A digressão como recurso narrativo em Homero e Heródoto (in Gêneros Poéticos na Grécia Antiga, 2014)

July 11, 2017 | Autor: Adriane Duarte | Categoria: Greek Epic, Homero, Herodoto
Share Embed


Descrição do Produto

A digressão como recurso narrativo em Homero e Heródoto

Adriane da Silva Duarte Universidade de São Paulo Pode-se argumentar que a mais importante e influente semelhança entre Heródoto e Homero reside na qualidade mimética de suas narrativas.1

1

Boedeker, D. Epical heritage and mythical patterns in Herodotus. In: Bakker, E; De Jong, I.; Van Wees, H. (ed.). Brill’s Companion to Herodotus. Leiden: Brill, 2002, p. 106. As traduções constantes no texto, salvo indicação contrária, são de minha autoria.

gêneros poéticos26_05.indd 81

03/07/2014 16:13:56

• 82 •

gêneros poéticos na grécia antiga

O título acima não é inteiramente satisfatório na medida em que é redutor, em vista da aproximação pretendida entre Homero e Heródoto, e pouco específico, já que a digressão, embora bastante presente nos dois autores, assume configurações e significados diversos de acordo com o contexto. Mantive-o, no entanto, porque ao menos tem a virtude de descrever parcialmente do que devo tratar, ainda que de maneira incipiente. Assim, coube à epígrafe de Boedeker a função de determinar o que realmente me interessa nessa aproximação, ao mesmo tempo em que aponta para a dívida que tenho para com seu texto, que me pareceu abordar essa questão tantas vezes visitada, mas com tanto partidarismo e imprecisão, com grande clareza e equilíbrio. Ao invocar a “qualidade mimética”, Boedeker esclarece que (itálicos meus):2 “Como a épica homérica, Histórias não registra simplesmente o resultado de ações passadas, mas apresenta uma recriação de cunho imaginativo e dramático do como e porque a ação aconteceu”. Essa recriação dramática, calcada na imaginação (ou, nas palavras de Aristóteles, “naquilo que poderia ter acontecido”),3 apoia-se basicamente no emprego do discurso direto que revela “o caráter, a motivação e o destino dos agentes históricos”.4 Os diálogos, como todo o resto, subordinam-se a 2 Idem, p. 106. 3 Em Poética 1451b, Aristóteles estabelece a célebre comparação entre poetas e historiadores: ἀλλὰ τούτῳ διαφέρει, τῷ τὸν μὲν τὰ γενόμενα λέγειν, τὸν δὲ οἷα ἂν γένοιτο. 4 Boedeker, op. cit., p. 106. I. De Jong, com uma visada mais técnica, trata da mesma questão sem considerar a influência de Homero: “Like any narrator, Herodotus has the possibility to present his story as a series of events and actions [...] or as a scene, which means that he shows down the pace of narrative so as to approach the length of time of the events and actions, giving us details about scenery or characters (their gestures, facial expressions, etc) and quoting their words”. Cf. De Jong, I. Narrative unity and units. In: Bakker, E; De Jong, I.; Van Wees, H., op. cit., p. 258.

gêneros poéticos26_05.indd 82

03/07/2014 16:13:56

a digressão como recurso narrativo em homero e heródoto

• 83 •

uma voz narrativa, que assume para si a função de selecionar e editar o material de acordo com critérios previamente pactuados com seu auditório (categoria que inclui também os leitores da obra). Devo chamar atenção para um ingrediente herodotiano, e que me interessa bastante, que é o fato de o historiador compor em prosa. Como se sabe, os gêneros da prosa surgem tardiamente entre os gregos, por volta do século VI a.C., como consequência da lenta difusão dos hábitos letrados e do forte predomínio de uma cultura oral, cuja expressão maior se faz sentir nos gêneros da poesia. Assim, os poemas homéricos, primeiro registro da produção grega, foram transmitidos de uma geração a outra graças a uma poética adaptada à mnemônica, em que a adoção de um metro uniforme, expressões formulares e cenas típicas permitiu a preservação de um núcleo semântico, ao mesmo tempo em que admitia variações que o adaptasse às situações de performance. Nesse contexto, a poesia tornou-se o principal veículo para a conservação e transmissão do conhecimento, entendido como visão de mundo, preceitos éticos e teológicos. Não à toa o próprio Heródoto considera que os gregos devem a Homero e Hesíodo a compreensão de seu panteão.5 Mais tarde, a possibilidade de registrar por escrito observações e pensamentos, confiados a um suporte externo (papiros, tabuletas, etc.), teve por efeito 5 Cf. Histórias, II. 53: “Realmente, suponho que a época de Homero e Hesíodo não é mais de quatrocentos anos anteriores à nossa, e foram eles que em seus poemas deram aos helenos a geneologia dos deuses e lhes atribuíram seus diferentes epítetos e suas atribuições, honrarias e funções, e descreveram suas figuras”. A tradução é de Mário da Gama Kury. In: Herôdotos. História. Brasília: Editora da UNB, 1985. Para o texto grego, consultar Hérodote. Histoires. Livre I. Texte établi et traduit par Ph.-E. Legrand. Paris: Les Belles Lettres, 1970.

gêneros poéticos26_05.indd 83

03/07/2014 16:13:56

• 84 •

gêneros poéticos na grécia antiga

o alargamento dos horizontes do saber, uma vez que o esforço dispensado com a memória de um acervo já constituído pode voltar-se para a investigação de novas hipóteses e a criação de novas teorias. Com isso, o emprego de formas poéticas para veicular o conhecimento produzido tornou-se menos necessário. Deu-se início, então, a uma especialização em que os gêneros da poesia eram percebidos cada vez mais como sede do relato ficcional e voltados para o entretenimento, enquanto que os da prosa foram associados a um conteúdo técnico (ou científico), voltados para o exame ou demonstração de uma tese – aí se encontram a filosofia, a historiografia, a medicina, a legislação, a oratória, entre outros. A polêmica de Platão contra os poetas, cuja presença é vetada na cidade ideal na República, faz parte de uma disputa de sophia em busca da consolidação da autoridade e que alcança seu ápice entre o final do século V e o início do IV a.C.6 Alguns estudiosos, como Havelock e Goldhill, tratam a ascensão da prosa como um marco da revolução intelectual, situando o novo meio no plano das elites intelectuais, mas Romm chama a atenção para a denominação da prosa como logos pezon, discurso pedestre, metáfora militar que aponta não só para falta de ornamentação (a cavalaria e outras divisões do exército eram mais paramentados), mas também para a humildade em termos sociais (os hoplitas, que iam a pé com armas e provisões, eram oriundos de estratos populares da população, contrastando com os aristocráticos cavaleiros). Recentemente Kurke reforçou essa visão ao analisar a origem da prosa a partir da constituição

6 A bibliografia sobre o tema é vasta, remeto, no entanto a dois autores que ajudam a situar a questão: Havelock, E. A revolução da escrita na Grécia e suas consequências culturais. São Paulo: Paz e Terra; Editora Unesp, 1996; e Goldhill, S. The invention of prose. Oxford: Clarendon Press, 2002.

gêneros poéticos26_05.indd 84

03/07/2014 16:13:56

a digressão como recurso narrativo em homero e heródoto

• 85 •

popular da fábula esópica e da hierarquia entre os gêneros – mesmo entre os da prosa.7 Heródoto, portanto, está associado ao surgimento da prosa na Grécia, advento que só é concebível no âmbito do pleno estabelecimento de hábitos letrados. Isso não significa, no entanto, que sua obra esteja desprovida daqueles traços de oralidade que marcaram sucessivas gerações de gregos. Inclusive porque ao compor sua narrativa o historiador teve que buscar modelos na literatura anterior, de cunho majoritariamente oral. Assim, os estudiosos são unânimes em reconhecer Heródoto como um produto da cultura oral que ainda vigorava na Grécia, embora já estivesse em pleno processo a transição para o mundo da escrita – ele mesmo com um pé em cada, constituindo, na metáfora de John Herington, um centauro, cuja parte superior representa o lado urbano e racional do historiador e a parte inferior remete às montanhas longínquas, a um território livre, selvagem, imune às convenções sociais e permeado pelo mito.8 Praticamente não há controvérsia sobre a influência que os poemas homéricos exerceram sobre os primeiros historiadores. Heródoto e Tucídides, nos parágrafos de abertura de suas narrativas, elegem o poeta como referência, cuja versão do passado cabe ora ratificar, ora, principalmente, retificar.9 Está, 7 Para Havelock e Goldhill, cf. n. 6. Ver também Romm, J. Herodotus. New Haven: Yale University Press, 1998. Kurke, L. Aesopic conversations. Popular tradition, cultural dialogue and the invention of Greek prose. Princeton: Princeton University Press, 2011, p. 8. 8 Cf. Romm, op. cit., p. 121; Momigliano, A. As raízes clássicas da historiografia moderna. Trad. Maria Beatriz Borba Florenzano. Bauru: Edusc, 2004, p. 65. 9 A bibliografia a respeito é grande e cito, apenas como referência inicial, os conhecidos textos de Moses Finley, Mito, memória e história. (In: ______. Uso e abuso da história. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 3-27), e de François Hartog, Primeiras figuras do historiador na Grécia: historicidade

gêneros poéticos26_05.indd 85

03/07/2014 16:13:56

• 86 •

gêneros poéticos na grécia antiga

sobretudo, na eleição da guerra como núcleo da narrativa e na intenção explícita de preservar a memória de acontecimentos grandiosos o ponto central dessa proximidade. Esse vínculo será tão intrínseco entre os gregos que Aristóteles, na Poética, sentirá a necessidade de dissociar poetas e historiadores, distinção essa que desconsidera se a composição é em verso ou em prosa, para enfatizar seu caráter “imaginativo”, ou, ficcional.10 Embora consciente que os paralelismos de estilísticos entre Homero e Heródoto possam ser explicados por uma origem comum, fundada nas características de composição oral, que teria maior peso do que empréstimos diretos ou imitação consciente, penso que os ecos dos poemas homéricos em Histórias respondam ao fato de que “a épica arcaica era o único modelo para uma narrativa sustentável de eventos grandiosos”.11 Feita essa digressão, tão ao gosto de nosso autor, voltemos ao ponto de interesse. Heródoto escreve prosa, sendo até mesmo, ao menos da nossa perspectiva fracionada, um dos inventores da prosa grega. Embora a prosa de ficção (e aqui concedo que estou pensando com critérios modernos), com exceção das fábulas, só surja na Grécia na era cristã (Quéreas e Calírroe, primeiro exemplar conhecido de romance, é muito provavelmente de e história (In: ______. Os Antigos, o passado e o presente. Brasília: Editora UnB, 2003, p. 11-33). 10 Poética, IX, 1451 a 36 (In: Aristóteles. Poética. Trad. Eudoro de Sousa. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1986): “Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por escreverem em verso ou em prosa (pois bem que poderiam ser postas em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser história, se fossem em verso o que eram em prosa) diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder”. 11 Cf. Boedeker, op. cit, p. 107. Ver também Pelling, C. Homero y Heródoto. In: de Tobia, A. M. G. (ed.). Lenguage, discurso y civilización. De Grecia a la modernidad. La Plata: Centro de Estudios de Lenguas Classicas, 2007, p. 316-717, que pensa em termos de “modelos de experiência” comuns.

gêneros poéticos26_05.indd 86

03/07/2014 16:13:56

a digressão como recurso narrativo em homero e heródoto

• 87 •

I d.C.), Heródoto pode, e até mesmo deve, ser visto como seu precursor. Embora ele mesmo deixe claro que não faz ficção, ou, nas palavras de Dewald, “omita intencionalmente heuresis, a invenção, de seu repertório narrativo”, as várias histórias (lógoi, novellae, excursos narrativos, cenas) inseridas nas Histórias permitem entrever o germinar da fabulação em prosa.12 Antes de passar ao exame de uma dessas narrativas, cabe determinar sua função. A crítica tem se apresado em descartar o papel de entretenimento dessas histórias, talvez por julgá-lo incompatível com o que se espera de um relato de historiador. Ao fazê-lo, assume de certa forma a censura constante da primeira recepção de Heródoto, por Tucídides e Plutarco, por exemplo, que o acusavam de fabulador e mentiroso. Tucídides, sobretudo, tenta fazer prevalecer seu modelo sobre o de seu antecessor, num gênero novo, ainda em constituição. Admitindo que fosse essa mesma a intenção de Heródoto, não me parece assim descabido que se previsse, num texto de longa extensão, momentos de distensão, que emulassem estratégias adotadas na poesia. No entanto, o prazer do auditório não seria o seu único fim. Dewald, em artigo mais recente, propõe que essas histórias respondem à necessidade de tornar acessível aos gregos padrões de comportamento e cultura exóticos a ele.13 Recorrendo a estruturas 12 Dewald, C. “I didn’t give my own genealogy”: Herodotus and the authorial persona. In: Bakker, E; De Jong, I.; Van Wees, H. Brill’s Companion to Herodotus. Leiden: Brill, 2002, p. 274. Não vou discutir aqui a propriedade das denominações para as histórias herodotianas, mas remeto à discussão de I. De Jong (op. cit., p. 255-257). Admito, no entanto, que, apesar de toda controvérsia e do inconveniente do anacronismo, a definição de novella é a que melhor parece descrevê-las: “a short and entertaining stories about real people, situated in a certain place and in a certain time (in contrast to the folktale), and including a great deal of direct speech” (De Jong, op. cit., 257). 13 Dewald, C. Myth and legend in Herodotus’ First Book. In: Baragwanath, E.; Bakker, M. (ed.). Myth, truth and narrative in

gêneros poéticos26_05.indd 87

03/07/2014 16:13:56

• 88 •

gêneros poéticos na grécia antiga

do mito e da poesia, o historiador 1) estabeleceria um pano de fundo familiar ao seu auditório; 2) exploraria a possibilidade de os agentes internos explicarem as motivações de seus atos, especialmente quando nem testemunhas nem documentos estão disponíveis. Esses pequenos relatos não deixam, então, de estar a serviço da investigação, contribuindo também para a persuasão do auditório. Gostaria de testar essas ideias, analisando um episódio que faz parte do logos de Ciro, no livro I das Histórias. Trata-se do reconhecimento do menino pelo avô, Astiages, que o havia mandado matar por entender que o neto representaria uma ameaça a seu reino. Escolho essa passagem não em vista dos motivos mitológicos que a enformam, evidentes nesse breve resumo e já bem estudados,14, mas pela técnica narrativa que apresenta, similar em alguns pontos a de Homero. Para chegar à digressão que quero examinar, é forçoso passar em revista todo logos, de modo a estabelecer-lhe o contexto. Peço, portanto, ao leitor que me acompanhe pacientemente nesse movimento. O objetivo das Histórias, conforme expõe Heródoto no início de seu livro, é preservar a memória dos “feitos magníficos e admiráveis de gregos e de bárbaros” (μήτε ἔργα μεγάλα τε καὶ θωμαστά, τὰ μὲν Ἕλλησι τὰ δὲ βαρβάροισι ἀποδεχθέντα), de modo a não ficarem desprovidos de glória (ἀκλεᾶ γένηται, I, proêmio). Os confrontos entre esses povos culminará com Herodotus. Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 61 e 83. Cf. também no mesmo volume o texto de C. Chiasson, Myth and truth in Herodotus’ Cyrus’ logos, p. 214, sobre a infância de Ciro: “More specifically, Herodotus employs myth as a means of familiarizing, explaining, and enhancing for a Greek audience the historical origins of the Persian empire and its founder”. 14 Gray, V. Short histories in Herodotus’ Histories. In: Bakker, E; De Jong, I.; Van Wees, H., op. cit., p. 291-317; Dewald, C. op. cit., p. 82; C. Chiasson, op. cit., p. 213-232.

gêneros poéticos26_05.indd 88

03/07/2014 16:13:56

a digressão como recurso narrativo em homero e heródoto

• 89 •

as Guerras Médicas, no início do século V. a.C., com a vitória dos helenos. Para narrá-las, Heródoto rastreará o histórico de hostilidades que os opõe. Na parte inicial do primeiro livro (I. 6-94), Heródoto concentra-se na figura de Creso, rei lídio que teria sido o primeiro a subjugar gregos na tentativa de constituir um império. Seu reinado se encerra pelas mãos de Ciro, soberano persa, que o derrota e assimila a Lídia a seu reino. A introdução desse novo personagem e sua importância na consolidação do império persa faz com que Heródoto se concentre nele na segunda parte do livro (I. 95-216). Sobre suas fontes, ele faz o seguinte comentário (I. 95): 15 Seguirei em minha exposição a opinião de algumas pessoas [alguns dos Persas] cujo desejo não é fazer um relato dignificante da história de Ciro, e sim dizer a verdade, embora haja três outras versões desses eventos além da que exporei. [ὡς ὦν Περσέων μετεξέτεροι λέγουσι, οἱ μὴ βουλόμενοι σεμνοῦν τὰ περὶ Κῦρον ἀλλὰ τὸν ἐόντα λέγειν λόγον, κατὰ ταῦτα γράψω, ἐπιστάμενος περὶ Κύρου καὶ τριφασίας ἄλλας λόγων ὁδοὺς φῆναι.]

Já no momento em que as Histórias foram escritas, circulavam diversas versões sobre a vida de Ciro, de modo que Heródoto teve que optar sobre qual seguir para compor seu relato. Ele afirma que sua fonte é persa e que é mais moderada em vista das realizações de Ciro (οἱ μὴ βουλόμενοι σεμνοῦν τὰ περὶ Κῦρον ἀλλὰ τὸν ἐόντα λέγειν λόγον, I. 95). Nela o antagonismo entre Astiages, o monarca medo, e seu neto Ciro, é central. Só para se 15 Citado na tradução de Mario da Gama Kury (cf. n. 5) com pequenas correções (p. ex., adequação dos nomes próprios à grafia tradicional).

gêneros poéticos26_05.indd 89

03/07/2014 16:13:56

• 90 •

gêneros poéticos na grécia antiga

ter uma ideia da diversidade com que esse material foi tratado, os gregos elaboraram ao menos outras duas versões da infância do monarca. Em uma delas, atribuída a Ctésias (século V a.C.) por Nicolau de Damasco, Ciro sequer era parente de Astiages, mas tinha origem humilde, filho de um ladrão e de uma camponesa. Começa a trabalhar no palácio de Astiages, onde conquista a confiança do monarca ao qual termina por suceder. Em outra, mais conhecida, a Ciropédia, de Xenofonte (séculos V a IV a.C.), Ciro e Astiages têm excelente relação, tendo o neto cumprido parte de sua educação na corte do avô, outra parte no seu país natal, sobre o qual reinava seu pai, Cambises.16 Como vimos, Heródoto vai editar seu material, adotando o critério de selecionar a versão comprometida com o que aconteceu de fato (τὸν ἐόντα λέγειν λόγον), sem pretender engrandecer a personagem (οἱ μὴ βουλόμενοι σεμνοῦν τὰ περὶ Κῦρον). Sua narrativa sobre a infância do rei obedecerá a esse preceito. Mas o que ele entende por “engrandecer” a personagem? A resposta pode estar na primeira aparição de Ciro nas Histórias em que atua como agente da queda de Creso. Atado ao alto de uma pira para que fosse consumido pelo fogo, o velho monarca lídio reconhece a sabedoria de Sólon, que insistira que a felicidade de um homem só pode ser afirmada depois de sua morte, quando ele não estaria mais sujeito ao revés da sorte. Ciro, então, se compadece e pensa que, “sendo também um homem, estava mandando queimar vivo outro homem, cuja felicidade passada não havia sido menor do que a sua, ele teve

16 Sobre essas e outras fontes sobre a infância de Ciro, cf. Binder, G. Die Kyrossage und das persische Königsritual. In: ______. Die Aussetzung des Königskindes Kyros und Romulus. Meisenheim am Glan: Verlag Anton Hain, 1964, p. 17-28, especialmente p. 19-21, 25. V. também C. Chiasson, op. cit., 220.

gêneros poéticos26_05.indd 90

03/07/2014 16:13:56

a digressão como recurso narrativo em homero e heródoto

• 91 •

medo de pagar por isso um dia, e lhe veio à mente que nenhuma das coisas humanas é estável” (Histórias I. 86). Ordenou então que libertassem o prisioneiro. Nessa primeira aparição Ciro demonstra consciência de sua humanidade e dos limites que ela lhe impõe. Condizente com isso, Heródoto construirá sua personagem dentro desses limites, evitando versões que façam dele um deus ou um herói, como é possível que ocorresse em suas fontes orientais. Vale lembrar que a divinização do rei, visto como reencarnação de uma divindade, é um traço comum a essas monarquias. Assim ele fará o futuro monarca um mortal, filho de mortais – Mandane e do persa Cambises, este sequer um rei –, cuja morte decretada pelo avô foi evitada não por uma intervenção milagrosa, no sentido estrito, mas pela ação do acaso (thyche) e pela bondade de homens simples, o pastor Mitradates e sua esposa Cino/Spaco.17 É preciso notar que a narrativa briga com o invólucro mítico que a encerra, de inspiração grega – ou seja, há uma tensão entre a fonte persa e a forma grega. Para contar a história de Ciro, Heródoto parece ter elegido, dentre todos os modelos possíveis, o de Perseu. Filho de Zeus com a princesa Danae, o herói, cujo nascimento foi anunciado pelo oráculo como uma ameaça ao avô Acrísio, foi abandonado à morte e salvo posteriormente graças à intervenção de um pescador, que o criou. Como no caso de Édipo, com quem a história de Ciro também guarda fortes semelhanças, a sobrevivência da criança acarreta o cumprimento da profecia que se quis evitar. Essa escolha não

17 Cf. Histórias, I. 110: “Seu nome era Mitradates, e sua mulher era escrava como ele. O nome dela na língua helênica era Cino, e na dos Medos era Spaco (os medos chamavam o cão de spax).” Cino, em grego, significa cadela, sendo o nome do pai composto a partir de Mitra, importante divindade indo-irânica.

gêneros poéticos26_05.indd 91

03/07/2014 16:13:56

• 92 •

gêneros poéticos na grécia antiga

deixa de ser natural, uma vez que o historiador está preocupado em mostrar Ciro como um herói de seu povo, cuja origem pode ser remontada a Perseu através de seu filho, Perses (cf. Histórias, VII. 220). Vários elementos desse roteiro original são alterados na versão herodoteana, causando certo ruído aos que estão familiarizados com o(s) modelo(s). Em primeiro lugar há os sonhos que alarmam Astiages e que o movem a, primeiro, casar a filha com alguém claramente inferior a ela e, segundo, ordenar a morte do filho que ela espera.18 Essa história é cheia de lacunas, pois para cada informação que Heródoto nos dá, há outra que ele cala – silêncio seletivo? Ele nos diz que Astiages tinha uma filha, Mandane, mas num primeiro momento não afirma que era filha única, o que deduzimos.19 Ele diz que o rei, impressionado com o sonho que tivera com a filha o leva aos intérpretes de sonhos, ficando aterrorizado com o que ouviu (I, 107: ἐφοβήθη παρ› αὐτῶν αὐτὰ ἕκαστα μαθών), mas nada sabemos do teor da profecia. Diz também que, por medo da visão (I, 107: δεδοικὼς τὴν ὄψιν), quando ela atinge a idade de casar, resolve entregála a Cambises, um súdito estrangeiro sem título nem mando, e mandá-la para longe.20 Um novo sonho faz com que o rei traga de volta a filha, então grávida, para que possa matar a criança que 18 No primeiro sonho, a princesa urina até inundar toda a Ásia; no segundo, uma videira brota de sua genital encobrindo o mesmo território. Para uma análise dos sonhos, cf. Pelling, C. The urine and the vine: Astyages’ dreams at Herodotus I. 107-8. Classical Quarterly, v. 46, iss. 1, 1996, p. 68-77. 19 Em I, 109, Harpago confirma que Astiages não tinha descendência masculina: ...καὶ ὅτι ᾿Αστυάγης μέν ἐστι γέρων καὶ ἄπαις ἔρσενος γόνου. 20 Heródoto diz que Cambises tem boa índole (I. 107, τρόπου δὲ ἡσύχιου) e que pertence a uma casa nobre (I. 107: οἰκίης μὲν ἐόντα ἀγαθῆς), mas não dá a entender que ocupasse o trono. No entanto, os medos consideravam os persas súditos e, por isso, o mando de Cambises, caso houvesse, seria apenas pro forma.

gêneros poéticos26_05.indd 92

03/07/2014 16:13:56

a digressão como recurso narrativo em homero e heródoto

• 93 •

esperava assim que nascesse. Desta vez, Heródoto informa que os intérpretes de sonhos disseram ao rei que seu neto reinaria em seu lugar (I, 108: ἐκ γάρ οἱ τῆς ὄψιος τῶν μάγων οἱ ὀνειροπόλοι ἐσήμαινον ὅτι μέλλοι ὁ τῆς θυγατρὸς αὐτοῦ γόνος βασιλεύειν ἀντὶ ἐκείνου). Há aqui algo terrível, que não é enunciado, mas que o leitor grego estaria apto a adivinhar em vista do modelo narrativo. Se o rei não tem descendentes do sexo masculino, por que não passar o trono a seu neto? Por que entregar a filha a um homem de menor valor? O que teria causado tanto pavor na primeira interpretação do sonho? Astiages não temia ser sucedido por seu neto, mas ser morto por ele, como Acrísio. Ao contrário do primeiro, não aprisiona sua filha numa câmara de bronze, mas a condena a um casamento inferior, fadado a gerar herdeiros fracos (veja-se o exemplo de Electra, em Eurípides, dada com a mesma intenção a um camponês desvalido) e, quando uma nova visão reafirma a anterior, Astiages, ao constatar que sua estratégia falhara, adota a solução de Acrísio e manda matar a criança. E por que Heródoto cala e deixa que o leitor imagine por sua conta e risco? Por um lado, cria-se a expectativa de um enredo desse tipo (que não se cumpre, afinal, porque ao contrário de Perseu, Ciro não mata Astiages, lembrando-nos o limite para a inventividade do historiador está no “contar o que foi”, τὸν ἐόντα λόγον); por outro, porque o não cumprimento da profecia lançaria uma sombra sobre a eficácia dos sinais divinos, indo em direção contrária aos esforços do historiador até então. Também deve-se ter em conta que, no seu esforço para dotar Ciro de humanidade, vários dos paralelos criados com os heróis do mito são quebrados. Até esse ponto a história é narrada em terceira pessoa, pelo narrador das Histórias, ou seja, Heródoto. O modo de imitação, o

gêneros poéticos26_05.indd 93

03/07/2014 16:13:56

• 94 •

gêneros poéticos na grécia antiga

narrativo misto, em que o poeta alterna sua própria voz com a das personagens, aproxima Heródoto de Homero – Platão, adotando o mesmo modo, faz algo distinto, mais próximo do dramático, mas ainda preserva marcas claras do narrador (eu disse, ele disse, etc.). O relato sobre a infância de Ciro, ilustra bem esse ponto. Começa com um narrador em terceira pessoa, distante, onipresente e onisciente,21 mantendo essas características até que se alcança o momento climático, o nascimento de Ciro e a consequente trama de Astiages para tirar-lhe a vida. Nesse ponto, o diálogo torna-se dominante e o discurso direto, uma importante forma de envolver o leitor, colocando-o no palco dos acontecimentos – a casa de Harpagos, a choupana de Mitradates, o palácio de Astiages. O leitor se torna testemunha de fatos não documentados e o historiador faz com que cada agente explicite sua motivação – assim sabemos que Astiages age movido pelo medo de ser destronado, Harpago por considerar sua conveniência, Mitradates e sua esposa por piedade para com a criança. A caracterização das personagens, que expressam suas ideias em confronto umas com as outras, fica mais rica. Sem dúvida já estava em Homero, mas Heródoto vai adiante, com mudanças de cenário e avanços cronológicos mais marcados. O mesmo recurso será explorado séculos mais tarde pelos autores dos romances. Assim como Homero, com seus Eumeu e Euricleia, Heródoto concede a personagens simples papel importante em seu enredo. Assim que Astiages encarrega Harpago, seu parente e ministro,

21 Cf. De Jong, I. Herodotus. In: De Jong, I.; Nünlist, R.; Bowie, A. (eds.) Narrators, naratees and narratives in ancient Greek literature. Studies in ancient Greek narrative. v. I. Brill: Leiden, 2004, p. 101-114, especialmente p. 101: “The Herodotean narrator resembles the Homeric narrator, in that he is external, omnipresent and omniscient”.

gêneros poéticos26_05.indd 94

03/07/2014 16:13:56

a digressão como recurso narrativo em homero e heródoto

• 95 •

de executar o jovem príncipe, ele repassa a ordem ao vaqueiro Mitradates. Dentro do modelo mítico sua função é clara, assim como pescador salvou Perseu, ele deveria poupar Ciro.22 Há algo mais, no entanto. Mitradates se torna o guardião da verdade, pois é o único que sabe a identidade da criança que cria como se fosse seu filho. Durante dez anos, eles vivem sossegados, até que a verdade vem à tona. Ao brincar com outros meninos, Ciro fora escolhido para desempenhar o papel de rei e os outros, relegados a posições hierarquicamente inferiores, deviam-lhe obediência. Um dos colegas cumpriu mal suas funções e foi severamente castigado pelo “reizinho”. Como a criança era filha de um alto dignatário persa, seu pai queixou-se a Astiages da insolência do filho do vaqueiro. Astiages manda chamar o garoto e o interroga diante de Mitradates. Com segurança e sem se intimidar, Ciro justifica suas ações, argumentando que de comum acordo as crianças o designaram seu rei e que apenas aquele menino não seguia 22 Cabe aqui chamar atenção para os nomes sugestivos dos pais de criação do jovem rei. O vaqueiro chama-se Mitradates, nome que remete, como notam vários estudiosos, ao deus Mitra. O nome grego de sua esposa é Cino (κύνα), equivalente, como nota Heródoto, em persa a Spaco (Σπακώ). Ambos significam cadela. Binder (ver n. 16) acredita que esses nomes remetam a histórias mais antigas do rei divino, que seria uma reencarnação de um deus ou seu filho e que, no momento mesmo do nascimento, seria posto à prova, abandonado na natureza, devendo sobreviver por conta própria, com o auxílio de algum animal, como na lenda de Rômulo e Remo. Nos mitos gregos essa ideia pode ser encontrada na história de Íon, herói de tragédia homônima de Eurípides. O jovem, filho do deus Apolo com a princesa ateniense Creúsa, é criado na ignorância de sua verdadeira origem para tornar-se sucessor de sua mãe na casa real de Atenas. No caso de Ciro, pode-se pensar que ele fosse filho da princesa meda Mandane de do deus Mitra e que teria sido criado longe do palácio para encobrir a ilegalidade de seu nascimento – como Íon é criado no santuário de Delfos. A versão de que era filho biológico de Cambises e adotivo de Mitradates seria uma acomodação da primeira a parâmetros mais realistas.

gêneros poéticos26_05.indd 95

03/07/2014 16:13:56

• 96 •

gêneros poéticos na grécia antiga

suas ordens. Assim, ele recebera justa punição por sua conduta inadequada. A atitude do menino levanta suspeitas em Astiages (I. 116): Enquanto o menino falava, o reconhecimento (ἀνάγνωσις) se insinuava a Astiages. Tanto os traços do rosto pareciam-lhe semelhantes aos seus próprios, quanto sua resposta era a mais adequada a um homem livre, também parecia coincidir a época da exposição com a idade do menino [i. e., do seu neto]. Tomado de espanto com essas coisas, ficou sem palavras por um momento. [ταῦτα λέγοντος τοῦ παιδὸς τὸν Ἀστυάγεα ἐσήιε ἀνάγνωσις αὐτοῦ, καὶ οἱ ὅ τε χαρακτὴρ τοῦ προσώπου προσφέρεσθαι ἐδόκεε ἐς ἑωυτὸν καὶ ἡ ὑπόκρισις ἐλευθερωτέρη εἶναι, ὅ τε χρόνος τῆς ἐκθέσιος τῇ ἡλικίῃ τοῦ παιδὸς ἐδόκεε συμβαίνειν. ἐκπλαγεὶς δὲ τούτοισι ἐπὶ χρόνον ἄφθογγος ἦν.]

Astiages resolve interrogar o vaqueiro que, sob ameaça de tortura – como o pastor do Édipo Rei –, revela ao rei a origem do menino. Chiasson (ver n. 13, especialmente p. 215) chama atenção para o fato de caber a ele revelar a verdade (I, 116: τὸν ἐόντα λόγον), cumprindo o programa que Heródoto estabelecera para a elaboração da história (I. 95). O reconhecimento entre avô e neto, entretanto, não ocupa a sequência da história. O desfecho da história é suspenso para que se desenvolva a narrativa da vingança de Astiages contra Harpagos – como paga à sua desobediência, o rei serve a ele uma refeição preparada com as carnes do filho (I. 117-119).23 23 Note-se o paralelismo finamente construído por Heródoto entre a ação do neto (Ciro pune o menino que se recusa a cumprir suas ordens) e a do avô

gêneros poéticos26_05.indd 96

03/07/2014 16:13:56

a digressão como recurso narrativo em homero e heródoto

• 97 •

Ao ser retomada a narrativa (I. 120), Astiages volta a consultar os intérpretes de sonhos que, à luz das últimas notícias, concluem que a criança não representa mais nenhum perigo para o avô, pois consideram que já se realizou a predição do sonho, quando ela se tornara rei nas brincadeiras infantis. Assim, Astiages envia o menino para Pérsia, para junto de seus pais, preservando-o justamente para que depois venha a ser por ele sucedido. Nunca se saberá ao certo o quanto Heródoto inovou em sua narrativa da infância de Ciro em relação as suas fontes. É certo que ele está contribuindo para desenvolver o gênero narrativo em prosa e em vista disso, tem um olho para Homero. Pode-se ver isso na interpolação da vingança de Astiages contra Harpagos entre o momento em que se dá o reconhecimento (I. 116) e seu desfecho (I. 120) – Ciro é poupado e volta para junto dos pais: Depois que o vaqueiro revelou a verdade, Astiages fez pouca conta dele, mas censurou severamente Harpago e ordenou aos lanceiros que o chamassem (I. 117). [...] Astiages aplicou essa punição a Harpago. Ao deliberar sobre Ciro, chamou os mesmos magos que interpretaram seu sonho anteriormente e, quando chegaram, Astiages perguntou-lhes como tinham interpretado a visão (I. 120).

(Astiages pune Harpagos por tê-lo desobedecido no passado). E também quando Astiages reconhece Ciro, que deveria estar morto, vivo, e Harpagos seu filho, que deveria estar vivo, morto (cf. I, 19: πειθόμενος δὲ ὁ ᾿Αστυάγης καὶ ἀποκαλύπτων ὁρᾷ τοῦ παιδὸς τὰ λείμματα·[...] εἴρετο δὲ αὐτὸν ὁ ᾿Αστυάγης εἰ γιγνώσκοι ὅτεο θηρίου κρέα βεβρώσκοι. ὁ δὲ καὶ γιγνώσκειν ἔφη καὶ ἀρεστὸν εἶναι πᾶν βασιλεὺς ἔρδῃ).

gêneros poéticos26_05.indd 97

03/07/2014 16:13:56

• 98 •

gêneros poéticos na grécia antiga

[Ἀστυάγης δὲ τοῦ μὲν βουκόλου τὴν ἀληθείην ἐκφήναντος λόγον ἤδη καὶ ἐλάσσω ἐποιέετο, Ἁρπάγῳ δὲ καὶ μεγάλως μεμφόμενος καλέειν αὐτὸν τοὺς δορυφόρους ἐκέλευε. [...] Ἁρπάγῳ μὲν Ἀστυάγης δίκην ταύτην ἐπέθηκε, Κύρου δὲ πέρι βουλεύων ἐκάλεε τοὺς αὐτοὺς τῶν Μάγων οἳ τὸ ἐνύπνιὸν οἱ ταύτῃ ἔκριναν. ἀπικομένους δὲ εἴρετο ὁ Ἁστυάγης τῇ ἔκρινάν οἱ τὴν ὄψιν. οἳ δὲ κατὰ ταὐτὰ εἶπαν λέγοντες ὡς βασιλεῦσαι χρῆν τὸν παῖδα, εἰ ἐπέζωσε καὶ μὴ ἀπέθανε πρότερον.]

A longa digressão, bem marcada pela menção a Harpago no seu começo e fim, constituindo um exemplo de composição em anel (Ringskomposition), põe em primeiro plano o caráter terrível de Astiages e, com isso, cria a expectativa de que a ira do rei se voltasse em seguida contra a criança, que quisera ver morta um dia. Ou seja, contribui para criação de uma tensão narrativa, que se desarma uma vez que Astiages segue a opinião dos sábios e considera Ciro inofensivo, desistindo de seus planos homicidas. Esse é um recurso que se encontra amiúde nos poemas homéricos. Só para citar um exemplo, remeto ao canto XIX (307507) da Odisseia, em que uma outra cena de reconhecimento é narrada, a que ocorre entre Euricleia e Odisseu. A passagem é bastante conhecida, mas ainda assim vale relembrá-la aqui. Após relutar, Odisseu aceita a oferta de Penélope e deixa que seus pés sejam banhados por uma velha criada da casa. Euricleia se apresenta ao hóspede, que busca as sombras do aposento na tentativa de permanecer incógnito, e começa a banhá-lo, quando toca a cicatriz que ele traz na perna. O choque é tamanho que ela larga o pé sobre a bacia. O reconhecimento entre ama e senhor, e muito provavelmente entre marido e mulher, pois Penélope ainda

gêneros poéticos26_05.indd 98

03/07/2014 16:13:57

a digressão como recurso narrativo em homero e heródoto

• 99 •

não se retirara, é iminente, mas uma longa digressão sobre a origem da cicatriz e a infância do herói o posterga. Esse retardamento na narrativa alimenta tensão porque o reconhecimento antes do momento oportuno poderia por em risco os planos de vingança de Odisseu e sua própria integridade física, pois os pretendentes tinham espiãs entre as criadas de Penélope. Finda a digressão, o herói toma a iniciativa de coibir as manifestações de alegria da sua velha ama, garantindo que o segredo de sua identidade fique apenas entre eles. Heródoto recorre ao mesmo esquema narrativo, obtendo um efeito similar. A interrupção da narrativa cria um suspense sobre o desfecho do reconhecimento entre avô e neto, se ele resultaria na amizade ou na inimizade entre as personagens nele envolvidas – nos termos em que Aristóteles define anagnórisis na Poética.24 O fato da história interposta tratar de uma vingança cruel, prepara o leitor para o pior, expectativa que termina não se confirmando com a retomada do fio narrativo. Assim, se a relação entre avô e neto era de “inimizade”, já que aquele ordenara a morte deste, recém-nascido, ela passa à “amizade”, relativa talvez, com a decisão de devolver o menino aos seus pais, preservando sua vida. Esse desfecho reforça o modelo mítico, o de Perseu, como quero, já que a criança sobrevive. Não mata o avô, é certo, assim como não é filho de um deus, mas de um mortal estrangeiro e/ ou de um dublê de deus (Mitradates/Mitra), e não é salvo por um animal, mas por uma mulher que tem o nome de um (Spaco/ Cino/Cadela). Há um rebaixamento do mito que se presta ao relato “do que aconteceu”, o mesmo procedimento que Eurípides 24 Cf. Poética 1452 a : “O reconhecimento, como indica o próprio significado da palavra, é a passagem do ignorar ao conhecer, que se faz para a amizade ou inimizade das personagens que estão destinadas para a dita ou para a desdita”.

gêneros poéticos26_05.indd 99

03/07/2014 16:13:57

• 100 •

gêneros poéticos na grécia antiga

adotará em diversas de suas tragédias (cf. Electra, Helena, Íon, em especial). Essa análise, de um trecho tão curto, não traz em si novidade, mas permite reavaliar o papel de Heródoto enquanto narrador e logopoios (prosador). A imagem do centauro, empregada para caracterizar o seu pertencimento a dois momentos distintos do desenvolvimento da poética e das mentalidades na Grécia, não faz justiça ao lado inovador do historiador, afinal, por mais que seja metade humano, o composto híbrido não pertence à civilização, mas remete a eras priscas, ao mito, à natureza selvagem. Heródoto, contrastado com Tucídides, que escreve sobre acontecimentos que lhe são contemporâneos e cujo estilo está mais próximo dos oradores e sofistas, parece arcaico e seu projeto modesto, o herdeiro de Homero. Seu projeto, no entanto, não acaba na mera adaptação de Homero à prosa. Ele estava inventando um gênero. Como Kurke (ver n. 7) faz questão de enfatizar, ele é absurdamente moderno.

gêneros poéticos26_05.indd 100

03/07/2014 16:13:57

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.