A dilatação do prazo comunicativo: metáfora, erotismo e subversão em Adélia Prado

September 2, 2017 | Autor: Evaldo Balbino | Categoria: Literatura Brasileira Contemporânea
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A dilatação do prazo comunicativo: metáfora, erotismo e subversão em Adélia Prado Evaldo Balbino Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Referência Bibliográfica deste texto: BALBINO, Evaldo . A dilatação do prazo comunicativo: metáfora, erotismo e subversão em Adélia Prado. In: Graciela Ravetti; Marli Fantini. (Org.). Olhares críticos: estudos de literatura e cultura. 1ed.Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009, p. 70-81.

Resumo: A partir de conceitos teóricos e de um olhar sobre a poesia de Adélia Prado, o presente trabalho busca analisar a metáfora como sendo um dos recursos privilegiados que dilatam o prazo comunicativo, graças às regiões de opacidade que vão se criando em torno das identificações referenciais, e que promovem uma flutuação errática dos sentidos num discurso. No caso específico da poeta mineira, busca-se analisar a metáfora corporal como uma fala subversiva em nossa cultura. A imaginação e o desejo, aliados a uma linguagem em que a corporeidade pode insurgir-se como uma metáfora de incontrolável força política, vão operar de fato uma desestabilização das repressões. Nesse sentido, arte, fantasia e desejo unem-se à intelecção para um enfraquecimento das amarras culturais impostas ao sujeito.

Palavras-chave: Metáfora, Erotismo, Subversão, Adélia Prado.

“Eu amava o amor”, assim inicia-se um dos poemas de Adélia Prado, que se intitula “A transladação do corpo”. Espera-se, a partir deste primeiro verso, um discurso amoroso como aqueles que são recorrentes em boa parte da obra da poeta mineira. O poema de que trato, no entanto, vai dizer de outra questão. Não fará um canto à vivência plena do amor, pelo menos não diretamente, mas sim vai denunciar os equívocos de uma repressão, de ensinamentos / doutrinas que foram apregoados para aprisionar o corpo e suas manifestações amorosas. Fiquemos com a voz poética que já diz tudo:

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A transladação do corpo Eu amava o amor e esperava-o sob árvores, virgem entre lírios. Não prevariquei. Hoje percebo em que fogueira equívoca padeci meus tormentos. A mesma em que padeceram as mulheres duras que me precederam. E não eram demônios o que me punha um halo e provocava o furor de minha mãe. Minha mãe morta, minha pobre mãe, tal qual mortalha seu vestido de noiva e nem era preciso ser tão pálida e nem salvava ser tão comedida. Foi tudo um erro, cinza o que se apregoou como um tesouro. O que tinha na caixa era nada. A alma, sim, era turva e ninguém via.1

Assim como “transladação” é o ato ou efeito de transladar – transportar de um lugar para outro, levar, mudar –, o que faz aqui a voz poética é transladar o corpo, libertá-lo do estado de espera e virgindade em que se encontrava e dar-lhe a possibilidade de expressão, permitindo-lhe falar desde um outro lugar, que não o dos limites impostos; retirá-lo de uma existência em que ele não prevaricava, não transgredia a moral e os bons costumes. O desejo manifesto é o de superar o espaço que a tradição lhe construiu e lhe impôs. A imagem da “virgem entre lírios sob árvores” remonta a uma das duas possibilidades permitidas à mulher pelos valores androcêntricos. Aqui não se trata da Eva bíblica, nem das bruxas voltadas para o mal, nem da mulher fatal que levava os homens para o abismo do pecado. A virgem entre lírios é a metáfora de um certo sonho que quase todos os homens já alimentaram e / ou alimentam; é a mulher ideal, perfeita para ser amada sob o teto do matrimônio, esperando pelo amor que chegará para agir sobre ela. A palavra “mãe”, no contexto religioso de O pelicano, livro de Adélia em que se insere o poema em análise, remete-nos não apenas à mãe biológica, mas também à mãe de Deus.

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PRADO, O pelicano, 2001, p. 319.

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A imagem dos lírios, além de sugerir virgindade, aponta também para um abandono erótico, no sentido de um doar-se à contemplação daquela beleza que o próprio Cristo apontou aos olhos dos seus discípulos: “Observai os lírios; eles não fiam, nem tecem. Eu, contudo, vos afirmo que nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles”.2 Mesmo virgem entre lírios, ali, numa postura de espera, o sujeito do poema já acena para a questão do erótico, do olhar que se decide pela contemplação da beleza a que ele deseja entregar-se. A referida transladação dá-se com a aquisição de uma consciência, o “hoje percebo em que fogueira equívoca / padeci meus tormentos”. Essa mesma fogueira, continua o lamento / denúncia, em que também padeceram “as mulheres duras que me precederam”. Interessante a inversão que Adélia faz nesses dois versos: se, por um lado, as doutrinas apregoadas falam de um tormento a ser padecido na fogueira do inferno, neste poema, por outro lado, o mundo satânico da condenação também é transladado. A fogueira não é o inferno que as imprecações religiosas prometem; ela é erigida aqui mesmo na terra, numa sociedade cuja cultura impõe limites e padecimentos ao indivíduo, principalmente à mulher, como a história nos tem demonstrado. A adquirida consciência isenta os demônios das tantas culpas a eles atribuídas: “E não eram demônios o que me punha um halo / e provocava o furor de minha mãe”, pois tudo era um agir sob valores introjetados, valores que exigiam controle, comedimento, recato – uma vida austera figurada pela imagem da mãe já morta, da “pálida”, “comedida” e “pobre mãe”. Uma austeridade capaz de sufocar os esfuziamentos, capaz de dar a um vestido de noiva ares de mortalha. Na consciência de que “foi tudo um erro” uma crença assim concebida, de que na “caixa” não havia nenhum “tesouro”, mas cinza ou nada, o sujeito poético delata também a vida de aparências que escondia o encardido da alma que “ninguém via”. Atentemo-nos para a relação entre “cinza” (que tem duplo significado no poema) e turvação da alma. O que foi sempre apregoado como tesouro é na verdade nada, mas também é aquilo que macula a alma, ou que não lhe permite ser clara e límpida.

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LUCAS, 12:27.

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A voz que se levanta agora nos diz de um feminino que se distingue das “mulheres duras” que lhe precederam, e principalmente pelo fato de que fala através da literatura, porque, ao fazê-lo, ludibria o silencio em que aquelas, como sua mãe, viveram. “Não terei a serenidade dos retratos / de mulheres que pouco falaram ou comeram”, avisa esta mesma voz – podemos dizer – num outro poema, “Terra de Santa Cruz”.3 É na imagem da mãe cerrada na moldura de um retrato que Adélia vai dizer de uma mulher limitada, da que fala somente com os olhos, da que sonha no seu silêncio:

Fotografia Quando minha mãe posou para este que foi seu único retrato, mal consentiu em ter as têmporas curvas. Contudo, há um desejo de beleza no seu rosto que uma doutrina dura fez contido. A boca é conspícua, mas as orelhas se mostram. O vestido é preto e fechado. O temor de Deus circunda seu semblante, como cadeia. Luminosa. Mas cadeia. Seria um retrato triste se não visse em seus olhos um jardim. Não daqui. Mas jardim.4

A conspicuidade da boca remete-nos a duas possíveis leituras: uma boca silenciosa, fechada, ou o seu contrário – uma boca se ofertando, se mostrando. Novamente aqui temos as instâncias do concreto, do religioso e do simbólico na figura da mãe. O texto, com seu título, remete-nos também aos ícones marianos. A posição alinhada em que posou para o retrato faz desta mulher uma fôrma, uma moldura, uma existência engendrada e limitada por uma rígida doutrina que lhe sufoca até mesmo o “desejo de beleza”. Boca conspícua, no seu primeiro sentido, e orelhas que se mostram são marcas do ícone de Wladimir, a mulher que fala pouco e escuta muito e que 3 4

PRADO, Terra de Santa Cruz, 2001, p. 291. PRADO, O Coração disparado, 2001, p. 232.

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olha – não para o jardim – mas para a beleza divina.5 Aliás, o poema poderia levar, sem nenhum problema, o título de “Ícone”. E mesmo se considerarmos a conspicuidade da boca que se mostra, que se insinua, as orelhas desnudas da mulher denunciam um cabelo preso, recolhido para o alto, recolhido como sua dona com seu vestido preto e fechado e com o temor de Deus, tal uma cadeia, circundando-lhe o semblante. De qualquer modo, portanto, algo nesta mulher no retrato aponta para o comedimento, para as limitações sobre o ser feminino. Existe um desejo não realizado, mas visto nos olhos da que foi retratada – um jardim emerge de suas pupilas: “Não daqui. Mas jardim”. O desfrute paradisíaco das delícias – talvez da beleza desejada –, metaforizado pela imagem edênica do jardim, não pode se realizar aqui, mas num outro plano, talvez numa vida de glória espiritual prometida pela “doutrina rígida” e que é sonhada pelos olhos silenciosos da mulher no momento em que posou para o seu “único retrato”. Esse jardim, a despeito de situar-se num para além do aqui e agora, não deixa de ser motivo para que se remedie uma certa tristeza deflagrada na fotografia. É com a força simbólica do poema, portanto, que Adélia faz emergir o desejo fotografado naquelas pupilas; nelas silenciado, mas que passa a murmurar, a dizer algo nos versos agora construídos. Por que falar desse desejo de beleza? Por que, conforme vimos também no poema “A transladação do corpo”, demandar uma revisão de doutrinas rígidas e equivocadas? Ora, justamente porque foram essas mesmas doutrinas as que erigiram discursos para a repressão do sujeito, para a prisão dos seus desejos. E certamente o ocidente cristianizado, mais do que nenhuma outra parte do mundo ou outro tempo, é o construtor de uma verdadeira hermenêutica da repressão das forças de Eros, ou seja, do desejo. Este sentimento que implica o humano na sua existência corporal e psíquica foi, e continua sendo de certo modo, motivo de perseguições tanto pela moral religiosa na sua versão oficial, quanto pela burguesa. Trata-se de uma perseguição às manifestações do erótico no humano, a uma existência erótica que, se não fosse borrada como um mal abominável, colocaria em risco, como muitas vezes o fez, os alicerces instituídos em nome de Deus ou de qualquer outro poder constituído. O que antes a Igreja criada oficialmente em Roma, utilizando-se

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Cf. SENDLER, Les icônes byzantines de la mère de Dieu, Paris, 1992, p. 139.

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de seus específicos mecanismos, fazia contra os insurgentes do desejo, as instituições atuais, criadas e/ou reforçadas pelos valores burgueses, não deixam também de fazer ao seu modo: constroem um discurso de poder que visa ao controle dos corpos. É Foucault quem desenvolve toda uma discussão sobre o poder disciplinar das novas instituições que se desenvolveram ao longo do século XIX e que atingiram força máxima no início do século XX. Segundo o filósofo e historiador francês, essas instituições – oficinas, quartéis, escolas, prisões, hospitais, clínicas e outras – passaram a atuar sobre as populações modernas com seu “poder disciplinar”, no intuito de regular, vigiar e governar, primeiramente a espécie humana ou populações inteiras e, em segundo lugar, o indivíduo e o corpo. Isso, sem dúvida alguma, incidiu sobre as identidades individuais, na medida em que disciplinou as relações do sujeito com os outros; e o corpo, o indivíduo na plena expressão do desejo, cada vez mais passou a ser lido pela cultura como algo que devia ser contido, educado pelo sistema. 6 Essas instituições referidas por Foucault somaram-se, no cerceamento das liberdades individuais, à Igreja, que já o vinha fazendo desde longa data. Tal controle justifica-se porque o corpo, esta “fronteira entre o público e o privado (o histórico e o biográfico, a razão social e as pulsões subjetivas)”,7 pode exigir, nas suas diversas manifestações, toda liberdade que lhe foi negada nas relações sociais. Se o sujeito é podado de expressão nos termos tradicionalmente permitidos para isso, poderá encontrar na performance do próprio corpo o modo de falar e subverter. Num discurso artístico, tal poder de subversão é significativamente operativo, a partir do momento em que aí a corporeidade pode insurgir-se como uma metáfora de incontrolável força política. Incontrolável porque, como sabemos,

a metáfora é um dos recursos privilegiados que dilatam o prazo comunicativo, graças às regiões de opacidade que vão se criando em torno das identificações referenciais. Dessa maneira, vão se ampliando as margens de flutuação do sentido, em torno da “mensagem” da obra, para que permaneça errático e escape, assim, dos dispositivos oficiais de aprisionamento da leitura.8 6

Cf. FOUCAULT, História da loucura, O nascimento da clínica e Vigiar e punir. RICHARD, 2002, p. 16. 8 RICHARD, 2002, p. 20. 7

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No dizer de Nelly Richard, ao eleger o corpo como material de trabalho artístico, o artista “pretende designar um valor de automodelagem às regiões de experiência da cotidianidade social, bem como produzir interferências críticas nesses cenários de autocensura e micro-repressão para que se desatem novas potencialidades de conduta e conhecimento”. A existência corporal, portanto, contagiada pela inobediência da arte, quando esta se constrói com tal comportamento, é alçada ao status de metáfora, podendo promover intervenções críticas em discursos oficiais e conseqüentemente causar / despertar “novas potencialidades de conduta e conhecimento”. Essa dimensão política do erotismo, porque este vem atrelado a um modo de intervenção no e aquisição do conhecimento, “permite que uma gestualidade não codificada pelo discurso social faça aflorar certos extratos de significação reprimida que acedem assim a uma superfície de leitura carnal ressomatizadora da linguagem”.9 Verbalizando-se, e fazendo-o sugestivamente pela arte, o erótico ganha um status de intervenção que possibilita ao sujeito um acesso às micro-políticas de diálogos e tensões com as forças repressivas da cultura. Hebert Marcuse, no seu clássico Eros e civilização, também vai dizer da possibilidade na arte que ainda expressa, “sem transigências, os temores e esperanças da humanidade”, de situarse contra um princípio de realidade predominante, constituindo-se em “absoluta denúncia”.10 É na fantasia, e numa fantasia consubstanciada na estética, que o estudioso encontra as formulações para a possível libertação de um Eros libertador. Retomando alguns conceitos freudianos, o autor defende que a fantasia fala a linguagem do princípio de prazer, da liberdade de expressão, do desejo e gratificação desinibidos. Sem o abandono da função cognitiva da fantasia, visualiza-se nesta a possibilidade de acesso ao proibido, ao não-sancionado. É justamente essa função cognitiva aí detectada que possibilita ao ficcional, construído sobre essa mesma fantasia, intervir no princípio de realidade, desarticulando os mecanismos de repressão. “A arte é, talvez, o mais visível ‘retorno do

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RICHARD, 2002, P. 16-17. MARCUSE, 1999, p. 102.

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reprimido’, não só no indivíduo, mas também no nível histórico-genérico”. A imaginação artística modela a “memória inconsciente da libertação que fracassou, da promessa que foi traída”.11 Marcuse reforça sua defesa da estética como instaladora da “ordem da sensualidade” em oposição à “ordem da razão”. Ressalto aqui que, no seu pensamento, a sensualidade não abandona uma certa postura racional, mas vai instaurar uma outra razão, a da diferença, que se oporá àquela razão instituída e dominadora. Apóia-se o autor, em tal defesa, na idéia de que o impulso lúdico da arte – o jogo com a linguagem, poderíamos dizer no caso da literatura – promove uma libertação dos sentidos, o que, “longe de destruir a civilização, dar-lhe-ia uma base mais firme e incentivaria muito as suas potencialidades”. Esse incentivo, conclui, dar-se-ia a partir de uma libertação moral e física do homem.12 Será que toda manifestação estética, por seu ludismo desencadeado, surtiria sempre esse efeito de libertação humana? Acredito que não faz falta aqui dar exemplos de obras de arte consideradas “autênticas manifestações estéticas” e que, no entanto, reprimem as liberdades humanas em suas diferenças. Basta dizer que, apesar de a ética (conjunto de valores morais e princípios ideológicos) determinar em muitos aspectos a instituição do que determinados grupos consideram como estético – e isso Marcuse obviamente não discute –, o atrelamento da estética à ética (no sentido positivo de um compromisso com as liberdades humanas) é um equívoco. Não é o valor estético que determina o potencial de subversão numa obra artística. Por fim, vincular a fantasia e a arte ao “princípio de prazer”, considerando-se este, nos termos marcusianos, como a “libertação para a gratificação e a construção das sociedades humanas”, é uma generalização sem fundamentos. Fantasia e arte podem vincular-se a esse potencial de “libertação”, mas não necessariamente. Esse Eros libertador defendido por Marcuse precisa de fato ser revalorizado para que as repressões sócio-morais sobre os indivíduos possam ser abaladas. A organização dos instintos através da repressão deu-se num longo processo histórico que criou a divisão civilizada do trabalho,

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MARCUSE, 1999, p. 135. MARCUSE, 1999, p. 163.

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o progresso, a “lei e a ordem”, mas que também desencadeou o enfraquecimento de Eros, com uma conseqüente agressividade e um sentimento de culpa. Tal desenvolvimento, ao invés de ser inerente à luta pela existência, acaba sendo-o à sua “organização opressiva”.13 É o malogro de Eros, suplantado pelo Logos dominador, que leva à falta de satisfação das necessidades vitais do sujeito. Não se trata de negar o Logos, mas sim de, numa retomada erótica da vida, refutar seu caráter autoritário e coercitivo. A retomada de uma existência erótica não pressupõe uma perda de limites, das mínimas referências necessárias à convivência social, mas sim uma esgarçadura daqueles limites opressores. E tampouco se pode entender que a revalorização do erotismo se oponha ao logos; antes, pelo contrário, trata-se de buscar o que há de erótico no próprio logos, e que foi nas nossas culturas sufocado; o erótico que, revalorizado, pode fazer com que o conhecimento produzido nas sociedades humanas sirva às mesmas como forma de diálogo e intercâmbios, e não mais como dominação. Trata-se, em suma, de verificar como desejo e intelecção podem caminhar de mãos dadas para a libertação, e não a opressão, do indivíduo. No caso específico da arte, a imaginação e o desejo, aliados a uma linguagem em que a corporeidade pode insurgir-se como uma metáfora de incontrolável força política, vão operar de fato uma desestabilização das repressões. Nesse sentido, arte, fantasia e desejo unem-se à intelecção para um enfraquecimento das amarras culturais impostas ao sujeito. Um bom exemplo disso em Adélia Prado é o poema “Canção de Joana d’Arc”.

Canção de Joana d’Arc A chama do meu amor faz arder minhas vestes. É uma canção tão bonita o crepitar que minha mãe se consola, meu pai me entende sem perguntas e o rei fica tão surpreendido que decide em meu favor uma revisão das leis.14

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MARCUSE, 1999, p. 130. PRADO, Bagagem, 2001, p. 87.

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Além de uma canção ao amor, estes versos cantam, mais especificamente, a força do amor, e de um amor que não foge à corporeidade. As “vestes que ardem” dizem-nos da ressonância corpórea de um existir amoroso com o poder de, até mesmo, modificar as leis reais. Observa-se a aproximação entre “canção” e “crepitar”. A melodia das chamas do amor é ressonante, uma vez que se produz com estalidos. O corpo, ardendo como as vestes, manifesta-se com ruído, assim como a madeira arde em chamas crepitando. O crepitar do amor é uma canção, é um corpo que fala e é ouvido nessa sua linguagem amorosa e rumorosa. Amar, no contexto do poema, pode ser entendido como a expressão dos desejos, o dizer algo para ser ouvido. O crepitar das vestes, esta chama que arde, chama a atenção daqueles que representariam o poder perante o ser feminino que canta. Aqui, nessa fantasia que nos remonta à guerreira Joana d’Arc, é possível amar e sem restrições. Aqui já não temos mais aquela mãe furiosa diante da filha que “ama o amor” em a “Transladação do corpo”,15 e sim uma presença materna já consolada, aceitando essa linguagem livre. Do mesmo modo surge aqui um pai, distinto do poderoso Pai freudiano, que entende essa linguagem e não a questiona. A lei do Pai já não diz nada: cala-se diante das vestes chamejantes. E, por fim, o rei, chefe nessa “hierarquia medieval” mimetizada / imaginada pelo poema, promove, em favor desse canto feminino, uma revisão das leis. As forças do amor cantado no poema ascendem toda uma hierarquia – da mãe ao rei – mostrando o seu poder de persuasão. As imagens das vestes em chama e do rei revisando leis nos remetem diretamente ao fato histórico de Joana d’Arc. Nelas, penso, intensifica-se o caráter político do poema: mescla-se à apologia ao amor uma denúncia à repressão às mulheres, aos feitos femininos. Para além, portanto, de uma fantasia que foge à realidade, a arte pode, nesses requebros da imaginação e da linguagem, dizer do mundo, apelar para suas mudanças. Penso que a linguagem artística estimula essa discursividade erótica, justamente por seus requebros e meneios verbais, pelo seu construir-se em que o sujeito pode, se quiser, ludibriar as regras lingüísticas. Da arte da gramática, a obra artística pode erigir suas artimanhas, seduzindo e sendo seduzida pelo sujeito que escreve, e permitindo que este extravase para as bordas da cultura 15

Conferir o poema transcrito e analisado páginas atrás.

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os seus desejos. Assim concordo com o poeta Octavio Paz no fato de que a poesia erotiza a linguagem e o mundo, porque ela própria, a poesia, já é erotismo em seu modo de operação.16

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PAZ, 2001, p. 12.

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Referências Bibliográficas

BÍBLIA DE ESTUDO ALMEIDA. Barueri / São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1999. FOUCAULT, Michel. História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 2003.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. 14 ed. Trad. Maria Thereza Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 2001. FOUCAULT, Michel. Mocrofísica do poder. 17 ed. Organização, introdução e revisão de Roberto Machado. Rio de Janeiro, Graal, 2002. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1987. MARCUSE, Herbert. Eros e civilização: Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. 8 ed. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC, 1999. PAZ, Octavio. A dupla chama: amor e erotismo. 4 ed. Trad. Wladir Dupont. São Paulo: Siciliano, 2001. PRADO, Adélia. Poesia reunida. 10 ed. São Paulo: Siciliano, 2001. RICHARD, Nelly. Intervenções críticas – Arte, cultura, gênero e política. Trad. Rômulo Monte Alto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. SENDLER, Egon. Les icônes byzantines de la mère de Dieu. Paris: Bellarmin Desclée de Brower, 1992. VAINFAS, Ronaldo. Casamento, amor e desejo no ocidente cristão. 2 ed. São Paulo: Ática, 1992.

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