A dimensão \"calouro\" em uma universidade: entre a regulação e a invenção

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1 SIMONINI, Eduardo. A dimensão “calouro” em uma universidade: entre a regulação e a invenção. In: BARLETTO, Marisa (Org.). Educação e Sociedade: espaços, tempos e identidades. Assis, 2013, p. 69-92. ISBN 978-85-66044-05-8

A DIMENSÃO “CALOURO” EM UMA UNIVERSIDADE: ENTRE A REGULAÇÃO E A INVENÇÃO1 Eduardo Simonini2 Seguir viagem; tirar os pés da terra firme e seguir viagem... (HAWAII, 1999).

Em um artigo publicado originalmente em 1955, Deleuze (1991) propôs o entendimento do conceito de instituição enquanto modos de criação de relações e de sentidos de existir. Para ele, as instituições são maneiras inventivas que a coletividade produz a fim de obter satisfações complexas, ainda que sejam derivativas de forças instintivas. Mas a instituição não negaria o instinto, sendo que tanto uma quanto o outro seriam formas organizadas de satisfação possível de uma tendência do organismo. A respeito de tal questão, Deleuze (1991) sustenta que: (...) se é verdade que a tendência [instintiva] se satisfaz na instituição, a instituição não se explica pela tendência. As mesmas necessidades sexuais não explicarão nunca as múltiplas formas possíveis de casamento. (...) O ‘desejo de abrir o apetite’, não explica o aperitivo, porque há mil outros modos de se abrir o apetite (p.135).

Complexificando, portanto, as exigências dos instintos, as instituições possuem um sentido ativo na criação de modos de existir e, sendo invenções de seres humanos, as mesmas interferem nas maneiras como os sujeitos se concebem em suas práticas mais cotidianas. As formas como se penteia um cabelo, usa-se um sapato, dirige-se o carro, cozinha-se, reza-se..., todos esses elementos emergem de práticas coletivas que estabilizam diferentes instituições reguladoras da estética, do movimento, da alimentação, da fé, etc. Fala-nos Deleuze (1991) que: Toda instituição impõe a nosso corpo, mesmo em suas estruturas involuntárias, uma série de modelos, e dá à nossa inteligência um saber, uma possibilidade de previsão assim como de projeto. (...) o instinto traduziria as urgências do animal, e a instituição as exigências do homem: a urgência da fome torna-se no homem reivindicação de ter pão (p.137).

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Trabalho vinculado ao grupo de pesquisa Memórias, Instituições e Subjetividade, do Departamento de Educação da Universidade Federal de Viçosa/MG. 2 Psicólogo, mestre em Psicologia Social, doutor em Educação, professor adjunto da Universidade Federal de Viçosa/MG

2 A necessidade que emerge da fome, cria a instituição do pão. A necessidade de prazer, cria a instituição da diversão. Da necessidade de estabilidade e controle vemos igualmente surgir uma série de instituições que buscam atenuar a ansiedade do inesperado, a partir da produção de um sentido de mundo previsível e estável. Para criar, por exemplo, um sentido para a morte e para o viver, as religiões foram inventadas. Para neutralizar a ansiedade perante as transições e mudanças sociais, vemos surgir a instituição dos rituais de passagem – dos ritos de iniciação – que visam atenuar a angústia das mudanças e/ou exorcizar os fantasmas do inesperado que acompanham as transformações. As festas de aniversário, os chás de bebê, os bailes de debutantes, as festas de formatura, tudo isso são rituais inventados no lidar com momentos de mudanças sociais. Nesse sentido, temos que as seleções para o ingresso nas universidades – seleções estas pelas quais passam anualmente, e em várias partes do planeta, milhares de pessoas de todas as idades – são também ritos de iniciação ou rituais de passagem muito comuns no cotidiano de vários sujeitos. Ao ser vitorioso nessa seleção, o neófito universitário recebe a alcunha de “calouro” e carrega consigo diferentes consequências que tal rótulo identitário traz.

1 - O calouro como papel social De acordo com Machado (1956), “calouro” é uma palavra que deriva do grego e significa “monge”, “bom velho”. Tal conceito passou, então, a nomear religiosos que viviam em regime de internato, ambicionando uma vida santa. Desta feita, calouro veio igualmente a significar “irmão”, uma vez que esses monges viviam em regime de comunidade e partilha. Cunha (1991) ratifica tal argumento quando apresenta que o desenvolvimento do processo de se chamar os estudantes de calouro talvez se deva ao fato de os estudantes internos viverem em congregações, como os monges (p.141). Como muito do processo de ensino se concentrou dentro de mosteiros e abadias (principalmente na Idade Média), o aluno que vivia nessas instituições era, assim, um calouro; um noviço em busca de maior edificação do intelecto e do espírito. Todavia, o significado do calouro como sendo um infante em busca de maior espiritualização foi se perdendo no decorrer dos séculos, abrindo espaço progressivamente à ideia de calouro como aquele iniciante em uma congregação ou comunidade; um novato que necessitava ser doutrinado a fim de se adaptar aos padrões já estabelecidos.

3 Enfatizando as perspectivas de doutrinação e adaptação, temos que, nos nossos dias, e em especial nas universidades brasileiras, toda uma prática iniciática se abate sobre o estudante quando este atravessa seu momento de calouro. Um dos aspectos mais visíveis desse espaço iniciático é a implementação do trote, o qual envolve, em seu ponto mais “lúdico”, o corte do cabelo dos novatos (no caso dos homens) e brincadeiras variadas como pintar o outro, levá-lo para doar sangue, pedir dinheiro na rua, dentre outras atividades. Em seu caráter menos “integrativo”, há também o trote que corresponde a humilhações e subjugação do discente, podendo essas atitudes virem a degringolar em posturas agressivas e preconceituosas, demarcadoras de espaços de força e de poder a separar os novatos dos veteranos. Nesse sentido, aqueles com cabelos raspados muitas vezes veem diluída sua singularidade, sua história pessoal, sua trajetória de vida irrepetível, para serem reconhecidos enquanto ocupantes de um movimento que visa à padronização. Assim, o novato, em alguns momentos, vê-se perdendo o nome próprio para ser reconhecido apenas como “calouro”. A título de exemplo, temos que João Paulo3 (discente do curso de Agronomia da Universidade Federal de Viçosa) relatou que, em um dos trotes a que foi submetido, eles [os veteranos] nos colocaram um do lado do outro e pediram que falássemos nossos nomes. Mas quando a gente falava eles gritavam: errado! Seu nome é calouro burro. Repete!!! Calouro burro! A dimensão calouro burro se apresenta aqui como um buraco negro que pretende neutralizar as singularidades trazidas pelos sujeitos e nivelá-las dentro do mesmo caldo desqualificador. Assim, enquanto calouro, o novato é subjetivado como ocupante do papel do tolo, do ignorante, do bobo da corte. Nos argumentos de João Paulo, o calouro é um saquinho que está vazio, que vai ter que se encher. E se tiver cheio, tem que esvaziar para encher de novo. O que tem lá dentro não serve. Todo um conhecimento, toda uma história. Tal perspectiva de subjetivação, relatada por João Paulo, organiza-se como um fato natural para muitos universitários. É algo que faz parte de uma tradição que os antecede há décadas, uma vez que essa cultura de subjugação do calouro já se encontra

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Os nomes apresentados neste trabalho são fictícios, uma vez que se pretende preservar as identidades dos envolvidos.

4 registrada na história da Escola Superior de Agricultura e Veterinária (ESAV) 4. Por exemplo, em uma revista comemorativa da formatura dos discentes de 1939, encontramos um relato a respeito de como se realizava a abordagem do estudante novato. É explicado, no referido texto, que toda a dinâmica de trote e desqualificação do aluno iniciante era muito útil para a “esavinização” do calouro, auxiliando-o em sua inserção aos valores do grupo e, consequentemente, da instituição. Todavia, para tal finalidade, ele deveria passar por um esvaziamento de sua voz e do seu saber, sendo que, na época, o movimento do trote e de desqualificação do novato tinha pleno apoio institucional, que entendia tais “brincadeiras” como parte do processo de metamorfose pelo qual o noviço necessitava passar, no intento de se tornar efetivamente um esaviano. Nesse sentido, o referido relato defende que: O calouro é, por determinação expressa do Regulamento de Trotes, típica e inapelavelmente burro. Seu direito é não ter direito nenhum. Levando então em conta esses princípios, o calouro não pode e não deve falar coisa que se aproveite: se assim fizer, ouvirá fatalmente o implacável ‘senta!’ que, de certo, lhe há de ferir o orgulho (orgulho íntimo, está claro, porque o ‘indivíduo-calouro’, se é que experimenta a sensação de orgulho, não pode, em hipótese alguma, exteriorizá-la). (ESAV, 1939, p.58).

Seja na ESAV de 1939, seja na UFV do século XXI, o entendimento da presença do calouro parece ser a mesma: calouro-burro. Fica-nos, então, algumas questões: o que autorizaria alguns alunos a se sentirem no direito de desqualificar a expressão de seus colegas? Em que regras encontrar-se-iam justificadas tais atitudes? Essas perguntas fazem ressonância com aquelas que Elias e Scotson (2000) se fizeram quando estudaram as relações de discriminação entre dois grupos que residiam em uma cidade inglesa. Eles perceberam que não havia, entre os grupos, diferenças de nível econômico, de ocupação, de cor, etnia, classe social, raça ou nacionalidade. A única diferença entre os dois polos, identificada por Elias e Scotson, era a de que um grupo se compunha de antigos residentes, instalados na região havia três gerações, enquanto o outro grupo era formado por recém chegados. O tempo se apresentava, no trabalho dos referidos autores, como uma moeda forte quando se estava frente ao temor às transformações. A duração do tempo dentro do qual se ocupava um lugar, mantinha-se um hábito, trabalhava-se uma profissão, tendia a criar uma vivência de segurança e legitimidade que fazia com que os moradores antigos menosprezassem aqueles outros que não possuiam o mesmo enraizamento temporal. 4

A Universidade Federal de Viçosa, iniciou sua existência em 1926 como Escola Superior de Agricultura e Veterinária (ESAV). Em 1949, passou a ser chamada de Universidade Rural do Estado de Minas Gerais (UREMG), a qual foi federalizada a partir de 1969.

5 Acredito, assim, que calouros e veteranos, na universidade, tendem a repetir a mesma circunstância relatada por Elias e Scotson, uma vez que a alcunha de calouro desconsidera qualquer questão sócio-econômica, religiosa, étnica ou racial, sendo que se instaura uma discriminação que se fundamenta no regime do tempo. Dessa forma, independente do passado, da experiência e da contribuição que o novato possa vir a oferecer, o calouro tende a ser inapelavelmente significado como burro e inferior, visto que se articula com uma temporalidade menor dentro da instituição. E isso se torna ainda mais marcante quando observamos a trajetória de novatos que pleiteiam por uma vaga dentro dos alojamentos universitários da federal de Viçosa.

1.1 - O calouro e os alojamentos O primeiro alojamento da Universidade de Federal de Viçosa foi inaugurado em 1928 (quando a instituição dava os seus primeiros passos como Escola Superior de Agricultura e Veterinária - ESAV), estabelecendo-se naquele local um regime de internato, o qual era marcado por regras rígidas de controle das posturas e dos hábitos estudantis. Nas décadas de 1960 e 1970 – período este representativo da transição institucional de Universidade Rural do Estado de Minas Gerais (UREMG) para UFV –, o grande aumento do número de estudantes, de novos cursos e pós-graduações, exigiu a construção de novos alojamentos. Assim, ampliou-se significativamente a estrutura de moradias que existiam até então, sendo que, em 1963, foi construída uma segunda estrutura para alocação de estudantes – o alojamento Feminino – com capacidade para 232 moradoras. Na década de 1970, foram inaugurados os prédios dos alojamentos “Novo” (feminino) e “Novíssimo” (masculino), com capacidade para alojar 184 e 192 estudantes respectivamente. Por sua vez, o aumento do oferecimento de cursos de pósgraduação pela universidade levou à construção de moradias direcionadas inicialmente a tal público, sendo construídos os alojamentos masculinos “Pós” (360 discentes) e “Posinho” (180 discentes). Dado, portanto, o grande número de estudantes residentes no campus – além daqueles que moravam, na cidade de Viçosa, em repúblicas não reguladas pela UFV – foi criada uma Divisão de Assistência Estudantil (DAE). Esta, juntamente com o Serviço de Bolsas, passou a se responsabilizar tanto pela seleção dos candidatos que solicitavam residir nas moradias do campus, quanto pelas condições de ocupação, alimentação, disciplina e outros trâmites discentes relativos à vida nos alojamentos.

6 Contudo, para adquirir uma bolsa-moradia autorizando o estudante a ter uma vaga nos alojamentos, o mesmo passou a ter que apresentar documentações que comprovassem um estado de carência econômica. A entrada nos alojamentos passou a se constituir, portanto, em um segundo vestibular para qualquer estudante que quisesse pleitear um espaço para si nas moradias discentes da instituição. Quanto mais frágil era a condição econômica e social do estudante, maiores as chances de o candidato conseguir uma vaga em um quarto. Contudo, essa carência financeira que qualifica o estudante para o alojamento, o situa também em uma posição paradoxal: se por um lado ele alcança o direito à vaga, por outro ele se encontra impotente perante às dinâmicas de convívio dentro dos quartos que passa a habitar. Tal impotência tende a se implantar em decorrência da seguinte circunstância: se o calouro se aventura a reclamar de alguma discriminação no convívio e, por conta de tal fato, se veja “convidado” a ter que sair do quarto, para onde mais ele poderia ir? Tendo se encontrado fragilizados nessa situação enquanto calouros, os estudantes João Paulo e Cícero (este último discente do curso de Física e morador do alojamento Pós) relataram que: É uma questão que eles [os veteranos dos quartos] deixam bem claro: ‘aqui você não escolhe, é a gente que escolhe. Se você for vir pra cá é porque a gente escolheu’. Eles vão deixar isso bem claro, entende. ‘E fique claro que a qualquer momento você pode ser expulso’... (João Paulo). Eles mesmos [os moradores veteranos] disseram o seguinte: ‘você entrou aqui; ninguém vai sair por sua causa. Se você não gostar de alguém ele não vai sair; é você quem vai ter que sair’. Isso ficou bem claro para mim (Cícero).

Nos relatos apresentados fica indicada a perspectiva de que, para entrar no alojamento, ao estudante novato não basta passar no vestibular e trazer consigo uma carência econômica que o qualifique a receber uma bolsa-moradia junto ao Serviço de Bolsas da UFV. Mesmo conseguindo o direito a uma vaga, é necessário que o calouro seja escolhido pelos moradores do quarto no qual ele pleiteia um espaço. Nesse sentido, o novato deve ser submeter a entrevistas com os veteranos. 1.2 - A entrevista ...em que se convida cada um a escolher segundo o seu gosto, com a condição de que esse gosto coincida com o de todos. Seja você mesmo, ficando claro que este eu deve ser o dos outros (DELEUZE, 1988, p. 259).

7 Há uma vida pulsante a acontecer por trás das portas dos apartamentos de alojamento; vida esta que a Administração Superior da UFV muitas vezes ignora a complexidade de sua dimensão. Cada alojamento possui sua configuração específica; cada quarto é igualmente um universo distinto e entrar no alojamento para habitá-lo é igualmente se inserir em uma miríade de modos de organizar a existência. Há quartos em que as relações se apresentam de maneira mais aberta, onde todos têm direito a voz, independente do tempo em que habitam o lugar. Há outros quartos, porém, em que muitas vezes os moradores mal se conhecem. Há quartos cujo critério de entrada depende de qual curso o discente faz, qual orientação sexual possui, quais hábitos particulares cultiva, de qual parte do Brasil vem, etc. Todavia, apesar de tamanha diversidade de perspectivas, Viviane (discente do curso de Comunicação Social e morador do Alojamento Feminino) acredita que exista um modelo básico de estudante a transitar por entre os quartos. Tal modelo se refere prioritariamente ao estudante que, flexível o suficiente para se adaptar às exigências de convívio, anula suas vontades a fim de não perder a oportunidade da moradia. Segundo a referida discente: o estudante ideal é aquele mais maleável, que não tem aquela dificuldade. É aquele que chegou aqui, enfim, disposto ao que eles [os veteranos] falarem, você seguir. Sei lá..., eu tenho a impressão que é aquele aluno que procura ler as mesmas coisas que eles leem, que tem o mesmo ponto de vista. Eles [os veteranos] querem que você busque aquilo que eles estão buscando

Argumentos muito próximos são encontrados na fala do estudante Pedro (estudante do curso de Cooperativismo e morador do alojamento Novíssimo) quando ele sustenta que, no convívio do quarto, os veteranos: (...) querem o padrão de pessoa normal: um cara que fala pouco, que deixa as coisas organizadas, que não te crie problema. Eles querem aquele tipo padrão normal. Um cara que não escute um som alto; você tá estudando o cara chega e não faz barulho, ..., então eles fazem entrevista.

A entrevista é o recurso utilizado pelos moradores veteranos para selecionar um “candidato ideal” entre os que se dispõem a ocupar a vaga ociosa em um quarto. Essa vaga geralmente surge quando da ocasião de uma formatura ou da desistência de algum estudante. No momento, então, que o aluno novato consegue sua vaga na seleção do Serviço de Bolsas, ele tem um período de tempo no qual deve passar pelos quartos e se submeter a entrevistas com os membros dos mesmos. Caso nenhum dos quartos aceite um estudante, o discente rejeitado nas entrevistas é colocado “à força”, pela Divisão de Assistência Estudantil, no quarto que possuir uma vaga ociosa. Assim, nas entrevistas, os moradores veteranos se apressam em fazer suas escolhas a fim de não se verem obrigados a receber alguém que não desejavam. Mas há, em todo esse processo, uma

8 perspectiva de nivelamento da subjetividade que se constitui em um “terceiro vestibular” para o calouro. Existe, portanto, a intenção de alojar primeiramente aqueles que não ousem, com sua presença ou seus atos, nenhum movimento anômalo que abale o já conhecido. Cada apartamento procurará aquele sujeito que não perturbe a harmonia conquistada, reforçando, assim, uma postura grupal de se aproximar do que é igual e evitar aquilo que possa prejudicar a coesão e a identidade do apartamento. Os grupos, em geral, tendem a tais movimentos para preservar suas margens identitárias, porém, é interessante se notar que as perguntas que surgem nas entrevistas que os calouros fazem com os moradores veteranos denunciam um forte afunilamento pela busca do “Igual”, do “Mesmo”, do espelhamento narcísico: “você usa muito papel higiênico? Gosta de Maria Bethânia ou Lulu Santos? Quantos banhos toma por dia? Usa desodorante? Quantas vezes vai ao banheiro por dia? Você é gay? Qual o seu curso? Você gosta de festa? Gosta de sair? Bebe, fuma ou usa droga? Você ronca?” E o estudante João Paulo complexifica ainda mais essa questão ao relatar que, em muitas entrevistas, valores preconceituosos regulam as escolhas feitas para os quartos. Diz ele que: Se for calouro, negro, nordestino, fazer curso de Humanas...e se for veado ainda..., não precisa nem esperar achar vaga no alojamento. São preconceitos, são discriminações reais, assim, que não são ditas, que não são escritas, que várias pessoas têm medo de falar sobre elas porque isso não pega bem, entende.

Tais proposições nos indicam que tudo que surja como diferença à organização do quarto tenda a sofrer retaliações quando das escolhas nas entrevistas, sendo que possuir inclusive um nome próprio menos comum pode favorecer com que o candidato seja rejeitado por um apartamento. Também a indicação feita a respeito da retaliação, na escolha dos quartos, de novatos participantes de cursos de Humanas é significativa, uma vez que a Universidade Federal de Viçosa é tradicionalmente voltada para as áreas de Agrárias e Biológicas, sendo os cursos de Humanas aqueles que dispõem de menores recursos financeiros e políticos dentro da instituição. Essa priorização de perspectivas por áreas mais agrárias e biológicas, acaba, então, por se refletir em algumas dinâmicas das escolhas dos alojamentos. A tentativa de escolhas por discriminação de cursos, etnia, orientação sexual, etc, cria também, em alguns quartos de alojamento, blocos estanques só permeáveis àquilo que é igual ou parecido. O que não corresponde ao modelo esperado parece,

9 então, possuir dificuldade de achar abrigo nos alojamentos. A esse respeito, Pedro também relata que: Tem quarto que as pessoas não aceitam. Igual no caso, tem quarto lá, até fiquei conhecendo um cara que pinta as unhas de preto..., aí ele ficou num quarto e o pessoal não o aceitou porque ele tinha as unhas pintadas de preto. Já tem outro lá – até fiz amizade com esse rapaz, é calouro também – aí ele estava no quarto, e o quarto em que ele estava tinha um cara que faz História, e ele é calouro de História. Aí, conversando com esse veterano perguntei “e aí, e o meu amigo?! Ele vai ficar lá no seu quarto mesmo?” E o veterano de História me disse: “ não, acho que não vai dar não porque faz o mesmo curso que eu e, sempre gera conflitos assim de pensamento. Vai ser difícil falar para ele, mas ele vai ter que sair”.

Na busca daquilo que é semelhante, parece se intensificar a tendência a um espelhamento narcísico temente às hibridações, aos debates, ao dissenso..., numa procura por consensos que não produzam incômodos. Assim, silenciar-se e se adequar aos modos de ser e de pensar do grupo hegemônico dos veteranos, constitui-se em um dos pré-requisitos para a integração de muitos novatos dentro dos espaços universitários, em especial se ele for morador de alojamento. Contudo, no habitar das moradias estudantis, algo sempre escapa das normas esperadas. Assim sendo, manifestações – mesmo que microscópicas – de rebeldia contra regimes de convívio hegemonizados nos quartos não deixam de se fazer presentes no contato do calouro com o apartamento. Por mais que uma modelagem de atitudes e humores se processe, movimentos de protesto surgem em zonas de tensão na convivência. Cícero, por exemplo, protagonizou um desses momentos de resistência à submissão que lhe foi imposta dentro de seu quarto de alojamento, indignando-se com o fato de: você falar alguma coisa e eles dizerem ‘calouro, fica quieto, calouro; você não tem voz, você não opina em nada’. Já ouvi muito isso, mas, no caso, a gente finge que nem escutou, né?! Igual quando rasparam as minhas costeletas. Eu fiquei com muita raiva. Mas eu pensei, ‘não vou deixar passar essa aí’. Fui no banheiro, peguei uma “gillete” e raspei o resto que tinha. Cortei a cabeça toda. Eles ficaram: ‘ué! Esse calouro é doido!’ Aí acabou o trote pra mim. Acho que eles queimaram um pouquinho por eu ter feito isso. Eu machuquei a cabeça. Com uma “gillete” só, fui raspando tudo. Acho que o maior momento de insegurança como calouro é quando você se sente incapaz aqui dentro da universidade. Quando você se sente um nada frente algumas coisas. Você não poder opinar sobre as coisas, você não poder decidir. Por exemplo aqui no apartamento, se eles decidissem qualquer coisa, provavelmente eu seria o último a ser escutado.

Há, no relato acima, tanto uma produção de silenciamento quanto também uma produção de protesto, ainda que minúsculo, contra a impotência de ser feito frágil, de não poder ter voz ou vez. E silenciar a voz e a expressão do novato em nome da segurança reprodutiva dos modelos estabelecidos, facilita a prática de paralisia dos pensamentos e ações que potencialmente venham bagunçar ordenações cristalizadas no

10 cotidiano universitário. Tal fato, porém, não significa que a UFV não seja um espaço promotor de pensamentos e ações inventivas. Pensa-se dentro da universidade, porém esse pensar é sempre uma produção perigosa, pois pode colocar em questão significações já naturalizadas nas práticas institucionais, como, por exemplo, a “ignorância” dos estudantes, o “saber” do professor, a “burrice” do calouro, os objetivos políticos dos currículos implementados, as maneiras como se ensina e avalia, os microfascismos a se fazerem presentes nas diferentes relações acadêmicas, etc. Pensar, nesse sentido, diz mais respeito a produzir tumultos do que reproduzir clichês, movimentando, assim, potências que criam zonas de turbulência indesejáveis para muitos que ainda entendem a diversidade das trajetórias universitárias como sendo (re)produtoras de “mundos-verdade”. Por medo às instabilidades que surgem diante de tal pensar, corre-se sempre o risco de se ficar exclusivamente atrelado aos códigos de validade propostos pelos veteranos, abordando-os como um recurso viável para se manter sobre um solo firme e seguro. Assim, ousando na prática do pensamento e na complexificação das argumentações aqui apresentadas, proponho que, de agora em diante neste trabalho, veteranos e calouros deixem de serem considerados apenas como alunos a assumirem um papel socialmente delimitado nas tramas universitárias. Proponho, assim, que, por “veterano”, entendamos também toda potência temporal que anseia por se perpetuar enquanto autoridade reguladora de modos de agir, pensar e transitar pela universidade. Essas “potências veteranas”, sustentando sua legitimidade por meio do uso de um saber já legitimado e do tempo, regulariam as “bagunças” na proposta de silenciar e/ou desqualificar o que, sendo novidade, não possui um rótulo identitário prévio que a nomeie e classifique. Da mesma forma, proponho o entendimento da dimensão calouro para além de um papel social já instituído por um rito de passagem. Chamarei de “potência calouro” aos processos de subjetivação que ganham consistência na fissura entre o já estabelecido e o que ainda não se organizou enquanto identidade estável. É nessa fissura que a dimensão calouro se instala não mais como expressão individualizada, mas como uma intensificação imanente à produção de uma novidade.

2 - Para além dos ritos de iniciação

11 É importante, portanto, frisar que a pessoa do novato não é em si ameaçadora...; ameaçador é aquilo que ela faz produzir, nos outros e em si mesma, no momento em que se inscreve como uma novidade dentro de margens estabelecidas, mobilizando intensificações na diferença, naquilo que é outro, naquilo que não é igual ou parecido. E tal encontro na diferença produz reações tanto nos veteranos, quanto nos noviços. Muitos estudantes iniciantes assumem com prazer o local de calouro, considerando-o como um papel social e uma porta de entrada para sua aceitação dentro da vivência universitária. Por sua vez, outros novatos ficam perdidos e angustiados, não conseguindo se apropriar desse espaço calouro como sendo um papel e uma identidade. Nessa circunstância, o rótulo de calouro em nada os ajuda a lidar com as intensificações na diferença que os envolvem quando adentram nesse espaço sem territórios entre a identidade estabilizada que trazem de seu passado e os novos regimes de subjetivação que não repetem o “velho” mundo de onde são egressos. Por bem ou por mal, todo novato traz consigo a marca do que ainda não é conhecido, do que não é o Mesmo. Apropriando-nos, então, novamente das reflexões de Deleuze (1998), teríamos que a dimensão calouro, mais do que um papel social, remetenos à produção dos simulacros, daquilo que não corresponde nem ao modelo, nem às cópias, dentro de uma perspectiva platônica. O simulacro é a diferença; diferença que incomoda por não conter em si semelhança com o que é conhecido. Como nos ensina Deleuze (1998): A cópia é uma imagem dotada de semelhança, o simulacro, uma imagem sem semelhança. (...) O simulacro é construído sobre uma disparidade, sobre uma diferença, ele interioriza uma dissimilitude. (...) O simulacro não é uma cópia degradada, ele encerra uma potência positiva que nega tanto o original como a cópia, tanto o modelo como a reprodução (p.263-267).

É importante se perceber que, seguindo a reflexão acima, o simulacro deixa de ser compreendido como erro ou descarte e passa a ser abordado como produção; produção inventiva de uma nova maneira de expressão que não foi anteriormente pensada ou planejada. Há, no simulacro, a semente de outras possibilidades de compor um mundo; outras formas de produzir universos de expressão. Mas, ao mesmo tempo, o simulacro incomoda porque é aquilo que “não funciona” dentro dos códigos conhecidos, fugindo à ordem harmônica das coisas belas ou que se candidatam à beleza. Mas é exatamente por não funcionarem de acordo com o jogo de referências estabelecidas, que o simulacro comunga com o universo de produção e invenção, promovendo agenciamentos que, se em um instante produzem confusão, em outro

12 favorecem a amplificação de um novo jeito de olhar e o surgimento de um terreno inédito. Assim, se de um lado encontramos o calouro enquanto uma entidade embrenhada em códigos identitários que definem posturas e expectativas de conduta; de outro lado nos deparamos com a expressão calouro como simulacro: uma potência não restritiva a um papel social, indicando a existência perigosa de uma dimensão imersa em intensidades em caos. Tais intensidades compõem (e são compostas em) processos de subjetivação que não necessariamente repetem as identidades pré-moldadas de um papel social. Dessa maneira, se a dimensão calouro se apresenta intensificada em processos desterritorializantes, é exatamente por essa dimensão denunciar outras possibilidades não antecipadas de expressão que ela é igualmente neutralizada e desqualificada a todo momento em que a significam como sendo apenas um tipo de papel social já previsto e esperado dentro da ordem de funcionamento das comunidades. Temos, então, que o novato, em seu momento calouro, não é em si mesmo frágil, mas é feito frágil a partir de sua inscrição em práticas de iniciação que promovem a transição e a readequação de códigos de disciplinamento e de orientações de modos de ser. Estar calouro é tanto ser enquadrado em um papel social quanto também adentrar em um “não-papel”, o qual aproxima o sujeito da experiência de romper com a estabilidade de um eu-estático, fazendo-o margear fluxos desterritorializantes que partejam novos modos de existirsentir-pensar-agir, outras maneiras de produzir um mundo e a si mesmo simultaneamente. Por isso, o ato de humilhar e desvalorizar a pessoa do novato corresponde tanto ao movimento de subjugá-lo aos códigos já hegemonizados no convívio cotidiano, quanto também à tentativa de neutralizar o perigo apresentado pela expressão inédita de uma potência calouro. Não podemos, contudo, perder de vista que movimentos de diferença-identidade não são necessariamente opositores, mas sim relações de potências que insistem na perspectiva de se pretenderem viáveis. Enquanto as potências veteranas (ou identitárias) se organizam na produção de um mundo (re)conhecido, as potências calouras (ou de diferença) produzem enunciados outros; movimentos anômalos que promovem a produção de novos sentidos. Por sua vez, é também importante ressaltar que um estudante calouro (enquanto ocupante de um papel social) pode ser ele próprio arauto de uma potência veterana, no instante em que se acomoda e se filia aos modos de existir que lhe são apresentados e se reconhece confortável dentro do território identitário em

13 que se encontra imerso. Tal circunstância foi ilustrada por João Paulo no relato que se segue: Mas, penso o seguinte; um cara do quarto fala ‘sou veterano do quarto, eu mando lá’. O cara gosta da ideia e todo mundo começa a aceitar. E o calouro, é um pouco assim, o cara entra e fica ‘pelamordedeus, deixa eu ficar, eu não tenho lugar para ficar, fico até de provisório dormindo no chão’. Aí o cara consegue a vaga e quando o outro calouro vai chegar ele ‘não, peraí...., aqui tem essa, essa, essa regra’. Ele se torna o calouro acima do calouro, e vai formando essa estrutura de hierarquia.

Por outro lado, um estudante veterano também pode fazer movimentar potências calouras que arregimentam deslocamentos, questionamentos e novas perspectivas de trânsito no campus universitário. As potências calouras-veteranas não são, dessa forma, propriedade de um indivíduo ou de um grupo específico, mas sim intensidades que colocam em ação modos de produção de saberes e práticas que fundam maneiras de existir. Ou seja, toda relação de potências inventa seus horizontes de saber e, por sua vez, a produção de um saber estrutura códigos de ação e modelos de conduta que recebem o título de “verdade”. E uma verdade, mesmo que se proponha universalizante, é montada a partir de modos de enxergar e de maneiras de produzir visibilidades que são tornadas hegemônicas dentro de determinado jogo de potências. Não é mais, portanto, uma questão de descobrir a verdade por trás das coisas, mas sim de agenciar potências que deem condições para que essas verdades sejam inventadas. Nesse sentido, Nietzsche (1966) se propõe à contestação da universalidade dos modelos estabelecidos quando argumenta que: A ‘verdade’ não é, consequentemente, algo que exista e que devamos encontrar e descobrir – mas algo que é preciso criar, que dá seu nome a uma operação, melhor ainda, à vontade de alcançar uma vitória, vontade que, por si mesma, é sem finalidade: introduzir a verdade é um processus in infinitum, uma determinação ativa – e não a manifestação na consciência de algo que seja em si fixo e determinado. É uma palavra para a vontade de potência (p.291).

Nessa perspectiva, as potências veteranas, assim como as potências calouras, criam seus ritmos de verdade e seus limites de mundo. Não necessariamente se opõem a todo momento, mas produzem gradientes de tensão, de paralisias, de movimentos de resistência e de invenção, criando modos de ser novato e veterano dentro das relações universitárias. No pensar o movimento das potências veteranas e a potências calouras, é importante reafirmar que uma potência é sempre uma ação, uma prática de subjetivação, mas nunca um lugar. Não estou me propondo a erigir polos de oposições dualistas, mas sim compreender modos de subjetivação que organizam diferentes regimes de ação.

14 Quando se cria e se resiste em um modo de viver, ali igualmente subsiste uma vontade de potência. Lutar numa potência é, pois, lutar por espaços de uma vida e por legitimar uma vida. Ou seja, mesmo os movimentos de resistência, que surgem no choque entre os gradientes de potência, não são movimentos de negação da potência, mas outras maneiras de ela se organizar na produção de uma vida possível. Todavia, resistir não significa exclusivamente se opor a algo ou alguém. Compor uma resistência pode ser igualmente compreendido como um insistir em um modo de produção de realidade que não se restrinja exclusivamente a uma oposição às forças hegemônicas, mas também a uma transformação das mesmas em outros possíveis. Portanto, mesmo sob a aceitação de um regime de dominação; mesmo em meio a códigos e estruturas de ação impostas por aqueles que se apresentam munidos pela força de definir verdades aos outros, ainda podem surgir núcleos de resistência a gestar uma outra relação possível com um mundo. É o que fez, por exemplo, Cícero quando se apoderou de uma lâmina e passou, ele próprio, a raspar seu cabelo no momento em que teve suas costeletas cortadas à força por seus colegas de quarto. Se por um lado ele se submeteu ao ato do trote, aceitando o corte de seus cabelos, por outro ele fez desse corte um atitude de afirmação de uma potência, de um forte “sim” ao corte; um sim tão contundente que fez com que seus colegas de quarto ficassem constrangidos e cessassem de infligir a ele o ato de humilhação . Cícero, de uma maneira bem mais sutil, também inventou um espaço para si dentro da parte do armário que lhe coube no apartamento; armário este cujas portas ficavam fechadas para proteger os olhares alheios da forma como ele organizou um mundo privado. Mas o conteúdo de seu armário não era simplesmente uma negação às maneiras de organizar a vida que se apresentava do “lado de fora”. Muito além de uma negação, sua forma de organizar se presentificou como afirmação de um possível. Ele nos diz que: Eu, tipo assim, sempre fui muito bagunceiro, mas aqui eu sou totalmente arrumado. Meu armário..., ele é um pouco bagunçado, mas agora ele está fechado. (...) Quando você chega e você é o último da escala, primeiro você se submete e aos poucos você vai mudando, aos pouquinhos... No começo eu era mais retraído, porque eu tenho um jeito assim..., não digo descolado. Aos pouquinhos eu vou brincando com um, vou mostrando a minha personalidade. Aos pouquinhos eu vou..., não faço de imediato para eles não se assustarem. Aos pouquinhos vou mostrando meu jeito, aos pouquinhos..., por exemplo, meu armário. Eles já viram como é o meu armário. Não é a mesma coisa que eu mostro para eles.

Ou seja, o armário “bagunçado” de Cícero não reflete o mesmo homem organizado que ele aparenta ser para seus companheiros. No “desorganizado” do

15 armário, subsiste uma outra maneira de produção de si que é inicialmente desconhecida a seus colegas de apartamento. Assim, a modelagem ao modo hegemônico de agir nunca se processa de maneira absoluta, havendo a possibilidade de criação de alternativas várias – e tantas vezes minúsculas – como resistência às “verdades” estabelecidas. Pensando, então, no jogo de potências para além do espaço restrito dos alojamentos, temos que os estudantes da federal de Viçosa – sejam eles veteranos ou calouros –, acabam tendo que inventar com a universidade, e apesar da universidade, espaços singulares de expressão. Tais invenções se comprometem com a produção de outros territórios existenciais e outros critérios de valor que não apenas os da temporalidade ou dos currículos oficiais da universidade. Nesse sentido, a UFV borbulha de movimentos5 organizados e gestados pelos próprios estudantes, a oferecerem perspectivas de agir e de pensar diferenciados. São grupos que – agenciando tanto potências calouras quanto veteranas – inventam outros efeitos de verdade a interferirem na vida de muitos estudantes. De acordo com João Paulo: A universidade, pela pressão que ela cria, ela cria vários espaços diferentes. Você tem o Movimento Estudantil, você tem a capela, tantas coisas diferentes. São vários espaços que a universidade cria por essa questão de repressão, entende. Eu vejo assim por esse lado; eu vejo muita questão de pressão, das pessoas, das vontades, entende. É como eu falei, cheguei aqui com um sonho; cheguei aqui com uma expectativa e foi diferente. Eu procurei o meu nicho.

No caso de João Paulo, a possibilidade de vida por ele criada – que qualificou como um “nicho” a habitar –, teve correlação com o Movimento Estudantil. Todavia, o referido estudante não necessariamente encontrou ali um espaço pronto, como se o Movimento Estudantil contivesse as verdades e as respostas que ele buscava na universidade e não achava. Ele, adentrando nas novas possibilidades de pensar e agir junto ao Movimento, foi capaz de inventar um espaço para si em meio às venturas e desventuras de sua trajetória acadêmica, descobrindo outras rotas de resistência às pressões que lhe eram massificantes. Segundo João Paulo, se não fossem os territórios de vida que conseguiu agenciar em sua participação no Movimento Estudantil, ele: (...) teria muita dificuldade, teria um problema muito sério, de poder lidar com esses sentimentos de revolta com o meio em que eu estava, e tendo que me manter nesse meio. Eu tinha um objetivo claro de vir pra cá e me formar,

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Como alguns exemplos desses grupos teríamos: o Grupo de Agricultura Orgânica; Grupo de Agricultura Alternativa; Grupo de Ecopedagogia; o Laboratório de Educação para a Cidadania; o Projeto Universidades Renovadas, o Núcleo Espírita Universitário, grupo de diversidade sexual Primavera nos Dentes, dentre outros...

16 entende. Eu só esperava que tivesse mais aparato para que eu pudesse discutir o que eu pensava

Assim, acionar práticas de resistência consiste em montar pontos de oxigenação nos momentos em que o ar se torna por demais asfixiante. Mas não podemos nos esquecer de que o oxigênio é um gás altamente inflamável e toda oxigenação traz atrelada a si o risco de explosões e incêndios que devastam referências e (re)conhecimentos. Mas, apesar dos riscos nos quais se mergulha quando se cria um caminho inédito, penso que o que devemos temer não são tanto os embates, incêndios, labaredas, ou as potências calouras (a anunciarem o surgimento de uma novidade imprevista) e as potências veteranas (em seu esforço por estabilizar uma experiência de mundo). O que realmente é assustador são os agenciamentos de campos de possíveis que montam práticas comprometidas com a criação de verdades rígidas e impermeáveis a outras maneiras de olhar e sentir. A montagem de tais práticas pode se dar tanto dentro do convívio mais invisível de um quarto de alojamento, quanto também em experiências coletivas as mais diversas como as dinâmicas em sala de aula ou as que vitalizam a montagem de diferentes grupos estudantis. Porém, mesmo diante da impermeabilidade das verdades que se pretendem universais, pequenas fissuras podem oferecer passagem a inusitadas potências calouras, em práticas de resistência ao que antes era fato incontestável. Essas fissuras não são, contudo, instâncias de construção de certezas, mas de desassossegos. Por isso as “potências veteranas” tentam calá-las; por isso tendem a ser silenciadas, desqualificadas e/ou temidas por conta das inquietações que produzem movimento. Mas são possíveis relações universitárias que também se permitam o inquietar e que assumam o risco de viver e construir nesse inquietar sem tanto pavor à impotência, ao “não saber” e ao risco de se abrir à experiência de uma inclassificável novidade? É possível ainda um pouco mais de ar? Um pouco menos de segurança? Um sopro de criação? Se dizem que é impossível, eu digo: é necessário. Se dizem que é loucura, eu provo o contrário. E digo que é preciso..., eu preciso..., é necessário..., seguir viagem, tirar os pés da terra firme e seguir viagem... (HAWAII, 1999).

Referências CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.

17 DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988. ______. Instintos e instituições. In: ESCOBAR, Carlos Henrique de – Dossier Deleuze. Rio de Janeiro: Hólon Editorial, 1991. ______. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 4a. ed., 1998. ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. ESCOLA SUPERIOR DE AGRICULTURA E VETERINÁRIA. ESAV 1939. Viçosa: 1939. 64 p. HAWAII, Engenheiros do. Seguir viagem. Humberto Gessinger. [Compositor]. In: Tchau Radar. Universal Music, 1999. 1 CD (46min,37s). Faixa 7 (4 min,26s). MACHADO, J. P. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Lisboa: Editorial Conferência, 1956. NIETZSCHE, Friedrich. Vontade de potência. Rio de Janeiro: Ediouro, 1966.

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