A DIGNIDADE MARGINALIZADA DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS NO SISTEMA JURÍDICO no CADERNO DE RESUMOS DO II CONGRESSO DE DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO: I EDIÇÃO INTERNACIONAL

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CADERNO DE RESUMOS DO II CONGRESSO DE DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO: I EDIÇÃO INTERNACIONAL

A DIGNIDADE MARGINALIZADA DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS NO SISTEMA JURÍDICO

Justificativa Em trinta semanas desse ano (2016), até o fim de julho, a Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil já monitorou 80 casos de assassinatos, 29 tentativas de homicídio, 37 casos de agressão e 9 casos de suicídio de travestis, mulheres e homens transexuais411. Já são 845 casos de assassinatos reportados entre janeiro de 2008 e abril de 2016412. Essa, infelizmente, é apenas uma das contingências de uma vida não-cisgênera no Brasil. Vidas que são vividas com medo, abandono, marginalização, pobreza. Outro problema social que essas pessoas passam é em relação a incoerência entre seus nomes e seus corpos no mercado de trabalho, na escola, na família e em outras instituições (BENTO, 2006). Esse trabalho parte da seguinte questão: o sistema legal tem compreendido travestis e transexuais como sujeitos de direitos? Cartografia dos sentidos O método da cartografia foi aplicado para que fossem percebidos afetos, ideologia e movimentos na macropolítica, de forma transversal (ROLNIK, 2014). Dessa forma, não houve uma rigidez de um mapa, mas percursos traçados. O caminho percorreu certos lugares: o Poder Legislativo, o direito positivo, a dogmática jurídica, a prática judiciária, a Administração e os lugares não-estatais. A obra de Luís Alberto WARAT (1995, 2004a, 2004b, 2010) é o marco teórico desse trabalho, porquanto ele permite uma análise ideológica de discursos estereotipados, formados por um senso comum teórico dos juristas que atravessa os lugares de poder com mitos. Na medida em que se desencobre essas verdades, também se retoma a discussão sobre a subjetividade na construção da ciência

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Graduando de Direito na Universidade Federal de Goiás, Brasil. E-mail: [email protected]. 411 Fonte: http://redetransbrasil.org/index.html. Acesso em 30 de julho de 2016. 412 Fonte: http://transrespect.org/en/idahot-2016-tmm-update/. Acesso em 12 de junho de 2016.

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(FEYERABEND, 1977; GONZÁLEZ REY, 2005), no caso, da Ciência do Direito e seus produtos. Após uma revisão bibliográfica nacional e estrangeira, os dados foram principalmente recolhidos de notícias, documentos oficiais (resoluções, leis) e de decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo e do Superior Tribunal de Justiça. Esse conteúdo foi analisado ideologicamente com foco na matriz heteronormativa que o constitui (BUTLER, 2014). Resultados Transexuais e travestis têm tido alguns de seus direitos reconhecidos. A cirurgia de transgenitalização para mulheres transexuais é permitida em hospitais, mas apenas cinco hospitais universitários no país estão habilitados para realizá-la (USP, UERJ, UFPE, UFG, UFRGS), sendo que dois deles não estão realizando as cirurgias atualmente (UERJ e UFG). Há critérios para realizar a cirurgia: diagnóstico de transexualismo (CID F.64), acompanhamento psiquiátrico e psicológico por no mínimo dois anos. Também há as resoluções 11413 e 12414 do Conselho Nacional de Combate à Discriminação ffi CNCD/LGBT, que reconhecem "identidade de gênero" em boletins de ocorrência e na educação. Ainda no campo legislativo, tem-se o Projeto de Lei de Identidade de Gênero, inspirada na lei argentina. Já no campo judiciário, especificamente no Tribunal de Justiça de São Paulo, foram encontradas 46 ementas referentes à retificação de registro civil de pessoas transexuais. Treze decisões encontradas indeferiram a retificação do registro civil e 27 deferiram. Ademais, há um entendimento consolidado no STJ que é direito da pessoa trans ter seu nome e sexo alterados no registro civil (REsp 1.008.398/SP e REsp 737.993/MG). Também foram elaborados os enunciados 42 e 43 na Jornada de Direito e Saúde415 em favor da retificação.

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Estabelece os parâmetros para a inclusão dos itens “orientação sexual”, “identidade de gênero” e “nome social” nos boletins de ocorrência emitidos pelas autoridades policias nas delegacias em todo o Brasil e a 414 Estabelece parâmetros para a garantia das condições de acesso e permanência de pessoas travestis e transexuais ffi e todas aquelas que tenham sua identidade de gênero não reconhecida em diferentes espaços sociais ffi nos sistemas e instituições de ensino, formulando orientações quanto ao reconhecimento institucional da identidade de gênero e sua operacionalização. 415 Enunciado 42. Quando comprovado o desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto, resultando numa incongruência entre a identidade determinada pela anatomia de nascimento e a identidade sentida, a cirurgia de transgenitalização é dispensável para a retificação de nome no registro civil. Enunciado 43. É possível a retificação do sexo jurídico sem a realização da cirurgia de transgenitalização.

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Na área administrativa também ocorreram ações em prol de travestis e transexuais, com a possibilidade do uso do nome social e diversas Universidades públicas, em instituições estatais, no ENEM e no Sistema Único de Saúde. Na dogmática jurídica, autores escreveram em seus manuais e artigos sobre o direito ao nome das pessoas transexuais416 como um direito da personalidade, portanto fundamental. O Município de São Paulo também inovou na promoção de direitos de pessoas transexuais e travestis ao criar o projeto Transcidadania417, Outra iniciativa que surgiu no Brasil foi o de cursinhos independentes preparatórios para o ENEM. Como transexuais e travestis estão envolvidas pela abjeção, as demandas dessa população são: a facilitação da alteração do prenome e do sexo no registro civil; o acesso ao processo transexualizador; pela despatologização da identidade trans; e o respeito cotidiano da sua identidade de gênero em ambientes de convivência, na família e no mercado de trabalho. Discussão O sistema jurídico, no geral, é cisgênero418 e o lugar de fala desses enunciadores é de privilégios, porquanto não passam pelos constrangimentos e violências que transexuais e travestis sofrem. A ideologia é claramente heteronormativa. Através de decisões judiciais, direitos têm sido reconhecidos. A dogmática jurídica e a Administração têm se encaminhado para o reconhecimento da complexidade dos direitos negados a pessoas trans. Já a legislação ainda se restringe principalmente ao campo da saúde e não há promoção em outras áreas de

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BITTAR, Carlos Alberto. Os Direitos da Personalidade. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 137. FACHIN, Luiz Edson. O corpo do registro no registro do corpo: mudança de nome e sexo sem cirurgia de redesignação. Revista Brasileira de Direito Civil. Volume 1, jul/set 2014. P. 36-60. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 227. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, volume 1: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 217. TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA; Heloisa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. 2 ed. Rio de JAneiro: Renovar. 2007, p. 37-38. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 1: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 149. 417 O projeto envolve uma bolsa mensal no valor de um salário mínimo, acesso a cursos supletivos para adultos em escolas públicas visando ENEM e PRONATEC, além do encaminhamento para a rede municipal de saúde, onde há inclusive a possibilidade de tratamentos hormonais. 418 Não à toa, Viviane Vergueiro denomina esses sistemas de Cistema. Vf. SIMAKAWA, Viviane Vergueiro. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. 2015. 244 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Pós-graduação em Cultura e Sociedade, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.

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políticas públicas a essa população. As medidas podem ser lidas como "migalhas" frente às violências físicas e estruturais que ainda existem no Brasil. O Direito absorveu esse significado patologizado em seu senso comum teórico e nem sempre se atenta para sua própria linguagem, principalmente à dignidade da pessoa humana, seja em decisões judiciais, textos ou na promoção dela em políticas públicas. Nesse sentido, o sistema legal ainda precisa avançar ao renovar seu significado sobre pessoas não cisgêneras: sem patologizá-las ou diferenciá-las como "anormais". Sendo que a despatologização não deve implicar na negação do direito à saúde (com cirurgias, hormonização, etc.), mas em sua reafirmação acompanhada do reconhecimento de direitos individuais e sociais (à educação, ao trabalho). A cidadania das pessoas trans não é concretizada, a subalternidade, a marginalidade e a abjeção continuam sendo gerais (BUTLER, 2014). Fora do aparelho estatal há pequenas ações que demonstram a potência micropolítica, enquanto a macropolítica anda a passos lentos. Considerações finais É imperativo que cisgêneros se posicionem sobre essas violências, ressignificando suas ideias sobre transexuais e travestis, com o reconhecimento total como sujeitos de direitos. Deve-se olhar a construção das verdades como baseadas em um conhecimento cisgênero, que descarta as vivências e experiências trans. Politicamente, far-se-á uma revisão dos afetos, da ética e das instituições. Ademais, que mais ações valorizem e empoderem travestis e transexuais, macro e micropoliticamente, para que a sociedade se realize constitucionalmente com alteridade, erradicação de marginalização e promoção do bem de todos sem discriminação. Referências bibliográficas BENTO, B. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006. BUTLER, J. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. FEYERABEND, P. Contra o método. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S.A., 1977.

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GONZÁLEZ REY, F. Pesquisa qualitativa e subjetividade: os processos de construção e informação. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005. WARAT, L. A. A rua grita Dionísio!. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. ___________. O Direito e sua linguagem. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995. ___________.

Por

quem

cantam

as

sereias.

In:

__________.

Territórios

Desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004a, p. 369ffi528. ___________. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. In: ___________.

Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004b.

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