A Dignidade do ser humano a partir da ética filosófica de Emmanuel Lévinas e da antropologia teológica da Constituição Pastoral Gaudium et Spes.

June 1, 2017 | Autor: Evandro Carvalho | Categoria: Émmanuel Lévinas, Filosofía, Teologia Sistemática, Igreja Católica, Gaudium et spes
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A DIGNIDADE DO SER HUMANO A PARTIR DA ÉTICA
FILOSÓFICA DE EMMANUEL LÉVINAS E DA ANTROPOLOGIA
TEOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO PASTORAL GAUDIUM ET SPES
Evandro Viana Carvalho






























































Aos meus pais que, a sua maneira, me
ensinaram a reconhecer a dignidade da
pessoa humana.
RESUMO

Monografia em Teologia
Faculdade Palotina de Santa Maria

A DIGNIDADE DO SER HUMANO A PARTIR DA ÉTICA
FILOSÓFICA DE EMMANUEL LÉVINAS E DA ANTROPOLOGIA
TEOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO PASTORAL GAUDIUM ET SPES
Autor: Evandro Viana Carvalho
Orientador: Prof. Ms. Vilson Venturini
Santa Maria, 21 de outubro de 2013.

No presente trabalho, pretende-se refletir sobre o ser humano na ética
filosófica de Emmanuel Lévinas e na antropologia teológica da Constituição
Pastoral Gaudium et Spes, e como estas visões antropológicas proporcionam
um sentido existencial para o ser humano e suas relações. Partindo da
pesquisa bibliográfica na área da filosofia levinasiana e na antropologia
teológica da Gaudium et Spes, entende-se que as duas visões antropológicas
possuem pontos de aproximação. Dentro da filosofia de Lévinas concebe-se
que o ser-para-o-outro é fundante da própria subjetividade. Ou seja, é no
êxodo de si ao acolher o outro, se sensibilizar diante dele e,
consequentemente, ser responsável para com ele, que o sujeito se constitui
como sujeito ético, verdadeiramente humano e reconhecedor de sua dignidade.
O humano, portanto, é definido como o sensível e responsável e, como
acolhedor da presença alheia, categorizada como 'Rosto'. Quando se fala em
dignidade humana no contexto teológico, remete-se a importante Constituição
Pastoral Gaudium et Spes. O entendimento da Constituição deixa expresso que
a dignidade da pessoa humana reside, principalmente, na excelência de ser
criado à imagem e semelhança de Deus, com inteligência e livre arbítrio.
Todavia, apenas na medida em que o sujeito orienta estes atributos pelo
referencial que é Jesus, o Messias, Verbo encarnado e imagem perfeita de
Deus, se qualifica subjetivamente e, posteriormente, suas relações sociais.
Por conseguinte, olhando nos aspectos de similitude entre a antropologia da
Constituição e a filosofia antropológica de Lévinas, alcança-se uma
reflexão significativa sobre a dignidade humana. No sentido antropológico
da Constituição, o ser humano, fundado nos pilares cristãos, adquire uma
responsabilidade em termos de representação do Cristo na conjuntura social,
se for testemunha dos ensinamentos do Messias na concretude da história. A
filosofia levinasiana aborda o caráter do relacionamento humano
aproximadamente de modo similar, ao esclarecer que a subjetividade é
fundamentalmente ética e que é o lugar do testemunho de Deus. Na
intersubjetividade se é possível ser sinal do divino, quando cada pessoa
assume as características do messianismo nas realidades cotidianas.

Palavras-chave: Subjetividade. Ética. Dignidade. Jesus Cristo. Messianismo.






RESUMEN

Monografia em Teologia
Faculdade Palotina de Santa Maria

LA DIGNIDAD DEL SER HUMANO DESDE LA ÉTICA FILOSÓFICA DE EMMANUEL LÉVINAS Y
LA ANTROPOLOGÍA TEOLÓGICA DE LA CONSTITUICIÓN PASTORAL GAUDIUM ET SPES
Autor: Evandro Viana Carvalho
Orientador: Prof. Ms. Vilson Venturini
Santa Maria, 21 de outubro de 2013.

En el presente trabajo se pretende reflexionar sobre el ser humano en la
ética filosófica de Emmanuel Lévinas y antropología teológica de la
Constituición Pastoral Gaudium et Spes, y cómo estas visiones
antropológicas proporcionan un sentido existencial para los seres humanos y
sus relaciones. A partir de la investigación bibliográfica en el área de la
filosofía y antropología teológica de Gaudium et Spes, se entiende que
ambas visiones antropológicas tienen puntos de aproximación.
Dentro de la filosofia de Lévinas se concibe que, el ser-para-el-otro sea
fundante de la propia subjetividad. O sea, es en el éxodo de si al acoger
al otro, sensibilizarse delante de él y, consecuentemente, ser responsable
para con él, que el sujeto se constituye como sujeto ético, verdaderamente
humano e reconocedor de su dignidad. Lo humano, por tanto, es definido como
lo sensible y responsable y, como acogedor de la presencia ajena,
categorizada como 'Rostro'. Cuando se habla de dignidad humana en el
contexto teológico, se remite a la importante Constitución Pastoral Gaudium
et Spes. El entendimiento de la Constitución deja expreso que la dignidad
de la persona humana reside, principalmente, en la excelencia de ser creado
a imagen y semejanza de Dios y, consecuentemente, creado con inteligencia y
libre arbitrio. Todavía, apenas en la medida en que el sujeto orienta estos
atributos por el referencial que es Jesús, el Mesías, Verbo encarnado e
imagen perfecta de Dios, se califica subjetivamente, y consecuentemente sus
relaciones sociales. Por consiguiente, mirando para los aspectos de
similitud entre la antropología de la Constitución y la filosofía
antropológica de Lévinas, se alcanza una reflexión significativa sobre la
dignidad humana. En el sentido antropológico de la Constitución, el ser
humano, fundado en los pilares cristianos, adquiere una responsabilidad en
términos de representación de Cristo en la coyuntura social, si es
testimonio de las enseñanzas del Mesías en lo concreto de la historia. La
filosofía levinasiana aborda el carácter del relacionamiento humano
aproximadamente de modo similar, al esclarecer que la subjetividad es
fundamentalmente ética y que es el lugar del testimonio de Dios. En la
intersubjetividad es posible ser señal de lo divino, cuando cada persona
asume las características del mesianismo en las relaciones cotidianas.

Palabras-llave: Subjetividad. Ética. Dignidad. Jesucristo. Mesianismo




SUMÁRIO


"INTRODUÇÃO…………………………………………………………………………….. " 7 "
"1 A ÉTICA LEVINASIANA A PARTIR DA CATEGORIA DO " 8 "
"ROSTO....................... " "
"1.1 A relação ética como passagem do Eu (Mesmo) ao " 9 "
"Outro........................................... "10 "
"1.2 A visita do Outro como Rosto ao "13 "
"Mesmo................................................................"16 "
"...... " "
"1.3 O ser humano que se expressa no Rosto como " "
"Palavra................................................. " "
"1.4 A Responsabilidade como acolhimento do Rosto do " "
"Outro......................................... " "
" " "
"2 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA GAUDIUM ET "19 "
"SPES............................. " "
"2.1 O homem criado à imagem de "19 "
"Deus................................................................." "
"............. " "
"2.2 O homem dotado de Inteligência, Consciência Moral e "22 "
"Liberdade............................. " "
"2.3 Cristo como fonte da dignidade "23 "
"humana..............................................................." "
"......... " "
"2.4 A vida comunitária como reveladora da dignidade "26 "
"humana....................................... " "
"3 A ÉTICA LEVINASIANA E A ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA DA GAUDIUM " "
"ET "30 "
"SPES................................................................." "
".............................................................. " "
"3.1 O Rosto do Outro como imagem de Deus e revelação do "31 "
"Infinito............................... " "
"3.2 A dignidade da Inteligência e Liberdade em vista do "33 "
"Outro........................................ " "
"3.3 O Messias e o ser messiânico como revelação da dignidade "35 "
"humana............................ " "
"3.4 A Glória do Infinito no acolhimento do "37 "
"Rosto............................................................... " "
"4 CONSIDERAÇÕES "41 "
"FINAIS..............................................................." "
"............................... " "
"REFERÊNCIAS.........................................................."43 "
".......................................................... " "
" " "
" " "
" " "












INTRODUÇÃO


A sociedade contemporânea, em seu ritmo próprio de 'culto' à
velocidade do tempo, à produção, ao consumo, à busca desenfreada do prazer,
ao ter mais do que o ser, parece perder-se num leque de exigências que cada
vez mais priorizam a superficialidade nas relações e o individualismo.
Neste contexto, o sentido de ser humano no mundo tende a se fundamentar
pela exterioridade, onde a beleza estética, o status social e a necessidade
de gozar da vida de maneira descriteriosa, proporcionam à pessoa humana uma
vivência desfocada de sua profunda dignidade e responsabilidade perante si
e os outros.
Por vezes, o relacionamento entre o 'eu' e o 'outro' parecem possuir
validade enquanto ambos possam ser negociáveis, ou seja, apenas até o
momento onde tem algo a oferecer em termos utilitaristas. Para tanto,
percebe-se como valioso refletir, com o auxílio de alguns documentos e
textos que são oferecidos à reflexão filosófica e teológica, o ser humano
pelo viés da filosofia levinasiana e da antropologia teológica cristã da
Constituição Pastoral Gaudium et Spes, possibilitando um referencial de
dignidade e parâmetro existencial que trazem à humanidade um profundo
sentido de 'ser' e 'agir'.
No presente trabalho, primeiramente, analisar-se-á o pensamento
antropológico na ética de Emmanuel Lévinas, a partir da categoria
levinasiana do "Rosto", como manifestação do humano. Partindo deste
referencial levinasiano, se fará uma abordagem da pessoa humana como
essencialmente ética. Neste percurso, cabe à subjetividade fazer a passagem
de si mesmo ao encontro do outro, e compreender que na acolhida sensível da
presença de outrem, ou seja, de seu 'Rosto', que revela a infinitude de sua
presença, o ser humano descobre sua dignidade.
Posteriormente, se discorrerá acerca de alguns pontos da teologia
antropológica da Gaudium et Spes buscando, através de seus referenciais
teológicos, salientar a singularidade da pessoa humana em sua dignidade.
Partindo do ser humano criado à imagem de Deus, dar-se-á destaque ao Cristo
como fonte da dignidade humana, sendo ele o horizonte de sentido para a
concretização da 'Imago Dei' na história.
Por fim, se identificará alguns pontos de convergência entre a ética
levinasiana e a antropologia da Gaudium et Spes, apresentando aspectos
similares no que diz respeito a dignidade do ser humano e enfatizando a
subjetividade fundada nas categorias do Messias, que é ponto de referência
para as relações intersubjetivas.




1 A ÉTICA LEVINASIANA A PARTIR DA CATEGORIA DO ROSTO

O pensador lituano-francês Emmanuel Lévinas, fruto de um contexto da
Primeira e Segunda Guerra Mundial, se torna um filósofo dentro de uma
conjuntura experimentada por ele como autônoma, ou seja, experimenta na
própria carne uma vivência e convivência com seres humanos que parecem
bastar-se a si mesmos, onde o relacionamento pessoal é tido com uma forte
mediação entre sujeito e objeto (WAGNER, 1992, p. 16). Neste sentido, o ser
humano é tratado como uma existência que pode ser estudada, analisada, como
se faz com qualquer outra realidade.
Ele viveu num mundo de sobreviventes, onde a liberdade não é mais
solução, mas desafio, ou seja, a grande questão não é mais o que o homem
pode, mas o que ele não deve fazer. Por isso, concebe-se que Lévinas é mais
do que um pensador pós-guerra, ocupado somente em meditar os dramas da
condição humana e os impasses da liberdade; ele vai além destas vivências
extraindo de si um pensamento para-além-da-guerra¸ dentro de uma Europa até
agora desconhecida para ele (COSTA, 2000, p. 34).
Neste ambiente, Lévinas estabelece sua filosofia ética a partir do
encontro com o Outro,[1] que se apresenta como o diferente. Esta relação
não é apenas se deslocar para estar frente-a-frente a uma subjetividade
simplesmente fisionômica. O frente-a-frente é revelação. O Outro se revela
em sua humanidade presente em seu Rosto.[2] É o Outro que olha antes de ser
olhado e manifesta uma vitalidade humana por traz da plasticidade que a
fisionomia oferece. Por isso que, para Lévinas, responder a Outrem é
responder a uma vida.
A vida do Outro é capaz de se revelar em variadas interfaces, em
variadas realidades, mas também pode se manifestar como uma subjetividade
suplicante e ordenante. Aqui se instaura uma dimensão fortemente ética.
Neste, o Outro pode, ao mesmo tempo, suplicar algo através de suas
necessidades e ordenar algo a partir da autoridade vital presente em seu
Rosto.


1.1 A relação ética como passagem do Eu (Mesmo) ao Outro

Lévinas propõe a importância de uma saída do que ele denomina
Mesmo,[3] à alteridade, de uma abertura à revelação do Outro, ou seja, a
real urgência de um desafio de alcance ao Outro, como um ir ao encontro.
Alcançar o Outro não se daria por uma justificação a si-mesmo onde o Eu
cansado de ser-aí, devido a uma compreensão de existência sem sentido,
simplesmente proporcionaria uma fuga de seu fastio existencial. Trata-se,
portanto, da mais pura relação originária de acolher ao Outro (2000, p.
42).
Percebe-se, nesta concepção, a urgente necessidade de Lévinas em
estabelecer "uma saída ética e heterológica do egoísmo ontológico que
precipitou o Ocidente no ocaso da guerra" (LÉVINAS, 1988, p. 22) e tratou
como 'multidão' quem é singularmente humano. Assim, o filósofo busca uma
reflexão que busca uma constante resposta ao Outro que não é anônimo na
existência, mas é pessoal, faz ética com o Eu (sujeito) e é capaz de
revelar com a sua presença, o não anonimato.
Percebe-se, em Lévinas, que este pensar diverso do contexto de guerra
é fruto "de perto com as consequências de uma ontologia, que coloca o 'eu
imperialista' na determinação do agir ético" (WAGNER, 1992, p. 16), onde
"uma tal filosofia gestada e difundida no ocidente é capaz de gerar
crueldades semelhantes a estas, que dilaceram tudo o que poderia vislumbrar-
se de humano" (1992, p. 16).
Essa vivência, ao mesmo tempo em que confirma certas concepções em
Lévinas, o faz também estruturar as suas futuras preocupações a respeito do
verdadeiro sentido do humano. Para tanto, é nesse ambiente que ele percebe
que "a filosofia já não pode ter outro sentido e outro destino que não seja
o da ética" (1992, p. 9). Nisso, Lévinas vai concebendo uma primazia da
ética frente à ontologia, sendo esta a sua frontal crítica ao ocidente
filosófico, "que em dois mil anos pouco de humanismo tem gerado" (1992, p.
9).
A partir dessas constatações, o relacionamento ético para Lévinas se
efetiva num Eu diferente face-a-face a um outro diferente. Este encontro é
a inauguração de um homem novo que, pela relação com o Rosto do Outro, se
constitui subjetivamente e como sujeito ético. Deveras, a subjetividade
ética acontece em um ser humano responsável, sensível e acolhedor daquele
que é divergente de si, sem jamais possuir alguma pretensão de anulação.
Portanto, abrir-se para a exterioridade, para a revelação do Outro,
que tem a sua originalidade própria, é um abrir o caminho para a
humanização. Como afirma Lévinas:


O ser é exterioridade: o próprio exercício de seu ser
consiste na exterioridade, e nenhum pensamento poderia
obedecer melhor ao ser senão ao deixar-se dominar por esta
exterioridade [...]. A verdadeira essência do homem se
apresenta em seu Rosto no qual ele é infinitamente Outro
[...] (LÉVINAS, 2000, p. 266).


O acolhimento do Rosto do Outro é uma passagem imprescindível de uma
constituição subjetiva que se dá a partir da sensibilidade. Torna-se
sujeito pelo viés da relação ética do acolhimento. O Outro revela a
subjetividade existente no Eu. O relacionamento humano é recebimento de
Outrem, e este receber só é possível na ética. Contudo, se abrir para a
manifestação do Outro é estar preparado para encontrar um sujeito além de
vivências conhecidas, pois possui um sentido próprio e uma vida singular
(2000, p. 11).
A relação ética compreende um conhecimento que vem de fora, do Outro,
mas um conhecer de aprendiz, de um Eu que se vê ignorante diante da
diferença alheia. Como já afirmado, a relação com o diferente do Eu se
constrói por sensibilidade ao Outro que visita interpelando com o seu
Rosto, com a sua novidade, da qual só ele é dono.

1.2 A visita do Outro como Rosto ao Mesmo

Emmanuel Lévinas traz uma concepção significativa da reconstrução do
sujeito a partir do acolhimento do Outro. Daquele que se manifesta alguém
estranho ao pensamento do Eu, às suas formas, ao seu modo de ser. Todavia,
a alteridade se faz visita, onde um ser humano que, ao vir ao encontro,
como presença manifestada, ensina o processo ético como que através de um
convite de ida à sua presença.
Reconhecer o Outro como um visitar a casa do Eu, é acolhê-lo como
Rosto, que pode se manifestar como "o pobre, o órfão, a viúva, o
estrangeiro" (SUSIN, 1984, p. 201). Ou seja, como alguém que encerra em si
aspectos concretos de alteridade. Para tanto, recebê-los consiste em vê-los
não idênticos, mas como diferentes; possuidores da autoridade de serem
Outros e que exigem e suplicam.
Lévinas defende que é nessa intersubjetividade o lugar da
concretização da consciência moral que é despertada pelo diferente. Assim,
será sempre no lugar do encontro o alcance de um autêntico sentido do
humano.
Para Lévinas, o Rosto como uma categoria que manifesta o humano é uma
visitação a cada instante. O frente-a-frente com o diverso é o início da
reconstrução de um sujeito, não mais fechado em si ou que busca sempre as
suas próprias categorias, mas que procura se constituir como sujeito em si
e como acolhedor do Outro. Acolhê-lo como um 'estrangeiro' é propor-se a
uma abertura para a novidade, para um homem livre por ser estranho e
desconhecido, pois foge às cadeias de uma intencionalidade racional que
queira defini-lo, reduzindo-o em conceitos (1984, p. 199).
O Rosto do Outro, por visitar o lugar do Eu, pede ajuda, suplica uma
atenção e, também, exige resposta. Nesse momento o hóspede é um Outro, que
carrega em si inúmeras necessidades, inúmeras urgências diante do dono da
casa, é

[...] um forasteiro, que me vem de fora, estranho e
estrangeiro ao mundo do dono e que, no entanto, bate à sua
porta, ao seu domínio, ao seu ter, ao seu poder e ao seu
ser, confiando-se como hóspede ao dono em todas as suas
necessidades, pois não tem, não pode, não é. O hóspede tem
apenas um poder: tornar o dono um hospedeiro (1984, p.
202).


O Rosto do Outro solicita auxílios e interpela como um caminhante
livre que, vindo com a sua autoridade de dono de si, é capaz de instruir
com a sua súplica. Estabelece-se aqui uma relação com uma abertura para a
verdade pura que vem de fora, do Outro, do infinito.[4] Contudo, "só o
absolutamente estranho nos pode instruir. Só o homem pode ser absolutamente
estranho" (LÉVINAS, 2000, p. 60). Estranheza essa que inaugura um
relacionamento com a verdade, esta pronunciada pela presença de Outrem, por
uma significação dona de si e que não vem do Mesmo.
O Outro, sem as pré-definições que se é capaz de colocar nele, encara
a cada momento do encontro. O Outro olha de Rosto, com uma expressão única
e sua (2000, p. 29). O Outro que olha, concebido por Lévinas, é o modo como
o Outro se apresenta, não envolvido com os trâmites da ação do olhar
alheio, não como um verbo, mas um Olhar que olha com os olhos que não são
do Eu: é o Rosto.
Entretanto, o Olhar não é olho, e por isso é sem formas, sem
conceitos, sem definições, sem desenhos, onde se é incapaz de condicioná-lo
pelas linhas da corporeidade. Nesse sentido, para Lévinas:


O Rosto está presente na sua recusa de ser conteúdo [...]
não poderá ser compreendido, isto é, englobado. Nem visto,
nem tocado – porque na sensação visual ou táctil, a
identidade do Eu implica a alteridade do objecto que
precisamente se torna conteúdo (2000, p. 173).


Estar em frente a um Rosto é estar diante de um ser humano que é dono
do sentido que comunica, ou seja, dono de seu Olhar, proprietário da sua
significação, por ser ele mesmo a própria significação. Objetivar o Outro é
impossível, pois a "face que é animada por um Olhar não é fachada" (SUSIN,
1984, p. 204) não pode ser limitada a uma parada, a uma fixação, a algo
pronto e determinado, mas é sempre renovação, é sempre verdade e novidade
humana. Para tanto, o "Rosto é expressão; é presença–ausência da
exterioridade que não se esgota em imagem ou intuição" (PELIZZOLI, 1994, p.
86).
Conceber o Rosto como fora dos padrões plásticos, mas como expressão
humana e, por isso, viva e capaz de renovar-se em cada encontro, é uma
maneira legítima que Lévinas coloca para o sentido ético do humano. Nesta
relação o sujeito entende que não há mais um encontro consigo mesmo, onde
se busca desvelar e iluminar pela forma que se dá, mas um encontro com um
alter do ego, com um Outro que se volta nu, liberto de toda a forma.
Portanto,


[...] A nudez do Rosto não é o que se oferece a mim porque
eu o desvelo – e que, por tal facto, se ofereceria a mim,
aos meus poderes, aos meus olhos, às minhas percepções
numa luz que lhe é exterior. O Rosto voltou-se para mim –
e é isso a sua própria nudez. Ele é por si próprio e não
por referência a um sistema (LÉVINAS, 2000, p. 61).


Será pela própria nudez do Rosto a capacidade de um relacionamento sem
mediações, ou seja, será frente a alguém que olha com seus olhos e não com
outros olhos, a potencialidade de uma relação não absorvida pela
corporeidade, pela espessura da ontologia. O Rosto tem uma luz própria,
vibrante, a sua luz que não depende da iluminação alheia. Ou seja, "ele já
se apresenta em seu esplendor e sinceridade, inteiramente iluminado pela
luz da alteridade. De além ele vem imediatamente aquém" (SUSIN, 1984, p.
206).
Por ter luz própria, o Rosto não é visto pela luz das
intencionalidades do Eu, mas vem desde uma dimensão de transcendência. A
manifestação do Outro por não se dar no âmbito ontológico é epifania, é
entrada, é revelação. Assim, o revelar do Outro é a exterioridade absoluta
(1984, p. 207).
A epifania do Rosto se efetiva na entrada de alguém totalmente novo no
ambiente velho do Eu. O Olhar epifânico do Outro é capaz de desinstalar o
conhecido e suscitar no Eu uma acolhida de seu Rosto como alguém
extremamente suplicante, necessitado de um abrigo. Portanto, o Outro incita
no Eu a generosidade:


O Olhar que suplica e exige – que só pode suplicar porque
exige – privado de tudo porque tendo direito a tudo e que
se reconhece dando (tal como ) –, esse Olhar é precisamente a epifania
do Rosto como Rosto. A nudez do Rosto é penúria.
Reconhecer Outrem é reconhecer uma fome. Reconhecer
Outrem – é dar. Mas é dar ao mestre, ao senhor, àquele
que se aborda como o numa dimensão de altura
(LÉVINAS, 2000, p. 62).

Neste sentido, Lévinas concebe o Rosto como um revelar em uma
dimensão paradoxal, ou seja, o Outro tem a capacidade de Olhar abaixo do
mundo do Eu quando se humilha intrinsecamente em sua súplica e, também,
potencializar um Olhar acima do Eu quando lhe exige uma resposta.

1.3 O ser humano que se expressa no Rosto como Palavra

Estar em relação com o Outro é estar desarmado de intencionalidades, é
colocar-se em um relacionamento sem ornamentos, revestimentos e sem
qualquer pretensão de nivelar o Outro. Tal relação quebra o viés das
pretensas interpretações do Eu que, por vezes, podem fixar-se em seus
fenômenos e equívocos acerca do Outro. Assim, o Rosto alheio não é uma
resposta aos questionamentos do Eu, mas é uma pergunta às suas pretensões,
por vezes existentes.
Relacionar-se com Outrem é deixá-lo livre da busca de uma
tematização, ou seja, não é "uma invocação do que não fala" (2000, p. 52)
ou um relacionamento com algo estagnado ou preparado, é com alguém que
possui vida em si, capaz de pronunciar-se ao seu favor para livrar-se de
anseios conceituais do Eu. Pois, "O Rosto é uma presença viva, é expressão.
[...] O Rosto fala. A manifestação do Rosto é já discurso. Aquele que se
manifesta traz ajuda a si próprio, segundo a expressão de Platão. Desfaz a
cada instante a forma que oferece" (2000, p. 53).
O Outro, em seu Rosto, é palavra que significa por si mesmo.
"Apresentar-se, significando, é falar" (2000, p. 52). O único meio de não
entrar nos significados que o Eu possa dar ao Outro é ele mesmo ser dono de
seu sentido. Por isso, o Rosto, por ser revelação portando a sua palavra, a
sua expressão, a sua novidade, não pode ser desvelado. Na nudez da falta de
mediações e de contornos, a palavra alheia é uma palavra sincera que se
apoia somente em si mesma e, por isso, original. A palavra do Outro é algo
que o Eu não pode controlar ou manipular. Ela é sua.
Lévinas concebe, firmemente, que a palavra do Rosto, ou seja, a sua
vez de voz, inaugurada pelo relacionamento, é o princípio da ética. A
presença do Outro fala e instaura o sentido ético do acolhimento. Na
recepção da palavra alheia se pode reconstruir um indivíduo verdadeiramente
humano. Para tanto, o original da ética se dá no Rosto do Outro que, ao
pronunciar a sua palavra, a sua fala, se dirige não mais à visão do Eu, mas
ao seu ouvido, "o mais passivo e obediente dos sentidos, sentido que se
define pela obediência" (SUSIN, 1984, p. 208).
O Outro, antes de se apresentar como luz à visão, se revela abrindo a
condição para a audição e para a linguagem, ou seja, por criar no Eu a
audição, é uma palavra – princípio. Diferentemente dos fenômenos e dos
símbolos que são entregues a interpretações, a palavra do Outro é, a todo o
momento, renovada pela sua presença, pela sua expressão. Susin afirma:


A palavra original, o Olhar nu e sincero que fala, que se
auto-comunica como palavra, inaugura o ensinamento – faz-
se signo, sinal de si, da transcendência. Este é o
ensinamento real, não-maiêutico, que introduz a novidade
no meu mundo, que chega de além do horizonte traçado em
última análise pela minha própria luz: alteridade,
exterioridade e magistério se equivalem (1984, p. 209).


Para Lévinas, a beleza original da revelação do Outro, beleza por ser
própria e única e não fisionômica, é a maravilha da exterioridade que
quebra o egoísmo e coloca o Eu numa posição de aprendizado (LÉVINAS, 2000,
p. 60). Aprendiz se é quando, ao deparar-se com o Outro, a sua palavra será
capaz sempre de falar algo que não se conhece, não imagina, nem espera.
Entretanto, será a estranheza do Outro, o seu reconhecimento, onde ele se
encontra sem ornamentos e, por mais que se queira descrevê-lo, ele
transbordará a todo o instante qualquer compreensão que dele se possa ter.
O Outro se faz excesso de si mesmo que, ao inaugurar com a sua fala a
linguagem, provoca a ruptura com a ordem do que possivelmente já poderia
estar estabelecido. A fala do Outro manifesta por si só um impulso vital
incapaz de ser objetivado. A todo o tempo, no frente-a-frente, a pronúncia
alheia desorganiza qualquer pré-conceito ou possíveis leituras, propondo,
assim, uma originalidade na palavra, que por vir de fora é ensinamento.
Lévinas fixa sua concepção numa necessidade original de acolhimento da
fala do Rosto pois, acolher o Outro, é permitir a sua fala e admitir que
não se sabe nada dele. Estar em face de Outrem, que se expõe em sua origem,
é possibilitar o encontro, possibilitar uma manifestação sempre nova,
diante da novidade de sua palavra que oferece uma experiência profundamente
original e, consequentemente, de quem torna o Eu um aprendiz (2000, p. 60).

O Outro, como que vem de um lugar não familiar, apresenta-se com o seu
Rosto nu, transbordando uma transcendência imediata, trazendo em si uma
palavra de mestre, quebrando o egocentrismo do Eu. Para tanto, é o
relacionamento com Outrem, uma relação que "introduz uma dimensão da
transcendência e nos conduz para uma relação totalmente diferente da
experiência no sentido sensível do termo, relativa e egoísta" (2000, p.
172).
O Rosto ensina a transcendência e faz do Eu alguém que já não pode
mais. Não poder mais poder é paralisar as tentativas diante de quem tem
resistência própria e de onde não se pode nada. Entretanto, o resistir do
Outro às posses possui uma estrutura essencialmente positiva, ou seja,
ética. O Rosto é ética a cada encontro, a cada posse de si mesmo, e não
pelas possessivas e possíveis investiduras do Eu. Prossegue Lévinas:

Há uma relação, não com uma resistência muito grande, mas
com alguma coisa de absolutamente Outro: a resistência do
que não tem resistência – a resistência ética. A epifania
do Rosto suscita a possibilidade de medir o infinito da
tentação do assassínio, não como uma tentação de
destruição total, mas como impossibilidade – puramente
ética – dessa tentação e tentativa (2000, p. 178).


A ética como um relacionamento entre humanos ganha sentido no Rosto
alheio. É na moralidade da lei proferida pelo Outro que a relação da face-a-
face se sustenta. O Outro faz frente com o Eu e lhe afirma: 'Tu não
matarás', ou seja, tu não podes mais crer que podes tudo. Assim, a epifania
do Rosto é simultaneamente uma só realidade: epifania – palavra-
interdição. O Rosto ao se exprimir, impõe-se, sendo ao mesmo tempo clamor e
exigência, apelando para o Eu se sensibilizar diante da miséria e da sua
nudez do Outro (SUSIN, 1984, p. 217).
Pode-se pensar que o Outro exerce uma forma de ditadura sobre o Eu
mas, na realidade, o que acontece é um relacionamento original que promove
a liberdade. O ser que impõe suscita a bondade, a responsabilidade e ensina
a usufruir das livres decisões que o Eu possui, não deixando que caiam numa
libertinagem. O Outro provoca a revisão, ou seja, faz aprender a ser humano
com a sua voz (1984, p. 260).
Está-se diante de alguém que se expressa e que potencializa em si a
urgência ética da consciência moral. A presença do Outro proporciona um
constante questionar do Eu, exigente de resposta, a partir de uma revisão
que inaugura o racional vindo de fora, dessa exterioridade Absoluta, que
apela e manda. O Outro, ao se pronunciar, anuncia a sua presença. Esse
encontro, por se ancorar na linguagem, é a inauguração do discurso.
É o lugar do encontro, o local do discurso ético, que promove uma
significação original, ou seja, o significante que emite o sinal da sua
palavra faz do significado a sua própria presença única. Contudo, aqui
reside a ousadia do Rosto do Outro, por mostrar um significado que não vem
em função da consciência, mas vem anterior a ela, incitando a sua dinâmica
pela presença.


A originalidade do discurso em relação à intencionalidade
constituinte, em relação à consciência pura, destrói o
conceito da imanência: a ideia do infinito na consciência
é um transbordamento dessa consciência, cuja encarnação
oferece poderes novos a uma alma que já não é paralítica,
poderes de acolhimento, de dom, de mãos cheias, de
hospitalidade (LÉVINAS, 2000, p. 183).

O Outro mostra um discurso que exige acolhimento. Acolhimento de sua
presença, de sua linguagem fora de contextos e sempre viva, por ser
atualizada por seu Rosto, por sua diferença. Assim, a diferença do Outro se
revela pela possibilidade dele estar por detrás da pronúncia. A diferença
alheia, residente em sua singularidade que não se resume em traços físicos,
é solidificada pela palavra – mandamento proferido. A alteridade é
mandamento que não mais quer fazer parte da massa humana, da totalidade, é
Rosto que possui a originalidade em seu próprio existir, singular.
A relação com o Rosto alheio começa sempre de um modo moral onde, no
face-a-face, ele se manifesta de uma maneira não panorâmica, separado do
Eu, do seu ambiente, da sua mundaneidade comum. Nessa relação, o Outro é a
todo o instante um novo momento, uma nova visita, apresentando-se "mais do
que eu e mais do que ser, ensinando e exigindo como mestre e mandamento
[...] sendo pobre, estrangeiro [...] e senhor" (SUSIN, 1984, p. 217).
Contudo, pode-se afirmar que "eu tenho autoridade de interioridade e o
Outro tem autoridade de alteridade" (1984, p. 217).


1.4 A Responsabilidade como acolhimento do Rosto do Outro

Lévinas afirma que o Outro porta sempre um tempo estranho ao tempo do
Eu. Ou seja, o Outro é sempre visitação que se revela inaugurando um tempo
que passa, pois em seu Rosto é capaz de falar que não há somente o presente
de quem o olha. Isso inaugura uma separação não somente temporal, mas de
concretude pessoal. Ou seja, o Outro separado de mim e do mundo, ajunta
pela primeira vez à categoria de separação a sua significação etimológica
ética, a "santidade" (1984, p. 220). A santidade do Outro reside na
exterioridade de ser Outro, totalmente outro.
A relação ética fundamentada a partir desse viés compreende a
importância de não mais nivelar o alheio ao Eu, mas de acolhê-lo e respeitá-
lo, justamente por ser uma subjetividade própria, original e estranha aos
horizontes já conhecidos pelo Eu. Aqui, para Lévinas, a diferença do Outro
não é causa de anulação de relacionamento, mas a santidade, o Outro como
Outro tem conotação puramente moral.
A subjetividade alheia deve ser acolhida em seu valor único e, que se
revelando gratuitamente, sem as pretensões do Eu, proporciona uma relação
não pautada pela necessidade, mas pelo desejo de acolhimento e de
responsabilidade. Diante da absoluta diferença de outrem, não há outra
atitude a não ser a de pura receptividade (LÉVINAS, 2000, p. 183).
Enquanto o Eu é capaz de perseverar somente em si, esforçando-se
ansioso por si mesmo, tendo a capacidade de ser egoísta e, por isso, tornar-
se mal, o Outro é o bem, por resgatar o Mesmo dessa maldade. Nesse resgate
o Outro acusa a identificação do Eu com o mal, chamando-o para a
responsabilidade.
Agora não há mais um sujeito encerrado em si mesmo, incapaz de
acolhimento do diverso, mas um humano responsável e acolhedor do Rosto do
Outro. É "a 'maravilha' do surgimento da consciência moral que reside no
fato de que não é mais consciência de um eu solitário: é consciência da
paradoxal 'presença' do outro, e consciência de si 'na presença do outro'"
(SUSIN, 1984, p. 260).
Com essa concepção, Lévinas procura um sentido para o humano na
significação ética. Busca conceber um novo ser, um novo homem que aventura-
se contracorrente do Eu. Essa aventura só é possível porque antes uma
subjetividade infinitamente outra entra e se revela no mundo do Mesmo. O
Outro está aí, e não há como negar.
Susin comenta que nessa relação o homem novo é capaz de "surpreender-
se na presença de quem é mais do que o presente" (1984, p. 265) e sentir-
se, ao mesmo tempo, envergonhado e desejoso. Envergonhado com a sua passada
autarcia, onde via somente a si, desejoso por uma aspiração de saída de si-
mesmo. A exterioridade do Rosto do Outro suscita ao desejo moral de
responsabilidade e, liberta de intenções egoístas, pautadas pela satisfação
de necessidades. O Outro vem de fora e, por isso, não se enquadra em
pretensões existentes.
Para Lévinas, como o Outro é o bem que desestrutura a maldade do Eu,
é ele que desperta o desejo responsável de realizar o bem. Não de se
satisfazer com o bem, mas de aspirá-lo. Ou seja, o Outro cava sempre no Eu
uma fome insaciável de generosidade e de doação. É, portanto, a bondade a
resposta de responsabilidade para com Outrem. Ser responsável em relação ao
Outro é nunca cessar de responder (LÉVINAS, 2000, p. 22).
Nunca se pode dizer missão cumprida quando se fala em níveis de
comprometimento com o humano. Responder ao Outro com o bem é também tomar
consciência de que só o Eu pode dar a resposta por si e que, por isso, é
convidado até mesmo a responder pelo Outro. Ser um-para-o-Outro é o que
Lévinas concebe como uma subjetividade reconstruída pelos trâmites do ser
responsável.
Na resposta do Eu há uma consciência de eleição, de uma missão. Missão
de acolher a alteridade que a cada visita revela também uma subjetividade
positivamente diversa. A linguagem de eleição, empregada por Lévinas, é
decididamente bíblico-messiânica e que descreve o subjetivo presente no
mundo como eleição (SUSIN, 1984, p. 445).
Como o homem não é um projeto saído de si mesmo, ele é criatura
colocada no mundo, e eleita a responder por estar no mundo. Assim, ao estar
no mundo não se pode mais esconder de dar respostas, mas se é chamado a
responder responsavelmente por ser eleito. É-se criatura vocacionada a
viver. E viver é dar respostas a todo o momento.
Essa eleição vem de fora, vem do Outro. O Outro é vindo do Bem e é
quando ele chama pelo nome que se é convocado a dar a resposta de
existente: "Eis-me". É, pois, "a relação social que gera esse excedente do
Bem" (LÉVINAS, 2000, p. 272). Lévinas, aqui, fortemente concebe que não se
pode reduzir o humano a liberdade e a autonomia, mas que ser livre e
autônomo é ser responsável e sensível ao chamado do Outro.
A passagem do infinitamente Outro no mundo do Eu é, portanto, capaz de
deixar um vestígio de responsabilidade, sensibilidade e acolhimento.
Inaugura-se uma reconstrução de um sujeito, não mais fechado em si, mas
possível de inaugurar um reino de bondade, paz e fraternidade frente à
diversidade do Rosto alheio (RIBEIRO, 2008, p. 488).













2 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA GAUDIUM ET SPES


Ao olhar para a realidade humana, apresentada pela Constituição
Pastoral Gaudium et Spes, percebe-se o princípio de 'dignidade' também com
um ponto em destaque. Salienta-se que o ser humano possui um sentido digno
de ser "criado à imagem de Deus" (GS 12). Para tanto, saber-se dignificado
por este aspecto compreende para o humano um sentido profundo de 'ser' e
'estar' no mundo. Ou seja, ter consciência de ser ligado a Deus dessa forma
possui um desdobramento prático extremamente relevante para a vida em
sociedade.
A inteligência e o livre arbítrio do ser humano são pontos que estão
intrinsecamente unidos ao termo da dignidade. Essas capacidades são
ordenadas para a comunhão com Deus. Ou seja, o homem possui a inteligência
e a liberdade precisamente para entrar em profunda relação com o Criador,
comungar do Sumo Bem e, consequentemente, desenvolver seus dons no âmbito
social (GS 12).
Entende-se que o humano abarca, no relacionamento com Deus, a sua
vocação. Na Encarnação isto se revela com maior propriedade. A vocação do
homem se reconhece e se realiza em Cristo, Deus encarnado. Este ponto é
alto na Constituição, justamente por apresentar que a antropologia é
cristológica. O que movimenta a humanidade, o que proporciona sentido a ela
é porque, em Cristo, se descobre a sua verdadeira vocação. O real
significado do humano se 'esconde' no Deus encarnado (GS 22).
No ambiente comunitário a vocação do ser humano se manifesta
significativamente. A Revelação cristã possui muito a oferecer em termos de
aperfeiçoamento das relações pessoais, em vista do bem comum. Qualificando
o relacionamento intersubjetivo pelo viés de uma vida autenticamente cristã
e fomentando a solidariedade por conta disto, o humano voltado para o
Cristo tende a constituir um clima de amor e justiça, no contexto onde se
encontra (GS 32). A promoção do bem comum se torna visível quando se
constrói uma vida embasada nos valores cristãos.


1. O homem criado à imagem de Deus

A Constituição recorda o homem na doutrina da criação trazendo o
elemento base nela apresentado. Na afirmação "o homem foi criado 'à imagem
de Deus', capaz de conhecer e amar seu Criador, que o constituiu senhor de
todas as coisas terrenas" (GS 12) está condensada a realidade de que, na
criação, o ser humano ocupa um espaço central. O ser humano encontra, nesta
assertiva, um conceito de dignidade inegável.
No sentido bíblico do termo 'imagem', todo o humano é imagem de Deus.
Este fato revela uma grande comunhão entre Criador e criatura, onde a
pessoa humana aparece como ligada ao íntimo mistério divino, no qual Deus
se torna presente em sua criação. Assim, Caldeira afirma:


Compreende-se a dimensão do envolvimento humano. Amando-se
o homem, ama-se nele e para além dele o próprio Deus. Se
essa imagem é ferida algo do divino é violado. Se essa
imagem atinge todo o seu vigor, promovida sua verdadeira
dignidade, a glória de Deus resplandece (2011, p. 57).


É significativo que, em sua atividade, o ser humano transparece a
imagem do Criador. Tal realidade não pode ser reduzida à dimensão
espiritual, mas fala de uma dignidade fortemente concreta em termos de
atitude. O agir humano no tempo, ou seja, na concretude histórica, em busca
da promoção de valores que elevem a dignidade da pessoa, é o próprio
exercício da vocação de imagem sendo atualizada (2011, p. 57).
Na afirmativa bíblica, "a imago Dei constitui quase uma definição do
ser humano: não é possível compreender o mistério do ser humano separado do
mistério de Deus" (DOCUMENTO DA COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, 2005, p.
472). Este mistério envolve o ser e o agir humano, justamente por que dão
sentido existencial ao mesmo, e iluminam as suas práticas. Contudo, "por
ser à imagem de Deus, o indivíduo humano tem a dignidade de pessoa: ele não
é apenas alguma coisa, mas alguém" (CIC, n. 357 apud REILLY, 2013, p. 3).
A teologia patrística e medieval refletiram significativamente em
relação ao que comporta o humano ser a imagem de Deus.[5] A concepção, a
partir do Concílio Vaticano II, trazida pela Constituição Gaudium et Spes,
traz um novo impulso a esta teologia, traçando pontos intrinsecamente
bíblico e sociais. Para tanto,

Evocando o tema da imagem de Deus, na Gaudium et spes o
Vaticano II afirma a dignidade do homem tal como esta é
ensinada em Gn 1,26 e no Salmo 8,6 (GS 12). Segundo a
visão conciliar, a imago Dei consiste na fundamental
orientação do ser humano para Deus, fundamento da
dignidade humana e dos direitos inalienáveis da pessoa
humana. Dado que todo ser humano é imagem de Deus, ninguém
pode ser obrigado a submeter-se a qualquer sistema ou
finalidade deste mundo (DOCUMENTO DA COMISSÃO TEOLÓGICA
INTERNACIONAL, 2005, p. 477).


Sabe-se que, por ser imagem de Deus, o ser humano possui uma dignidade
incomparável. Neste sentido, a prevalência do humano diante da criação, a
sua vida social e o amor a Deus (GS 12), "são elementos que encontram suas
raízes no fato de que o ser humano foi criado à imagem de Deus" (2004, p.
477).
A perspectiva antropológica da Gaudium et Spes une a dimensão
cristológica ao conceito de imagem de Deus. A criação do ser humano segundo
a imagem divina não possui sentido "sem o contexto neotestamentário da
criação segundo a imagem de Cristo" (CALDEIRA, 2011, p. 64). Tal relação
foi presente na visão conciliar possuindo como fundamento a "reflexão de
Tertuliano: 'Quando Deus modelava Adão pensava em Cristo' (GS 22)" (2011,
p. 64).
A partir da visão Conciliar a teologia da Imago Dei ressalta
profundamente o valor da criação e as possibilidades de realização que
Cristo abre para o ser humano, como imagem perfeita do Pai. Em Cristo, a
imagem divina no humano sempre terá possibilidade de restauração e
finalidade. Assim, para tornar-se a imagem de Deus a humanidade "deve
promover sua transformação de acordo com o padrão de imagem do Filho, que
manifestou sua identidade através do movimento histórico de sua encarnação
(Cl 3,10-14)" (2011, p. 64).
Na negligência desta promoção, o ser humano, partindo de sua
liberdade, é capaz de 'desfigurar' esta imagem pela via do pecado (GS 13).
A Constituição é clara quando afirma que ao desejar atingir sua finalidade
fora de Deus, o ser humano destrói a imagem divina que possui. A ordem do
seu relacionamento com Deus é destruída, bem como a harmonia consigo mesmo,
com os outros e as demais criaturas (GS 13). Assim, o pecado reduz o
próprio ser humano, o diminui e o impede de viver plenamente.
Pela conversão do pecado o humano tem a possibilidade de, aderindo ao
Cristo, que manifestou a sua soberania sobre o pecado e a morte (GS 13),
reconstituir a sua altíssima vocação de estar ligado a Deus. Assim,


Jesus Cristo, ressuscitado, é o novo princípio da
humanidade, ao superar os condicionamentos negativos do
pecado e da morte. Na ressurreição se torna claro o plano
de Deus para os homens. Ser homem é passar da condição de
Adão à de Cristo. Ser homem, ser verdadeiro homem é
assumir a condição de Cristo, uma determinação definitiva
da condição humana (LADARIA, apud CALDEIRA, 2011, p. 65).

Na base do ensinamento antropológico conciliar, trazido pela
Constituição, se encontra a determinação cristológica da imagem: "Cristo é
que é a imagem visível do Deus invisível (Cl 1,15) (GS 10). O Filho é o
homem perfeito que restitui aos filhos e às filhas de Adão a semelhança
divina, ferida pelo pecado dos primeiros genitores (GS 22)" (CTI, 2004, p.
477). Assim, na encarnação do Filho se revelou a verdadeira compreensão da
doutrina da Imago Dei à luz cristológica. A reflexão sobre a imagem divina
se efetiva na relação com a criação e a encarnação, mostrando que a criação
se torna plena em Cristo.


2.2 O homem dotado de Inteligência, Consciência Moral e Liberdade

Ao afirmar que para tornar-se imagem de Deus o homem deve promover sua
transformação de acordo com o padrão da imagem do Filho, a Constituição
traz a realidade humana da inteligência, consciência moral e liberdade
neste processo. Apresenta, portanto, estes atributos humanos como
colaboradores na estruturação da Imago Dei no ser humano.
Através da caminhada histórica, o ser humano foi aperfeiçoando a sua
inteligência em diferentes áreas, possibilitando o progresso social (GS
15). Significativo é quando há a percepção de que a inteligência precisa
estar guiada pela sabedoria, proporcionando ao ser humano a qualificação
intelectual. Assim, encaminhado pela sabedoria, o humano faz usufruto da
inteligência, atraindo-a para a procura do amor, da verdade e do bem, e
tende a realizar as atividades com a profundidade que convém (GS 15).
Neste sentido, a Constituição afirma que "Impregnado de sabedoria o
homem passa das coisas visíveis às invisíveis" (GS 15). Tal passagem é
extremamente relevante para que não se reduza tudo ao material, perdendo a
importância das realidades espirituais (SEHNEM, 2010, p. 131) e para que o
progresso, com suas descobertas, se torne cada vez mais humano. Com isso, o
ser humano entende que o plano divino faz parte da organização social, e
que guiado sempre pelo dom do Espírito Santo, na fé, a humanidade caminha
contemplando e saboreando, na história, a vontade de Deus (SEHNEM, 2010, p.
131).
O ser humano, significativamente, dá-se conta dessas realidades
através de outro atributo, que lhe é sinal de dignidade: a Consciência
Moral. A Constituição esclarece neste sentido:


Na intimidade da consciência, o homem descobre uma lei.
Ele não a dá a si mesmo. Mas a ela deve obedecer. [...] De
fato o homem tem uma lei escrita por Deus em seu coração.
Obedecer a ela é própria dignidade do homem, que será
julgado de acordo com esta lei. A consciência é o núcleo
secretíssimo e o sacrário do homem onde ele está sozinho
com Deus e onde ressoa a sua voz (GS 16).

Fazer a vontade de Deus, que se cumpre no amor a ele e ao próximo, é
demonstrar fidelidade a esta consciência, reveladora da lei divina.
Obedecendo a esta, a humanidade se une na busca da verdade e de soluções
justas para os diversos problemas morais presentes na conjuntura social (GS
16). Contudo, "acontece não raro que a consciência erra, por ignorância
invencível, sem perder, no entanto, sua dignidade" (GS 16).
Cabe ressaltar que, neste último caso, supõe-se que tenha havido um
prévio e normal esforço de formar retamente a consciência, mas sem
resultado positivo (HUMMES, 2005, p. 631). Hummes destaca que essa doutrina
conciliar responde à exigência da modernidade, que salienta a moral como
algo que não pode vir simplesmente de fora do ser humano, como submissão
externa, mas deve partir também do interior. Para tanto, "a lei inscrita
por Deus no coração de cada ser humano é esta raiz, esta voz da
interioridade, esta cumplicidade interior, que é a capacidade de acolher as
normas objetivas da moral [...]" (2005, p. 631).
Acolher a lei divina presente no ser humano e, assim, evolver-se com
a busca do bem, só é possível pelo viés da liberdade. É na "grandeza da
liberdade", como destaca a Constituição, que a humanidade ressalta um sinal
claro da imagem de Deus. Foi o próprio Deus que deu a liberdade ao ser
humano, para que o mesmo procure na espontaneidade seu Criador. Isso
significa afirmar que a dignidade humana consiste "na sua própria liberdade
de fazer opções e escolhas" (SEHNEM, 2010, p. 131).
É na liberdade bem trabalhada pela lei de Deus, e adentrando
livremente na sua vontade, que o humano chega à almejada felicidade (GS
17). Diante dos esforços que se podem fazer para realizar a vontade de
Deus, um obstáculo para a sua concretização é o próprio pecado. A liberdade
do ser humano é vulnerável a ele. Por isso, mesmo diante da realidade do
pecado, com o auxílio da graça divina, a humanidade sempre poderá ordenar a
liberdade para que seja direcionada a Deus (GS 17).

3. Cristo como fonte da dignidade humana

Um dos marcos da Constituição, quando trata da dignidade humana, é
ressaltar a Encarnação como ponto alto desta reflexão. Ao afirmar que:
"[...] o mistério do homem só se torna claro verdadeiramente no mistério do
Verbo encarnado" (GS 22), salienta que o Cristo é quem apresenta ao ser
humano quem ele é e quem realmente precisa ser. Esta verdade é por deveras
profunda, uma vez que apresenta a questão existencial da humanidade. Assim,
sem Cristo, o ser humano jamais poderá reconhecer a finalidade da sua
existência (REILLY, 2013, p. 4).
A Constituição recorda que Cristo se apresenta como "'Imagem do Deus
invisível' (Col 1,15), Ele é o homem perfeito, que restituiu aos filhos de
Adão a semelhança divina, deformada desde o primeiro pecado" (GS 22). A
Imago Dei, tratada anteriormente, é expressa aqui de uma forma muito
concreta. Como abordado, o próprio Cristo revela ao ser humano como este
pode aproximar-se da sua imagem natural, que na criação recebera.
O ser "'imagem de Deus', capaz de conhecer e amar seu Criador" (GS
12), em Cristo, se torna fortemente evidente. Será no assemelhar-se com a
vida do Cristo que o ser humano estará se aproximando de sua real imagem e,
assim, descobrindo a sua altíssima vocação (GS 22). Por isso, esta
perspectiva cristológica lança horizontes de sentido ao caminhar do ser
humano.
A revelação de Jesus mostra ao ser humano a dignidade da vocação, a
vocação divina. Nele aparece a humanidade perfeita. Novo Adão, Jesus
manifesta o plano de Deus para o homem. A teologia paulina, trazida pela
Constituição através da citação de Colossenses, capítulo um, enfatiza a
dimensão cristológica da imagem justamente para apresentar o referencial de
sentido existencial à humanidade. Há duas razões para se valorizar esta
dimensão da teologia neotestamentária da imagem:


A primeira razão se refere à unidade entre criação e
salvação, Antigo e no Novo Testamento, com relação ao
plano eterno de Deus. A segunda é que a gratuidade do
acontecimento de Cristo torna possível a nossa relação com
Deus e a nossa capacidade de conhecê-lo e amá-lo,
realizando-se com a mediação de Jesus Cristo (LADARIA apud
CALDEIRA, 2011, p. 67).

No conceito de imagem, a partir dos fundamentos neotestamentários,
acrescenta-se agora a realidade cristológica, que oferece completude à
verdade da criação do homem ser à imagem de Deus. Este conceito mantém
unidas, assim, a dimensão antropológica e cristológica. É em Cristo que o
ser humano toma conhecimento do que foi chamado a ser. Por isso, "a vocação
divina do homem em Cristo significa um chamado a ser como Ele. É o domínio
de Cristo que se realiza para que todas as coisas se encaminhem para Deus"
(CALDEIRA, 2011, p. 67).
Compreende-se que só Cristo revela a realidade mais profunda do ser
humano, o modelo perfeito de pessoa. É significativo destacar que a relação
com o Filho apresenta o elemento essencial para o ser humano e o que o
constitui como tal. Ou seja, o próprio Cristo revela o que deve ser
considerado apropriado para a humanidade. Assim, esta "dimensão
cristológica na vida do homem oferece respostas sobre sua origem, sua
identidade e seu destino que não pode alcançar sua plenitude senão no
próprio Cristo" (2011, p. 68).
A Constituição salienta, que pelo Mistério de Cristo, as pessoas
humanas adquiririam uma nova dignidade. Ao assumir a realidade humana,
Cristo também a eleva. Neste sentido, se afirma:

Como a natureza humana foi n'Ele assumida, não aniquilada,
por isso mesmo também foi em nós elevada a uma dignidade
sublime. Com efeito, por Sua encarnação, o Filho de Deus
uniu-Se de algum modo a todo homem. Trabalhou com mãos
humanas, pensou com inteligência humana, agiu com vontade
humana, amou com coração humano. Nascido da Virgem Maria,
tornou-Se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em
tudo, exceto no pecado (GS 22).


Jesus Cristo revelou historicamente, e de modo singular, o que e quem
é o ser humano. Aberto à Revelação, a humanidade entende que Cristo "dá a
verdadeira profundidade e grandeza a todas as afirmações sobre o homem
[...]" (RAHNER, apud CALDEIRA, 2011, p. 69) e seu desejo por vida plena.
Portanto, em Cristo acontece o ponto de encontro da busca humana por
plenitude com o desejo de auto-comunicação de Deus.
Todo o sentido existencial do ser humano, dado a partir de Cristo,
envolve também um sentido profundo de reconciliação. Neste ponto, afirma a
Constituição, que Cristo "Cordeiro inocente, por meio de Seu sangue
livremente derramado, mereceu-nos a vida. N'Ele Deus nos reconciliou
consigo e entre nós" (GS 22). Padecendo pela humanidade, Cristo não apenas
fornece um exemplo de amor-doação, mas abre um caminho de seguimento que
possibilita que a vida e a morte sejam santificadas e, por isso, tenham
nova significação (GS 22).
A possibilidade de assemelhar-se com a imagem do Cristo, que traz
para a humanidade razões profundas de ser e agir, é sustentada pela força
do Espírito Santo. O ser humano cristão recebe este impulso para que o
torne capaz de cumprir a lei divina. Renovado, caminhará imbuído pela
vontade de Deus, rumo à vida eterna. Para Caldeira, entende-se que,

O documento em seu número 22 colocou em evidência o
princípio que deve nortear a antropologia teológica e a
escatologia cristã a partir de uma visão do mistério de
Cristo: a primazia de Cristo em relação à criação; o valor
salvífico da encarnação; o mistério do Pai e seu amor; e,
a presença operante do Espírito para os homens (2011, p.
67).

O Espírito Santo é quem acompanha a humanidade, diante dos desafios
das conjunturas sociais, no processo de aproximação do Cristo. Este
itinerário corresponde ao desejo de verdade e transcendência que o ser
humano carrega dentro de si. Em Cristo, o humano encontra a fonte destas
sedes inatas, e o Espírito Santo auxilia para que, perante o vazio de
respostas e sentidos do mundo moderno, o desânimo não se estabeleça em seu
coração, e encontre em Cristo a resposta para suas perguntas. Assim, o ser
humano,

[...] Enquanto de uma parte, porque criatura experimenta-
se limitado de muitas maneiras, por outra parte, porém
sente-se ilimitado nos seus desejos e chamado a uma vida
superior. [...] A Igreja, porém acredita que em Cristo,
morto e ressuscitado para todos, pode oferecer ao homem,
por seu Espírito, a luz e as forças que lhe permitirão
corresponder à sua vocação suprema (GS 10).


4. A vida comunitária como reveladora da dignidade humana

A Constituição recorda que, na gênese do ser humano, a realidade
social se faz presente. Deus não criou o humano solitário, e o relato
bíblico fundamenta esta certeza ao narrar que desde o início "'Deus os
criou homem e mulher' (Gn 1,27)" (GS 12). Para tanto, esta união deixa
clara a primeira forma de comunhão de pessoas, e faz afirmar que o "homem
é, com efeito, por sua natureza íntima, um ser social" (GS 12).
Na interação social, o ser humano vai qualificando-se como pessoa e
descobrindo também sua verdadeira identidade. A importância da alteridade
no processo de entendimento da dignidade humana é extremamente relevante.
Com as relações sociais são trabalhadas a fraternidade e o respeito mútuo
(LOPES, 2011, p. 78), proporcionando assim, a compreensão de que na vida,
em comunidade, o humano se torna mais humano.
Neste processo, a Revelação cristã oferece grande contribuição. Leva o
ser humano a compreender as leis que necessitam reger a vida em sociedade,
que "o Criador gravou na natureza espiritual e moral do homem" (GS 23).
Portanto, a vocação humana também é entendida na índole comunitária,
justamente porque todo o gênero humano é chamado a um único e mesmo fim,
que é o próprio Deus (Cf. GS 24).
As relações intersubjetivas jamais podem ser negligenciadas. Pela
preocupação com o outro se vive o bem comum, na construção de um ambiente
social voltado para o mandamento divino do amor, que é a plenitude da lei.
Para tanto, "essa dimensão é profundamente revolucionária e transformadora
que nos reporta aos cristãos e comunidades primitivas onde todos repartiam,
fraternalmente, o pão" (MARIANI, 2010, p. 133).
No esquecimento do fundamento do amor inspirado por Deus, para a vida
em sociedade, reside a negligência com o processo de aperfeiçoamento humano
à luz da vontade de Deus (2010, p. 133). Não se pode negar que o divino
qualifica a realidade social humana, sugerindo, quando o próprio Jesus reza
ao Pai que "'todos sejam um..., como nós somos um' (Jo 17, 21-22) (GS 24)"
a "união dos filhos de Deus na verdade e na caridade" (GS 24).
A qualificação da pessoa humana e o reconhecimento de sua dignidade
perpassam, o tempo todo, a vida social. Na mútua dependência entre as
pessoas, expressa no convívio e na preocupação com o outro, a sociedade
humana vai se desenvolvendo. Para tanto,

A pessoa humana é e deve ser o princípio, sujeito e fim de
todas as instituições sociais, porque, por sua natureza,
necessita absolutamente da vida social. A vida social não
é portanto algo acrescentado ao homem: assim o homem
desenvolve-se em todas as suas qualidades mediante a
comunicação com os outros, pelas obrigações mútuas, pelo
diálogo com os irmãos, e pode corresponder a sua vocação.
(GS 25).

A vocação da pessoa humana que corresponde a voltar-se no amor a Deus
e, consequentemente aos outros, deve ser também recordada nos vínculos
sociais necessários à educação do ser humano, como família e comunidade
política, onde se pode ter um compromisso mais significativo com o social.
Nestes ambientes, que correspondem à natureza íntima do ser humano (GS 25),
suas qualidades são consolidadas e aumentadas.
Toda a forma de desqualificação destas realidades sociais, por um
afastamento da prática do bem devido, muitas vezes, a má formação da pessoa
como ser humano desde a infância, deve ser impedida. Na medida em que o bem
não é prioridade nestes contextos, o ser humano vai caminhando contra si
mesmo e, numa vida de soberba e egoísmo, desordenando a própria ordem
social (GS 25).
A promoção do bem comum é efetivamente consequência de uma sociedade
bem ordenada. Aprender a conviver com o outro, promovendo o bem legitima,
na conjuntura social, a harmonia projetada por Deus à comunidade humana.
Portanto, "qualquer grupo deve levar em conta as necessidades e aspirações
legítimas dos outros grupos e, ainda mais, o bem comum de toda a família
humana" (GS 26).
As instituições sociais possuem um grande papel neste
desenvolvimento. Elas também necessitam colaborar para que a pessoa leve
uma vida autenticamente humana, promovendo os direitos invioláveis do ser
humano. Por isso, a Constituição esclarece algumas prioridades:

É preciso que se tornem acessíveis ao homem todas aquelas
coisas que lhe são necessárias para levar uma vida
verdadeiramente humana. Tais são: alimento, roupa,
habitação, direito de escolher livremente o estado de vida
e de constituir família, direito à educação, ao trabalho,
à boa fama, ao respeito, à conveniente informação, direito
de agir segundo a norma reta de sua consciência, direito à
proteção da vida particular e à justa liberdade, também em
matéria religiosa (GS 26).


Tendo este horizonte de necessidades, precisa-se entender que esses
direitos só serão preservados mediante uma profunda "mudança de mentalidade
e a introdução de amplas reformas sociais" (LOPES, 2011, p. 82). Mantendo o
conjunto das condições básicas de uma qualificada vida social, será
possível ao ser humano "alcançar mais plena e facilmente a própria
perfeição" (GS 26).
O Concílio alerta que a consciência sobre o respeito da pessoa
humana, urge como maneira de aprimorar a conjuntura social. Afirma que é
importante acolher o outro até como um "outro eu", compreendendo assim, que
como um sujeito pode almejar por uma vida digna, os outros também a buscam.
Por isso, é extremamente relevante para a sociedade humana ir contra a
todas as formas de atentado à vida pois, "enquanto elas inficionam a
civilização humana, [...] contradizem sobremaneira a honra do Criador" (GS
27).
A superação de uma ética individualista tende a colaborar
significativamente no exercício da caridade e constante preocupação com o
outro. Defender a justiça social, superar as desigualdades pelo viés do
entendimento de que "todos os homens têm a mesma natureza e a mesma origem"
(GS 29) e que "redimidos por Cristo, todos gozam da mesma vocação e
destinação divina" (GS 29), são passos fundamentais para o ser humano ir
além de si mesmo.
Sabe-se que "nunca vivemos num mundo tão globalizado economicamente,
política e culturalmente e nunca tivemos pessoas tão solitárias e isoladas
no seu 'mundinho próprio'" (SEHNEM, 2010, p. 136). A atual conjuntura
social expressa esta realidade. Diante disso, cada um, conforme suas
capacidades e as necessidades alheias, precisa contribuir para o bem da
sociedade em geral.
É importante considerar como "obrigação sagrada" as relações sociais
e ter como um dos principais deveres do ser humano, zelar por elas (GS 30).
O desprezo pelas leis sociais torna-se uma ofensa a outrem e ao próprio
Deus. Aprender a ser responsável pelo outro, e a saber viver na
participação social, é caminho para toda a vida. Contudo, é urgente "educar
jovens, de qualquer origem social, para que se formem homens e mulheres não
apenas cultos, mas também de forte personalidade, tão urgentemente exigidos
pelo nosso tempo" (GS 31).
Não basta o saber erudito, intelectual. É preciso aprender a ser
humano também e na valorização do comunitário, este aprendizado se torna
mais autêntico. A Constituição enfatiza que Cristo, Verbo Encarnado,
desejando participar da comunidade humana, expressa esta sacralidade do
social. Para tanto, no próprio Cristo, apresenta-se o modelo da vida em
sociedade com as suas exigências de solidariedade (LOPES, 2011, p. 90).
Há uma relação profunda entre o Verbo Encarnado e a vivência social
humana, que não pode ser deixada de lado. Jesus Cristo viveu numa dinâmica
social e se ofertou até a morte, por toda a humanidade. Significativamente
expressou que "ninguém tem mais amor do que aquele que dá a vida por seus
amigos" (Jo 15, 13) (GS 32), e enviou seus apóstolos ao mundo, como
portadores da mensagem evangélica do amor.
Sabe-se que Deus não criou o ser humano para viver isoladamente. Como
destaca a Constituição, foi num contexto de comunidade que revelou os seus
desígnios para a humanidade: "também Lhe aprouve... santificar e salvar os
homens não individualmente, excluindo qualquer conexão mútua, mas constituí-
los em um povo, que O reconhecesse na verdade e O servisse santamente" (GS
32). Todavia, a realidade comunitária do ser humano é processo de
aperfeiçoamento, e a luz de Jesus Cristo se poderá qualificar sempre mais
este ambiente, solidificando-o no na caridade até "o dia da consumação" (GS
32).





























3 A ÉTICA LEVINASIANA
E A ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA DA GAUDIUM ET SPES

Ao se olhar a ética do filósofo contemporâneo Emmanuel Lévinas e a
antropologia teológica pós-conciliar, apresentada pela Constituição
Pastoral Gaudium et Spes, percebe-se fortes traços de similitude no que diz
respeito à dignidade do ser humano e suas relações sociais. Lévinas é
claro em termos de valor humano, quando expressa o relacionamento ético
como filosofia primeira, fundado no respeito e acolhimento do próximo, tido
como Outro.
Na presença deste outro se tem a revelação da infinitude conceitual
alheia (LÉVINAS, 2000, p. 37) que me mostra o Infinitamente Outro, Deus, a
quem eu não posso reduzir em conceitos. A Gaudium et Spes, neste sentido,
recorda explicitamente a verdade bíblica de dignidade humana: "as Sagradas
Escrituras ensinam que o homem foi criado 'à imagem de Deus' [...]" (GS
12).
O homem, criado "à imagem de Deus", é dotado de liberdade e autonomia,
que são componentes fundamentais de sua subjetividade (HUMMES, 2005, p.
630). Contudo, tais dotes devem ser trabalhados a fim de que o uso dessas
capacidades promova a fraternidade (GS 32), levando sempre em consideração
a vida comunitária da pessoa humana (GS 24-26). Lévinas, em seu contexto
filosófico, critica justamente uma ação humana egoísta que é capaz de fazer
da liberdade e autonomia meios de ignorar o Outro (LÉVINAS, 2000, p. 31).
Por isso, em sintonia com a reflexão teológica, o filósofo entende que a
relação social se desdobra num ser humano livre e autônomo como responsável
e sensível diante do Outro.
Na Constituição, Cristo é apresentado como sentido e fim de toda a
história humana. O ser humano só encontra o seu sentido no mistério do
Verbo encarnado (GS 22). É significativo, quando Emmanuel Lévinas aborda o
sentido ético do messianismo, onde afirma que, ser responsável pelo outro e
pelo mundo é ser messias (SUSIN, 1984, p. 442). Por isso, que o sujeito
sensível diante do outro se relaciona manifestando um acolhimento
messiânico.
No sentido antropológico da Constituição Gaudium et Spes o ser
humano, fundado nos pilares cristãos, adquire uma responsabilidade
significativa em termos de representação do Cristo na conjuntura social, se
for testemunha dos ensinamentos de Jesus na concretude da história, no dia-
a-dia da vida. A Gaudium et Spes deixa claro este aspecto ao falar sobre os
leigos e sua participação ativa na Igreja (GS 43). Lévinas aborda o caráter
do relacionamento humano de modo similar, ao esclarecer que a ética é o
lugar do testemunho de Deus (RIBEIRO, 2008, p. 475).

3.1 O Rosto do Outro como imagem de Deus e revelação do Infinito

Pela ética filosófica de Emmanuel Lévinas, se entende que na relação
intersubjetiva se estabelece o encontro do eu com o outro, a quem não se
pode reduzir a conceitos e, consequentemente, se tem a manifestação de
Deus, a quem também não se finaliza em definições conceituais. Para tanto,
o Outro, por ser irredutível é o infinito, que revela a infinitude de Deus.

Este encontro é o único capaz de ilustrar, verdadeiramente, o
relacionamento com o Outro. Nele, a ideia de infinito se faz numa relação
social que consiste em abordar um ser humano que se revela absolutamente
exterior, que por ser infinito não se pode conter ou reduzir a descrições
(LÉVINAS, 2000, p. 35-36).
Deus também é infinito e se manifesta desde já, na presença alheia.
Lévinas aborda, como se viu no primeiro capítulo, que o Rosto do Outro é
quem estabelece como deve ser o relacionamento intersubjetivo, pautado pela
sensibilidade e acolhimento. De forma teológica, o filósofo enfatiza que a
"palavra do rosto é mandamento e a primeira palavra que me vem do rosto é,
desde sempre, Palavra de Deus" (LÉVINAS apud RIBEIRO, 2008, p. 446, grifo
do autor). No Rosto do Outro Deus motiva a ética do cuidado. Assim, a
palavra do Outro que solicita responsabilidade é, em certo sentido, a
própria revelação de Deus no Rosto, e esta revelação é dirigida ao Eu na
situação ética.
Quando se olha para a Gaudium et Spes e sua reflexão antropológica do
ser humano como imagem de Deus (GS 12), percebe-se traços da filosofia
levinasiana. Sabe-se que pelo fato de ser a pessoa humana imagem de Deus,
ela aparece como ligada ao mistério divino, como aquela no qual Deus se
torna presente em sua criação (TILLARD, J.M apud CALDEIRA, 2011, p. 57).
Com isso, compreende-se o quanto o ser humano é envolvido pela realidade
divina, onde "amando-se o homem, ama-se nele e para além dele o próprio
Deus. Se essa imagem é ferida algo do divino é violado" (CALDEIRA, 2011, p.
57).
Amar o humano é adentrar nas categorias de relacionamento enfatizadas
por Lévinas. O amor motiva a sensibilidade diante do Outro, a
responsabilidade e o acolhimento, fazendo com que se acolha a 'infinitude'
alheia. Perante outrem não há possibilidade de redução conceitual,
descuidado ou posse, apenas acolhida. Pode-se, portando, dizer que se está
diante da imagem do Deus Infinito, ao abrir-se ao 'infinito' que é o Outro.
Neste sentido, Lévinas afirma:

O rosto do homem é a prova da existência de Deus. Não uma
prova dedutiva. Trata-se da própria dimensão do divino
[...] que se abre nessa estranha configuração de linhas
que constituem a figura humana – e talvez por causa desta
singularidade última – manifesta-se o traço de Deus que, à
luz da revelação, inunda o universo (LÉVINAS apud RIBEIRO,
2008, p. 447, grifo do autor).

A revelação em Lévinas, como já abordado, é a forma como o Outro se
manifesta ao Eu. O Outro em seu Rosto se revela na presença, destacando que
nele se pode falar de Deus. Ao Eu é concedido pensar a ideia do Deus que é
infinito pelo viés da situação ética, ou seja, no encontro com o Outro. Na
situação do face-a-face se estabelece uma tensão inter-afetiva que revela
Deus. Assim, a ética do cuidado pelo Outro se instaura nesta relação e, ao
mesmo tempo, vai além, uma vez que na própria "responsabilidade emerge a
presença/ausência do in-finito" (2008, p. 448, grifo do autor).
O revelar do Outro é a exterioridade absoluta, infinita, como "um
estranho não -mundo no mundo. As afirmações de Lévinas nos fazem pensar
numa realidade inteiramente espiritual, mas que se revela desde o pobre, o
órfão, a viúva e o estrangeiro que me visitam" (SUSIN, 1984, p. 207). Na
responsabilidade ética com a concretude alheia, Deus também se manifesta.
Trata-se de um movimento duplo, onde o Outro expressa o divino na presença
e o Eu pela acolhida. Assim, "Deus é pensado pela via do outro homem, sem
que o outro seja uma mediação, mas um modo de ser" (TOMÉ, 2010, p. 339).
Estar diante do outro é estar na presença de alguém que inspira a
dignidade da pessoa humana, no cuidado, na sensibilidade, no amor, onde o
ser humano destaca a imagem do Criador (CALDEIRA, 2011, p. 57). Portanto, o
Outro é quem impulsiona ao desejo desinteressado de puro respeito. Este
desejo é "movimento à felicidade do outro, traduzido no debruçar-se sobre a
fome e a dor do outro, quando, na relação com o rosto, Deus fala [...]"
(RIBEIRO, 2008, p. 449, grifo do autor).
Cabe destacar que o 'desejo' é uma categoria relacional
levinasiana. Com ela, o filósofo também enfatiza a ideia do infinito
presente no relacionamento ético. A ideia do infinito que transborda é
identificada com a 'ideia do desejo'. O desejo pelo cuidado do Outro não se
encaixa no desejo de instinto, intencional, não é algo que visa satisfazer
carências de um sujeito; é desinteressado, gratuito e será sempre infinito
por não preencher. O desejo diz respeito ao desejo ético. Por isso, "o
desejo se associa à ética pelo fato de o homem ser 'diaconia' ao outro
homem. Esta diaconia, movida pelo desejo do infinito, é a própria
possibilidade de a palavra 'Deus' surgir [...]" (2008, p. 449).
No desejo que é serviço, doação sem interesse próprio, o ser humano
manifesta a imagem de Deus com o padrão da imagem de Cristo, que ensina a
humanidade a dignificar sempre mais a 'Imago Dei', ou seja, a sua vocação.
Sabe-se que Cristo, que se fez servo, revela à pessoa humana como ela pode
qualificar a imagem de Deus em si (GS 22). Neste sentido, Lévinas destaca
que o Outro, que convoca ao acolhimento do Eu, é que ordena em seu Rosto
que o sujeito se faça 'messias' dele, na responsabilidade pelo seu cuidado
e até mesmo seu resgate (SUSIN, 1984, p. 444).
Como "a imagem do Filho manifestou a identidade do Pai através da sua
encarnação" (CALDEIRA, 2011, p. 65) e, portanto, de sua passagem histórica,
é na aproximação com o Cristo que o ser humano vai legitimando a sua
vocação de imagem. Cabe ressaltar que a categoria de 'messias' levinasiana
vai de encontro ao que o Messias cristão é, em termos de valor ético.[6]
Esta relação destaca o que a antropologia teológica da Gaudium et Spes
afirma, salientando que Cristo manifesta o ser humano em sua plenitude, ou
seja, como ele é de fato, e pode ser (GS 22). Assim, levinasianamente
falando, serão os atributos do ser 'messias' que verdadeiramente tornarão o
sujeito ético.
O Outro possui grande contributo para o relacionamento intersubjetivo
se manifestar de forma ética. Na palavra que emana do Rosto do Outro como
Palavra de Deus, que suplica à uma obediência responsável, o ser humano
encontra seu sentido ético de ser e agir. Assim,

[...] a obediência configura-se como a melhor definição da
intriga humana, pois o homem não pode se autocompreender a
não ser como aquele que responde à palavra de Deus, na
resposta à fome e à sede do rosto. Esta resposta ao apelo
do rosto é resposta ao traço do infinito que passa em seu
rosto; é resposta a Deus como palavra (RIBEIRO, 2008, p.
455, grifo do autor).

3.2 A dignidade da Inteligência e Liberdade em vista do Outro

A Constituição traz a capacidade da pessoa humana de ser livre e de
respeitar a intimidade da sua consciência moral, como realidades que
explicitam a dignidade do ser humano. Esta dignidade consiste no reto uso
de sua inteligência e do seu livre arbítrio. Por isso, estas capacidades
não possuem outro fim que o de serem ordenadas à comunhão com Deus (GS 12).
Pode-se afirmar que o ser humano "tem inteligência e liberdade
justamente para poder entrar, estar e crescer numa comunhão com o Sumo Bem
que é Deus" (REILLY, 2013, p. 2). O filósofo Lévinas aborda que na relação
ética "Deus aparece como Bem" (RIBEIRO, 2008, p. 449), quando na
visibilidade do Rosto do Outro, o Eu é impulsionado ao acolhimento de sua
presença e, consequentemente, ao respeito. É no encontro ético que o Eu se
aproxima do Bem.
A Gaudium et Spes explicita que entre os atributos de inteligência e
liberdade, o ser humano possui a consciência, como o "núcleo secretíssimo e
o sacrário do homem onde ele está sozinho com Deus e ressoa sua voz" (GS
16). Através da consciência a pessoa humana encontra uma lei que o convida
a fazer o bem e evitar o mal. Por isso, a dignidade do humano é enfatizada
quando este busca obedecer a lei de Deus inscrita em seu coração (GS 16).
Para Lévinas, a palavra de Deus expressa no Rosto do Outro, inaugura
a consciência ética. Isto é extremamente significativo quando se fala em
termos de consciência, uma vez que o mandamento presente na 'epifania' do
Rosto convida, o tempo todo, o ser humano ao bem. O conhecimento de Deus se
anuncia na responsabilidade pelo bem do Outro. Para tanto,
"a Palavra de Deus no rosto do outro, que obriga o eu a ser responsável por
ele, revela ser uma Palavra porque é de Deus que manda pelo rosto do outro"
(RIBEIRO, 2008, p. 450, grifo do autor).
Pela Constituição, entende-se a realidade da consciência como um
aspecto interior no ser humano, que também destaca a sua dignidade. Por
ela, o ser humano se torna atento a lei divina que o inspira na busca da
verdade e do bem (GS 16). Na filosofia da alteridade de Lévinas, a
inspiração ética pode ser entendida como oriunda internamente de Deus,
mesmo sendo exteriormente motivada pelo Outro:

Na ética inspirada articula-se o agir do sujeito moral
[...] a responsabilidade pelo outro. Na filosofia da
alteridade, tanto o princípio de individuação como o
princípio do agir procedem da exterioridade ou da
alteridade na situação ética e da palavra do rosto pela
qual ecoa a voz de Deus. Mas, como o rosto é traço de
Deus, pode-se pensar que o próprio Deus inspire a
subjetividade ética a ser responsável pelo outro (RBEIRO,
2008, p. 503, grifo do autor).

A lei divina que inspira o ser humano a bem usufruir de sua
inteligência, consciência e liberdade, ou seja, de sua autonomia natural,
por vezes não é acolhida, por uma distorcida interpretação da liberdade
humana. Nesta realidade de não recepção, "vemos a modernidade destacar e
deformar esse conceito de liberdade, quando, querendo exaltá-la, afirmá-la
e promovê-la, a interpreta como 'uma licença de fazer tudo o que lhe
agrada, mesmo o mal' (GS 17)" (HUMMES, 2005, p. 632).
Todavia, "quando o cristão não obedece à lei de Deus, isto é, quando
ele age contra a razão, ele é [...] menos que humano e certamente menos que
cristão. Age de uma forma que não combina nem com sua própria natureza, nem
com sua dignidade em Cristo" (REILLY, 2013, p. 9). Lévinas, por sua vez,
afirma que a palavra-mandamento de Deus, manifestada no Rosto do Outro, que
inspira o Eu ao respeito e reconhecimento da dignidade alheia, é a "única
capaz de constituir o homem como criatura e como capacidade de responder ao
outro" (RIBEIRO, 2008, p. 455, grifo do autor). A pessoa se torna humana na
abertura ao mandamento divino de realizar o bem a outrem.

3.3 O Messias e o ser messiânico como revelação da dignidade humana

Toda essa reflexão antropológica, ensina a Gaudium et Spes, se
fundamenta na cristologia. O ser humano já não pode ser visto a não ser à
luz do Cristo, onde ele encontra sua verdade mais profunda, sua identidade,
vocação e missão (GS 22). Cristo é o homem perfeito que "restituiu aos
filhos de Adão a semelhança divina" (GS 22). Por isso, é na pessoa do
Cristo que a humanidade, de forma sublime, é elevada em sua dignidade.
Pode-se afirmar que por Cristo a vida do ser humano, de fato, se
torna mais humana. Para tanto, Hummes enfatiza:

Ele restaurou em nós a capacidade de amar, com amor de
doação, solidariedade e co-responsabilidade para com os
demais seres humanos, doando-se ele a si mesmo totalmente
por amor ao Pai celeste e a nós em sua morte de cruz. Por
sua morte, mereceu-nos a vida, vencendo a morte, por sua
ressurreição, porque nos amou, se entregou por nós (2005,
p. 635).


A universalidade da vocação humana é aqui enfatizada pela
Constituição, uma vez que destaca a certeza da doação de Cristo a todo o
ser humano. Neste doar-se reside o próprio sentido de ser e agir da pessoa
humana a partir de então. Portanto, o ser humano tem a tarefa de
possibilitado pela força do Espírito Santo, caminhar sempre mais próximo de
sua vocação última, ou seja, a divina, através de uma vida essencialmente
cristã (GS 22).
Este ponto é destaque na filosofia leviansiana, quando este aborda o
sentido do que ele chama de 'ser messiânico' (SUSIN, 1984, p. 441).[7]
Fundamentado na Escritura Talmúdica, o filósofo destaca um Messias que dá
sentido a subjetividade. Ser sujeito no mundo é assumir a responsabilidade
de ser 'messias', e com esta identidade promover o bem e a solidariedade.
Ele mesmo afirma:

O Messias, isso é Eu. Ser Eu, isso é ser Messias. Vimos
que o Messias é o justo que sofre, que tomou sobre si o
sofrimento dos outros. Que toma, afinal de contas, sobre
si o sofrimento dos outros, senão o ser que diz 'Eu'
[...]. Todas as pessoas são Messias. O Eu enquanto Eu,
tomando sobre si todo o sofrimento do Mundo, se designa
sozinho para este papel [...]. O Eu é aquele que se
promoveu a si mesmo para carregar toda a responsabilidade
do Mundo [...]. E concretamente isso significa que cada um
deve agir como se fosse o Messias (LÉVINAS apud SUSIN,
1984, p. 442).

Como percebe-se, o messianismo que convém ao ser humano, é o
messianismo do Servo de Javé de Isaías 53. Diante do Outro, de seu
sofrimento, cabe ao Eu responder de forma vocacionada: "Eis-me" (SUSIN,
1984, p. 443). Aqui, de maneira consciente da eleição de ser-para-o-outro,
o ser humano vive a sua razão existencial. Portanto, o messianismo nada
mais é do que viver uma responsabilidade universal pelo viés do serviço ao
outro.
Esta dinâmica de ser messias intimamente relacionada com o ser servo,
é outro princípio fundamentado no jeito de ser e viver do Cristo. A
Constituição indica que "somente colocando-se a serviço é que podemos
verdadeiramente colaborar para a continuidade da obra de Cristo" (OLIVEIRA,
2005, p. 28). Todavia, discorrendo na óptica eclesial, pode-se afirmar que
o ensinamento de uma Igreja servidora da humanidade foi uma das grandes
novidades do Concílio Vaticano II, especialmente na Gaudium et Spes. Cristo
fornece esta releitura e a Igreja "acredita que a chave, o centro e fim de
toda história humana se encontram no seu Senhor e Mestre" (GS 10 apud
CALDEIRA, 2011, p. 68).
O enfoque que Lévinas fornece a vocação messiânica, é que mostra o
quanto ela se refere a uma constituição ética do sujeito. Isto se torna
profundamente original em termos de antropologia filosófica. O Eu só é
eticamente ser for messias, no serviço, doação e até na expiação e
substituição pelo Outro (SUSIN, 1984, p. 445). Vê-se aqui, atributos
necessariamente concernentes à vocação cristã, que envolvem o ser humano
num compromisso radical de colocar-se no lugar do Outro e assumir a sua
redenção.
A filosofia do messianismo é projeto de vida para todas as pessoas.
Ninguém pode ser excluído de assumir a responsabilidade messiânica. Para
tanto,

No comentário talmúdico de Lévinas, o Servo Sofredor é
interpretação como possibilidade de ser diversas pessoas:
1) Daniel, provado e fiel no sofrimento. 2) Um mestre que
acolhe e serve um leproso. 3) o leproso mesmo, que sofre
inocentemente. 4) ou então eu. Estas respostas indicam
elementos messiânicos: autoridade de governo e de
ensinamento na relação a outros, fidelidade no sofrimento
infligido por outros, acolhimento e serviço ao sofrimento
do outro, e sofrimento inocente (1984, p. 446, grifo do
autor).

Na realidade do Servo Sofredor que se faz doação, temos a verdade do
ser humano. Pela encarnação entende-se que toda a vida de Cristo passa a
ter uma dimensão salvífica. Todo o ser e agir do Messias são fonte de
salvação para o ser humano. Contudo, no Servo que padece por toda a
humanidade encontra-se também um exemplo a ser seguido (GS 22) e por isso,
sentido existencial para cada pessoa humana.
Para a filosofia da alteridade de Lévinas, o Outro em seu Rosto é
que constitui o Eu messianicamente. Como salientado anteriormente, o
mandamento presente no Rosto, que a todo o momento é uma palavra de dever,
ou seja, de responsabilidade, é que impulsiona ao Eu responder com a
disponibilidade profética o "Eis-me". Portanto, "o movimento que provém do
outro, aliado de Deus, é igual ao do mandamento: Olhar e carícia que se
aproximam como revelação, ensinamento, ordem, inspiração" (SUSIN, 1984, p.
449).
Lévinas reflete a subjetividade como sendo messiânica e profética. A
pessoa humana só se constituirá existencialmente se for messias e profeta,
quando assumir uma vida redentora e disponível pelo Outro. Instaura-se,
neste sentido, um caráter ético essencial para o relacionamento humano. Por
isso, que ser "um-para-o-outro na profundidade da eleição, da expiação e da
substituição [...] parecem descrever não só a espiritualidade do cristão,
mas de modo inaudito a humanidade messiânica de Cristo"1984, p. 455).

3.4 A Glória do Infinito no acolhimento do Rosto

Viver uma subjetividade messiânica é assumir uma existência voltada
para o outro e consequentemente ao Outro, Deus. Pode-se afirmar que Lévinas
aponta um modo de agir que leva o ser humano a transcender a si mesmo. Na
espiritualidade messiânica cada pessoa humana assume a libertação dos
outros, num gesto de ser messias, levando a si e a todos ao caminho da
transcendência, ao caminho de Deus. Assim, a humanidade mesmo se torna
ajuda, e "o mundo se transforma em dom e sacrifício" (1984, p. 485).
Neste sentido, a Constituição Gaudium et Spes salienta que a tarefa
principal de qualquer relação social é o bem comum (GS 26). A vida em
sociedade deve ressaltar a dignidade de cada sujeito, promovendo as
condições necessárias para que toda pessoa tenha uma vida mais humana e
possa "alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição" (GS 26). Por
isso, que a preocupação com o bem do outro é fonte de um progresso social e
ordena o agir de maneira a corresponder aos desígnios de Deus. No entanto,
o contrário, ou seja, a despreocupação, é a raiz da desordem não querida
pelo Criador (GS 26).
Desordenar a sociedade através de uma vivência aleatória, sem
respeito à vida do outro torna as relações intersubjetivas nocivas e
totalmente insuportáveis. A Constituição elenca atitudes que soam
claramente como um atentado à vida e que, por isso, contradizem a honra do
Criador:

[...] qualquer espécie de homicídios [...] tudo o que
viola a integridade da pessoa humana, como as mutilações,
as torturas físicas ou morais e as tentativas de dominação
psicológica; tudo o que ofende a dignidade humana, como as
condições intra-humanas de vida, os encarceramentos
arbitrários, as deportações, a escravidão, a prostituição,
o mercado de mulheres e jovens e também as condições
degradantes de trabalho, que reduzem os operários a meros
instrumentos de lucro, sem respeitar-lhes a personalidade
livre e responsável: todas estas práticas e outras
semelhantes são efetivamente dignas de censura (GS 27).

O cuidado com a vida, em todas as suas instâncias, será sempre
destaque para uma harmonia social. Pela Constituição, entende-se que existe
uma dignidade inerente à condição humana e a preservação dessa dignidade
faz parte dos direitos humanos (SEHNEM, 2010, p. 133). Não se deve
negligenciar essa verdade. Pô-la em prática é entender que a ética do
cuidado é a palavra chave da promoção humana.
A filosofia levinasiana alerta para o descompromisso com esta
vivência. O Rosto do outro, a sua vida, que envia até o Eu um fundamento
ético e moral, dizendo: "não matarás", revela a autoridade e resistência
alheia, numa resistência essencialmente ética. Pode-se ser dono de si, mas
não se tem o direito de ser dono do outro, o extinguindo. Portanto, "o
Rosto é o que não se pode matar ou, pelo menos, aquilo cujo sentido
consiste em dizer: 'tu não matarás'" (LÉVINAS, 1982, p. 79).
A vida, em seu valor inestimável, não permite qualquer forma de morte,
tanto física como de outra ordem. O Rosto do outro revela isto por ser este
olhar "que me proíbe qualquer conquista" (LÉVINAS, 1997, p. 210). É como se
fosse o outro "desde o início a fruta proibida no paraíso do meu gozo, de
minhas posses [...]" (SUSIN, 1984, p. 211). A parte que cabe a cada um,
nesta dinâmica social, é o respeito:

O respeito e a dignidade são conceitos mutuamente
relacionados. A dignidade eleva o respeito e o respeito é
o sentimento adequado diante de uma realidade digna como a
pessoa. Em outras palavras, a dignidade humana [...] se
atribui universalmente a cada pessoa, indistintamente de
suas características físicas e de suas manifestações
individuais. Assim a pessoa humana é o bem mais valioso
[...] e estará sempre acima de qualquer outro valor.
Lembro-me de um ditado da sabedoria popular que diz: "A
vida não tem preço" (SEHNEM, 2010, p. 135).


Na medida em que se assume uma vida cristã, o voltar-se para os
outros se torna legitimação da fé professada e, consequentemente
manifestação da "vocação à qual cada um foi chamado" (GS 43). A
Constituição discorre explicitamente sobre esta realidade, quando entende a
vivência do cristão na sociedade como uma forma da Igreja prestar auxílio
na elevação da dignidade humana. Por isso, alerta que o "divórcio entre a
fé professada e a vida cotidiana de muitos deve ser enumerado entre os
erros mais graves [...]" (GS 43).
Ao não se importar com os seus deveres sociais, o cristão negligencia
os seus compromissos para com o outro e com Deus. Pelas atividades
temporais, os cristãos concretizam na história a salvação futura (GS 43),
tornando-se revelação do bem que Deus ainda quer realizar na humanidade.
Assim, "estão obrigados não somente a impregnar o mundo de espírito
cristão, mas também são chamados a serem testemunhos de Cristo em tudo, no
meio da comunidade humana" (GS 43).
Pela prática da fé entende-se significativamente que Deus é
glorificado. Testemunhar é tornar visível o que se crê. Neste sentido
Lévinas, de maneira original, aborda o significado transcendente da ética
da alteridade como 'glória do Infinito'. Ele passa claramente do testemunho
profético do "Eis-me aqui", ou seja, da abertura que a pessoa humana dá ao
outro na acolhida e no respeito, para o significado transcendente desta
relação. Por isso, que "na proximidade, na responsabilidade e na
substituição, Deus se passa e passa nessa linguagem ética" (RIBEIRO, 2008,
p. 471).
O messianismo ético presente no sujeito sensível ao outro, capaz de
promover a paz e o amor entre as relações, expressa a exterioridade do
Infinito, ou seja, de Deus. Na sinceridade do testemunho Deus se manifesta.
Para tanto, "[...] Deus, que se revela amando, continua a revelar-se onde o
sujeito [...] vive de cuidar da alteridade da revelação do rosto humano"
(RIBEIRO, 2008, p. 484).
Como se abordou anteriormente, se é eleito para o compromisso ético. A
resposta "Eis-me" manifesta esta abertura à eleição que vem de Deus. Neste
aspecto, enfatiza Ribeiro Júnior que, para Lévinas:

[...] o Nome de Deus é aquele que se passa na ética – e
que, ao passar, revela que o Nome, ou Deus mesmo [...]
assigna a subjetividade como responsabilidade –, essa
lógica [...] permite afirmar também que Deus se testemunha
a si mesmo em seu Nome ao se testemunhar na subjetividade
eleita (2008, p. 475, grifo do autor).


Assim, o sujeito vê a sua relação com o outro como uma eleição. É na
presença alheia e na incapacidade de negá-la, pois está aí, que o ser
humano é convidado a responder: "Eis-me" e nesta resposta glorificar o
Infinito pelo caminho do amor e da responsabilidade para com outrem (2008,
p. 487).
A gratuidade da relação ética que Lévinas aborda, onde Deus é
glorificado, mostra o quanto a subjetividade ética se compõe pela doação
que se faz ao outro. A Gaudium et Spes explicita que a vivência cristã se
efetiva veemente na doação, quando nos traz a afirmativa: "o homem [...]
não pode se encontrar plenamente se não por um dom sincero de si mesmo" (GS
24). Levinasianamente falando, O Eu necessita acolher o Outro, a ponto de
exercer sacrifícios por ele (LÉVINAS, 1988, p. 101). Para tanto, é nesse
processo de relacionamento ético entendido como ser-para-o-outro que o ser
humano se entende como vocacionado do Infinito (RIBEIRO, 2008, p. 473).
Envolver-se na construção bem ordenada da sociedade, nada mais é do
que envolver-se com a glória do Infinito, pelo viés do compromisso ético
com os demais. A Constituição enfatiza que a paz, a justiça e o amor, tão
necessárias para a harmonia social, acontecem através do ser humano que
busca com a ajuda de Cristo, colaborar neste processo (GS 77b). Por isso, a
passagem de Deus no dia-a-dia da concretude histórica se faz pela linguagem
ética da proximidade e responsabilidade pelos outros (TOMÉ, 2010, p. 355).
Tais atitudes serão causa eficiente para um equilíbrio social almejado por
todos e o ser humano aprenderá a caminhar dignamente até a pátria futura
(GS 45).




































CONSIDERAÇÕES FINAIS

Refletir acerca do ser humano sempre é um terreno delicado. As
abordagens que se podem fazer dele soam como tentativas de esclarecer o seu
papel existencial na realidade histórica. A filosofia se inquieta com este
ser tão enigmático e a teologia aponta horizontes que proporcionam
profundidade e sentido ao seu existir, a partir de Deus.
Quando, pela óptica filosófica, se é convidado pensar o humano como
essencialmente ético, se apresenta não apenas um rumo teórico para a sua
reflexão, mas conceitos que possuem em si desdobramentos estritamente
práticos. Na árdua tarefa de sair de si e ir ao encontro do outro, a pessoa
humana realiza um passo de transcendência verdadeiramente relacional. Tomar
consciência desta passagem é despojar-se de pré-conceitos, de vaidades,
orgulhos e de egoísmos que impedem uma intersubjetividade harmoniosa. Por
isso, quando se pensa num ser humano sensível, acolhedor e responsável por
outro ser humano, se entende que viver pode ser a tarefa simples, mas
conviver, o desafio existencial.
Os desafios do relacionamento humano, que se desdobram em desafios
sociais, são amenizados por uma compreensão da dignidade humana não apenas
filosófica, mas teológica. Pela filosofia, o humano é motivado a se auto-
compreender como sujeito ético e esta eticidade se concretiza ainda mais no
entendimento de que se é criado à imagem de Deus. Num ser humano dotado de
inteligência, consciência e liberdade, reside uma existência totalmente
voltada para o Criador. Esses atributos precisam necessariamente estar
direcionados para o transcendente, pois Deus, a partir de seu Filho, ensina
a humanidade a usufruir destas propriedades de maneira mais qualificada, em
prol de toda a realidade social. Todos saem ganhando, quando voltados para
o Verbo encarnado, presença divina e aprendem dele a se tornar mais
humanos.
A partir da ética filosófica de Emmanuel Lévinas e da antropologia
teológica da Gaudium et Spes, pode-se perceber que o compromisso pessoal se
inicia. Cabe a cada sujeito entender que sempre será protagonista de uma
nova sociedade, pautada pela sensibilidade perante as realidades alheias,
pelo respeito, acolhimento e, consequentemente, responsabilidade. Dentro
destes pressupostos relacionais, pastoralmente percebe-se que apenas na
medida em que as pessoas se comprometerem com o outro, entenderão que a
comunidade eclesial crescerá como convém, até seu encontro definitivo com o
Criador.
Na realidade comunitária, tanto social como religiosa, vive-se a
diversidade, encontram-se diferentes 'rostos', e é neste momento que cada
sujeito precisa se questionar sobre a capacidade que se tem em conviver, na
ética da sensibilidade, perante a diversidade alheia. Se importar com o
outro é tarefa diária. Ser 'messias' para outrem. Ser 'outro Cristo' para
com aquele que nada tem a oferecer, apenas a sua manifestação de diferente,
de 'rosto' próprio, de necessitado, de quem suplica e exige acolhimento.
Em uma de suas catequeses, enfatiza o Papa Francisco, recordando a
necessidade de aprender a arte da convivência: "sabemos viver a harmonia em
nossas comunidades, aceitando o outro com suas diferenças, ou tendemos para
a uniformidade?" [...] Participo da vida de comunidade ou vou à Igreja e me
fecho nos meus problemas isolando-me do outro?"[8] É neste exercício
de reconhecer a dignidade que cada um possui, o valor de cada singularidade
humana, que reside verdadeiramente a harmonia no social e na comunidade
eclesial. Deus assim, se torna vestígio nas relações humanas, no trato que
se tem com o outro. Com o contributo da filosofia levinasiana, compreende-
se que as coisas são propensas a percepção, a análise, a conceituação, mas
as pessoas, estas, são propensas ao encontro. Esta compreensão
intersubjetiva necessita ser formada, trabalhada em cada um, como bem
destaca o Papa em mensagem: "Precisamos edificar, criar, construir, uma
cultura do encontro".[9] Assim, é em cada encontro que vai se revelando o
magnífico aprendizado que cada pessoa pode ter, de se tornar mais humana e,
consequentemente, mais divina.















REFERÊNCIAS

CALDEIRA, Angela Cristina Germine Pinto. A revelação de Jesus Cristo como
sentido e plenitude do mistério do ser humano. 2011. 48-76 f. Dissertação
(Mestrado em Teologia) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro.

COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL: comunhão e serviço: a pessoa humana
criada à imagem de Deus. Serviço de Documentação – SEDOC, Petrópolis:
Vozes, v. 37, n. 309, 2005, p. 470-506.

CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II, 1962-1965. Gaudiun et Spes. In: VIER,
Frederico (Coord.). Compêndio do Concílio Vaticano II: constituições,
decretos, declarações. 29. ed. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 143-217.


COSTA, Márcio Luis. Lévinas: uma introdução. Tradução de J. Thomaz Filho.
Petrópolis: Vozes, 2000. (Coleção ética e intersubjetividade).


HUMMES, Cláudio. Contribuição da Gaudium et Spes para a compreensão
pastoral do homem de hoje. Teocomunicação. Porto Alegre: EDIPUCRS, v. 35,
n. 150, p. 625-637, dez. 2005.

LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Tradução de José Pinto Ribeiro.
Lisboa: Edições 70, 2000.

________. Descobrindo a Existência com Husserl e Heidegger. Tradução de
Fernanda Oliveira. Portugal: Piaget, 1997.

________. Ética e Infinito. Tradução de João Gama. Portugal: Edições 70,
1988.

LOPES, Geraldo. Gaudium et Spes. Texto e comentário. São Paulo: Paulinas,
2011.

OLIVEIRA, Ionilton Lisboa. A vocação cristã na Gaudium et Spes. Encontros
Teológicos. Florianópolis: Instituto Teológico de Santa Catarina - ITESC,
v. 20, n. 3, p. 25-39, 2005.

PELIZZOLI, Marcelo Luiz. A relação ao outro em Husserl e Levinas. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 1994.

REILLY, Pe. Ailbe, ORC. A dignidade da pessoa e o bem comum no Concílio
Vaticano II. Faculdade Católica de Anápolis. Revista de Magistro de
Filosofia. Anápolis, GO, Ano V, n. 10. Disponível em: <
http://catolicadeanapolis.edu.br/revmagistro>. Acesso em: 07 jun. 2013.

RIBEIRO, Nilo Junior. Sabedoria da paz. Ética e Téo-lógica em Emmanuel
Lévinas, 2008.

SEHNEM, Marino Antonio. A dignidade humana na Gaudium et Spes. Religião e
Cultura. São Paulo: Educ-Paulinas, v. 9, n. 17, p. 129-140, jan./jun. 2010.

SUSIN, Luiz Carlos. O Homem messiânico: uma introdução ao pensamento de
Emmanuel Lévinas. Petrópolis: Vozes, 1984.

TOMÉ, Márcia Eliane Fernandes. Linguagem ético-religiosa em Emmanuel
Lévinas. Teocomunicação. Porto Alegre: EDIPUCRS, v. 40, n. 2, p. 147-172,
abr./ago. 2010.

WAGNER, Luiz Pedro. Perfil Biográfico e Filosófico de Emmanuel Lévinas.
Cadernos da FAFIMC. Viamão: Faculdade de Filosofia N.Sª. da Imaculada
Conceição, n. 13, 1992. Edição Especial.













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[1] Lévinas utiliza muito a denominação 'Outro' para tratar a relação entre
sujeitos. É uma categoria utilizada justamente para salientar a diferença
alheia que deve ser sempre acolhida. O relacionamento humano se dá entre o
eu-outro (diferente) (LÉVINAS, 2000, p. 23).
[2] A letra maiúscula indica o destaque da palavra que vai além do
subjetivo gramatical. Não é meramente rosto-face em sua forma plástica e,
sim presença reveladora. Luis Carlos Susin utiliza a denominação Olhar,
para a categoria levinasiana de Rosto. Traduz, portanto, a palavra 'visage'
do Francês, usada por Lévinas, como Olhar em letra maiúscula para
diferenciar do verbo. Como afirma: "[...] Esta palavra tem a vantagem de
denotar um centro em si mesmo, do qual parte a relação a mim. Além disso,
tem caráter puramente espiritual e está ligado aos olhos que não são meus,
à visão que me vê desde a altura, que para Lévinas é a dimensão desde onde
o Outro me visita [...]" (SUSIN, 1984, p. 203).
[3] Categoria levinasiana para expressar o sujeito centrado em si mesmo.
Subjetividade incapaz de abertura a outrem. Trata-se de uma crítica
ferrenha a uma filosofia tradicional que focava o relacionamento e o
conhecimento na simples redução ao Eu (a letra maiúscula designa a ênfase
que muitas vezes Lévinas expressa) (LÉVINAS, 2000, p. 25).
[4] A categoria levinasiana do Rosto instaura a subjetividade como o
infinito, como o diferentemente outro. Ou seja, o Outro é realmente Outro.
Esta categoria de infinito remete justamente aquilo que é inabarcável,
incapaz de ser reduzido (LÉVINAS, 2000, p. 35-36). A exterioridade alheia
remete ao Infinito que, em sua tradição religiosa, Lévinas deixa claro ser
a expressão divina. Deus jamais poderá ser reduzido. O Outro também não.
[5] Para uma significativa explanação acerca da 'imago Dei' ao longo da
Tradição, o capítulo terceiro do texto de: CALDEIRA, Angela Cristina
Germine Pinto. A revelação de Jesus Cristo como sentido e plenitude do
mistério do ser humano, 2011, p. 56-64. Dissertação (Mestrado em Teologia)
– Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, RJ.

[6] A antropologia cristã parte de Cristo, e a
antropologia levinasiana parte da condição 'messiânica' da ética, e nisso
há uma aproximação, exceto o fato dos cristãos confessarem que o Cristo é o
'Verbo encarnado', o dogma central do verdadeiramente Deus e
verdadeiramente humano. Esse é o abismo que, se ultrapassado, faria um
judeu ser cristão. Mas em termos antropológicos, há uma fonte comum, a
Escritura, uma vez que é a partir dela que o judeu Lévinas enfatiza os
atributos do sujeito ser messias do Outro (SUSIN, 1984, p. 455-485).
[7] Como se salientou anteriormente, Lévinas realça o messianismo em termos
de eticidade e não nos moldes da Revelação Cristã, uma vez que o filósofo é
judeu. Contudo, a reflexão que brota desta antropologia filosófica é tem
proximidade com a antropologia cristológica da Gaudium et Spes, por dar
sentido existencial ao ser humano em sintonia com os traços morais
cristãos.
[8] Audiência Geral da quarta-feira do dia 09 de outubro de 2013, na Cidade
do Vaticano. Disponível em:
http://cnbbsul3.org.br/paf.asp?catego=11&exibir=4048. Acesso em: 09 nov.
2013.

[9] Vídeo-mensagem transmitida de Roma para os fieis reunidos no santuário
de São Cayetano em Buenos Aires, no dia 07 de agosto de 2013. Disponível
em: http://www.zenit.org/pt/articles/papa-francisco-precisamos-edificar-
criar-construir-uma-cultura-do-encontro. Acesso em: 09 de nov. 2013.
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