e um abandono radical das regras é proposto no primeiro. Não obstante, devemos ainda considerar a relação Razão e prática. Nesta etapa, duas posições, de acordo com Feyerabend, são esboçadas. A primeira nos informa que “a razão orienta a prática e sua autoridade é independente da autoridade de práticas e tradições e molda a prática de acordo com suas necessidades” (2011b, p.33). Essa posição caracteriza-se como sendo a versão Idealista da relação. A segunda nos aponta que “a razão recebe tanto seu conteúdo quanto sua autoridade da prática” (2011b, p.33), ou seja, “ela descreve a maneira como a prática funciona e formula seus princípios subjacentes” (2011b, p.33). Essa última posição é denominada de naturalismo e segundo Feyerabend com frequência se atribui a Hegel, ainda que de modo errado. No que concerne a estas duas tradições Feyerabend acha ambas insuficientes, e isso se dá por distintas razões. Em primeiro lugar podemos afirmar que o idealista não está disposto a apenas “agir racionalmente”, além disso, o idealista exige que suas ações racionais tenham resultados, e que estes correspondam também no mundo em que ele habita. No que tange ao naturalismo, a primeira escolha deste é “escolher uma prática bem sucedida” (2011b, p.33) e, a partir disso ele obtém a “vantagem de estar do lado certo” (2011b, p.33). O problema do naturalismo é que “basear padrões em uma prática e parar por ai pode perpetuar para sempre os defeitos dessa prática” (2011b, p.33). Devido à insuficiência das duas práticas anteriores, Feyerabend sugere que elas não são coisas distintas, senão que formam parte de um único e mesmo processo dialético. Sua sugestão, por fim, é que a ciência deve partir de padrões

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Leonardo Edi Ignácio

cosmológicos antropologicamente mais amplos e podemos aclarar isso através de um exemplo, mais precisamente através do estudo do viajante que, ao se guiar por um mapa, e na medida em que percorre o trajeto que lhe incumbe faz alterações complementares no mapa referindo-se a novos caminhos, ou mesmo a coisas novas que, por vezes, não constam no mapa original. Por fim, tentamos responder nesse trabalho aos equívocos cometidos contra a filosofia de Paul Feyerabend, assim como demonstrar que este filósofo não elimina todas as regras da atividade científica, ao contrário, ele estabelece padrões cosmológicos e antropológicos mais gerais que complementam a ciência a fim de que ela consiga se desenredar dos preconceitos oriundos de um racionalismo cego que impede o progresso da ciência.

Referências bibliográficas FEYERABEND, P. Adeus a Razão. São Paulo: Editora UNESP, 2010. ________. A Ciência em uma Sociedade Livre. São Paulo: Editora UNESP, b, 2011. ________. Contra o Método. São Paulo: Editora UNESP, a, 2011. HACKING, Ian. Representar e Intervir. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2012. KUHN, T. S. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Perspectiva, 2007. ________. A Tensão Essencial. Lisboa: Edições 70, 1980. LAKATOS, Imre. História de la Ciencia y sus Reconstruciones Racionales. Tecnos, Madrid, 1987.

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Paul Feyerabend

LAKATOS, Imre e MUSGRAVE, Alan (Orgs). A Crítica e o Desenvolvimento do Conhecimento São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1979. SILVA, Porfírio. A teoria pragmática da observação. Kairos. Revista de Filosofia & Ciência, Lisboa, n. 1, p. 75-92, 2010. Disponível em: . Acesso em: 19 nov. 2014.

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CONSIDERAÇÕES ACERCA DA INFLUÊNCIA DE DIFERENTES CORRENTES LÓGICAS DA ANTIGUIDADE EM BOÉCIO Luana Talita da Cruz1

A importância de Boécio durante a Idade Média se dá, em grande parte, por sua obra oferecer uma ligação entre a antiguidade tardia e o mundo medieval cristão especialmente através da combinação de suas influências e do modo como às utilizou em suas traduções e comentários. A relevância da disciplina de lógica nos estudos de Boécio é bastante clara quando se considera o modo como o filósofo responde a certas questões como, por exemplo, o problema dos universais2. Mais do que isso, em se tratando de lógica durante o período medieval, não se pode negar que Boécio foi reconhecido como uma das autoridades, se por mais nada, por suas traduções e comentários dos tratados lógicos aristotélicos. Conforme Gilson aponta: A obra de Boécio é multiforme, não havendo um só de seus aspectos que não tenha influenciado a Idade Média, mas em parte alguma sua autoridade foi mais difundida do que no terreno da lógica. Devemos-lhe um primeiro comentário sobre a Introdução 1

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Pelotas. 2 Há que se considerar que, pelo menos, parte de seus argumentos são encontrados em um dos comentários de Boécio a um texto considerado como introdução a lógica aristotélica. 145

Considerações acerca da influência

(Isagoge) de Porfírio, traduzida em latim por Mário Vitorino, e um segundo comentário sobre a mesma obra retraduzida por ele mesmo; uma tradução e um comentário das Categorias de Aristóteles; uma tradução e dois comentários do De interpretatione, um para principiantes, outro para os leitores já mais avançados; as traduções de Primeiros Analíticos, Segundos Analíticos, Argumentos sofísticos e Tópicos de Aristóteles; depois, uma série de tratados de lógica: Introductio ad categoricos syllogismos, De syllogismo categorico, De syllogismo bypotbetico, De divisione, De differentis topicis; enfim, um comentário sobre os Tópicos de Cícero, que chegou incompleto até nós. Pode-se dizer que, pelo conjunto desses tratados, Boécio tornou-se o professor de lógica da Idade Média até o momento em que, no século XIII, o Organon completo de Aristóteles (isto é, o conjunto de suas obras de lógica) foi traduzido em latim e diretamente comentado. Aliás, a obra lógica do próprio Boécio será objeto de uma descoberta progressiva. (GILSON, 2001. p. 160)

Assim sendo, de modo algum se questiona a familiaridade do filósofo com o tema e, ao se reconhecer o tempo e esforço dedicado à tradução, estudo e comentário de tais obras, pode-se aceitar que se dê certo destaque à menção de seus comentários e traduções àquelas do corpo aristotélico. Todavia, ainda que se possa considerar que a lógica encontrada na obra de Boécio seja, em grande parte, apenas um comentário à lógica aristotélica, restringir seu conhecimento apenas a essa teoria lógica pareceria, no mínimo, insensato, especialmente ao se considerar que os estudos do autor não se restringiram as obras de Aristóteles, nem mesmo as obras de Aristóteles isoladas de qualquer comentário.

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Pode-se encontrar nos escritos de Boécio, pelo menos, duas teorias lógicas cuja influência merece certo destaque, a saber, a teoria dos Silogismos Hipotéticos e a Teoria das Inferências. No entanto, conforme Marenbon ressalta, Boécio trata dos Silogismos Hipotéticos da forma confusa que o tema era abordado durante a antiguidade tardia. Além da silogística aristotélica, uma lógica de termos, havia a lógica proposicional desenvolvido pelos estóicos. Ao final da Antiguidade havia sido completamente confundida com a lógica de termos silogística aristotélica. O escrito de Boécio De syllogismis hypotheticis (Sobre Silogismos Hipotéticos) é a melhor evidência dessa confusão que sobreviveu.3 (MARENBON, 2007, p. 37)

Tal confusão, ao menos em Boécio, parece ocorrer na medida em que o filósofo considera a lógica proposicional estoica também uma lógica de termos, oferecendo uma leitura de proposições como predicados4. Há ainda que se considerar a Teoria de Inferências com que Boécio se preocupa no De differentiis topicis. Tendo comentando os Tópicos de Cícero, que trata de argumentos de cunho retórico cuja validade não é necessária, Boécio se afasta do autor ao argumentar que as máximas proposicionais propostas por ele deveriam ser avaliadas conforme sua força, sendo esta dependente de sua proximidade com uma verdade 3

Tradução livre de “Besides Aristotelian syllogistic, a term-logic, there was the propositional logic developed by the Stoics. By late antiquity it had become thoroughly confused with the term-logic of Aristotelian syllogistic. Boethius’s monograph De syllogismis hypotheticis (‘On Hypothetical Syllogisms’) is the best surviving evidence of this confusion.” MARENBON, 2007. p. 37 4 É possível encontrar uma breve explicação de tal confusão em Boécio em MARENBON, 2003. 147

Considerações acerca da influência

lógica5. Dessa forma, o autor parece oferecer uma interpretação que considera mais correta à teoria de Cícero. Todavia, ainda que em diversos comentários acerca de questões sobre o tema Boécio pareça tender a posição aristotélica, não se pode assumir que o filósofo considere a lógica como condição anterior as ciências. Conforme Magee aponta, Boécio argumenta mais de uma possível interpretação para o uso da lógica, pois “(…) lógica possui seu próprio objetivo filosófico, mas também é o que descobre e avalia argumentos em outras áreas da filosofia.”6 Mais do que isso, a ideia de que Boécio parece assumir posições conflitantes em relação a sua interpretação da lógica, ora se posicionado ao lado de Aristóteles e utilizando-a como conditio sine qua non, ora aceitando o posicionamento estoico e conferindo à lógica grau de ciência, não oferece de fato conflito se considerarmos a proximidade do autor com a escola neoplatônica. Cabe ressaltar que o neoplatonismo “também incorporavam elementos de outras escolas, especialmente dos estóicos, cujo pensamento os neoplatônicos desacreditavam e, ainda assim, acima de tudo na ética, absorviam”7, a fim de propor uma interpretação que julgasse correta dos escritos de Platão. Assim, pode-se dizer que a escola oferecia uma 5

Marenbon sugere quarto razões para se considerar os escritos de Boécio acerca dos Tópicos, em particular: 1. Seu crescente interesse pelo assumo, parecendo acreditá-lo complementar a outras teorias, nos anos anteriores a sua sentença; 2. sua influência durante o período medieval; 3. Sua importância como uma das únicas fontes acerca do tema; 4. esclarecimento no tratamento de Boécio acerca de inferências proposicionais e condicionais. 6 Tradução livre de “(…) logic has its proper philosophical aims but is also what discovers and evaluates arguments for application in other areas of philosophy.” MAGEE, 2002. p. 216 7 Tradução livre de: “It also incorporated elements from other schools, especially the Stoics, whose thinking the Neoplatonists disparaged and yet, in ethics above all, absorbed.” MARENBON, 2007. p. 2

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abordagem flexível o suficiente para que uma teoria pudesse ter aspectos ao mesmo tempo criticados e incorporados e, portanto, os estudos neoplatônicos de Boécio, ao menos na leitura de Porfírio através de Isagoge, sugere a ideia de que o filósofo não encontraria problemas em um posicionamento aparentemente, para nós, conflitante em seu tratamento da lógica. Mesmo que não se procure, aqui, argumentar qual posicionamento filosófico ou, até mesmo, se o pensamento de Boécio deveria ser classificado de acordo com determinada escola. Todavia, o reconhecimento das fontes que o filósofo utiliza bem como do impacto que tais referências têm para a compreensão e interpretação de seus escritos não podem ser ignorados. A leitura da Consolação da Filosofia exige, no mínimo, uma exegese cuidadosa. Ao se considerar os argumentos lógicos que permeiam a principal obra de Boécio, a saber, Consolação da Filosofia, sobretudo o livro V, parece pouco razoável desconsiderar que as influências do autor não se limitam aquelas do Organon. Sendo que nesse livro encontra-se o argumento deveras importante acerca da presciência divina e livre-arbítrio, o qual grande parte da argumentação proposta na obra parece pressupor, bem como as considerações do filósofo acerca da necessidade, de modo que se pode oferecer uma interpretação mais confiante acerca de tais influências uma vez que já se está familiarizado, ao menos minimamente, com estilo do autor ao tratar de argumentos lógicos ou de fundamentação lógica. Assim sendo, há que se considerar, para um estudo aprofundado, que não apenas Boécio conheceu e estudou outras correntes lógicas além daquela proposta por Aristóteles, mas seus comentários e até mesmo interpretações, algumas das quais, consideradas hoje como meras confusões, não podem ser apenas ignorados ao se buscar uma melhor compreensão de sua obra. Ainda que seu projeto fosse muito além da lógica, há que

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se levar em conta que o tema foi considerado por ele importante o suficiente para ser estudado com afinco antes de dedicar-se a outros tópicos. Mesmo que se aceite, e quanto a isso há, de fato, pouca ou nenhuma dúvida, que Boécio pretendia transmitir os ensinamentos aristotélicos, as próprias influências do autor modificam seu projeto, na medida em que seus comentários passam a conter também outras teorias. Ainda que a ideia de uma lógica aristotélica pura em Boécio pareça, nesse caso, por demais superficial para se considerar como uma possibilidade plausível para uma leitura mais aprofundada de sua obra, não se pretende, entretanto, com isso negar toda e qualquer influência da lógica aristotélica para o autor, pois (...) ainda que Boécio estivesse, de fato, transmitindo uma doutrina fortemente influenciada pelo estoicismo, ele acreditava estar transmitindo o pensamento aristotélico. Em seus trabalhos sobre argumentos tópicos, a posição é um pouco diferente por causa da importância do romano Cicero. Outra fonte principal de Boécio aqui é Themistius, um seguidor de Aristóteles, mesmo vivendo no século IV, quando neoplatonismo era dominante.8 ( MARENBON, 2003. p. 65)

Parece razoável observar esse ponto ainda sem esquecer que o filósofo divide a filosofia especulativa em natural, matemática e teológica, indicando alguma simpatia pelo posicionamento aristotélico. No entanto, as diferentes 8

Tradução livre de: “(…) though Boethius was in fact conveying a doctrine heavily influenced by Stoicism, he believed that he was transmitting Aristotelian teaching. For his works on topical argument, the position is slightly different because of the importance of his fellow Roman, Cicero. But Boethius’s other main source here is Themistius, a follower of Aristotle although living in the fourth century, when Neoplatonism was dominant.” MARENBON, 2003. 150

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influências que se pode encontrar em Boécio, até mesmo na interpretação de algumas dessas influências, exigiriam alguma justificação ao defender que o autor, de fato, compromete-se com um posicionamento ou outro, especialmente quando grande parte das teorias lógicas que comentou permeiam e servem de apoio para os argumentos da Consolação.

Referências bibliográficas BOÉCIO. The Consolation of Philosophy. Translated by Victor Watts. London: Penguin Books, 1999. GIBSON, M. (ed.) Boethius. His Life, Thought and Influence. Oxford: Blackwell, 1981. GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média. Encontrado em: . Último Acesso em: 23/11/2014. MAGEE, John. “Boethius”. In.: Blackwell companions to philosophy: A companion to philosophy in the middle ages. Oxford: Blackwell Publishing, 2002. MARENBON, John. Boethius, New York: Oxford University Press, 2003. ______________. Medieval Philosophy: An Historical and Philosophical Introduction. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. ______________. "Anicius Manlius Severinus Boethius". In.: The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Summer 2013 Edition), Edward N. Zalta (ed.). Encontrado em: . Último Acesso em: 20/05/2014. SPADE, Paul Vincent. “Boethius against Universals: The Argument in the Second Commentary On Porfiry. Último

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Acesso em: 25/12/2014. Encontrado

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em:

DA ANALÍTICA EXISTENCIAL À METAFÍSICA DO DASEIN: O TEMA DA LIBERDADE Marcelo Vieira Lopes1

1. O tema da liberdade em Ser e Tempo A questão da liberdade em Ser e Tempo têm, como grande parte dos enunciados fenomenológicos expressos por Heidegger, uma ambiguidade fundamental, constitutiva, que não deixa reduzi-lo a um sentido único, que pode ser expresso em termos de uma caracterização geral do termo. Buscaremos analisar no que se segue as transformações implicadas no conceito de liberdade, delimitado entre o período da analítica existencial (Ser e Tempo, 1927) e os rumos tomados por tal conceito, naquela que é caracterizada como a “década metafísica” de Heidegger (CROWELL, 2000), a saber, o período imediatamente posterior a Ser e tempo, até a chamada virada (Kehre) do seu pensamento2. Começaremos com uma breve caracterização da noção de liberdade no contexto de Ser e tempo. Como já apontamos brevemente, a noção de 1

Graduando do curso de Filosofia na Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: [email protected]

2

Não entraremos na discussão do que significa a chamada Kehre do pensamento heideggeriano. Apenas apontaremos a sugestão de alguns autores, tal como JARAN, 2010, que sugere que o projeto de uma metafísica do Dasein, posterior a Ser e Tempo, traria uma virada antes mesmo da virada (Kehre), no interior do próprio projeto metafisico de Heidegger.

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liberdade, como boa parte das noções heideggerianas, são ambíguas e/ou não discutidas de maneira aprofundada, mas são como que “jogadas” dentro de um contexto ontológico existencial. Dessa forma, para compreendermos minimamente o que significa a noção de liberdade no horizonte da analítica da existência, é preciso que se faça uma breve caracterização do projeto visado por esta. Não nos deteremos nos seus pormenores, somente numa rápida exposição de suas linhas gerais, em vista da clarificação para a delimitação do conceito de liberdade. A analítica existencial surgida em Ser e Tempo, tem como meta uma investigação de caráter transcendental, visando à explicitação daquelas estruturas mais básicas do ente humano na compreensão de algo enquanto algo determinado, isto é, daquilo que Heidegger denomina “ser”. Embora não com este nome, investigações recentes mostram que já aparecem traços de uma investigação semelhante na obra do jovem Heidegger. (ESCUDERO, 2010). Dado que ser é sempre ser de um ente, Heidegger elege o Dasein - o ente que possui o modo de ser da existência como ente privilegiado para a análise de suas estruturas. A partir de uma correta compreensão do modo de ser deste ente, diferenciando-o em relação a outros modos de ser, tais como a disponibilidade (Zuhandenheit) e a subsistência (Vorhandenheit), com vistas à investigação do sentido de ser em geral, mostra-se que o Dasein é o ente primeiro a ser investigado, anterior ao projeto de investigação sobre o sentido de ser. É somente a partir da determinação particular desse ente cujo modo de ser é o da existência (Existenz), que se tornará possível a investigação do sentido de ser em geral. O sentido de ser da existência na sua determinação, não pode ser apreendido categorialmente, como uma coisa, mas antes, apenas como modos, maneiras de ser, como possibilidades. A partir da noção de possibilidade, podemos

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caracterizar a existência, modo de ser do Dasein, como articulando-se, basicamente em dois modos: autenticidade e inautenticidade. Na divisão I de Ser e tempo, o Dasein lançado no mundo dos afazeres cotidianos, desde sempre ocupado é como que privado de liberdade. O Dasein decaído nas formas inautênticas de vida, já desde sempre incorporou tacitamente regras e condutas constitutivas de uma herança histórica. O Dasein que aparece na divisão I deve ser liberado em suas possibilidades mais íntimas, algo que só poderá dar-se a partir dos recursos metodológicos e explicativos fornecidos pela divisão II. Nesse sentido, a noção de Angústia desempenha um papel metodológico de grande utilidade para o reconhecimento do Dasein em sua liberdade. Há, porém de destacarem-se dois níveis de liberdade em Ser e Tempo, tendo como pano de fundo a diferença ontológica. É justamente nesse sentido que falávamos no início de nosso trabalho de uma ambiguidade constitutiva de tais termos. Segundo a noção de diferença ontológica - que não aparece textualmente em Ser e Tempo, mas opera como pressuposto, é preciso distinguir a noção de liberdade em sentido ontológico-existencial, isto é, como transcendental, condição de possibilidade do ôntico e a liberdade existenciária, isto é, a projeção livre em possibilidades concretas. Nesse sentido, fala-se de uma “Afirmação apodítica” da noção de liberdade: dado que o Dasein é ser-no-mundo, enquanto ser-nomundo possui as características ôntico-ontológicas deste ente que é mundano. Se a partir da divisão II, principalmente através da noção de angústia, pode-se encontrar algo assim como um Dasein livre, “desconectado” dos afazeres cotidianos, pode-se também afirmar que há uma liberdade constitutiva do modo de ser da existência. Assim, com as delimitações feitas acima com base na diferença ontológica, caracteriza-se o Dasein como ente dotado de uma liberdade ontológica inalienável. Em resumo, no horizonte de Ser e Tempo, a

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modalidade apodítica da afirmação diz que seja qual for o ente dotado da estrutura de ser-no-mundo, este deve ser livre (HANPILE, 2013.). Deste ponto de vista, a liberdade é coextensiva ao Dasein, na medida em que desempenha o papel de uma compreensão projetiva como o seu em-vista-de: isto significa, em poucas palavras, que a liberdade ontológica no contexto de Ser e Tempo implica a condição de possibilidade de toda a agência concreta do Dasein. Como condição de toda a agência do Dasein, a liberdade abre um espaço normativo, isto é, a capacidade de vinculação a entes a partir do em-vista-de. Em outros termos, podemos dizer que o Dasein é capaz de uma autodeterminação vinculada a leis e normas, mas ainda assim responsivo a elas. A liberdade de vinculação aparece como requisito para comportamentos com entes dos mais diferentes tipos. Nesse sentido, este requisito não é imposto externamente ao Dasein, isto é, “Não há valores ou leis independentes de nós mesmos: a liberdade prática é uma autolegislação.” (INWOOD, 1999). Nesse sentido, o Dasein é livre, embora sempre responsivo aos entes em conformidade com o em-vista-de. Também a partir de uma concepção existencial de liberdade, tal como Heidegger pretende apresentá-la, podemos dizer que a liberdade, jamais pode ser considerada como um processo de tipo causal. Se assim fosse, utilizaríamos o modelo de causa e efeito na caracterização de um tipo ontológico diferenciado como é o Dasein, implicando, portanto, tomarmos o modelo teórico-científico, característico do modo de ser do ente subsistente (Vorhandenheit). Esta forma de compreender a liberdade existencial equivocar-se-ia ao assimilá-lo com um ente meramente natural, subsistente. Para não incorrer neste erro categorial, é necessário que se tome o Dasein em termos de possibilidade, ao invés de atualidade. A liberdade, neste sentido, não pode ser explicada em termos causais, mas ao contrário, deve ser tomada como um “fato”, “não causado ou

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fundado, mas a condição de todo fundamento e causação” (INWOOD, 1999). Esta noção nos dá condições para compreendermos a liberdade ligada à existência como transcendência para mundo, noção que aparecerá nos textos imediatamente posteriores à Ser e Tempo. Voltando ao tema da liberdade no horizonte conceitual de Ser e Tempo, é necessário que se dê o passo além da divisão I, onde o Dasein ainda é privado de liberdade, caracterizado através de termos como, perda, alienação, etc. É nesse sentido que a divisão II desempenha um importante papel na descoberta do Dasein e de sua própria liberdade. Na manifestação do fenômeno da angústia, o Dasein confronta-se com a liberdade para a escolha de si mesmo. Isto é, o Dasein é “livre para a liberdade de escolher-se a si mesmo ou não. Em caso afirmativo, tornar-se-á existencialmente livre” (HANPILE, 2013). A ligação da liberdade ontológica, atravessado pelo conceito de angústia, com nossa liberdade existenciária, afirma o caráter de escolha da escolha de si mesmo como uma “escolha finita” (HAN-PILE, 2013). Isto é, uma vez posto em estado de angústia, o Dasein não mais pode retornar a seu estado anterior de não-angustiado. Frente a esse estado de angústia que obriga o Dasein a escolher – embora essa escolha possa dar-se negativamente (escolher não escolher a si mesmo), só assim este se torna existencialmente livre. “O escolher escolher a si mesmo” como a dupla estrutura da escolha mostra o caráter de liberdade do Dasein angustiado, enquanto podendo assumir sua historicidade autêntica, de maneira ontologicamente livre.

2. Críticas à concepção kantiana de liberdade Nos termos da discussão de Heidegger sobre o problema da liberdade, buscando pensá-la em suas

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determinações ontológicas, um importante interlocutor com relação ao tema é Immanuel Kant. Na interpretação heideggeriana da concepção de Kant sobre o problema da liberdade, afirma-se que esta basicamente, consiste em pensar o universo em termos cosmológicos, como um todo entrelaçado causalmente. Desse ponto de partida, a liberdade consistiria em um tipo especial de causa não redutível ao nível material de causação, mas inserindo-se nesse entrelaçado. Liberdade aqui aparece ligada a noção de uma “causa livre”, com o poder de iniciar novas séries causais sem ser por elas mesmas causada. Na discussão kantiana, segundo Heidegger, a concepção metafísica tradicional do conceito de liberdade orientada a partir da noção de causalidade, atinge o seu expoente mais paradigmático. A liberdade, desenvolvida em termos kantianos bifurca-se entre uma liberdade em sentido cosmológico e em sentido prático. Segundo Heidegger é pela via cosmológica da noção de liberdade que será pensada a liberdade humana. Mas pensar a liberdade humana em termos causais não faz justiça àquilo que Heidegger chama o fenômeno originário da liberdade, a saber, o caráter possibilitador da liberdade na abertura para mundo e para o ser, característica do ente humano. A liberdade, pensada em termos de causalidade, só pode ocorrer em dependência de seu sentido originário. Ela é antes fundada e derivada de uma noção mais primitiva da liberdade. Apoiando a crítica de Heidegger a essa noção de liberdade em termos causais, surgem as teses de que: 1. A liberdade, pensada em termos de causalidade, conduz a uma tendência reificadora do fenômeno, tratando-a como fenômeno intramundano, isto é, derivado; e 2. Ainda a liberdade pensada em termos causais é incapaz de dar conta do fenômeno específico da liberdade humana, entendido primariamente como transcendência, abertura para mundo. A concepção kantiana de liberdade fica presa ainda ao domínio de uma

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ontologia da presença, reificando uma estrutura fundamental do ente humano (VIGO, 2011). Nos termos da concepção desenvolvida por Heidegger sobre o problema da liberdade humana, esta também se bifurca, à maneira kantiana, mas difere radicalmente desta. Tal bifurcação consiste basicamente na caracterização de uma liberdade negativa e outra positiva. A liberdade negativa ganha esse status por ser sempre “liberdade de...” e diz respeito ao fato intramundano de um “chegar a ser livre”, de uma desvinculação, ou seja, libertando-se de toda determinação alheia. Livre nesses termos é tudo aquilo que não está vinculado. Já com relação à segunda via da liberdade, a positiva, esta é caracterizada como um “ser livre para...”. Isso significa, distanciando-se da concepção negativa, que tal “ser livre para...” reside em termos de uma autodeterminação para. Esta concepção dialoga como já observamos, com a perspectiva bifurcada da experiência da liberdade em Kant. Porém, em Kant, ao contrário do que acontece em Heidegger, a liberdade transcendental, que é expressa em termos cosmológicos, logo, causais, é aquela que funda e determina a liberdade prática, aquela própria do ser humano. A recusa de Heidegger da doutrina kantiana é justamente frente a esse embate: por que Kant jamais abandona uma concepção da liberdade humana caracterizada em termos meramente causais? (VIGO, 2011). A liberdade para Heidegger, concebida em termos de causa livre, fica ainda, sem mais, refém de uma noção geral e indiferenciada de causalidade orientada desde a ideia de efetivação, ou produção de efeitos (VIGO, 2011). Assim, também a liberdade prática fica como que presa a uma noção de causalidade natural que não diz respeito à apreensão do correto modo de ser do ente humano. Nesse sentido, a abordagem heideggeriana parece levantar dois problemas a partir da leitura de Kant. O primeiro relaciona-se à nivelação

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da questão da liberdade com a ontologia da presença, através da noção de efetivação, remetendo a ideia de uma realidade efetiva (Vorhandenheit). Para Heidegger, o modo de ser do “ente que é livre” (VIGO, 2011) permanece inquestionado na investigação kantiana. O segundo problema, intimamente relacionado ao primeiro, reclama que a noção de liberdade assim esboçada não caracteriza corretamente o modo de ser do ente livre, e que, ao não fazê-lo, não considera a transcendência constitutiva do ente humano, compreendido como Dasein. Assim, a concepção que toma a liberdade em termos causais não a reconhece como fenômeno derivado e intramundano, na medida em que está relacionado à causação entre entes. Um nível mais básico de liberdade, fundante da concepção vulgar é pensada desde o ponto de vista da transcendência do Dasein para o mundo, mundo aqui compreendido como horizonte de todo aparecer dos entes intramundanos (VIGO, 2011). Dizer que a liberdade tem um tipo fundamental de conexão com a transcendência do Dasein significa dizer que é exatamente por que o Dasein é livre a nível ontológico que há a possibilidade de uma abertura para mundo e o encontro com entes intramundanos. A pergunta pela essência da liberdade revela-se então como uma pergunta diretriz de toda a metafísica, na medida em que não é outra pergunta senão a pergunta pelo ser do ente. (VIGO, 2011). A problemática da liberdade traz assim o caráter essencialmente mostrativo da liberdade, isto é, como aquilo que detém as condições de possibilidade do aparecimento dos entes. Portanto, todo o comportamento com relação a entes, sua vinculação, só é possível mediante o reconhecimento dessa estrutura mais básica do fenômeno originário da liberdade.

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3. Metafísica do Dasein como metafísica da liberdade Aquilo que frequentemente é caracterizado como uma virada metafísica do pensamento heideggeriano, isto é, uma “virada já antes da virada” (JARAN, 2010) após a analítica existencial de Ser e Tempo, também se compreende como uma virada no interior da própria ontologia fundamental, no sentido de preencher lacunas que somente as duas seções de Ser e Tempo não seriam capazes de responder, tal como o fenômeno originário da liberdade. No projeto geral de uma metafísica do Dasein, o termo “metafísica” adquire um sentido muito especial. Diante da recusa de uma metafísica no sentido tradicional, ou ontoteológica, na linguagem heideggeriana, a metafísica, no sentido originário que é atribuído por Heidegger é tomada como característica fundamental do modo de ser do Dasein. Como característica fundamental desse ente, o Dasein aparece bifurcado em dois modos fundamentais, a saber, Existência (Existenz) e Ser-lançado (Geworfenheit), correspondendo essas, por sua vez às duas estruturas que na metafísica tradicional, ao menos desde Aristóteles, foram tomadas por um lado como ontologia e por outro, teologia. Dessa forma, o estatuto da analítica da existência humana que Heidegger concebe como sendo o primeiro passo no programa de uma interpretação das condições formais do aparecer dos fenômenos em uma experiência significativa, aparecido em Ser e Tempo, transforma-se radicalmente em um empreendimento metafisico no período posterior à sua obra magna, entre 1927 e 1930. À luz dessa noção de metafísica do Dasein, aparece a chamada metontologia na forma de uma transformação imanente da ontologia fundamental, como o questionamento do ente no todo, isto é, da teologia na linguagem tradicional ou Ser-lançado (Geworfenheit) à luz das conquistas da ontologia

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Da analítica existencial à metafísica do dasein

fundamental. É nesse sentido, portanto, que ontologia fundamental e metontologia juntas darão inicio a uma metafísica do Dasein desde o fim de Ser e tempo até o começo dos anos 1930. Em certa medida, a metafísica do Dasein afastase do projeto de Ser e Tempo e trata, muito antes, do vínculo radical que entrelaça o existir do homem ao ente no todo, ou teologia (Geworfenheit). Retirando daí a conceptualidade necessária para o tratamento da natureza humana, caracterizada como a “finitude no homem” (HEIDEGGER, 1996) e para o reencaminhamento da questão do ser, não mais apenas em termos da temporalidade, mas agora relacionado à transcendência, ou liberdade do Dasein. A partir dessa unidade temática, a metafísica do Dasein pode ser lida como uma “hermenêutica da vincularidade humana a entes” e culmina em um novo conceito de homem, o homem como “formador de mundo” (HEIDEGGER, 2006). É no período intermediário entre Ser e Tempo e os anos 30 que Heidegger concebe a ideia de uma “liberdade metafísica” situada no seio da relação do Dasein com o mundo, assim, no seio de todo questionamento ontológico. Nesse sentido, antes de uma superação da metafísica operada pelo filósofo, é necessário que falemos um pouco do caráter positivo que este pretendeu fornecer à metafísica do Dasein, metafísica compreendida nos termos que já explicitamos. O conceito de metafísica que Heidegger busca desenvolver, sob o nome de uma “metafísica científica”, desvincula-se de entes como Deus ou o mundo, em sentido ôntico, aquilo que ele chamará de o “conceito vulgar de metafísica”, mas antes, busca lidar sobriamente com uma “ciência transcendental do ser” (HEIDEGGER, 2012). Central para o desenvolvimento do projeto de uma metafísica do Dasein é a noção de transcendência. Transcendência, nesse período refere-se a uma relação de “ultrapassamento” do Dasein em relação aos entes. Na medida

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em que possui compreensão de ser, o Dasein já os transcendeu. A transcendência, nesse sentido, pertence desde sempre ao Dasein como uma constituição fundamental de seu ser, ocorrendo anteriormente a todo e qualquer comportamento dirigido a entes, e nesse sentido, como condição de possibilidade. O desenvolvimento da noção de transcendência operante em Sobre a Essência do Fundamento, como uma definição da essência do Dasein não mais em termos de cuidado (Sorge), agora indica a perspectiva desde sempre “ultrapassante” do comportamento do Dasein com relação aos entes. É sobre a base da noção de transcendência que encontramos o desenvolvimento da noção de liberdade, central para a problemática e o desenvolvimento de uma metafísica do Dasein. A concepção de uma metafísica do Dasein passa então, como tentamos mostrar, por dois momentos constitutivos: 1. A noção de liberdade e sua confrontação com a doutrina kantiana e 2. A metafísica pensada por Heidegger como repetição (Wiederholung) da problemática aristotélica, a saber, a bifurcação entre ontologia e teologia, ou ainda, o problema do ente enquanto ente e do ente no seu todo. (JARAN, 2010).

Considerações finais A passagem do projeto da analítica existencial de Ser e Tempo, para uma metafísica do Dasein, como pensamos ter demonstrado, é atravessada por um paralelo entre ontologia fundamental e metontologia. Ambos os temas na tentativa de convergir para a discussão do problema da filosofia primeira e da teologia. Passando pela formulação dos conceitos de transcendência e de liberdade, como conceitos chaves dessa fase do pensamento heideggeriano, podemos ver seu papel como intrinsecamente ligado a elas.

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Da analítica existencial à metafísica do dasein

Na concepção heideggeriana, corresponderão aos conceitos chave da ontologia tradicional (semelhante às características da noção de cuidado na ontologia fundamental), a noção de Existência (Existenz) e Ser-lançado (Geworfenheit). Apresenta-se assim, no pano de fundo heideggeriano, ao abordar o problema da filosofia primeira e da teologia aristotélica, o seu correspondente existencial, a saber, o problema do ser e do mundo, determinados agora como o “conceito autêntico da metafísica” (HEIDEGGER, 2012). Deixamos então, a perspectiva, que não poderá ser concluída neste espaço, de reconstruir a metafísica do Dasein em três diferentes momentos: 1. A passagem da ontologia fundamental de Ser e Tempo; 2. A fase transcendental de Sobre a Essência do Fundamento; e 3. A fase correspondente ao problema da liberdade de A Essência da Liberdade Humana, que perdura até o fim de seu empreendimento metafísico. (JARAN, 2010). O esboço que tentamos oferecer de uma metafísica do Dasein é caracterizado então como atingindo seu ponto mais alto na caracterização do conceito metafísico de liberdade – considerado como a condição de possibilidade de toda liberdade concreta, ôntica.

Referências bibliográficas CROWELL, Steven Galt. Metaphysics, Metontology, and the End of Being and Time. Philosophy and Phenomenological Research, Vol.LX, N° 2, 2000. ESCUDERO, Jesús Adrián. Heidegger Y La Genealogía de la Pregunta por el Ser: Una Articulación Temática y Metodológica de su Obra Temprana. Barcelona: Herder, 2010. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução de Fausto Castilho. São Paulo: Editora Unicamp/ Vozes, 2012.

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__________________. Kant y el Problema de la Metafísica. Tradução de Gred Ibscher Roth. México: Fondo de Cultura Económica, 1996. __________________. Os Conceitos Fubdamentais da Metafísica: Mundo, Finitude, Solidão. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006 _________________. Os Problemas Fundamentais da Fenomenologia. Tradução de Marco Antônio Casanova. Petrópolis: Editora Vozes, 2012. _________________. Sobre a Essência do Fundamento. Tradução de Ernildo Stein. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979. INWOOD, Michael. A Heidegger Dictionary. The Blackwell philosopher dictionaries, 1999. JARAN, François. Toward a Metaphysical Freedom: Heidegger’s Project of a Metaphysics of Dasein. International Journal of Philosophical Studies Vol. 18(2), 205– 227. 2010. HAN-PILE, Béatrice. Freedom and the “Choise to Choose Oneself”. In: WRATHALL, Mark A. (Editor) The Cambridge Companion to Heidegger's Being and Time: Cambridge Companions to Philosophy, 2013. VIGO, Alejandro G. Libertad como Causa. Heidegger, Kant y el Problema de la Libertad. In: AINBINDER, Bernardo (Editor). Studia Heideggeriana. Heidegger-Kant. Vol. 1, Buenos Aires: Editoral Teseo, 2011.

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A DIFERENÇA ENTRE MENÇÃO E CARACTERIZAÇÃO DOS ENDOXA NA FILOSOFIA DE ARISTÓTELES Mariane Farias de Oliveira1

I. Sabemos pelos textos de Aristóteles que “ta endoxa” são as opiniões reputadas, compartilhadas pela maioria (que se distingue, por sua vez, da multidão “ói pollói”), ou pelos sábios, ou, ainda, pelos mais ilustres dentre eles, e, por serem crenças valorizadas por Aristóteles no sentido de serem elencadas, na maior parte de seus tratados, ao início de cada investigação, quem se propõe a investigar determinado assunto deve, portanto, estar atento a este seleto grupo de opiniões que parecem possuir caráter autoritativo sobre o objeto de investigação. Nessa medida, Aristóteles indica mais do que, em uma primeira leitura, podemos entender como a importância de que “ta endoxa” não sejam ignorados no percurso investigativo, mas sim que eles sejam os próprios componentes da análise que o Estagirita empreende em determinados tratados. No entanto, entender os endoxa como opiniões reputadas e salientar a necessidade de sua presença em determinadas investigações ainda nos diz muito pouco acerca de sua natureza e do papel ou, ainda, dos papéis que as 1 (UFRGS). E-mail para contato: [email protected].

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A diferença entre menção e caracterização

opiniões reputadas desenvolvem na filosofia de Aristóteles, especialmente em sua filosofia moral. Encontramos diversas recomendações acerca do uso dos endoxa para diversos tipos de investigação (cf. EE I 3 1214b30, EE I 6 1216b26-35, EE VII 1 1235a 30-32, EN I 5, 1095a27-29, EN VII 1, 1145b5, Ret. I 2 1356b30-34)2, mas somente duas caracterizações em sentido próprio surgem do texto de Aristóteles como uma tentativa de definição ou, pelo menos, apresentação das opiniões reputadas qua reputadas (Tóp. I 1 e I 10). A distinção entre menção e caracterização é uma tentativa de conferir inteligibilidade ao curioso fato de que é comum, em boa parte dos tratados aristotélicos, que o filósofo dê uma indicação prévia de seu procedimento investigativo, o que geralmente inclui os endoxa, mas, apesar de inúmeras menções às opiniões reputadas, não apresenta nenhuma definição desse ponto central de seu método, o que nos leva a pensar que estaria implícita a ideia de que os endoxa já foram definidos em outro texto, quando apenas mencionados. O que entendemos aqui como “menção” é uma evocação de um termo técnico sem defini-lo ou caracterizá-lo. O que entendemos como “caracterização” é uma tentativa de definição que não se faz suficientemente explanatória para ser tomada stricto sensu como tal. Uma definição, grosso modo, possui o elemento explanatório capaz de abranger e explicar a natureza do objeto em todos os casos, ou seja, universalmente. Diante dessas distinções, vejamos agora as caracterizações que surgem nos Tópicos: Endoxa, por outro lado, são aquelas [opiniões] que se baseiam no que pensam todos, a maioria

2 As obras serão abreviadas de acordo com o que se segue: Ethica Eudemia (EE), Ethica Nicomachea (EN), Retórica (Ret.) e Tópicos (Tóp.).

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Mariane Farias de Oliveira

ou os sábios, isto é, a totalidade dos sábios, ou a maioria deles, ou os mais renomados e ilustres entre eles. (100b20-22) Ora, uma proposição dialética é uma questão em consonância com a opinião (endoxon) sustentada por todos, ou pela maioria, ou pelos sábios (todos os sábios, a maioria destes ou os mais afamados entre estes) e que não é paradoxal […]. (104a10-12)

A segunda passagem encontra-se em outro contexto de discussão dos Tópicos, acerca das proposições dialéticas, que não será contemplado em nosso trabalho, mas o importante é atentar para o fato de que é retomada a caracterização de Tóp. I 1. Isso parece indicar que Aristóteles pretendeu ter estabelecido, no início do tratado, determinadas noções-chave, como, por exemplo, a de endoxon, de que se utilizará nas futuras discussões que impõe. Em Tóp. I 1 vemos uma possível formulação de definição stricto sensu, do tipo “x é y”, em que “y” é o elemento explanatório da natureza de “x”, e explica, portanto, todo e qualquer caso instanciado por “x”. No entanto, o definiens de um endoxon não parece suficientemente explanatório, pois o critério discriminatório dos endoxa é bastante fraco por sua ambiguidade na medida em que admite três “níveis” de caracterização: as crenças sustentadas por todos ou a maioria, a totalidade dos sábios ou a maioria deles ou apenas alguns dentre eles que sejam ilustres. O entendemos por caráter ambíguo e, consequentemente, fraco do definiens, aqui, é o fato de que essa aparente definição é disjuntiva e não há, na teoria da definição aristotélica, nenhuma maneira de haver definições disjuntivas. Isso significa que definiens não pode ser tomado em sua totalidade (a maioria, os sábios e os mais ilustres), pois eles não conformam um único elemento explanatório – pois há possibilidade de conflito entre suas opiniões, tornando disjuntivo este grupo. 169

A diferença entre menção e caracterização

Podemos tomar como estabelecido que a caracterização dada nos Tópicos não nos diz que os endoxa significam, não nos fala satisfatoriamente sobre sua natureza, mas aponta-nos um aspecto dessas opiniões: seu caráter reputável. Contudo, isso não significa que tal apontamento nos diga pouco a respeito dos endoxa. Temos pelo menos duas maneiras de ler essa passagem que apresentam ênfases diferentes na compreensão do caráter reputável: (1) a reputabilidade amparada na tese geral da tendência humana à verdade, se entendermos esta passagem indicando uma ordem decrescente de reputabilidade a partir da aceitação dos endoxa; e (2) a reputabilidade amparada igualmente pelos três “subgrupos” mencionados – todos (ou a maioria), os sábios (ou a maior parte deles), ou os mais ilustres dentre os sábios –, que advêm de uma leitura de Tóp. I 1 em que Aristóteles não estaria privilegiando nenhum dos subgrupos qua subgrupo, mas a reputabilidade seria encontrada através de outra coisa, a saber: um método ou procedimento. No primeiro caso, se extrairmos as consequências do sentido “decrescente” do critério da reputabilidade e da tendência do homem à verdade, podemos dizer que os endoxa são dignos de aceitação porque tendem maximamente à verdade. Podemos dizer também, de modo inverso, que quanto mais aceitação um endoxon obtiver, mais indicações teremos de que ele aponta para a verdade, ou, nas palavras de Berti, “serão verdadeiros na maior parte dos casos” (p.75). Há um problema que se coloca ao darmos como critério de reconhecimento dos endoxa a máxima aceitação comum e o fato de que isso é explicado pela tendência do homem à verdade. De fato temos fortes razões pelo trecho mencionado de EE I 6, por exemplo, a aceitar que a própria natureza do homem garanta sua tendência à verdade. Mas isso parece não ser condição suficiente para assegurar que suas crenças, de modo geral, terão a mesma tendência e para assegurar que

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Mariane Farias de Oliveira

quanto mais homens sustentarem tal crença, mais probabilidade ela apresenta de ser verdadeira. Essa condição certamente é necessária para indicar a reputabilidade e tendência à verdade das opiniões, mas seria preciso ainda garantir que não haja a possibilidade de que acidentalmente todos os homens estejam errados a respeito de determinada crença – o que contraria todas às menções de Aristóteles de que devemos confiar e utilizar os endoxa como pontos de partida na investigação, comprometendo, assim, a reputabilidade e o caráter autoritativo desse grupo seleto de crenças. Uma tentativa de afastar essa possibilidade se encontra no segundo tipo de ênfase dada à reputabilidade que pretendemos explorar, a saber: a necessidade de um método, ou, mais especificamente, de um trabalho analítico diante do conjunto dos endoxa. Nesta perspectiva, Barnes não abandona a ideia de que os homens tendam naturalmente à verdade e que isso seja uma das condições de reconhecimento e reputabilidade dos endoxa, mas, para tentar afastar a possibilidade de que, a respeito de determinada crença, todos possam estar errados, Barnes interpreta a caracterização de Tóp. I 1 como um “elenco” daquelas opiniões que são dignas de análise, mas não parece ver mais ou menos reputabilidade nos endoxa, uma vez que sua descrição do conflito parece exigir igual autoridade entre as crenças: De novo, ta endoxa podem conflitar: se a maioria dos homens está em desacordo com os sábios, ou com os mais reputáveis dentre eles; ou se os sábios estão em desacordo entre si; ou se já alguma disputa entre os mais reputáveis dos sábios – em todos esses casos, opiniões opostas serão igualmente endoxa. (2010, p.197)

A questão da reputabilidade, tal como entendida por Barnes, parece ser mais profícua na medida em que nos fornece mais meios de partir para a discussão do que possam significar 171

A diferença entre menção e caracterização

os endoxa quando consideramos a suposição do conflito entre eles. A suposição do conflito faz parte do que Barnes chamou de “método dos endoxa”, cuja tese principal é de que a prescrição contida em EN VII 1 – da qual trataremos em breve –, que supõe o procedimento analítico que mencionamos anteriormente, sustentaria um método comum que Aristóteles desenvolve em suas investigações. Dito isto, consideraremos agora o que Barnes considera ser o “método dos endoxa” e, dessa maneira, partiremos para a análise das menções aos endoxa, saindo do domínio da caracterização em que nos encontrávamos até o momento, analisando duas menções que dizem respeito a prescrições metodológicas: uma da Ethica Nicomachea e outra da Ethica Eudemia.

II. Para falar do suposto método, Barnes parte de uma conhecida menção aos endoxa que surge ao começo da discussão acerca da akrasia na Ethica Nicomachea VII 1 (=EE VI, 1). Nela, Aristóteles faz a seguinte prescrição metodológica: “A exemplo do que fizemos em todos os outros casos, passaremos em revista o que nos aparece e, após discutir as dificuldades, trataremos de provar, se possível, a verdade de todas as opiniões reputadas a respeito desses afetos da mente – ou, senão todas, pelo menos do maior número e das mais autorizadas (...)” (EN VII 1, 1145b2-6). Barnes (2010, p. 183) distingue três importantes passos a partir dessa prescrição: (1) estabelecer (τιθέναι) o que parece ser o caso, (2) percorrer (διαπορεῖν) as aporias ou dificuldades e (3) provar (δεικνύναι) o que for possível das opiniões reputadas. Os passos (1) e (2) são praticamente inseparáveis na análise, pois o próprio levantamento doxográfico leva-nos à constatação das aporias. Segundo Barnes, haverá aqui dois

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Mariane Farias de Oliveira

momentos de compreensão das opiniões reputadas: (1) o primeiro será o momento do levantamento dessas opiniões, que chamaremos de “endoxa preliminares” ou “indícios”, pois podem apresentar inconsistências, de maneira que, por definição, não consistirão em um conjunto, dado que um conjunto precisa ser consistente. Essa listagem preliminar das opiniões reputadas, uma vez que essas opiniões disputam a verdade, costumeiramente de maneira confusa, como nos indica Aristóteles, levar-nos-á às aporias a serem percorridas, uma vez que muitas opiniões estarão em conflito. E (2) o segundo momento será o que, depois de percorridas as aporias, teremos os “endoxa clarificados” ou “modelos”. Dito isso, fica claro que o processo de percorrer as aporias citado na passagem visa, em última análise, preservar o máximo possível dos endoxa estabelecidos no início, de modo a formar um conjunto consistente através da análise das inconsistências presentes nas próprias opiniões. Sobre o terceiro passo, (3) “provar o que for possível das opiniões”, este será o resultado de “percorrer as aporias” e reformular as opiniões reputadas de tal maneira que estejam o mais clarificadas possíveis para formarem um conjunto consistente. Barnes (2010, p.185) identifica a noção de “provar” com uma espécie de resolução dos problemas que o levantamento preliminar dos endoxa provocou. Sobre este ponto, o comentador ainda ressalta que a verdade será encontrada exclusiva e exaustivamente no conjunto remanescente das opiniões reputadas. O que conseguimos entender aqui por “exaustivo” concerne ao fato de que esses endoxa formarão um conjunto maximamente consistente, ou seja, nenhuma outra opinião poderá fazer parte dele sem tornálo inconsistente, e, portanto, sem deixar de ser um conjunto. No entanto, como entender o que o intérprete afirma sobre a verdade ser encontrada “exclusivamente” nos endoxa remanescentes, “provando” o que for possível das opiniões?

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A diferença entre menção e caracterização

Poderíamos objetar aqui que, se essa noção de prova for dada sem qualificações, ou seja, que a partir dela seja possível provar o que for o caso no percurso da busca definicional, os endoxa não poderiam ser, ao mesmo tempo, os pontos de partida e qualquer tipo de prova. Acreditamos que a análise da menção aos endoxa encontrada na prescrição metodológica da Ethica Eudemia possa ser útil para mostrar que essa objeção não se segue se qualificarmos a noção de prova como o uso dos endoxa como “modelos” ou paradigmas: Deve-se tentar buscar a convicção acerca de todos esses assuntos por meio dos argumentos, empregando como indícios e modelos o que nos aparece. Com efeito, o melhor é que seja manifesto que todos os homens concordem com o que será dito e, se não, ao menos que todos concordem de certo modo – o que, sendo conduzidos por argumentos, eles farão. De fato, cada um possui algo apropriado em relação à verdade, a partir do que é necessário provar de certo modo sobre esses assuntos. Com efeito, partindo do que é dito com verdade, mas não de modo claro, haverá também clareza aos que prosseguem, tomando sempre o que é mais cognoscível dentre o que habitualmente se diz de modo confuso. (EE I 6, 1216b26-35).

Na primeira sentença, o filósofo pretende definir justamente como e por que caminho se deve partir para chegar à verdade acerca dos assuntos morais, ou, pelo menos, a concepções mais claras. Empregar “indícios” é usar os endoxa como pontos de partida, a fim de clarificá-los para chegar a premissas ou hipóteses utilizadas como “modelos” da investigação. Em seguida, sua segunda asserção parece 174

Mariane Farias de Oliveira

justificar a primeira, pois “é melhor que todos concordem” no sentido de que será mais fácil estabelecer os endoxa como modelos, de maneira que o levantamento inicial das opiniões reputadas já poderá conformar um conjunto. Se isso não for o caso, Aristóteles prossegue: dado que todos os homens tendem à verdade – asserção que parece ser dada como justificativa final do argumento –, precisamos provar este “algo” com que cada um pode contribuir com a verdade, a saber: as opiniões reputadas. Só que, neste sentido, elas já serão indícios, mas não modelos, pois não estão clarificadas, de onde vem a necessidade, novamente, de percorrer as aporias para estabelecer um conjunto consistente e, finalmente, provar “o que esses homens têm de fato a contribuir com a verdade”, que será conformar os indícios de que se partiu, os endoxa não clarificados, aos modelos ou paradigmas estabelecidos a partir da clarificação dos endoxa. Ora, parece ser justamente este o tipo de prova exigido na Ethica Nicomachea VII 1 (EE = VI). O que se prova não é a verdade que encerra a busca definicional, não é uma prova definitiva de argumento, mas sim uma prova de um endoxon como premissa ou, ainda, de um conjunto de endoxa como conjunto de premissas, que, clarificadas, poderão constituir a investigação. O que isso nos mostra é que devemos tratar a noção de verdade e prova aqui em um sentido generoso e dentro do próprio “método dos endoxa” proposto por Barnes, pois o que se está provando, em última análise, é a remanescência de um endoxon preliminar, daquilo que Aristóteles prescreveu como o primeiro passo do procedimento em EN VII 1, agora em um conjunto consistente e propriamente “filosófico” – no sentido em que será utilizado como “modelo” no tratado para dar prosseguimento à busca definicional.

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A diferença entre menção e caracterização

III. Dessa maneira, vimos que tanto a caracterização quanto as menções aos endoxa são necessárias para a compreensão de sua natureza e do método aristotélico. A caracterização, como uma quasi-definição, aponta para o caráter reputável que os endoxa compartilham e nos permite fazer duas leituras de sua reputabilidade, sendo possível, assim, interpretar de duas maneiras sua natureza. Tentamos defender aqui a leitura de Barnes acerca da natureza dos endoxa, que nos permite avançar ao possível método que elas conformam, cujo procedimento pode ser encontrado em menções presentes nas éticas que, além de explicitá-lo, também justificam a necessidade de sua presença. Dito isso, embora a caracterização dos Tópicos seja de toda relevância para nos apontar uma direção para compreensão dos endoxa, pouco saberíamos acerca de seu papel nos tratados se Aristóteles não as mencionasse ao início de suas investigações. O que nos mostra, portanto, que as prescrições metodológicas cumprem um papel de elucidação não só de procedimentos investigativos, mas também de seus elementos.

Referências bibliográficas ARISTOTE. Éthique à Eudème. Introduction, text grec, traduction, notes, bibliographie et index par Catherine Dalimier. Paris: Flammarion, 2013. ARISTOTE. Topiques. Tome I: Livres I-IV. Texte établi et traduit par Jacques Brunschwig. Paris, Les Belles Lettres, 1967.

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Mariane Farias de Oliveira

ARISTOTELIS. Ethica Eudemia. R. R. Walzer, J. M. Mingay. Oxford: Oxford University Press, 1991. ARISTOTLE. Eudemian Ethics – Books I, II, and VIII. Translated with a commentary by MichaelWoods. Oxford: Clarendon Press, 1996. ARISTOTLE. Eudemian Ethics. Translated and edited by Brad Inwood and Raphael Woolf. Cambridge: Cambridge University Press, 2013. ARISTOTLE. The complete works of Aristotle (v. I). Topics. Princeton: Princeton University Press, 1984. ARISTOTLE. The Nicomachean Ethics. Translated by David Ross. Oxford: Oxford University Press, 2009. BARNES. “Aristóteles e os Métodos da Ética”. In: ZINGANO, M. (org.). Sobre a Ética Nicomaqueia de Aristóteles. SP: São Paulo, Ed. Odysseus, 2010. BERTI, E. “La valeur épistémologique des endoxa chez Aristote”. In: Dialectique, Physique et Métaphysique – Études sur Aristote. Paris: Louvain, 2008.

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THOMAS NAGEL E A SORTE MORAL1 Paulo Henrique de Toledo2

Introdução Sorte é um fato inalienável da vida humana. Não apenas não podemos escapar à sorte, devido à nossa condição, como não podemos querê-la, porque lado a lado com a sorte caminham as coisas que fazem a nossa vida ter sentido 3. A vulnerabilidade à sorte é um componente essencial das nossas vidas, mas tal perspectiva representa uma ameaça à agência independente, o que é um problema para a moralidade4. Desta forma, “tanto a sorte é parte integral da ética, quanto os componentes de uma boa vida são fundamentalmente objetos de sorte5”. O problema da sorte moral foi cunhado pela primeira vez em 1976, no par de artigos publicados na revista The Proceedings of the Aristotelian Society, de Bernard Williams e Thomas Nagel, intitulados, ambos, Moral luck. Nestes artigos, tanto Williams, quanto Nagel, apresentaram uma série de exemplos para tentar contestar a alegada imunidade da moral no que diz respeito à sorte. 1

Artigo composto para a V Jornada Nacional de Pesquisa na PósGraduação em Filosofia da UFSM, em novembro de 2014. 2 Mestrando em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFSM, sob orientação do prof. Dr. Ricardo Bins di Napoli. 3 Athanassoulis (2005), p. 18. 4 Nussbaum (2009), p. 3-5. 5 Athanassoulis (2005), p.18. 179

Thomas Nagel e a sorte moral

O presente artigo procura esclarecer o problema da sorte moral a partir do artigo Moral luck de Thomas Nagel. Começaremos esboçando o princípio do controle, uma intuição que remonta ao coração de nossas concepções morais, bem como o problema de seguir tal princípio em nossos juízos de valor ou responsabilidade. Na segunda parte do texto, olharemos de perto os quatro tipos de sorte moral estipulados por Nagel, apresentando os exemplos para melhor esclarecimento de cada problema.

1. O princípio do controle Enquanto Bernard Williams apresenta uma visão antiteorista da moral, apontando um possível paradoxo em nossas concepções sobre a moralidade, Nagel nos dá uma definição, um princípio. Ele diz que “pode ser chamado de sorte moral quando um aspecto significativo do que alguém faz depende de fatores além do seu controle, e ainda continuamos a tratá-lo como objeto de avaliação moral6”. Tal princípio é intuído a partir da Fundamentação da Metafísica dos Costumes, de Immanuel Kant. Nesta obra, de papel fundamental para nossas noções de moralidade, Kant afirma que: A boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptidão para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão somente pelo querer, isto é, em si mesma, e, considerada em si mesma [...] Ainda mesmo que por um desfavor especial do destino, ou pelo apetrechamento avaro duma natureza madrasta, faltasse totalmente a esta boa vontade o poder de fazer vencer as suas intenções, mesmo que nada pudesse alcançar a 6

Nagel (1993), p. 59.

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Paulo Henrique de Toledo

despeito dos seus maiores esforços, e só afinal restasse a boa vontade (é claro que não se trata aqui de um simples desejo, mas sim do emprego de todos os meios de que as nossas forças disponham), ela ficaria brilhando por si mesma como uma joia, como alguma coisa que em si mesma tem o seu pleno valor. A utilidade ou a inutilidade nada podem acrescentar ou tirar a este 7 valor .

Contudo, como Nagel afirma em seu artigo, apesar dos esforços de Kant, nós acabamos por avaliar os agentes moralmente com base nos produtos da boa vontade, incondicionada e incondicional, mas até mesmo aqueles fatores que estão além do controle (vontade) dos agentes. A questão determinante aqui é que Nagel está tratando de juízos morais, ou seja, da atribuição de responsabilidade: louvor ou culpa a determinado agente por determinada ação. Em outras palavras, avaliar moralmente um agente é dizer se suas ações foram boas ou ruins; isto é geralmente acompanhado seja por um elogio ou uma censura pela ação em questão. O ponto de Nagel é que se percebemos que a ação em questão não está no controle do agente, não estamos inclinados a culpá-lo ou elogiá-lo, mesmo que possamos atribuir a ele responsabilidade. Por exemplo: imagine que você está na casa de um amigo e, no meio da conversa, um gato passa correndo por entre suas pernas. Assustado, você dá um passo para o lado e acaba derrubando um vaso que estava, há gerações, na família de seu amigo. Você é responsável por ter quebrado o vaso, porém, não há culpa a ser atribuída a você: a situação estava além do seu controle (devido ao susto) e você não teve intenção alguma de fazê-lo.

7

Kant (1974), p. 110. 181

Thomas Nagel e a sorte moral

Do princípio do controle podemos inferir o corolário: dois agentes não podem ser avaliados diferentemente se as únicas diferenças entre eles são devidas a fatores além dos seus controles. Mesmo assim, tendemos a atribuir uma culpa maior àquele que acertou o tiro e matou sua vítima do que àquele que por motivos quaisquer (como um pássaro atravessando a trajetória da bala, por exemplo) não consegue realizar o assassinato. O fato é que o homicida é responsável pela morte de alguém, enquanto aquele que não obteve sucesso em sua tentativa de homicídio, não. Contudo, no que tange à intenção, ou a vontade, ambos os agentes se assemelham. Podemos, também, julgar mais duramente um motorista bêbado que atropela uma criança do que àquele que retorna a sua casa sem causar dano algum, mesmo que devamos atribuir a mesma responsabilidade para ambos motoristas. O problema da sorte moral é a tensão entre a intuição que o status moral de alguém não pode ser afetado pela sorte e a possibilidade da sorte desempenhar um papel determinante no status moral de um agente. O que Nagel sugere, é que tal intuição é correta e é um dos pilares de nossas noções sobre a moralidade, mas que a sorte inevitavelmente influencia a idoneidade moral de um agente8. O princípio do controle declara que somos passíveis de juízos morais apenas na medida em que nossas ações estão em nosso controle. Mas devemos ter em mente que existem muitas formas de juízos morais. Podemos ter em mente os juízos aretaicos, que dizem respeito ao caráter de um agente moral, se ele é “bom” ou “mau”, por exemplo. Ou podemos julgar estados de coisas, juízos axiológicos, concernentes às ações das pessoas como “bons” ou “maus”. Podemos, também, julgar ações como “corretas” ou “erradas” – os juízos deônticos. Há também os juízos de responsabilidade, culpa ou louvor9. Tais 8 9

Latus (2001), p.5. Nelkin (2013); Justin (1996).

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distinções entre espécies de juízos pode ser lida em paralelo com a distinção que Nagel faz entre os tipos de sorte moral10.

2. Quatro tipos de sorte moral Nagel aponta quatro tipos de casos onde a sorte influencia na moralidade. Podemos chamá-las de sorte resultante, sorte circunstancial, sorte constitutiva e sorte causal. A sorte resultante diz respeito ao resultado da ação. A sorte circunstancial diz respeito às circunstâncias, ou seja, os tipos de situações, os graus de tentação ou dificuldades que o agente moral atravessa. A sorte constitutiva diz respeito ao caráter do agente moral, quem ele é, quais são suas inclinações, capacidades e temperamento. A sorte causal, por fim, diz respeito a como o agente é determinado pelas circunstâncias antecedentes: aqui entramos no debate entre livre arbítrio e determinismo, o que acarreta nossas atribuições de responsabilidade ao agente11. A seguir, vamos olhar mais detalhadamente cada tipo de sorte moral.

2.1 Sorte resultante Sorte resultante, ou sorte consequencial, diz respeito ao modo como as coisas acontecem. Nagel aponta a sorte resultante como o caso que Kant tinha em mente na passagem já citada da Fundamentação. Nagel ilustra a relevância dos resultados efetivos das ações de um agente em dois tipos de casos: (a) casos de negligência e (b) casos de decisão sobre incerteza12. Vamos considerar cada um destes casos. 10

Araújo (2011), p. 172. Nagel (1993), p. 60. 12 Ibidem, p. 61. 11

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Thomas Nagel e a sorte moral

Imagine duas situações semelhantes onde alguém é negligente ao não apagar uma fogueira, acesa por outro agente. Na primeira situação, digamos, uma forte chuva cai e, apagando o fogo, impede que algo pior aconteça. Na segunda situação, porém, uma casa próxima pega fogo e, no incêndio, uma criança acaba morrendo. É obvio que em ambas situações o resultado se deve por fatores além do controle do agente, no sentido de que está além do controle do agente que a chuva caia, por exemplo. Neste caso, o resultado é determinado por pura sorte, boa ou ruim. Como ambos os agentes foram negligentes, pode parecer que ambos são culpados e responsáveis no mesmo grau. Contudo, tendemos a julgar cada um dos casos diferentemente. Até mesmo os agentes em questão avaliariam diferentemente suas negligências: enquanto o “sortudo” poderia sentir uma leve culpa, o desafortunado se censuraria muito mais duramente pelo terrível resultado de sua ação13. Nos sistemas legais, também, a relevância de resultados fortuitos é uma suposição básica no julgamento das ações de um agente. Para usar um exemplo já dado, vemos uma grande diferença na pena pela tentativa de homicídio dos homicídios efetivos, mesmo que tenha sido apenas uma questão de sorte que tal homicídio tenha sucedido14. Outro caso onde a avaliação moral depende do resultado é nas ações feitas por incerteza. Nagel ilustra este caso com o exemplo do revolucionário15. Se alguém decide levantar uma revolução contra um governo tirano, tal agente está assumindo um risco moral. Se for bem sucedido, será considerado um herói moral, um salvador. Se falhar, contudo, pode ser culpado pela morte de cidadãos inocentes16. 13

Statman (1993), p. 13-4. Ibidem, p. 14. 15 Nagel (1993), p. 61-2. 16 Statman (1993), p. 15. 14

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Casos de negligência e incerteza, contudo, possuem suas semelhanças e diferenças. Em ambos os casos o agente é julgado com base nos resultados de sua ação. Também, em ambos os casos, o agente contribui de algum modo com o resultado, seja por negligência ou por boa ou má deliberação. Em casos de decisão sob incerteza, mesmo que o agente possa ter deliberado bem, ele pode ser responsável pelo resultado. Contudo, em casos de negligência, o agente é sempre digno de culpa, independente do resultado, sendo este determinante no grau de culpabilidade no status moral do agente17.

2.2 Sorte circunstancial A sorte circunstancial, também chamada de sorte situacional, se refere às circunstâncias em que o agente se encontra. Nagel usa o exemplo do nazismo para ilustrar este problema. Os cidadãos comuns da Alemanha nazista poderiam agir heroicamente e se opor ao regime. Enquanto os cidadãos de outros países, podem nunca chegar a tal nível de culpabilidade por apoiar um governo tirano, muitos alemães podem ser culpados pelo simples fato de terem nascido na hora e na época errada. Para Nagel, “julgamos as pessoas por aquilo que elas fazem, ou falham em fazer, não apenas por o que elas fariam se as circunstancias tivessem sido diferentes18”. Considere o caso de um oficial nazista que recebe ordens de cometer atos desumanos. Ele seria digno de culpa moral mesmo que as circunstâncias que o levaram a cometer tais atos estivessem além de seu controle. Mas, se por outros motivos, contudo, ele fosse transferido pela sua empresa para uma filial na Argentina, em 1929, é possível que tenhamos uma 17 18

Ibidem, p. 15. Nagel (1993), p. 66. 185

Thomas Nagel e a sorte moral

avaliação moralmente diferente sobre ele. Muitas vezes, o que fazemos, ou deixamos de fazer, se deve pelas circunstancias onde nos encontramos. E isto não impede que, por ventura, sejamos julgados negativamente por isso. Este é o caso da sorte circunstancial. Um exemplo clássico que podemos encontrar na literatura de sorte circunstancial é o de Raskolnikov, na obra Crime e Castigo, de Dostoiévski. Raskolnikov, um jovem educado para esperar um certo estilo de vida, de certa riqueza e autonomia para liberar-se em seus impulsos acadêmicos, acaba, assassinando uma velha usurária por seu dinheiro. As circunstâncias que o conduziram a cometer tal ato são complexas e não estão no total controle do jovem. O fato de ter de sobreviver com pouco dinheiro, ver sua irmã tendo que se casar com um homem velho para sobreviver, o fato de a velha usurária não ser uma boa pessoa (e segundo quem a conhece não “merecer estar viva”), tudo acaba conspirando para que Raskolnikov tome sua decisão (e Dostoiévski genialmente constrói o teste moral pelo qual o personagem passa) e acabe cometendo o crime. Outros casos de sorte circunstancial dizem respeito aos dilemas morais. Nestes casos, o agente se vê entre a escolha de dois cursos de ação que podem ser considerados ruins. Desta forma, as circunstâncias levam o agente a não poder escapar do erro. Mesmo que Nagel afirme que os dilemas morais sejam casos incomuns de sorte circunstancial, podemos admitir que eles sejam casos padrão de sorte circunstancial. Certo que há apenas um curso de ação correto a seguir, o agente sempre terá a tentação (moral) de seguir o outro curso. Como no caso de Agamenon, que teve de sacrificar sua filha Ifigênia à Ártemis, para que os bons ventos soprassem quando o exército grego partisse para a guerra de Tróia19. Ele teve todas as razões para não fazê-lo: ele teve má sorte circunstancial. 19

Williams (1973), p. 173

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2.3 Sorte Constitutiva A sorte constitutiva diz respeito ao caráter do agente, ou, em outras palavras a quem o agente é. Os traços de personalidade, as disposições. Como nossos genes, os cuidados que tivemos e outras influências ambientais contribuem para nos tornar quem somos – e como não temos controle sobre isto – podemos inferir que aquilo que somos é, em muitos aspectos, uma questão de sorte20. Nagel comenta que não devemos louvar ou culpar as pessoas por qualidades que não estão sob seus controles. A influência da sorte constitutiva representa um estrago em nossas intuições de que iniciamos em igualdade dentro da esfera moral, e que todos nós temos a mesma condição para atribuição de responsabilidade. Se a existência da sorte constitutiva não for descartada, temos de aceitar que não somos todos iguais, e que certas pessoas tem vantagens ou desvantagens em comparação com as outras, ao menos no que diz respeito da ação moral. Tal consideração, sobre a inevitabilidade de algumas de nossas decisões morais, deve ter algum impacto em nossas noções de responsabilidade e culpabilidade21. A discussão sobre a sorte constitutiva remonta à importância da relação entre natureza e moralidade. Aristóteles já falava da distinção entre tendências naturais, objetos da sorte, e escolhas racionais e disposições desenvolvidas, objetos da moralidade. Mas, como podemos dizer que nossa habilidade de fazer escolhas e formar nosso próprio caráter não é, também, uma questão de sorte?

20 21

Nelkin (2013), p. 4. Athanassoulis (2005), p. 21. 187

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4.4 Sorte causal Por fim, temos a sorte causal, ou sorte em “como alguém é determinado por circunstâncias antecedentes”. Este é o tipo de sorte menos trabalhado por Nagel em seu artigo. Ele aponta que a sorte causal remonta ao velho debate do livre arbítrio. O problema, a qual Nagel se refere, reside no fato de que nossas ações – mesmo os atos da mais boa vontade – são consequências de algo que não está em nosso controle. Se assim o for, nem nossas ações, nem mesmo nossa vontade, são livres. E, desde que a liberdade é a base para a atribuição de responsabilidade, não podemos ser responsáveis por nossa vontade22. Esta relação entre a controvérsia sobre determinismo e livre arbítrio e as considerações sobre a sorte causal podem, como se sugere, ser aplicada ao problema da sorte moral como um todo. Assim como as preocupações sobre a compatibilidade entre livre arbítrio e determinismo, as preocupações sobre a sorte moral iniciam quando percebemos o quanto daquilo que deveria ser moralmente significante sobre nós mesmos é simplesmente empurrado sobre nós, quer queiramos ou não23.

Considerações finais O problema da sorte moral foi cunhado para ser um paradoxo. O próprio Nagel assume que o problema aparentemente não tem solução24. Apesar disso, desde os anos 70, vários autores remontaram à questão tentando solucioná-lo em partes ou totalmente. Algumas críticas foram feitas aos tipos de sorte apontados por Nagel – seja na contribuição para 22

Nelkin (2013), p. 4. Latus (2001), p. 8. 24 Nagel (1993), p. 68. 23

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enriquecimento dos argumentos ou na elaboração de uma crítica negativa, sobre a (não) validade dos mesmos. De todo modo, o problema parece, a despeito do debate subsequente, ainda estar aberto. Mesmo que haja aqueles que negam a sorte moral como um todo, ainda podemos encontrar elementos em diversos exemplos morais, como os que trabalhamos neste artigo, onde a sorte parece sim influenciar nossas concepções sobre a moralidade. Contudo, há algo em nossas concepções sobre agencia moral que é incompatível, tanto com a ideia das nossas ações serem eventos, ou os agentes, coisas. Mas, na medida em que determinantes externos daquilo que alguém fez é gradualmente exposto, seja nos efeitos de suas consequências, caráter ou da própria escolha, vai se tornando claro que podemos (e talvez devamos) olhar nossas ações como eventos, e os agentes como coisas. Assim, sob esta perspectiva, se torna cada vez mais delicado atribuir real responsabilidade aos agentes. Por mais que possamos pensar uma agência livre, parece complicado, no mundo real, nos nossos juízos cotidianos, pensar a agência e os próprios agentes como livres de fatores fortuitos. Uma das consequências possíveis, de assumirmos a existência de uma sorte moral, ou de aderirmos ao princípio do controle, seria de cancelarmos (ou refrearmos) nossos juízos morais.

Referências bibliográficas ARAÚJO, Fernando. Sorte moral, caráter e tragédia pessoal. Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC, 2011. ATHANASSOULIS, Nafsika. Morality, moral luck and responsibility. London: Palgrave Mcmillan, 2005.

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KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Coleção Os Pensadores 1ed., Vol. XXV. São Paulo: Abril Cultural, 1974. LATUS, Andrew. Moral luck. Internet Encyclopedia of Philosophy, 2001. NAGEL, Thomas. Moral Luck. In: STATMAN, Daniel (Ed.). Moral luck. State University of New York Press, 1993. NELKIN, Dana K. Moral Luck. Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2013. NUSSBAUM, Martha. A fragilidade da bondade: fortuna e ética na tragédia e na filosofia grega. São Paulo: Martins Fontes, 2009. STATMAN, Daniel (Ed.). Moral luck. State University of New York Press, 1993. WILLIAMS, Bernard. Problems of the self. Cambridge: Cambridge University Press, 1973.

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ÉDIPO-REI NO STADTTHEATER KÖNIGSBERG Rômulo Eisinger Guimarães1

Entendendo o que chegou até nós sob o título Poética2 (Perí Poietikés) como Da arte poética (Perí Téknes Poietikés) tem-se uma noção sobre o que aborda a obra aristotélica: tratase, aqui, de uma espécie de manual, o qual busca mostrar como se produz – conscientemente – uma obra de arte (GRASSI , 1975, p. 121). Sem perder de vista a pintura, a música e as demais artes, Aristóteles discorre de modo mais expressivo sobre a tragédia, definindo esta sumariamente como “imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada [...] não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o ‘terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções’” (ARISTÓTELES, POI, §§ 1314). Disso se segue que a tragédia (i) enquanto “imitação” (mimese) – entendida como “um tipo especial de representação [...], grosso modo, representação ficcional” (BARNES, 1995, p. 265-276) – está ligada a um sentimento de prazer, pois

1

Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: [email protected] Quanto às citações das obras de Aristóteles e Kant atenho-me às paginações originais, utilizando ainda as seguintes abreviações: Crítica da Faculdade do Juízo (CFJ), Ética a Nicômaco (ET. NIC.), Fundamentação da Metafísica dos Costumes (FMC), Poética (POI), Política (POL). Quanto aos grifos destas e das demais obras, os itálicos dizem respeito aos textos originais; negritos são grifos meus. 2

191

Édipo-Rei no Stadttheater Königsber

[...] imitar é congênito no homem (e nisso difere dos outros viventes, pois, de todos, é ele o mais imitador, e, por imitação, aprende as primeiras noções), e os homens se comprazem no imitado. [...] Tal é o motivo por que se deleitam perante as imagens: olhando-as, aprendem e discorrem sobre o que seja cada uma delas (ARISTÓTELES, POI, 1448 b 4-9);

e (ii) enquanto algo que tem por efeito a purificação dos sentimentos de terror e piedade (catarse) – consistindo na “razão de ser da tragédia” (BARNES, op. cit., p. 277) de modo que “o profundo sucesso [da catarse] vale como sinal de qualidade [da tragédia]” (HÖFFE, 2008, p. 71) – deve ela, a tragédia, ser elaborada de tal modo que suscite tais sentimentos no espectador – e isso através da boa construção de um mito. Sendo tragédia imitação não de qualquer ação, mas de uma ação de caráter elevado – completa, com sentido em si mesma (GRASSI, op. cit., p. 126), isto é, mimesis da práxis – o modo, a forma como é tramada a ação, a composição das palavras se dá através do mito trágico (fábula, estória), o qual é distinguido por Aristóteles do mito tradicional. Tomemos o exemplo do rei tebano Édipo – enquanto figura mitológica, “de cuja história se possa tirar argumento de tragédias” (ARISTÓTELES, POI, 1454 a 9) – e da personagem apresentada por Sófocles em Édipo-Rei como “o primeiro dos homens”, tal que “ninguém em sua cidade podia contemplar seu destino sem inveja” (SÓFOCLES, 2013, p. 92). Se tragédia é mimese de uma ação completa que suscita sentimentos de terror e piedade, e como tal produz um prazer que lhe é próprio, o sentimento de prazer é prazer com a imitação, pois reconhecendo como ficção, sentimos prazer com algo que usualmente não sentiríamos3. Assim, se sentimos prazer com a 3

E.g., “coisas que olhamos com repugnância” (Cf. ARISTÓTELES, POI, § 14). 192

Rômulo Eisinger Guimarães

peça de Sófocles é porque se trata de uma imitação, de uma fábula que modela (torna uno) um determinado recorte da vida do rei tebano. O mito trágico “ordena o assunto de modo unívoco e decidido, destaca-o da sua restante conexão com o mundo” (AUERBACH, 2013, p. 16) de tal forma que a integridade da ação não seja prejudicada. Diferente do que se passa com o historiador – o qual se ocupa da realidade ordinária, do que é/foi (expondo “não uma ação única, mas um tempo único” (ARISTÓTELES, POI, 1459 a 17), i.e., eventos que não tem uma relação de necessidade entre si, transcorrendo “de maneira muito menos uniforme, mais cheia de contradições e confusões” (AUERBACH, op. cit., p. 16) – não é ofício do poeta narrar o que aconteceu, mas representar o que poderia acontecer, o que é possível/plausível segundo a verossimilhança e a necessidade. Consistindo o mito trágico do “conjunto elaborado de elementos escolhidos segundo uma ordem necessária, que se opõe à diversidade aleatória dos acontecimentos reais” (COSTA, 1992, p. 22), não se preocupa o poeta com o fato empírico. Não obstante, dentro da lógica da construção da tragédia, deve haver uma coerência – lógica esta que convence o público, leva-o a reconhecer (que reconhece) como plausível o que se apresenta diante dele, sendo a base da catarse – o efeito produzido pela tragédia – a purgação/purificação de suas emoções. Embora uma definição unívoca da função e do significado do termo “catarse” tenha se mostrado um dos maiores problemas dentre as interpretações do texto aristotélico4, aponta-se, habitualmente, para dois significado na 4

Para uma relação ilustrativa das versões e interpretações propostas, do século XVI ao século XVIII, ao problema “catarse de/catarse operada por sentimentos de terror e piedade”, ver o comentário de Eudoro de Sousa do § 27 Cf. ARISTÓTELES. Poética (tradução, prefácio, introdução, comentários e apêndices de Eudoro de Sousa). Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1986. 193

Édipo-Rei no Stadttheater Königsber

tradição pré-aristotélica (quais sejam: um significado medicinal – referente à purgação, ao efeito de laxativos –; e um significado religioso – referente à purificação de “pessoas infectadas”) e que ainda hoje são objeto de disputa entre comentadores5. Recorrendo à Política, busco aqui uma justificação de minha preferência à catarse enquanto purificação de emoções, pois uma vez que Aristóteles afirma que [...] alguns [indivíduos] são particularmente predispostos a este movimento [da alma. i.e., às paixões]; mas, [por efeito] dos cânticos sagrados, quando se servem daqueles que são aptos a produzir na alma a exaltação religiosa, vemo-los pacificados, como se tivessem sido sanados e purificados (ARISTÓTELES, POL, 1342 a 4 ss.)

não se atribui à arte o poder de eliminar as emoções, mas antes, purifica-las – entendendo com isso tornando-as “apropriadamente sentidas (BARNES, op. cit., p. 279). Até aqui não fica claro, contudo, de que maneira a tragédia possibilitaria que “sentíssemos algo de modo apropriado” e, ainda, o que significaria isso para o espectador. A fim de buscar uma resposta, devemos atentar àquilo que Aristóteles expõe sobre a construção do mito trágico e o objeto da mimese. 5

Ao passo que Sousa e Barnes sejam mais favoráveis à uma vinculação da catarse (e do prazer trágico que dela decorre) à purificação dos sentimentos de terror e piedade (Cf. SOUSA, E. A essência da tragédia. In.: ARISTÓTELES. Poética (tradução, prefácio, introdução, comentários e apêndices de Eudoro de Sousa). Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1986, p. 99 e BARNES, J. Rhetoric and poetics. In.: IDEM (ed.). The Cambridge companion to Aristotle. Cambridge: Cambridge University Press, 1995, pp. 277-279), Höffe parece entendê-la em seu significado medicinal (Cf. HÖFFE, O. Aristóteles (trad. Roberto Hofmeister Pich). Porto Alegre: Artmed, 2008, p. 70). 194

Rômulo Eisinger Guimarães

*** É já na primeira definição da tragédia onde Aristóteles afirma que a imitação da ação completa (e sua consequente trama dos fatos, i.e., o mito) produz sentimentos de terror e piedade no espectador (e, prosseguindo, diz que o efeito da tragédia é a purificação desses sentimentos) (ARISTÓTELES, POI, 1449 b 24). Evidente é que nem todo mito suscitará tais sentimentos, e o próprio Aristóteles indica o que seria “a situação trágica por excelência”6. Imitando casos que suscitem terror e piedade, a tragédia não deve representar nem homens muito bons que passem da boa para a má fortuna – o que soaria repugnante –, nem homens maus que passem da má para a boa fortuna – visto que não há nada menos trágico – uma vez que isso “não é conforme aos sentimentos humanos, nem desperta terror ou piedade” (ARISTÓTELES, POI, 1453 a). Melhor seria se se tratasse de um caso intermediário (como Édipo, por exemplo) o qual, ainda que dotado de prestígio e fortuna, considerado o “primeiro de todos os mortais” nem por isso igualado aos deuses (SÓFOCLES, op. cit., p. 7). Se Édipo, homem honrado de resto (e, não obstante, homem como qualquer um de nós) incorresse em um erro (hermatia) não em função de seu caráter – antes, por desconhecimento – de tal modo que seu sofrimento seja (em parte) desmerecido e ele, Édipo, torna-se “culpado sem ter culpa”, tal situação geraria em nós – espectadores da tragédia – simultâneos sentimentos de terror (pelo “semelhante desditoso”) e piedade (pelo “que é infeliz sem o merecer”) (ARISTÓTELES, POI, § 69). A tragédia, enquanto mímesis da práxis, dá a conhecer as “possibilidades humanas” (GRASSI, op. cit., p. 128). Através da representação de um erro cometido por uma figura exemplar, determinados conflitos éticos tornam-se mais aparentes, distanciados de quaisquer conflitos cotidianos. Enquanto manifestação das possibilidades das ações humanas e 6

Denominação dada por Eudoro de Sousa no Cap. XIII da Poética 195

Édipo-Rei no Stadttheater Königsber

suas consequências, pode-se atribuir à tragédia uma certa “importância educativa” (IDEM, p. 143) uma vez que aquele que participa dela, “mesmo permanecendo só ‘espectador’, reconhece nelas as próprias possibilidades e perigos, alcançando a autoconsciência” (IDEM, pp. 148-149). Mas o que, de fato, se aprende na tragédia? *** Do que foi dito até então, pode-se perceber que o texto de Aristóteles nos leva a crer que não apenas o prazer trágico está, de certa forma, ligado a um (re)conhecimento – no qual o espectador reconhece (que reconhece) como plausível o que está diante dele –, mas que, pela simultânea angústia e comiseração originada pela situação trágica (do herói em grande sofrimento, em sua desgraça imerecida) nossos sentimentos são “purificados”, tornam-se “mais apropriadamente sentidos – sentidos em momentos mais apropriados, em relação a pessoas mais apropriadas” (BARNES, op. cit., p. 279) etc. Ora, quão distinto é esse “sentir-de-maneira-apropriada” da exposição aristotélica das virtudes, onde tratando da temperança, define temperante como aquele que [...] ocupa uma posição mediana [...] [o qual] nem aprecia as coisas que são preferidas pelo intemperante [...] nem, em geral, as coisas que não deve, nem nada disso em excesso [...]não sofre nem anseia por elas quando estão ausentes ou só o faz em grau moderado e não mais do que deve, e nunca quando não deve, e assim por diante [?] (ARISTÓTELES, ET. NIC., 1119 a 10)

Não estaria então o espectador “purificado de suas emoções” mais apto a orientar-se pela regra justa da mediania? Com isso, a tragédia aristotélica propicia ao espectador (i) de um ponto de vista estético, um sentimento de prazer 196

Rômulo Eisinger Guimarães

advindo da imitação, do reconhecimento; e (ii) de um ponto de vista moral não apenas um exemplo das possíveis consequências de suas ações, como também, pela purificação das emoções do espectador (efeito catártico) a possiblidade deste senti-las de maneira apropriada – e não mais do que deveria. Em outras palavras, a tragédia condiciona o espectador a agir segundo a regra justa da mediania – no que consiste a excelência característica da virtude dentro da ética aristotélica (ARISTÓTELES, ET. NIC., 1106 b 20). *** Voltando à situação hipotética supracitada, estou disposto a acreditar que Kant admitiria que existe um sentimento de prazer na tragédia correspondente ao prazer trágico proposto por Aristóteles (o prazer da imitação, do reconhecimento), mas que, todavia, este não corresponde ao sentimento prazer que determina um juízo-de-gosto estético puro. Pois seria aquele um prazer associado ao conhecimento (reconhecimento), e este, um prazer produzido pelo jogo-livre de suas faculdades cognitivas (livre justamente por não formar conhecimento). Já na introdução de sua Crítica da Faculdade do Juízo, Kant aponta que, embora [...] nós já não sentimos mais qualquer prazer notável ao apreendermos a natureza [...] mediante conceitos empíricos, pelos quais a conhecemos segundo suas leis particulares [...] [,] esse prazer já existiu noutros tempos, e somente porque a experiência mais comum não seria possível sem ele foi-se gradualmente misturando com o mero conhecimento sem ser especialmente notado (KANT, CFJ, B XL)

e com isso pode-se pensar que não descartaria o “prazer de (re)conhecer” defendido por Aristóteles na Poética. Não obstante, importa para Kant (se tratando de um juízo-de-gosto 197

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estético) o prazer genuinamente estético resultado da adequação de um objeto (quer seja uma árvore, uma flor, ou – porque não? – uma apresentação teatral de Édipo-Rei) às faculdades de conhecimento (imaginação e entendimento) postas em relação harmônica em um juízo reflexionante7. Se para Aristóteles o prazer que é próprio à tragédia – inerente aos sentimentos de terror e piedade – pode surgir “por efeito do espetáculo cênico, mas também [...] [pode] derivar da íntima conexão dos atos [i.e., do mito bem construído afim de suscitar tais sentimentos no espectador], [sendo que] este é o procedimento preferível” (ARISTÓTELES, POI, §§ 74-75), Kant, por sua vez afirma que regras de poéticas de produção não servem para determinar o prazer genuinamente estético (KANT, CFJ, B 141). Em verdade, o que desde o início distingue a Poética aristotélica da Crítica da Faculdade de Juízo Estética é o fato de que da primeira extraem-se regras de produção (Perí Poietikés/Perí Téknes Poietikés) de obras de arte – que forma deve assumir tal objeto para produzir um determinado efeito em nós –; ao passo que a segunda versa sobre nosso ajuizamento (a forma de nossa reflexão) sobre aquilo que denominamos “belo”. E nesse sentido que deve ser claro o que Kant tem em mente com o aspecto formal (da reflexão) de um objeto. Não se trata, aqui, de características – por assim dizer físicas, materiais – do objeto –, antes, é seu aspecto formal

7

Há de se ter em mente, sobretudo, que a Crítica da Faculdade do Juízo opera no âmbito da reflexão, e não na esfera da formação de conhecimentos empíricos determinados. Não por isso, porém, seja ilegítimo pensarmos o que se encontra além dos limites de nosso conhecimento – antes, seja mesmo necessário que o façamos (Cf. KANT, CFJ, B XLII). Com efeito, Kant sugere-nos a tomar o juízo reflexionante quase como uma função compensatória do conhecimento (em especial se tratando de juízos teleológicos) e que, embora ocorra na esfera do conhecimento, não produz conhecimento propriamente dito. 198

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referente à organização de nossas faculdades de conhecimento relativamente à representação deste objeto. Claro é que, quando Kant inicia uma argumentação poetológica8 – e não mais restrita ao juízo-de-gosto –, inevitavelmente fala da forma do objeto no primeiro sentido (o que aparentemente gera uma ambiguidade na argumentação desenvolvida na terceira Crítica). Mas se tratando de um juízo-de-gosto estético, o que nos levaria a chamar um objeto “belo” não é a forma da conformidade a fins do objeto no sentido de como (de que forma) o mito é construído. Antes, trata-se de como esse objeto é percebido pela constelação formal das faculdades transcendentais daquele que julga. O prazer genuinamente estético, para Kant, não diz respeito ao objeto, mas ao sujeito, àquilo que acontece com suas formas puras de conhecimento. Um dado objeto que afeta o sujeito – que adentra sua percepção sensível de forma passiva pelas formas puras da intuição (Espaço e Tempo) –, para ser transformado em conhecimento, deve o próprio sujeito evocar suas faculdades de conhecimento (Imaginação e Entendimento) e, num ato de sua espontaneidade, classificar isso (este Gegenstand) segundo as categorias a priori do Juízo: é só então que pode-se falar com propriedade que se conhece o objeto . Pode este mesmo sujeito, entretanto, interromper o percurso do conhecimento e, por assim dizer, fazer outra coisa com aquilo que adentra sua intuição sensível que não formar conhecimento empírico determinado do que seja o objeto em questão. Evocando suas faculdades sem o fim de produzir conhecimento, o sujeito “esquematiza sem conceitos” (KANT, CFJ, B 146), de modo que Imaginação e Entendimento são 8

Como, por exemplo, no § 17 sobre o Ideal de beleza que parece não de encaixar muito bem no contexto da argumentação kantiana sobre juízos-degosto estéticos puros. 199

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postos em um jogo-livre no qual ele, o sujeito, reflete (reflexiona) sobre a própria forma de conhecer os objetos e desta “percepção refletida” (IDEM, B XLVI) surge o sentimento de prazer genuinamente estético. O ponto aqui é que, para Kant, qualquer objeto que adentre nossa percepção sensível como possível objeto de conhecimento – e uma vez conhecido, passa de Gegenstand a Objekt – é, também, candidato legítimo a possibilitar em nós o desencadeamento de outro uso de nossa faculdade de juízo, um uso reflexionante. Notório é que alguns objetos seriam mais propensos a estimular esta reflexão, mas isso não exclui o fato de que qualquer objeto de conhecimento é passível de reflexão. Tratando-se de uma tragédia grega tal como Édipo-Rei, (i) se para Aristóteles o sentimento de prazer relaciona-se aos sentimentos de terror e piedade suscitados no espectador, e estes não são continuamente produzidos, mas estão vinculados a determinados pontos da trama, os quais envolvem a mudança da boa para a má-fortuna do herói – que cai em um grande sofrimento do qual é “culpado sem ter culpa” –; (ii) aquilo que Kant define como o sentimento de prazer genuinamente estético não é gerado em um momento determinado da tragédia: a qualquer momento (e não necessariamente pelo mito, mas também pelo próprio espetáculo cênico) o espectador pode evocar suas faculdades de conhecimento sem, contudo, alcançar um conceito determinado ao objeto do juízo. Assim todo o desenrolar da tragédia – com todos os elementos que a constituem – é, potencialmente, apto a provocar um estado mental reflexivo no espectador e do qual provém o sentimento de prazer genuinamente estético (em linhas gerais, se o espectador é capaz de um juízo do tipo “Aquilo é uma cortina”, não há nada que o impeça de realizar um juízo do tipo “Aquela cortina é bela – com efeito, tampouco se faz necessário que realize seu juízo deste modo, i.e., pode fazê-lo

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da seguinte forma “Aquilo é belo”, sem sequer formar conhecimento empírico de que se trata de uma cortina). (Ainda sobre como Kant e Aristóteles veem a produção de obras de arte convém um breve comentário. Com efeito, a Poética, como dito, aparece-nos como uma espécie de manual de produção de uma – bela – obra de arte. E neste ponto Aristóteles mostra-se tão criterioso na descrição dos elementos que constituem uma tragédia e, principalmente, na qualidade de cada um destes elementos – chegando, a hierarquizar os meios que o poeta dispõe para melhor atingir seus objetivos como, por exemplo, referindo-se ao reconhecimento, diz-nos que “melhores são os que derivam da própria intriga [i.e., da peripécia, da construção do mito]” (ARISTÓTELES, POI, § 98) – que por vezes dá a impressão de que qualquer um que obedeça suas recomendações estaria apto a escrever, por exemplo, Édipo-Rei. E Aristóteles não parece oferecer refutação alguma à pergunta “Porque Sófocles e não eu ou você poderia escrever Édipo-Rei?” O mesmo, contudo, não se passa com Kant, o qual, resistente a essa “poética de cartilha” poderia argumentar que o que difere uma tragédia escrita por qualquer um de nós da tragédia de Sófocles é o espírito, i.e., a capacidade de vivificar as faculdades de conhecimento, de pôlas em um jogo-livre. A isso se soma o que vem sendo dito até então, a saber: que não apenas o sentimento de prazer não deriva exclusivamente do mito bem construído, mas que um mito bem elaborado não dá qualquer certeza da vivificação das faculdades de conhecimento num juízo reflexionante e, por conseguinte, não necessariamente suscita um sentimento de prazer genuinamente estético no espectador. O que se passa na – mera – construção do mito – e isso vale tanto para Sófocles quanto para qualquer um de nós – é a estruturação de uma completude, i.e., um recorte uno que “não se encontra nenhum exemplo na natureza” (KANT, CFJ, B 194); contudo, “uma história pode ser precisa e ordenada, mas sem espírito” (IDEM,

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B 192). O fato de uma tragédia ser formalmente perfeita não oferece garantia alguma de que a mesma desperte um sentimento de prazer genuinamente estético no público. O que confere, segundo Kant, esta capacidade à obra seria o espírito, plasmado pela faculdade do artista de apresentação de ideias estéticas e uma obra assim constituída “dá muito a pensar, sem que contudo qualquer pensamento determinado, i.e., conceito possa ser-lhe adequado” (IDEM, B 193). Com isso fica visto porque Kant rechaça regras de poéticas de produção: porque não há nada determinado que possa ser utilizado na elaboração uma obra de arte a fim de, necessariamente, provocar o jogolivre das faculdades de conhecimento de quem ajuíza tal obra.) *** Por fim, no que toca à esfera da moralidade, Kant até poderia reconhecer certo valor no “exemplo” dado pela tragédia de Sófocles como sustasis ton pragmáton (GRASSI, op. cit., p. 135) – como recomendação da práxis, da ação completa com um fim em si mesma que envolve uma sabedoria prática (ARISTÓTELES, ET. NIC., 1140 a 2 – b 25) – mas isso permanece longe do que tem valor genuíno para a moralidade, pois “[embora] não se poderia [...] prestar pior serviço à moralidade do que querer extraí-la de exemplos” (KANT, FMC, B 29), e embora estes “tornam intuitivo aquilo que a regra prática exprime de maneira mais geral, [...] nunca pode justificar que se ponha de lado o seu verdadeiro original, que reside na razão, e que nos guiemos por exemplos” (IDEM, B 30), uma vez que o princípio supremo da moralidade assenta fora do mundo físico (da natureza sensível), i.e., no inteligível. Não obstante, “a espontaneidade no jogo das faculdades de conhecimento, cujo acordo contém o fundamento [do] prazer [estético] [...] promove ao mesmo tempo a receptividade do ânimo ao sentimento moral” (KANT, CFJ, B LVII). Kant retoma esta ideia mencionada já na introdução da terceira Crítica no § 59 da mesma, intitulado “Da beleza como

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símbolo da moralidade”. Aqui Kant afirma que aquele que realiza um juízo-de-gosto estético (reflexionante), que no ajuizamento de um dado objeto põe suas faculdades de conhecimento em um jogo-livre, experimenta um estado de auto-afecção que se aproxima (mas não se identifica) a “um estado-de-ânimo provocado por juízos morais” (IDEM, B 260). Com isso Kant sugere que o ajuizamento de um objeto dito “belo” consiste em um tipo de reflexão análogo – daí a figura do símbolo, aqui distinta do uso corrente simplesmente contrastado do modo de representação intuitivo – à reflexão moral, concordando o juízo-de-gosto estético e a reflexão moral “simplesmente segundo a regra deste procedimento [...] simplesmente segundo a forma da reflexão” (IDEM, B 255). Se “o estado mental, que produz a mera contemplação do objeto belo [...], instancia um estado de coisas genérico, que caracteriza todos os sujeitos do conhecimento empírico” (KULENKAMPFF, 1992, p. 71), o que justificaria uma pretensa comunicabilidade do sentimento de prazer resultante de uma experiência genuinamente estética tem caráter subjetivo, i.e., refere-se a algo que acontece no sujeito – e isso segundo “o pressuposto de que todos os homens têm por assim dizer a mesma constituição” (IDEM, p. 79). Com efeito, ainda que “na medida do possível eliminase aquilo que no estado da representação é matéria, i.e., sensação, e presta-se atenção pura e simplesmente às peculiaridades formais de sua representação ou de seu estado de representação” (KANT, CFJ, B 157), aquilo que alguém tenta comunicar com seu juízo “Isto é belo” (sensus communis aestheticus) – e não simplesmente “Isso é belo para mim” – tem caráter meramente subjetivo. E nesse sentido, por exemplo, difere da Lei Moral, calcada num Factum da Razão que, para Kant, possui validade objetiva. Já em sua “Doutrina de Método da Faculdade de Juízo Teleológica” Kant afirma que

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as belas artes [e não só estas, mas também o belo na natureza] [...] que por um prazer universalmente comunicável [...] ainda que não façam o homem moralmente melhor , tornam-no porém civilizado , sobrepõem-se em muito à tirania da dependência dos sentidos e preparam-no assim para um domínio no qual só a razão deve mandar (IDEM , B 395).

Com isso Kant não afirma que o belo é moral. Antes, pode-se com boas razões pensar que o estado de reflexão que nos encontramos durante um juízo reflexionante– e do qual provém o sentimento de prazer – nos deixa em condições de assumir uma postura moral – sobretudo porque aquele que julga algo como “belo” o faz não com base em suas condições particulares, mas dentro de uma pretensa perspectiva universalmente válida (a qual, distinta do que ocorre em juízos morais, não baseia-se em conceitos determinados, e que, ainda sem a mesma dignidade teórica de uma ideia da Razão ou de uma forma pura do Entendimento, não é o juízo-de-gosto estético algo que deva ser posto de lado dentro do sistema crítico da Razão). *** Do exposto acima penso ficar evidentes algumas diferenças entre a Poética aristotélica e a teoria kantiana dos juízos-de-gosto estéticos puros: (i) que a primeira versa sobre uma poética de produção de “obras belas”, ao passo que a segunda volta-se para o ajuizamento daquilo que chamamos “belo” e (ii) que aquela apresenta-se como um manual definido e valorativo-hierárquico de como o poeta deve construir sua obra; enquanto esta não se baseia em quaisquer regras que justifiquem ou fundamentem o juízo-de-gosto estético – uma vez que estamos no âmbito da reflexão e não mais da determinação. 204

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Curioso é, todavia, que Kant, na situação hipotética elaborada no início deste trabalho, poderia ter acesso àquilo que Aristóteles propõe em sua Poética: experienciaria algo de estético e algo relativo à moral – muito embora tanto este “estético” quanto este “moral” não condissessem àquilo que para Kant seja genuinamente estético e genuinamente moral. Este poderia seguramente afirmar: “Sim, ao assistir Édipo-Rei, tive uma experiência estética e vivenciei algo que, por assim dizer, levou-me a tocar a esfera da moralidade”, conquanto não estaria necessariamente fazendo referência àquilo proposto por Aristóteles. E finalmente cabe indagar se Kant admitiria uma experiência do tipo catártica tal como apresentada por Aristóteles de forma quase aforística no § 27 de sua Poética – que pela purgação dos sentimentos de terror e piedade o homem reconhece suas possibilidades. Disponho-me a acreditar que o filósofo de Königsberg não apenas assumiria o valor da experiência catártica, como na sua terceira Crítica assinala algo que se aproxima da ideia aristotélica quando, no segundo livro da Crítica da Faculdade de Juízo Estética, aponta que o sujeito diante do dito “sublime” aproxima-se do suprassensível, i.e. do universo moral, pois “na medida em que podemos ser conscientes de ser superiores à natureza em nós e através disso também à natureza fora de nós” (IDEM, B 109) reconhecemo-nos como habitantes de dois mundos: o da natureza sensível e o inteligível. Discorrer mais detalhadamente, contudo, sobre o efeito catártico do sublime em Kant é tarefa que reservo a outro trabalho. Referências bibliográficas ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco; Poética (seleção de textos José Américo Motta Pessanha). São Paulo: Nova Cultural, 1987.

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_______. Poética (tradução, prefácio, introdução, comentários e apêndices de Eudoro de Sousa). Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1986. AUERBACH, E. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2013. BARNES, J. (ed.). The Cambridge companion to Aristotle. Cambridge: Cambridge University Press, 1995. COSTA, L. de M. A Poética de Aristóteles: mimese e verossimilhança. São Paulo: Ática, 1992. GRASSI, E. Arte como antiarte: a teoria do belo no mundo antigo (trad. Antonieta Scarabelo). São Paulo: Duas Cidades, 1975. HÖFFE, O. Aristóteles (trad. Roberto Hofmeister Pich). Porto Alegre: Artmed, 2008. HÖFFE, O. Kant (trad. Christian Viktor Hamm e Valerio Rohden). São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 216. KULENKAMPFF, J. Do gosto como uma espécie de sensus communis, ou sobre as condições da comunicação estética (trad. Peter Naumann). In.: ROHDEN, V. (Org.). 200 anos da Crítica da Faculdade do Juízo de Kant. Porto Alegre: UFRGS, 1992. KANT, I. Crítica da Faculdade do Juízo (trad. Valerio Rohden e António Marques). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. ________. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (trad. Paulo Quintela). Lisboa: Edições 70, 2011. SÓFOCLES. Édipo-Rei (trad. Paulo Neves). Porto Alegre: L&PM, 2013.

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FATO E ESSÊNCIA NO MÉTODO FENOMENOLÓGICO DE HUSSERL Rudimar Barea1

1. A Fenomenologia de Husserl Edmund Husserl2 foi um dos filósofos mais influentes do século XX, marcando dentro da tradição filosófica passos importantes para a continuidade dos debates contemporâneos. A sua principal contribuição vem de seu método de pesquisa; a fenomenologia3, tema que abre campo de investigação para vários temas filosóficos, desde elementos antropológicos e ontológicos, bem como para a constituição de valores e da ética, além de influenciar outros movimentos filosóficos e 1

Bacharel em Filosofia pelo Instituto Superior de Filosofia Berthier (IFIBE); Mestrando em Filosofia na UFSM: bolsista CAPES/FAPERGS trabalhando ‘A questão da empatia de Edith Stein' sob orientação do Professor Silvestre Grzibowski. ([email protected]) 2 Husserl nasceu em Prossnitz (na Morávia) em 1859. Estudou matemática em Berlim, onde seguiu os cursos de álgebra de Weierstrass. Laureou-se em1883 com uma tese sobre o cálculo das variações. Em Viena, seguiu as aulas de Brentano [...]. Morreu em 1938. Ao morrer, Husserl deixou grande quantidade de inéditos (cerca de quarenta e cinco mil páginas estenografadas), que, salvas com grande esforço durante a guerra pelo padre belga Hermann van Breda, constituem agora o “Arquivo Husserl” de Louvain (REALE, 2008, p. 180). 3 A palavra fenomenologia é derivada de duas palavras gregas: fenômeno (aquilo que se mostra/aparece, se manifesta) logia (pensamento, capacidade de refletir); no entanto poderíamos dizer que fenomenologia é uma reflexão sobre um fenômeno que se mostra, segundo Ales Bello o problema está em saber; “o que é que se mostra e como se mostra” (2006, p. 18). 207

Fato e essência

culturais4. Husserl fora considerado por muitos como um revolucionário na pesquisa filosófica, como afirma Stein, que, foi sua discípula, aluna e assistente: Querer enquadrar Husserl nos esquemas das escolas tradicionais é um esforço em vão. A filosofia do nosso tempo se divide em dois grandes grupos: por um lado encontramos a filosofia católica que continuava a tradição escolástica, sobretudo, de São tomas de Aquino e a filosofia que insistentemente se autodenomina “moderna” que nasce com o renascimento e alcança seu ponto culminante com Kant (STEIN, 2003, p. 40).

Para Stein, Husserl cumpre esse papel de rompimento com as tradições decorrentes até a modernidade; “Quando começou a filosofar de forma independente não se deixou conduzir por nenhum escrito precedente, se não por as questões mesmas” (2003, p. 41). Sokolowski, pesquisador contemporâneo da fenomenologia confirma a argumentação, e, reafirma a sua influência nas pesquisas filosóficas pósmodernas: “Ele não pode ser considerado o continuador de uma tradição que tomou forma antes dele; mesmo Martin Heidegger, como competente filósofo que era, pode ser compreendido somente na tradição aberta por Husserl” (2012, p. 223). Para adentrar na concepção do método fenomenológico proposto por Husserl, é exigida do pesquisador dedicação plena e espírito filosófico, pois, a tarefa da fenomenologia pretende 4

A fenomenologia influenciou muitos outros movimentos filosóficos e culturais, tais como: hermenêutica, estruturalismo, formalismo literário e desconstrutivismo. Durante todo o século XX foi o maior componente daquilo que se denominou “filosofia continental”, em oposição à tradição “analítica” que tipificou a filosofia na Inglaterra e nos Estados Unidos (SOKOLOWSKI, 2012, p. 11). 208

Rudimar Barea

colocar em base firme todos os procedimentos científicos e experiências pré-científicas, como uma nova forma de orientação.5Com efeito, avançar progressivamente até uma realidade mesma, seria um processo necessário para definir com precisão os termos e as coisas em si, o que caracteriza a fenomenologia como uma ciência das essências, como Husserl define em sua obra capital Ideias I: A fenomenologia pura ou transcendental não será fundada como ciência de fatos, mas como ciência das essências (como ciência ‘eidética’); como uma ciência que pretende estabelecer exclusivamente ‘conhecimento de essências’ e de modo algum ‘fatos’. [...] A passagem à essência pura proporciona, de um lado, conhecimento eidético do real, mas de outro, no que respeita a esfera restante, ela proporciona conhecimento eidético do irreal. (2000, p. 28).

Husserl atribui à fenomenologia a tarefa de ser uma ciência ‘a priori’, ‘eidética’, que possibilita o estudo em torno das essências, como também da ciência das essências. Por um lado quer afirmar a autonomia daquela ciência física matemática, e de outro lado, reivindicar a prioridade da pesquisa fenomenológica, que tem uma tarefa essencial: Determinar os gêneros supremos de concreções no círculo de nossas intuições individuais e, desta maneira, levar a cabo uma distribuição de todos os seres individuais intuídos segundo regiões do ser, cada uma das quais designando por princípio, já que por fundamentos eidéticos 5

A tarefa da fenomenologia consiste em colocar sobre uma base firme todos os procedimentos científicos (tal como se exercitam nas ciências positivas) e as experiências pré-científicas do qual estas se fundam; em suma toda a atividade do espírito que reivindica para si o caráter racional [...]a filosofia, por sua vez, tem que converter em objeto de sua investigação tudo aquilo que os outros âmbitos supõem como evidentes (STEIN, 2003, p. 61). 209

Fato e essência

radicais, uma ciência (ou grupo cientifico) eidética e empírica diferente. (2006. 57).

Para chegar a esta nova ciência que busca ser diferente da lógica pura, Husserl destaca que foi preciso “traçar um esquema como exemplo de constituição fundamental, dela proveniente, de todos os conhecimentos e objetividades de conhecimento possíveis” (2006, p. 56). No entanto, para obter sucesso seu método deveria se diferenciar dos demais, e ai surge o aspecto da redução fenomenológica, como um caminho6 para se chegar à compreensão do sentido das coisas. O caminho encontrado seria o da redução fenomenológica, pelo qual, o ser humano na atribuição de suas capacidades busca de compreender o sentido das coisas, mas para isso deve suspender - “colocar entre parênteses” - o que é factual, delimitando a pesquisa na direção das coisas mesmas, ou seja, na sua essência.

2. A redução fenomenológica: Do fato a essência. Em poucas palavras é impossível destacar todos os aspectos e peculiaridades do método fenomenológico7, bem como a importância da redução eidética e transcendental na proposta husserliana. No entanto, nos centraremos em fazer uma análise levando em conta os aspectos que estão correlacionados a fatos e essência, temas estes que estão presente no objetivo da fenomenologia segundo Husserl, assim como segue:

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Do Grego: Méthodo: ‘odos’ que designa estrada e ‘meta’ que significa por meio de, através. 7 Os leitores que ainda não conhecem o método fenomenológico, indica-se a leitura de Ideias I de Husserl. 210

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A fenomenologia procede elucidando visualmente, determinando e distinguindo o sentido. Compara, distingue, enlaça, põe em relação, separa em partes ou segrega momentos. Mas tudo do puro ver, do olhar que capta a essência do fenômeno. Não teoriza nem matematiza; não leva a cabo explicações algumas no sentido da teoria dedutiva. Ao elucidar os conceitos e proposições fundamentais que, como princípios, dominam a possibilidade da ciência objectivante [...], terminam onde começa a ciência objectivante. É, pois, ciência, num sentido totalmente diferente, com tarefas inteiramente diversas e com um método completamente distinto. A sua peculiaridade exclusiva é o procedimento intuitivo e ideador dentro da mais estrita redução fenomenológica, é o método especificamente filosófico, na medida em que tal método pertence essencialmente ao sentido da critica do conhecimento e, por conseguinte, ao de toda a critica da razão em geral (2008, p. 87).

Nesta passagem que se refere às lições que Husserl proferia ainda em 1906-1907, podemos perceber que sua proposta, desde já, tende para a diferença das ciências objetivas, destacando a importância de um método que possa clarificar e captar a essência dos fenômenos, o que seria possível, no entanto, por um procedimento intuitivo que chegue ao fenômeno puro, assim como propõe posteriormente em Ideias I: Colocamos fora de ação a tese geral inerente à essência da orientação natural, colocamos entre parênteses tudo o que é por ela abrangido no aspecto ôntico: isto é, todo este mundo natural que está constantemente “para nós aí”, “a nosso dispor”, e que continuará sempre aí como “efetividade” para a consciência, mesmo 211

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quando nos aprouver colocá-la entre parênteses. Se assim procedo, como é de minha plena liberdade, então não nego este “mundo”, como se eu fosse sofista, não duvido de sua existência, como se fosse cético, mas efetuo a epoché “fenomenológica”, que me impede totalmente de fazer qualquer juízo sobre existência espaço-temporal (HUSSERL, 2006, p. 81).

A epoché8 fenomenológica permite o sujeito que está em relação de conhecimento frente ao fenômeno, chegar até a essência de sua manifestação. Na orientação fenomenológica o sujeito distingue a facticidade e a essência de cada fenômeno. No segundo parágrafo de Ideias I, Husserl escreve em poucas palavras a “inseparabilidade de fato da essência”, do qual destacamos sua posição: “Dito de maneira bem geral, o ser individual é, qualquer que seja sua espécie, ‘contingente’. Ele é assim, mas poderia por sua essência ser diferente” (2006, p. 34). Seguindo essa perspectiva, os fatos – que são estudados nas ciências empíricas, psicológicas – compõe a facticidade da essência, conforme explica Husserl: Se dissemos que “por sua essência própria” todo fato poderia ser diferente, com isso já exprimíamos que faz parte do sentido de todo contingente ter justamente uma essência e, por conseguinte, um eidos a ser apreendido em sua pureza, e ele se encontra sob verdade de essência de diferentes níveis de generalidade. Um objeto individual não é meramente individual, um este aí!, que não se repete; sendo “em si mesmo” de tal e tal índole, ele possui 8

Epoché. É um termo grego que quer dizer “suspensão do consentimento”: suspensão do consentimento ou do juízo típica atitude do ceticismo antigo e, particularmente, de Pirro. Dentro do pensamento contemporâneo, a epoché é conceito fundamental da fenomenologia de Husserl (REALE, 2005, p. 183). 212

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sua especificidade, ele é composto de predicáveis essenciais que têm de lhe ser atribuídos (“enquanto ele é como é em si mesmo”), a fim de que outras determinações secundárias, relativas, lhe possam ser atribuídas. Assim, por exemplo, todo som tem, em si e por si, uma essência e, acima de tudo, a essência geral “som em geral”, ou antes, “acústico em geral” – entendido puramente como o momento a ser extraído por intuição do som individual (isoladamente ou por comparação com outros como “o que há de comum”) (2006, p. 35).

A reflexão que Husserl propõe como metodologia de busca das essências não exclui a existência dos fatos, pelo contrário, eles existem, mas são passíveis de análise mais aprofundada. Com estas indicações em forma de apontamento, passa-se agora para uma análise básica dos passos que indicam a redução fenomenológica, que trata intrinsecamente da distinção epistemológica que o ser humano tem a capacidade de fazer entre o que é fato e essência.

2.1 A redução eidética Na redução eidética o ser humano se orienta na direção de compreender o sentido das coisas, no entanto, nem todas as coisas são compreendidas imediatamente. Segundo Husserl para compreender o sentido das coisas, usamos de intuição individual, mas não podemos ficar restrito a esta intuição. É certo, por conseguinte, que nem uma intuição de essência é possível sem a livre possibilidade de voltar o olhar para um algo individual “correspondente” e de formar uma consciência exemplar - assim como também intuição individual alguma é possível sem a livre

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possibilidade de efetuar uma ideação e de nela direcionar o olhar para as essências correspondentes [...] Às diferenças eidéticas entre as intuições correspondem relações de essência entre “existência” [...] e “essência”, entre fato e eidos (2006, p. 38 -39). [grifos do autor]

A essência das coisas, como se percebe não se dá apenas de maneira individual e também não está apenas em face de uma percepção externa do fenômeno. Na medida em que se avança na argumentação fenomenológica percebe-se que a busca do sentido das coisas já pressupõe a sua existência. Husserl não nega os fatos, ele busca entender qual é o sentido desses fatos existirem, não de maneira individual, mas em essência. Portanto, para ele quem busca a verdade “precisa ter a apreensão intuitiva da essência como seu alicerce de fundação” (2006, p. 39). Citamos outro exemplo: Façamos uma experiência semelhante às que Husserl propõe: alguém bate a mão sobre a mesa, identificamos logo que é um som. Todos nós identificamos esse som. Como o fazemos? Imediatamente, intuitivamente. Escutamos qualquer coisa e dizemos “é um som”. Sempre o fazemos assim, se não pudermos fazer é por algum problema, mas não havendo problema, somos capazes de intuir, isto é, colocar em perspectiva a essência, o sentido da coisa (ALES BELLO, 2006, p. 22-23).

Como explica Ângela Ales Bello, Husserl não se preocupa com o fato de que existe o som, isso nós sabemos. Se ele é alto ou baixo, se grada ou não, tudo isso não importa para a reflexão da essência, ele (o som, ou, o “fato”) existe e tem diferenças, mas, somente chegamos à essência se buscamos o sentido da coisa em si, ou seja, o que é o som? Investiga-se as características essências da estrutura do som que lhe dão 214

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sentido, por exemplo, o som de um instrumento musical, do barulho dos automóveis ou uma conversa entre vizinhos, etc., caracterizam “sons”, que são diferentes em suas particularidades, mas tem uma estrutura essencial que permitenos dizer que é um som. No entanto a tarefa deste primeiro passo que é a redução eidética é a busca de captar o sentido da coisa em sua essência, pra isso é preciso tomar distância do fato em si para buscar o seu sentido, podemos até nos referir aos dados empíricos, factuais, imaginários, mas isso não implica em uma realidade individual existente, sendo que para o conhecimento concreto será preciso uma visão eidética.

2.2 A Redução Transcendental O aspecto da redução transcendental é um dos argumentos mais difíceis em Husserl, mas é preciso entender pelo menos em linhas gerais qual é a sua contribuição dentro do método fenomenológico. Sabemos pela redução eidética que o ser humano busca sentido, mas agora a tarefa é outra; para Husserl precisaríamos responder: porque o ser humano busca sentido? E também, quem é este ser humano que busca sentido? Vamos tentar explicar com um exemplo o que significa o aspecto transcendental. Entramos em uma sala de aula, na qual temos vários objetos, mesa, cadeira, quadro, todos esses objetos são do conhecimento dos seres humanos que usufruem deles. Mas, se um dia ao entrar na sala de aula algum destes objetos não estiverem dentro da sala, será possível uma reflexão sobre estes objetos faltantes? Sim, pois, sabemos que eles existem, não estão ali fisicamente, mas, temos a ideia de como eles são e pra que servem. Tomando outro exemplo, se

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um objeto está com defeito, posso intuir essencialmente outro melhor, que pode nem existir ainda, mas tenho a ideia de sua existência. Por conseguinte, podemos dizer que “existem” coisas passíveis de serem refletidas que estão fora do nosso alcance físico, aquilo que temos como ideia, que concebemos como consciência de, que está em esfera de reflexão transcendental. Com efeito, pela redução transcendental podemos sair da esfera dos atos de percepção, de compreensão do sentido, para a esfera do ser humano; “a percepção é uma porta, uma forma de ingresso, uma passagem para entrar no sujeito, ou seja, para compreender como é que o ser humano é feito” (BELLO, 2006, p. 30). Como os atos de consciência do ser humano buscam sentido das coisas e, no entanto, qual é o sentido desses atos perceptivos, que são caracterizados como a imaginação, a recordação, a expectativa, a fantasia, a empatia.

2.3 Da redução à intersubjetividade O que vimos até agora é um esforço de mostrar a importância da redução fenomenológica. No entanto, a busca solipsista de fundamentação pela epoché apenas abre caminho para uma descrição de conhecimento, que prescindirá de vivências intersubjetivas transcendentais para uma descrição fenomenológica mais precisa do conhecimento das essências. Com efeito, aa confirmação do ego é necessária para o fundamento basilar das verdades, mas que para a confirmação das verdades essenciais é necessária a passagem do solipsismo à intersubjetividade. Portanto, não o ego cogito, mas, sim, uma ciência do ego, uma Egologia pura, devera ser o fundamento mais basilar da Filosofia no sentido cartesiano da Ciência Universal, e deverá

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fornecer pelo menos o terreno para a sua absoluta fundamentação. De fato, esta ciência existe já – é a Fenomenologia Transcendental mais basilar e, portanto, não a Fenomenologia plena, à qual compete obviamente, fazer o caminho ulterior do solipsismo transcendental para a intersubjetividade transcendental (HUSSERL, 2013, p. 10).

Husserl pretende fazer a diferenciação de seu método, particularmente dialogando com Descartes, pois, segundo Husserl a máxima que chega a redução proposta por Descartes está na auto-experiência do próprio ego, que é experiência apenas dele e nada altera no mundo. Husserl, aponta que a experiência-de é experiência-de-alguma-coisa: “A propriedade fundamental dos modos de consciência em que eu, enquanto eu, vivo, é a chamada intencionalidade, é, em cada caso, o ter consciência de qualquer coisa” (2013, p. 11). Seguimos um exemplo de Husserl para deixar claro esse papel do sujeito perante o mundo enquanto ser de auto-experiência-mundano: A percepção da casa, mesmo quando inibo a atividade da crença perceptiva, é, tomada tal como a vivo, precisamente percepção deste e justamente desta casa, aparecendo desta e daquela maneira, mostrando-se com precisamente estas determinações, de lado, de perto, ou de longe (2013, p. 11).

Esse perceber a casa, que é um objeto empírico factual, está na intencionalidade da consciência que intui este objeto singular, como reitera Husserl: “Cada objeto designa, porém, uma estrutura regular para a subjetividade transcendental” (2013, p.20), ou seja, enquanto essência da consciência. Essa realidade em si, se pode dizer que é em si porque está em relação conosco. Somos nós que dizemos que ela é o que é, sendo esse um dos fundamentos da pesquisa fenomenológica

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proposta por Husserl. Mas, o conhecimento perceptivo, só é possível pelos seres humanos dentro de suas vivências, que confirmam o conhecimento das coisas intersubjetivamente. Pensemos então que repentinamente em um ponto temporal, no interior do tempo coconstituído, com o mundo solipsista se apresenta em meu domínio de experiência, corpos, coisas que se entendem e são entendidas como corpos de homens. Agora, pela primeira vez, existem para mim, homens com os quais posso entender-me. E me entendo com eles sobre as coisas, que em um novo tempo estão aí em comum para nós. Então se mostrará algo bem notável: que extensos complexos de enunciados cósicos, que eu tenho feito sobre a base das experiências anteriores, em trechos temporais anteriores, experiências todas que concordam esmeradamente, não são confirmadas por meus companheiros de agora; que estas experiências não meramente, digamos lhes faltem a eles [...] se não que se encontra em constante conflito com o que eles experimentaram (2005, p. 112) [grifos do autor].

No campo do entendimento entre os seres humanos, o pensamento solipsista fica limitado ao conhecimento de fatos individuais, quando no entanto por meio do aspecto intersubjetivo os seres humanos podem confirmar o conhecimento dos fatos e das essências. Avançando na discussão poderíamos dizer que sem o aspecto da intersubjetividade seria difícil determinar a essência dos fatos. Com isso, entramos no campo das vivências, do qual nos utilizamos da epoché e podemos fazer uma reflexão sobre essa mirada, que está diante de nós, do qual estou voltado diante do objeto aqui e agora, imerso neste fundo de experiências muito

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Rudimar Barea

mais vasto, e que nos ajuda a distinguir o fato e essência daquilo que se manifesta como consciência-de.

3. O mundo da vida entre fato e essência Afirmamos neste trabalho que fato e essência são inseparáveis e estão presentes em toda a reflexão husserliana. Quando se abre a reflexão para a esfera do mundo da vida, queremos pontuar que os seres humanos em suas vivências seguem distinguindo entre fatos e essências para o fortalecimento de nossos conhecimentos. Se ficássemos contentes com o que já temos viveríamos no mundo dos fatos já dados e confirmados pelos nossos antepassados, pelo contrário, como seres humanos que buscam o conhecimento e que vivenciam outras experiências, ainda muito se tem para tirar do velamento o que é essencial e não está dado pelas verdades cientificas factuais. A verdade científica, objetiva, é exclusivamente a verificação daquilo que o mundo, de fato, é, tanto o mundo físico como o espiritual. Mas pode o mundo, e a existência humana nele, ter na verdade um sentido, se as ciências só admitirem como verdadeiro aquilo que é deste modo objetivamente verificável, se a história não tiver mais nada a ensinar senão que todas as figuras do mundo espiritual, todos os vínculos da vida que a cada passo mantêm o homem, os ideais, as normas, se formam e voltam a se dissolver como ondas fugazes, que sempre assim foi e será, que a razão sempre terá de se tornar o sem-sentido, a benfeitoria, uma praga? Será que podemos nos satisfazer com isso, será que podemos viver neste mundo, cujo acontecimento histórico não é outra coisa se não um encadeamento interminável de ímpetos

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Fato e essência

ilusórios e amargas decepções? (HUSSERL, 2012, p. 3-4).

Toda filosofia só tem sentido a partir da vida. Sem a vida não é possível à filosofia. Estamos imersos em um mundo que nos envolve (Umwelt) do qual eu faço parte, sou coexistente, não somente com coisas, mas, com outros sujeitos humanos, com valores, cultura, que não pode ser sistematizado por uma ciência objetiva. O acesso à coisa em si (essência dos fatos) é possível porque cada ego é possuidor de vivências intersubjetivas e possibilitam o conhecimento em troca reciproca. O conhecimento é possível quando o ser humano se dá conta de suas vivências, que pertencem ao mundo, ao mesmo tempo em que está dialogando com o mundo de forma intersubjetiva. [...] experimento em mim mesmo, no âmbito da minha vida consciente transcendental, tudo e cada um, e experimento o mundo não simplesmente o meu mundo privado, mas como um mundo intersubjetivo, dado a cada um e acessível nos seus objetos, e neles experimento os outros enquanto outros e, ao mesmo tempo, enquanto uns para os outros, para cada um (HUSSERL, 1994, p. 46.).

A intersubjetividade que possibilita a confirmação dos conhecimentos obtidos individualmente, se dá somente quando existir uma abertura ao outro, ou seja, do reconhecimento de nossos semelhantes que tem a mesma estrutura, possuem a mesma essência e fazem parte do mesmo mundo, que habitamos em conjunto.

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Referências bibliográficas BELLO, AngelaAles. Introdução à Fenomenologia. Trad. Ir. Jacinta Turolo Garcia e Miguel Mahfoud. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2006. (Coleção Filosofia e Política) HUSERL, Edmund. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental: uma introdução à filosofia fenomenológica. Editado por Walter Biemel; tradução de Diogo Falcão Ferrer; diretor cientifico Pedro M. S. Alves; revisor técnico-ortográfico Marco Antonio Casanova. 1. Ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. ________. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica: Introdução geral a fenomenologia pura. Trad. Márcio Suzuki. Aparecida SP. Ideias & Letras, 2006. _______. Ideas Relativas a una fenomenología pura y una filosofía fenomenológica: Libro Segundo: Investigaciones fenomenológicas sobre a constituição. Tradução AntonioZirión Q. México; UNAN, Instituto de Investigaciones Filosóficas, 2005. _______. Meditações Cartesianas e Conferencias de Paris. De acordo com o texto Husserliana I; editado por StephanStrasser; tradução de Pedro M. S. Alves. 1. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. REALE, Giovani – Dario Antiseri. História da filosofia, 6: de Nietzsche à Escola de Frankfurt: São Paulo; PAULUS, 2008. STEIN, Edith. Il problema dell’Empatia.Trad. de Elio Costatini e de Erika Schulze Cosgtantini. Edizioni Studium – Roma, 2003.

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EMOÇÕES E INTENCIONALIDADE Susie Kovalczyk dos Santos1

Na literatura filosófica muito se recorre à intencionalidade das emoções para se rejeitar teorias sentimentalistas acerca da natureza das emoções. Considerando esse tipo de crítica, ou se adota uma teoria cognitivista, como Solomon (2008), ou uma teoria híbrida, como Goldie (2000), ou ainda se aponta uma alternativa para explicar a intencionalidade das emoções como uma característica não intrínseca das mesmas, sustentando, como Prinz (2004; 2005), uma teoria sentimentalista. Abordarei teses desses três autores acerca da intencionalidade das emoções, avaliando suas implicações para a consideração da natureza das mesmas.

1. Intencionalidade dos estados mentais A noção de intencionalidade é compreendida, explica Jacob (2014), como a capacidade de estados mentais de serem sobre, de representar, de serem direcionados a coisas, propriedades e estados de coisas. O termo tem origem na escolástica medieval, derivado do latim intentio, derivado, por sua vez, do verbo intendere, que significa estar direcionado a um objetivo ou coisa. Desse modo, se eu tenho uma crença ou um desejo, eu creio em algo ou desejo algo, e aquilo em que creio ou que desejo é o objeto da intencionalidade do meu 1

Universidade Federal de Santa Maria. [email protected] 223

Emoções e intencionalidade

estado mental de crença ou desejo. Se todos os estados mentais possuem intencionalidade não é ponto pacífico. Para Brentano (2009), por exemplo, o que caracteriza os fenômenos mentais enquanto tais é o direcionamento a um objeto, e todos e apenas os fenômenos mentais são dotados de intencionalidade. Searle (2002) discorda: Se eu disser que eu tenho uma crença ou um desejo, fará sempre sentido perguntar: “Em que, exatamente, você acredita?”, ou: “O que você deseja?”, e não poderei responder, “Ah, eu só tenho uma crença e um desejo sem acreditar em nada nem desejar coisa alguma”. Minhas crenças e meus desejos devem ser sempre referentes a alguma coisa. Mas meu nervosismo e minha ansiedade não-direcionada não precisam ser referentes a alguma coisa, nesse sentido. Tais estados são caracteristicamente acompanhados por crenças e desejos, mas os estados não-direcionados não são idênticos às crenças ou aos desejos. Segundo minha explicação, se um estado E é Intencional, deve haver uma resposta para perguntas como: A que se refere E? Em que consiste E? O que é um E tal que? (SEARLE, 2002, p. 2, grifos do autor)

Por “deve haver uma resposta” Searle não está exigindo que a resposta possa ser fornecida. Primeiramente porque ele concede que consciência e intencionalidade não coincidem, e posso não estar ciente de qual o objeto de meu estado mental em um dado momento. Em segundo lugar, porque o autor desvincula a linguagem e intencionalidade: “parece-me óbvio”, afirma Searle (2002, p. 7), “que os recém-nascidos e muitos animais que, em um sentido ordinário, não possuem uma linguagem nem realizam atos de fala apresentam, mesmo assim, estados Intencionais”. Novamente se afastando de Brentano, Searle (2002) defende que também a linguagem apresenta intencionalidade, mas de um modo derivado, diferentemente dos estados mentais, cuja intencionalidade seria 224

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intrínseca, ponto que aqui não será explorado. Searle (2002) assinala ainda que alguns estados mentais têm ou não intencionalidade conforme as diferentes circunstâncias: Por exemplo, assim como há formas de exaltação, de depressão e de ansiedade em que se está simplesmente exaltado, deprimido ou ansioso sem se estar exaltado, de deprimido ou ansioso a respeito de coisa alguma, há também modalidades desses estados em que se está exaltado porque ocorreu isso e aquilo, ou deprimido ou ansioso com a perspectiva disso ou daquilo. A ansiedade, a depressão e a exaltação não-direcionadas não são Intencionais, enquanto que os casos direcionais o são. (SEARLE, 2002, p. 2)

Estados mentais são ditos representacionais graças à intencionalidade. É o que Maslin (2009, p. 289-90) clarifica ao dizer que certos “estados intencionais, tais como crenças, pretendem representar como o mundo é realmente. Se o mundo é como a crença o representa como sendo, a crença é verdadeira; de outra forma ela é falsa”. Searle (2002, p. 15) também enfatiza o caráter representacional da intencionalidade por quando afirma que “todo estado Intencional compõe-se de um conteúdo representativo em um certo modo psicológico”. Tal conteúdo é proposicional, seja ele linguisticamente realizado ou não. Nos casos em que esse conteúdo é uma proposição completa e há uma direção de ajuste, o conteúdo Intencional determina as condições de satisfação. Condições de satisfação são condições que, tal como determinadas pelo conteúdo Intencional, devem ser alcançadas para que o estado seja satisfeito. (...) se tenho uma crença de que está chovendo, o conteúdo de minha crença é: que está

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Emoções e intencionalidade

chovendo. E as condições de satisfação são: que esteja chovendo (...). Uma vez que toda representação – seja esta feita pela mente, pela linguagem, por imagens ou por qualquer outra coisa – está sempre submetida a determinados aspectos e não a outros, as condições de satisfação são representadas sob determinados aspectos. (SEARLE, 2002, p. 17, grifos do autor)

2. Intencionalidade e natureza das emoções Os modelos contemporâneos para a explicação da natureza das emoções constituem teorias sentimentalistas, cognitivistas ou híbridas. Teorias sentimentalistas, como a de Prinz (2004), caracterizam emoções como sentimentos, entendidos como estados mentais desprovidos de conteúdo cognitivo ou representacional. Teorias cognitivistas, como em Solomon (1977), identificam emoções a estados representacionais, tais como juízos e crenças. Considerando as objeções a ambos os tipos de teoria, alguns teóricos propuseram vias alternativas à adoção de um desses pontos de vista extremos, optando pela proposta, como Goldie (2000), de uma teoria híbrida, defendendo que emoções são constituídas necessariamente por elementos cognitivos e afetivos. A atribuição de intencionalidade às emoções é importante para essa distinção, uma vez que é empregada a fim de diferenciar emoções de sentimentos. Uma objeção tradicional às teorias sentimentalistas acerca da natureza das emoções, apresentada por De Sousa (2013), é que emoções, diferentemente de sentimentos corporais, são estados intencionais. Assim, emoções teriam uma propriedade da qual meros sentimentos carecem, não podendo, portanto, ser assimiladas a estes. Defensor de um modelo cognitivista acerca da natureza das emoções, Solomon (1977) explica que emoções são 226

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essencialmente intencionais e constituem-se em juízos. Quando alguém faz um juízo de caráter emocional, afirma o autor, o envolvimento é tal que produz uma reação fisiológica, e os sentimentos são apenas efeitos das emoções. Conforme essa abordagem, sensações e sentimentos não são necessários para a emoção. O que há de essencial em todas as emoções é alguma cognição, ainda que não se esteja reflexivamente ciente dela. Sem tal engajamento, isto é, sem avaliações, crenças ou juízos acompanhando sentimentos, não há emoção: a pessoa pode se sentir desconfortável, mas na ausência de um objeto amedrontador, esse sentimento não conta como medo, por exemplo. Quanto a experimentos em que se induz sensações a partir da administração de químicos ou impulsos elétricos, Solomon (2008, p. 12, tradução minha) mantém sua posição, refletida no exemplo de que “[s]e a ira neurologicamente provocada não inclui algum objeto de irritação, tal reação (o que quer que possa ser) não pode ser raiva”. Acusando os teóricos cognitivistas de promoverem uma visão “intelectualizada” das emoções, Goldie (2000; 2002) propõe uma teoria híbrida em que intencionalidade e sentimento são essenciais para as emoções, apresentando-as como complexas – englobam sentimentos, pensamentos, mudanças corporais, percepções e disposições para ter outros pensamentos, sentimentos e para agir –, episódicas, dinâmicas – tais elementos que compreende vêm e vão ao longo do tempo – e estruturadas – consistem em partes de uma narrativa, na qual estão inseridas. Segundo ele, muitos filósofos incorrem em erro ao atribuir a intencionalidade das emoções a crenças e desejos, descartando o elemento que parece central do ponto de vista de quem vivencia uma emoção, que é o sentimento. Partindo da rejeição de que crenças e desejos que acompanham as emoções possam sozinhas esgotar a intencionalidade da

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Emoções e intencionalidade

emoção, Goldie propõe a noção de sentimento direcionado2 a um objeto – que é o objeto da emoção, podendo ser uma coisa, pessoa, ação, evento etc. – que, juntamente com os sentimentos corporais, faz parte das emoções. O que Goldie denomina sentimentos corporais envolve, de um lado, as sensações que alguém tem em função de sua condição corporal, tais como as sentidas graças a alterações musculares e hormonais, por exemplo; e de outro, as sensações que alguém tem a partir do contato físico com objetos, como a sensação tátil que se tem ao encostar-se a uma superfície gelada, que o autor relaciona às condições da superfície do corpo. Sentimentos corporais e sentimentos direcionados são intencionais. Goldie explica que o sentimento direcionado possui intencionalidade por se dirigir a um objeto que está para além do sujeito. Assim, se um sujeito S está irritado, está irritado com algo, alguém ou com uma situação, que é o objeto da emoção em questão. Os sentimentos corporais, por sua vez, têm sua intencionalidade dirigida ao próprio corpo, parte do corpo ou mudança corporal do sujeito que experimenta esse sentimento. É possível, entretanto, manter uma posição sentimentalista acerca da natureza das emoções e defender que emoções possuem intencionalidade. É o caso de Prinz (2004; 2005), que defende uma versão da teoria sentimentalista de James (1884), afirmando que emoções, enquanto sentimentos corporais, não possuem objetos intencionais intrinsecamente. Prinz propõe a noção de atitudes emocionais, que seriam atitudes proposicionais que relacionam causalmente emoções e representações de objetos e estados de coisas. Diante de tais ocorrências, diz-se que a emoção tem o conteúdo dessas representações como seu objeto intencional, como em seu exemplo de que, se há conexão causal entre pensar sobre o

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feeling towards

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governo e sentir raiva, então se diz que se está com raiva do governo. A possibilidade de identificar os objetos da emoção às causas da mesma são postos em questão por De Sousa (2013), que afirma que, embora tal identificação se dê muitas vezes, há exemplos em que isso não é possível, como quando um sujeito S está irritado com o sujeito R em decorrência dos efeitos do álcool no organismo de S – a causa da irritação é a embriaguez; o objeto, o sujeito R. O autor defende que o objeto intencional da emoção é uma propriedade implicitamente atribuída pela emoção a seu alvo, foco ou objeto proposicional, e que nem todas as emoções contam com um objeto intencional, sendo que às que não o possuem seria mais adequado chamar humores, em vez de emoções. Solomon (2008), por sua vez, defende que humores têm por objeto o mundo como um todo.

Considerações finais Ainda que não haja consenso quanto à natureza das emoções, ou seja, se são cognições, sentimentos ou uma combinação de afetos e cognições, os diversos modelos propostos na tentativa de estabelecer o que as constitui essencialmente precisam considerar que emoções são, em geral, estados intencionais. Emoções são direcionadas a algo, ainda que o sujeito dessas emoções não esteja reflexivamente ciente disso. As perspectivas aqui sumariamente apresentadas interpretam de diferentes maneiras esse aspecto das emoções. Embora Solomon esteja certo ao colocar a intencionalidade como central para as emoções, sua proposta falha em dois pontos. Primeiramente, ao condicionar o aspecto intencional a estados cognitivos e, em segundo lugar, ao conceder aos sentimentos um papel contingente na constituição das emoções.

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Emoções e intencionalidade

Uma visão alternativa e que não incorre nos mesmos erros é apresentada por Goldie, com seu modelo mais abrangente acerca da natureza das emoções. A grande vantagem da teoria proposta por Goldie é relacionar afetividade e intencionalidade: mesmo que ele inclua crenças e desejos como integrantes das emoções juntamente aos sentimentos, são os sentimentos também portadores de intencionalidade. É uma solução para a crítica, tradicionalmente direcionada aos cognitivistas, de que seres com aparato cognitivo não plenamente desenvolvido, por assim dizer, possuem emoções – o que impediria que emoções fossem identificadas essencialmente a estados cognitivos. Entretanto, há ainda a possibilidade de se defender que emoções são, em última análise, sentimentos, sem desprezar a importância de sua intencionalidade. É o que defende Prinz ao atribuir a intencionalidade das emoções às causas delas, ainda que negue que emoções sejam estados intrinsecamente intencionais. O principal problema dessa abordagem, como apontado, é que, muitas vezes, o que as emoções têm por objetos intencionais difere daquilo que as causa. Destarte, considerar a centralidade do aspecto intencional para as emoções não pode ofuscar o elemento que parece central do ponto de vista de quem vivencia uma emoção, que é o sentimento. E, como visto, é possível conciliar ambos os elementos.

Referências BRENTANO, F. Psychology from an Empirical Standpoint. Translated by Antos C. Rancurello, D. B. Terrell and Linda L. McAlister. London: Routledge, 2009. DE SOUZA, R. Emotion. The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2013 Edition), Edward N. Zalta (Ed.). Disponível em:

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. Acesso em: 13 mar. 2014. GOLDIE, P. The Emotions: A Philosophical Exploration. New York: Clarendon Press, 2000. ________. Emotions, feelings and intentionality. Phenomenology and the Cognitive Sciences, v. 1, n. 3, p. 235-254, Sep. 2002. JACOB, P. "Intentionality", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2014 Edition), Edward N. Zalta (ed.), forthcoming URL = . JAMES, W. What is an Emotion? Mind, v. 9, n. 34, p. 188205, Apr. 1884. MASLIN, K. T. Introdução à Filosofia da Mente. Tradução de Fernando José R. da Rocha. Porto Alegre: Artmed, 2009. PRINZ, J. J. Are emotions feelings? Journal of Consciousness Studies, v. 12, n. 8-10, p. 9–25, 2005. ______. Gut Reactions: A Perceptual Theory of Emotion. New York: Oxford University Press, 2004. SEARLE, J. R. Intencionalidade. Tradução de Julio Fischer, Tomás Rosa Bueno. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. SOLOMON, R. C. The Logic of Emotion. Noûs, v. 11, n. 1, p. 41-49, Mar. 1977. ______. The Philosophy of Emotions. In: LEWIS, M.; HAVILAND-JONES, J.M.; BARRET, L.F. (Eds.) Handbook of emotions. 3. ed. New York: The Guilford Press, 2008.

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VERDADE E METAFILOSOFIA EM RICHARD RORTY

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1. O problema com a tradição e a perspectiva de Rorty sobre a verdade Alguns autores descrevem o quadro intelectual contemporâneo sobre a verdade como cindido entre relativistas e absolutistas (cf. BLACKBURN, 2006). De acordo com este quadro, os relativistas são aqueles que sustentam que a verdade é relativa ao sujeito, a um grupo, a uma civilização, há um tempo e lugar determinados, enfim, que a verdade é sempre dependente de seja o que for. Por outro lado, os absolutistas defendem que a verdade é objetiva, ou seja, não dependente de nenhum tipo de item da lista acima, mas unicamente da realidade ou da maneira como as coisas são. Rorty defende que os pares desta disputa jogam um jogo de cartas marcadas, e que tal contenda não é mais fundamental para a investigação filosófica. Para ele, esta disputa ocorre apenas dentro de um determinado quadro conceitual que tem suas raízes em Platão. Tal como qualquer questão ou problema filosófico, compreender a verdade permanece sendo um desafio, pois não existe acordo consensual por parte dos filósofos sobre o que é a verdade ou o que ela significa, nem como podemos adequadamente entende-la, ou seja, também não existe um método (consensualmente) adequado para investiga-la. As 1

E-mail: [email protected] 233

Verdade e metafilosofia

teorias da verdade, da maneira como foram sendo desenvolvidas pela tradição filosófica, em especial após a virada linguística, compreenderam o problema da verdade de muitos modos distintos e apresentaram soluções diferentes para cada um (cf. KIRKHAM, 2003). O século XX foi possivelmente o mais fértil em teorias sobre a verdade, mas também nele encontramos os pontos de vista segundo o qual a verdade não é algo a respeito do que podemos (ou deveríamos) fornecer alguma definição cabal, ou ainda, que a verdade sequer seja algo sobre o qual deveríamos ter qualquer teoria filosófica. Davidson, por exemplo, defendeu a primeira postura, Rorty a segunda. Entretanto, embora Rorty tenha afirmado que a verdade não é um tópico filosófico interessante, ele certamente não seguiu sua própria conclusão, dado que em inúmeros escritos seus a verdade aparece como um tema central. Para bem compreender as elucubrações de Rorty sobre a verdade, é útil, antes de tudo, esboçar o pano de fundo donde emerge suas criticas a maioria dos problemas filosóficos, inclusive a verdade. Tento fornecer isto brevemente no parágrafo que segue. No projeto filosófico de Platão, metafísica e epistemologia estão intimamente relacionadas. Na busca pelo conhecimento genuíno Platão cindiu o mundo em dois, mundo natural ou sensível e mundo inteligível. Com esse dualismo primordial, que é o centro do pensamento platônico, emergem as dicotomias aparência/realidade e opinião/conhecimento. Para Rorty, o pressuposto fundamental do projeto de Platão esta na ideia de que nós, seres humanos, e de modo algum os outros animais desprovidos de racionalidade, podemos transcender nossa finitude existencial nesta vida por meio da contemplação (conhecimento genuíno) de algo eterno, imutável, absoluto. No caso de Platão, eram as formas ou ideias inteligíveis, mas este anseio permaneceu de diferentes

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modos ao longo da história da filosofia, como a palavra ou mensagem de Deus durante os séculos católicos, a estrutura do universo para muitos cientistas naturais, ou simplesmente a Verdade, singular, única. Qualquer destas coisas exibe (para aqueles que podem conhecê-las) uma imperturbabilidade existencial completamente alheia aos interesses humanos. O quadro conceitual rico em dicotomias inaugurado por Platão é aperfeiçoado no período moderno por Descartes, que concebe a mente como aquilo a que temos acesso privilegiado, o que dá ensejo a mais dualismos que são ainda hoje basilares na investigação filosófica: a relação da mente com o corpo, e das representações mentais com a realidade (com a virada linguística este dualismo foi atualizado para a relação da linguagem com o mundo). Assim, em sua leitura da história da filosofia (em especial da filosofia moderna, na qual Kant representa o expoente máximo), Rorty assevera que certa “imagem” vem dominando a agenda filosófica e impondo problemas que “naturalmente” surgem a um espirito investigativo. Esta imagem é a da mente como um espelho, contendo representações mais ou menos precisas sobre o que esta fora dela - sobre o mundo -, por conseguinte, deve haver um tipo especial de investigação (e de teorização) que é capaz de dizer quando as nossas representações representam bem a realidade e quando não o fazem; esta investigação é a filosofia (qua epistemologia). Esta é a imagem da filosofia como um tipo de conhecimento fundante (já que investiga, descobre e/ou postula os critérios de correção das representações) e da mente como um espelho da natureza. Aceita esta imagem, alguns problemas surgem “naturalmente”: quais são os fundamentos do conhecimento? A mente humana descobre (realismo) ou cria (idealismo) a realidade? Qual a relação entre a mente e o corpo? Um possível resumo deste paragrafo seria o de que a suposição de que existe um modo como o mundo é em si mesmo (à parte de qualquer descrição) gera o problema de

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Verdade e metafilosofia

como podemos saber se nossas descrições de fato se referem à realidade. A tradição filosófica sempre se viu as voltas com a tarefa de garantir nosso conhecimento da realidade (como ela é), e o conceito de verdade desempenhou um papel chave neste empreendimento, principalmente ao se supor que a verdade (tendo em vista o quadro acima) é o que nos possibilita diferenciar o aparente do real, a crença justificada do conhecimento, na medida em que nossas crenças e representações correspondem à realidade. Para Rorty, a noção da verdade como correspondência mostra exemplarmente o anseio em sermos guiados por lago maior que nós próprios, “A ideia de verdade como algo que persuade por sua própria causa, não por ser boa para nós, ou para uma comunidade real ou imaginária, é o tema central dessa tradição [a tradição cultural ocidental, centrada na noção de busca pela verdade]” (RORTY, 2002, pg. 37) - e, neste sentido, ele chega a afirmar que a verdade se tornou um substituto para Deus (cf. RORTY, 2009, pg. 159). Mas este não é o único problema que Rorty apresenta em sua rejeição da verdade como correspondência. É possível identificar outras razões de que lança mão para sua rejeição: a) explicar a verdade em termos de correspondência não é esclarecedor, “(...) várias centenas de anos de esforços não conseguiram extrair um sentido interessante da noção de ‘correspondência’ (quer de pensamentos às coisas, quer de palavras às coisas)” (RORTY, 1999, pg. 17) e, portanto, a ideia de correspondência é inútil. b) não existe a maneira pela qual o mundo gostaria de ser descrito, dado que a realidade não possui uma natureza intrínseca. Assim, nossas crenças não podem ser tornadas

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verdadeiras pelo mundo (ou pelo que quer que seja), “não há maneira de sairmos fora de nossas crenças e de nossa linguagem para encontrar algum teste que não a coerência.” (RORTY, 1994, pg. 183). c) deveríamos adotar uma perspectiva darwiniana sobre a linguagem, entendendo-a como uma habilidade adaptativa, ao invés de como um meio de representar a realidade, [os pragmatistas] levaram Darwin e a biologia a sério, eles tinham um motivo adicional para desconfiar da ideia de que as crenças verdadeiras são representações corretas, pois a representação, em oposição ao comportamento adaptativo cada vez mais complexo, provavelmente não combina com uma história evolucionária. (RORTY, 2005, p. 4 - 5).

O que Rorty acredita que a verdade faz por nós, então? Um dos pontos centrais de seu pragmatismo é a maneira como ele concebe a verdade. Como vimos, sua posição em relação a este tópico é marcada pela repulsa a concepção da verdade como correspondência que, como esboçado acima, enraíza-se, para Rorty, no anseio por algo absoluto. A origem de seu ponto de vista crítico esta no pragmatismo americano, nomeadamente James e Dewey, passando pelo segundo Wittgenstein, por Quine e Sellars, e ganhando plena maturação sob a influência da obra de Donald Davidson. A visão de Rorty sobre a verdade tem inicio a partir da teoria pragmática da verdade2, e o pragmatismo, da maneira 2

Desconsidero aqui a questão sobre se existe uma teoria pragmática da verdade, dado que os autores ditos “pragmáticos”, além de discordarem amplamente entre si, também apresentam inconsistências internas em suas perspectivas (Sobre este ponto, cf. KIRKHAM, 2003, p. 118 - 119). Dessa forma, ao afirmar que Rorty recebe influencia de uma teoria pragmática da 237

Verdade e metafilosofia

que Rorty o entende, é fundamentalmente antiessencialismo (não existe nada substancial no conceito de verdade, ou seja, este termo não designa nenhuma essência ou propriedade metafísica); rejeição dos dualismos filosóficos tradicionais (tais como fato-valor) e a ideia de que as únicas restrições à investigação são as conversacionais “[...] nenhumas restrições gerais derivadas da natureza dos objetos, ou da mente, ou da linguagem, mas apenas as restrições particulares fornecidas pelas observações dos nossos companheiros investigadores” (RORTY, 1999, p. 236 - 237). A noção de verdade que emerge ao se conceber o pragmatismo desta maneira não terá a forma de uma explicação sobre o conteúdo profundo do termo, ou ainda, que o próprio termo “verdade” deva ser usado para explicar algo como a conexão entre a linguagem e o mundo. Desta forma, resta então unicamente mapear nossos usos do termo “verdadeiro” e ver o que fazemos quando o empregamos. No ensaio Pragmatismo, Davidson e a Verdade (RORTY, 2002), Rorty apresenta três usos de “verdadeiro” em nosso discurso, (i) uso endossador é aquele onde simplesmente expressamos nossa aprovação diante de um enunciado, (ii) uso acautelado ocorre ao dizermos “Sua crença em S está perfeitamente justificada, mas talvez não seja verdadeira”, e o (iii) uso descitacional, que nos permite “dizer coisas metalinguísticas do tipo ‘S é verdadeiro se ____’”. Fica claro que esta não é uma teoria sobre a verdade. E é evidente também que a verdade assim concebida não faz verdade, estou apenas indicando que sua perspectiva sobre a verdade contem elementos do que Peirce, James e Dewey, por exemplo, disseram sobre o assunto. 238

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nenhuma referencia ao mundo, mas apenas aos usuários da linguagem. Isto parece entrar em conflito com nosso “realismo de senso comum”, pois acreditamos fielmente que nossas crenças verdadeiras se referem ao mundo, e que são tornadas verdadeiras por ele. Supondo, então, que eu diga (e acredite) que “há um pássaro lá fora na janela”, se me perguntado como sei disso, posso responder “por que vi”, então o que garante a objetividade de minha crença, o que faz com ela seja verdadeira, é minha capacidade de representar a realidade como ela é (para mim e para outros). Contudo, seguindo as criticas de Rorty, a ideia da realidade como ela é deve ser abandonada. Como posso então justificar minha crença sobre o pássaro? Para Rorty, ela esta justificada no momento em que dou razões para ela e que aqueles que a requerem aceitam estas razões. A verdade, segundo o ponto o “b” descrito acima, não vem de lugar algum que não do próprio intercambio linguístico entre as pessoas - ter crenças verdadeiras é uma condição para usar a linguagem de modo competente. Assim, deve o realismo de senso comum ser abandonado? Somente se ele for metafisico. Somente se ele pretende ser uma teoria da verdade, como alguns filósofos tentaram fazer. Mas o realismo de senso comum não precisa pressupor uma natureza intrínseca da realidade, ou seja, podemos continuar a acreditar que nossas crenças representam o mundo. Ele pressupõe apenas que a realidade é independente de nossas crenças sobre ela. Quando dizemos que nossas crenças representam a realidade, temos a pretensão de que o que dizemos (nossas descrições, no linguajar de Rorty) não determina a existência daquilo que estamos tentando exprimir. A linguagem continua a se referir ao mundo, mas não há porque dar um segundo passo e afirmar que ela é uma copia tal e qual o mundo é em si mesmo. O ponto de discórdia nisto tudo, em relação à Rorty, é que podemos continuar a acreditar

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num mundo (de eventos e objetos) independente de nossas descrições. Putnam sugere a seguinte analogia: Embora eu não possa sair de minha própria pele e comparar o futuro tal como será depois de minha morte, com meus pensamentos e ideias sobre o futuro, eu realmente não posso por essa razão parar de supor que existem eventos que irão acontecer depois de minha morte e adquiro um seguro de vida com o intuito de afetar o curso desses eventos. (PUTNAM, 2008, pg. 136)

Desta forma, podemos seguir Rorty em sua critica a teoria da verdade como correspondência, mas não precisamos ser eliminativistas em relação à ideia de “corresponder” ou “referir” a realidade, como sua critica sugere.

2. A estratégia argumentativa de Rorty A abordagem de Rorty de tópicos filosóficos como a verdade é controversa e incômoda, sua estratégia argumentativa não visa resolver os problemas com que debate, antes, intenta mostrar que eles não precisam necessariamente ser vistos como problemas. Michael Willians denomina esta posição de “diagnose teórica”, ela consiste na demonstração dos pressupostos assumidos tacitamente que dão origem a um modelo inteiro de investigação. Se esses pressupostos podem ser desafiados com sucesso, então os problemas que eles dão origem podem sensatamente ser postos de lado, e as tentativas de resolvê-los a nível teórico se tornam ociosas. Isto é o que ocorreu com outras disciplinas no passado: demonologia e astrologia judicial, por exemplo. Para Rorty, a

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epistemologia merece o mesmo (WILLIAMS, 2000, pg. 191)

destino.

Nesta citação é possível vislumbrar porque a abordagem de Rorty é inquietante (ou até merecedora de desdém) para muitos dos filósofos contemporâneos: seu ponto de vista torna supérfluo muito do que vem sendo dito e defendido sobre o conhecimento e a verdade. Evidentemente, para aqueles que não se deixam convencer ou influenciar por seus pontos de vista, ele não precisa ser levado em consideração3. Atualmente, a epistemologia, a qual Rorty pretendeu ser uma espécie de coveiro, continua a ser uma importante e debatida área da filosofia. Entretanto, penso que as considerações metafilosóficas de Rorty podem deixar uma marca profunda na autoimagem da filosofia, ainda que suas conclusões mais radicais não vinguem, e no que segue, tentarei dizer por que. Rorty é uma espécie de filosofo “terapeuta”, num sentido aproximadamente wittgensteiniano da palavra: alguém que busca dissolver certos problemas filosóficos ao esclarecêlos. Mas ele faz isto de um modo peculiar, tentando esquadrinhar a origem histórica dos problemas filosóficos e 3

É possível fazer aqui uma comparação entre a atitude de Rorty diante dos problemas tradicionais da epistemologia e a atitude do segundo Wittgenstein diante dos problemas filosóficos em geral. É famosa a controvérsia de Wittgenstein com Popper durante uma conferencia em Cambridge nos anos quarenta. Wittgenstein defendia o ponto de vista, tão radical quanto o de Rorty, de que não existem problemas filosóficos genuínos, de que as questões filosóficas não passam de perplexidades linguísticas, ao contrário, para Popper os problemas filosóficos eram reais (Sobre esta controvérsia, cf. EDMONDS e EIDINOW, 2010). A história parece ter seguido Popper nesta conclusão, mas, paradoxalmente, a influência de Wittegenstein se mostrou bem maior. A lição favorável a Rorty que se pode tirar deste caso é a de que mesmo ideias filosóficas radicais podem se mostrar profícuas para o desenvolvimento da filosofia. 241

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mostrando a marca da contingência em tais problemas. Neste ponto ele se afasta de Wittgentein, para quem os problemas filosóficos eram, de fato, pseudoproblemas. Para Rorty, não há problema em reconhecer a legitimidade dos problemas filosóficos - eles são problemas genuínos, porém apenas dentro de um conjunto de ideias, pressupostos e valores determinados que lhes confiram inteligibilidade, mas que podem, em todo caso, serem postos de lado (cf. WILLIAMS, 2000, pg. 191). Suas considerações envolvem o seguinte tipo de questão: por que deveríamos levar adiante o vocabulário e o modo de pensar que nos deixa com um problema relativo à fundamentação do conhecimento, que nos leva a um abismo entre a realidade e aparência, e a entender a verdade como correspondência a realidade? É possível conceber o conhecimento como algo que não necessite de fundamentos e a mente como algo que não contém representações que, se corretas, correspondem à realidade? A diagnose teórica pretende fornecer as respostas. Rorty não oferece (ou, ao menos, pretende não oferecer) uma argumentação sistemática que demonstre, por exemplo, a falsidade da concepção correspondencial da verdade (ou da mente como espelho da natureza). Antes, pretende nos incitar a deixar de conceber a verdade, ou o conhecimento, ou a justificação, ou ainda a moralidade, de certa maneira (a maneira como estes termos predominantemente são concebidos pela filosofia). Ele faz isso por meio dos seguintes passos: (i) exibindo a contingencia do vocabulário que confere inteligibilidade a estes termos, e, mais importante, (ii) mostrando que é inútil continuar a entender a verdade, ou o conhecimento, por exemplo, de um determinado modo. Sua obra mais influente, A Filosofia e o Espelho da Natureza, apresenta seu mais pleno desenvolvimento do ponto (i). O critério principal, então, pelo qual Rorty julga a viabilidade de um vocabulário é a utilidade.

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A questão que nos importa, a nós, pragmatistas, não é saber se um debate faz ou não sentido, se ele remete a problemas reais ou não reais, mas determinar se esse debate terá um efeito na pratica, se ele será útil. Nós nos perguntamos se o vocabulário pelo qual se exprime esse debate é passível de ter um valor prático, sabendo que a tese do pragmatismo é: se esse debate não tem incidência prática, então ele também não deve ter incidência filosófica, segundo a fórmula de William James. (ENGEL e RORTY, 2008, p. 54 - 55).

Diante disso, poderíamos objetar que a filosofia sempre foi encarada como uma pratica eminentemente teórica, tanto que, uma imagem comum associada a ela é a do filosofo meditando confortavelmente em uma poltrona, completamente alheio ao mundo ao seu redor. Mas esta imagem perde alcance tão logo se constata que a filosofia, ao longo de sua historia, sempre esteve envolvida com questões sociais e politicas. Neste sentido, a ênfase de Rorty no “valor prático” parece indicar que ele favoreceria apenas um tipo de filosofia “engajada”. Mas isto é um erro. Alguns dos maiores heróis filosóficos de Rorty são Davidson, Wittgenstein, Quine e Sellars, autores que pouco ou nada escreveram sobre política, ética ou critica social, tratando em suas carreiras predominantemente de temas de filosofia da mente e da linguagem. Qual seria então o valor pratico que Rorty vê nestes autores, pelos quais ele tem tanta admiração e que nunca praticaram de maneira alguma um tipo de filosofia engajada? Esta resposta pode ser encontrada na maneira como Rorty compreende a filosofia. Segundo ele, a Filosofia, com “F” maiúsculo, é a busca por algo maior que nós mesmos (a Realidade, a Verdade, as coisas como elas são), é a realização do anseio transcendente delineado acima. Mas filosofia, com “f” minúsculo, é simplesmente a busca por um caminho que

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harmonize os diferentes anseios e interesses da sociedade em uma época, e esta busca acaba por resultar na formação de novas formas de vida. Assim, estes filósofos nos fornecem um novo vocabulário para descrevermos as praticas humanas, a nós mesmos e ao mundo, vocabulários onde verdade, significado, conhecimento, linguagem, razão e ação não acarretam questões do tipo “O que é verdadeiramente real?”, “Como é possível escaparmos do ceticismo?” e “Os valores morais são objetivos ou subjetivos?”. Um vocabulário que, na opinião de Rorty, cria condições para que possamos compreender as empresas humanas (investigar a natureza, buscar uma sociedade mais justa) por referencia a nossos interesses cambiantes e não por problemas e questões distintos, perenes, que forçosamente se impõe ao intelecto. A mudança de mentalidade (ou, para usar uma expressão de Rorty, de nossa rede de crenças e desejos) que estes pensadores nos proporcionam resulta em mudança de comportamento, o que pode se tornar, por fim, em mudança social. Por exemplo, Galileu e seus seguidores descobriram, e os séculos subsequentes confirmaram amplamente, que se obtém muito melhores prognósticos pensando as coisas como massas de partículas colidindo cegamente umas com as outras em vez de as pensar como Aristóteles pensou – animisticamente, teleologicamente e antropomorficamente. (RORTY, 1999, pg. 267)

A partir de Galileu, um novo paradigma teórico e comportamental passou a se desenvolver na investigação da natureza. Talvez de modo menos emblemático os heróis de Rorty citados acima também operaram cada um a seu modo, redescrições úteis de problemas da reflexão filosófica. Neste sentido, podemos chegar à conclusão de que as próprias reflexões metafilosóficas de Rorty possuem valor pratico, pois o que mais ele faz com seus pontos de vista radicais senão 244

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reorientar (ao redescrever) a natureza e a tarefa própria da filosofia – da contemplação e da busca por essências a uma ferramenta de mudança social?

3. Breve defesa da diagnose teórica A marca wittgensteiniana no filosofar de Rorty é ainda mais profunda do que ele reconhece. O segundo Wittgenstein legou a Rorty, e a muitos outros, a ideia de que a linguagem é fundamentalmente uma pratica social e que é ilusório tentar transcender esta prática para atingir algum padrão de correção de nossas crenças que não seja a própria prática. Um ponto importante é de que as práticas sociais humanas, entre elas a linguagem, se transformam, modificam-se através do tempo. É este elemento temporal que dá à diagnose teórica seu valor principal. Não se trata de dizer que a história da filosofia é essencial para se filosofar, mas que esta atividade humana, como qualquer outra, esta sujeita à transformação no tempo. A primeira vista isto é um truísmo inofensivo, mas do ponto de vista de Rorty, significa que as questões, os problemas, os conceitos e os métodos filosóficos mudam radicalmente, de modo que não existe um tópico ou um método que seja distinto da atividade de filosofar. O historiador e filósofo politico britânico Isaiah Berlin concebia as questões filosóficas como aquelas que não sabemos onde procurar as respostas, que não possuem nenhum método consensual de resolução. Assim, por exemplo, [...] não era nenhum erro considerar a astronomia uma disciplina ‘filosófica’, digamos, no inicio da Idade Média: enquanto as respostas a perguntas sobre as estrelas e os planetas não eram determinadas por observação ou experimentos e cálculos, mas dominadas por noções não empíricas como aquelas, por 245

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exemplo, de corpos perfeitos determinados a seguir caminhos circulares por suas metas ou essências interiores [...], não era claro como as questões astronômicas podiam ser resolvidas [...] (BERLIN, 2005, pg.52)

Se seguirmos Berlin e assim concebermos a natureza dos problemas filosóficos, não mais veremos a hermenêutica, a fenomenologia, a análise conceitual, a desconstrução e, por fim, a diagnose teórica de Rorty, como tentando constituir o método filosófico por excelência, aquele que alcança a verdade, mas como caminhos alternativos, mesmo que excludentes, para a concepção e resolução dos problemas filosóficos – problemas que não possuem nenhum método consensualmente adequado de resolução. Este ponto de vista acaba por promover um ideal de tolerância para as buscas intelectuais da reflexão filosófica, e creio que Rorty estaria de acordo que tal perspectiva possui, por isso, valor prático.

Referências bibliográficas BERLIN, Isaiah. A Força das Ideias. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. BLACKBURN, Simon. Verdade: um guia para os perplexos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. EDMONDS, David e EIDINOW, John. O atiçador de Wittgenstein. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010. ENGEL, Pascal e RORTY, Richard. Para que serve a verdade? São Paulo: Editora UNESP, 2008. KIRKHAM, Richard. Teorias da verdade. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003. PUTNAM, Hilary. O colapso da verdade e outros ensaios. Aparecida, SP: Ideias e Letras, 2008. 246

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RORTY, Richard. A filosofia e o espelho da natureza. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. _____. Consequências do Pragmatismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1999. _____. Filosofia como política cultural. São Paulo: Martins Fontes, 2009. _____. Objetivismo, Relativismo e Verdade, Escritos Filosóficos 1. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002. _____. Verdade e Progresso. Barueri, SP: Manole, 2005. WILLIAMS, Michael. Epistemology and the Mirror of Nature. In: BRANDOM, Robert. Rorty and his Critics. Blackwell Publishers, 2000.

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