A DIMENSÃO CULTURAL DO DESENVOLVIMENTO: AS ESTRATÉGIAS DE ADMINISTRAÇÃO DA DIFERENÇA NA ÉPOCA DA ODISSEIA MULTICULTURAL

May 28, 2017 | Autor: Artur Lins | Categoria: Cultural Studies, Multiculturalism, Globalization, Culture
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XIX Seminário Interno de Pesquisa do Grupo de Pesquisa Cultura, Memória e Desenvolvimento (CMD/UnB)

A DIMENSÃO CULTURAL DO DESENVOLVIMENTO: AS ESTRATÉGIAS DE ADMINISTRAÇÃO DA DIFERENÇA NA ÉPOCA DA ODISSEIA MULTICULTURAL

Artur André Lins72

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Estudante de graduação da Universidade de Brasília (UnB) e membro do grupo de pesquisa Cultura, Memória e Desenvolvimento.

A DIMENSÃO CULTURAL DO DESENVOLVIMENTO: AS ESTRATÉGIAS DE ADMINISTRAÇÃO DA DIFERENÇA NA ÉPOCA DA ODISSEIA MULTICULTURAL Resumo: À luz da perspectiva de uma certa sociologia histórica, figuracional e de longaduração, busca- se apresentar uma narrativa preliminar do objeto intelectual em vias de construção numa futura pesquisa monográfica. A história do deslizamento semântico responsável por operacionalizar o conceito de ―cultura‖ no âmbito da matriz discursiva desenvolvimentista é posta em paralelo ao processo histórico, acentuado no contexto posterior a Segunda Guerra Mundial, da montagem de uma arquitetura global ampliada e constituinte do que se entende por ―modernidade-mundo‖. O tema da ―dimensão cultural do desenvolvimento‖ ganha centralidade ao preencher os conteúdos normativo-prescritivos dos modelos disseminados por via de redes transnacionais de comunicação sujeitas a ―jogos de hegemonia‖ e compostas, dentre outros agentes e agências, por instituições multilaterais em conformidade com as estratégias de intervenção suscitadas pelo campo da cooperação internacional. A título de hipótese, propõe- se que tais modelos, verdadeiras ―imagens de mundo‖, animados por uma gramática multiculturalista, ensejados pelo momento da ―odisseia multicultural‖, sejam eles reveladores do modo pelo qual se insinua uma administração simbólica da diferença nas dinâmicas de governança atualizadas no âmbito do capitalismo cultural global contemporâneo.

Palavras-chave: cultura; desenvolvimento; globalização; capitalismo cultural; multiculturalismo; cooperação internacional.

Introdução: A intenção desse texto é compartilhar algumas intuições de pesquisa desenvolvidas a partir dos trabalhos de iniciação científica escritos nos últimos dois anos. A proposta é fazer uma releitura dos pibic‘s e propor alguns encaminhamentos teórico-metodológicos futuros. O presente texto se divide em três partes: i) ―Pensar em um problema‖, onde faço o resgate das minhas primeiras preocupações de pesquisa ao localizar o modo pelo qual uma problemática inicialmente foi construída; ii) ―Construir uma diversidade predicativa‖, quando me dedico a elaboração mais ampla (e dispersa) dos temas de pesquisa; iii) ―Analisar modelos‖, em que busco esboçar brevemente uma alternativa para dar um encaminhamento para as futuras pesquisas. I – Pensar em um “problema” No decorrer das décadas de 1950 e 1960 uma comunidade de interlocução latinoamericana, em parte vinculada ao pensamento cepalino, se encarregou de atualizar a metanarrativa dos processos de modernização do subcontinente. O desenvolvimentismo enquanto um corpus doutrinário visava, primeiramente, explicar ―o atraso‖ dos países ―periféricos‖ ao mesmo tempo em que propunha estratégias para a superação do ―subdesenvolvimento‖. A industrialização ampliada enquanto um processo desencadeado pela intervenção do Estado consistia na principal estratégia modernizadora de deslocamento do eixo produtivo dos países latino-americanos. Uma tendência teórica alternativa, porém auxiliar, logo se prontificou ao propor uma teoria da dependência na qual a formação das sociedades latinoamericanas é lida à luz dos arranjos geopolíticos, geoeconômicos, históricos e de longa-duração impulsionados pela disseminação abrangente de processos civilizadores gestados nas raias do colonialismo e do imperialismo. Havia, portanto, uma noção de desenvolvimento mimético e dependente que, na esteira da leitura trotskista do desenvolvimento desigual e combinado, por vezes, sugeria uma percepção mecânica e unilateral dos processos de dominação internacional. É a partir do problema posto pelo desenvolvimento endógeno, atento aos elementos internos e autenticamente expressivos das singularidades nacionais, que o conceito de cultura foi previamente mobilizado enquanto um estruturante da própria noção de desenvolvimento. Entretanto, o vínculo mais efetivo entre a noção de cultura e desenvolvimento, tal como se manifesta da obra de Celso Furtado, se firmou ao longo da década de 1970 em função dos desequilíbrios sociais proporcionados pelas transformações abruptas pelas quais, em particular, o Brasil enfrentava. Havia uma pretensão de barrar a interpretação economicista ao propor uma perspectiva holista do desenvolvimento.

Qual teria sido a intencionalidade de Celso Furtado no momento que pretendeu buscar na ―cultura‖ uma estratégia para atenuar os efeitos deletérios do desenvolvimento? É possível identificar um duplo efeito terapêutico da ―cultura‖: por um lado, a cultura aparece como sendo o antídoto paro o autoritarismo antidemocrático uma vez que a inclusão das particularidades se colocava como exigência para o Estado democrático de direito; por outro lado, a cultura também aparece enquanto uma potencial fonte de geração de riqueza, prometendo, assim, o aquecimento de novos nichos de mercado e uma consequente integração produtiva. Celso Furtado estava em busca de meios para, como diz o autor, valorizar, desde as bases, as potencialidades criativas do ―povo brasileiro‖. Contudo, é necessário dizer: Celso Furtado nunca esteve sozinho na produção desse diagnóstico, mas participou ativamente de uma rede transnacional de comunicação que, a partir da década de 1970 em diante, foi paulatinamente construindo a dimensão heroica da ―cultura‖ como uma estratégia fundamental para driblar os efeitos deletérios do desenvolvimento. É importante notar, para os propósitos da construção dessa problemática, que este foi um autor inserido nos fluxos de circulação internacional de elites intelectuais ao longo da segunda metade do século XX. Em última instância, na medida em que se compreende uma trajetória particular – este é o caso de Celso Furtado –, inserida dentro de processos abrangentes – este é o caso da circulação internacional de elites intelectuais –, então a problemática passa a ser a seguinte: como se dão historicamente os influxos transnacionais dos modelos de organização social, política e econômica; mais especificamente, como se dão os trânsitos dos modelos para o desenvolvimento e, claro, quais são as consequentes práticas de administração simbólica da diferença aí implicadas? II – Construir uma “diversidade predicativa” Por diversidade predicativa entende-se um conjunto de determinações ou ―figuras conceituais‖ inferencialmente articuladas na composição de uma narrativa. Propõe-se quatro figurações sociais preliminares: 1) o processo de transnacionalização marcado pela integração produtiva do sistema-mundial ao capitalismo global e o firmamento do campo da cooperação internacional protagonizado por agências multilaterais associadas aos interesses dos Estados nacionais; 2) o processo de deslizamento semântico que operacionalizou o conceito de ―cultura‖ no campo do desenvolvimento; 3) o processo de transformação da matriz econômica e dos modos de regulação do capitalismo a partir de 1970 em diante; 4) o processo de transformação da matriz política marcado pela emergência de novos sujeitos políticos em consonância com o momento histórico da ―odisseia multicultural‖. O objetivo, enfim, é perceber como se reatualizam os esquemas de administração simbólica da diferença na constituição do discurso sobre a diversidade cultural.

Figura 1.Transnacionalização Após os acontecimentos traumáticos decorrentes da primeira metade do século XX, no contexto posterior a Segunda Guerra Mundial, dada a iminência de uma catástrofe nuclear global, o paradigma da segurança internacional passou a constituir o cerne das preocupações dos principais agentes políticos (de elite) do cenário mundial à época. A construção dessa primeira figura leva em consideração o reordenamento das relações internacionais através da montagem de uma arquitetura global ampliada protagonizada pelo emergente campo da cooperação multilateral. Busca-se demarcar uma série histórica significativa, mas ainda não há um acúmulo de reflexões para conduzir essa discussão com a devida complexidade. Nesse sentido, pretende-se somente esboçar algumas preocupações preliminares a serem posteriormente desenvolvidas. O processo de construção de um ―aparato regulatório global‖ no sentido de firmar uma nova ordem econômica do pós-guerra se articulava a partir dos acordos estabelecidos desde o sistema Bretton Woods (1944), através da criação do Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial (BM). Historicamente também se sucedeu a emergência do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), em 1947, que posteriormente ensejou a própria Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1995. A criação da Organização das Nações Unidas (ONU) também cumpre um papel fundamental nesse processo de transnacionalização, sobretudo porque transcende o plano das relações econômicas ao pautar a ―cultura‖, a ―educação‖ e os ―direitos humanos‖ como potenciais estratégias de pacificação diplomática. Tais processos se enquadram num projeto de hegemonia encabeçado pelos Estados Unidos da América com objetivo de executar uma reestruturação da geopolítica e da geoeconomia na segunda metade do século XX. (Harvey (2012; Yúdice 2013). O que importa do ponto de vista sociológico é a construção histórica de redes transnacionais de comunicação formadas a partir das interfaces entre comunidades locais, regionais, nacionais e transnacionais. Há, por exemplo, comunidades epistêmicas, comunidades políticas e comunidades de interesse econômico. Essas comunidades se estabelecem por via de agências de governo, agências multilaterais, organismos de cooperação internacional e, inclusive, por via dos bancos mundiais para o desenvolvimento. A gravidade do problema é percebida quando se considera a circulação de modelos de organização social, política e econômica, isto é, o processo de disseminação de modelos para o desenvolvimento e as estratégias geopolíticas e geoeconômicas contidas em tais fluxos discursivos. (Ribeiro, 2009) Por este viés, a diversidade cultural é compreendida como um discurso global forjado a partir das redes transnacionais de comunicação por onde as elites políticas, econômicas e intelectuais elaboram as estratégias de administração simbólica da diferença constitutivas das

táticas de governança no âmbito do sistema-mundial73.

Figura 2. -O deslizamento semântico A ideia de deslizamento semântico aqui trabalhada toma como inspiração a discussão feita por Edson Farias (2012). O exercício consiste em escavar as mediações históricas dos conceitos de ―cultura‖ e ―desenvolvimento‖, mas sobretudo o modo pelo qual historicamente se deu o cruzamento semântico entre eles. Uma pergunta instigante a se fazer é a seguinte: como o conceito de ―cultura‖ foi parar nos livros de gestão empresarial e nos documentos oficiais dos planos governamentais? Uma resposta inicial poderia sugerir que, assim como nota George Yúdice (2012), a cultura sofre um deslocamento significativo na planilha dos economistas e dos políticos tal que escapa da classificação de “gasto” para assumir o estatuto de ―recurso‖. Qual a função passou a cumprir o conceito de ―cultura‖ tanto para a esfera política quanto para a esfera econômica? Inicialmente, caberia notar que o debate sobre ―cultura‖ desde os folcloristas alemães até a tradição boasiana da antropologia esteve circunscrito, conceitualmente, às comunidades tradicionais ou aos estratos populares das sociedades modernas. Na semântica do discurso culturalista da primeira metade do século XX, a cultura aparece como o eixo estruturante de uma configuração de sentido que articula, por exemplo, ―tradição‖, ―totalidade‖, ―historicidade‖, ―formação‖ e ―nação‖. A cultura também aparece, noutras configurações de sentido vizinhas a antropologia, como o signo do cultivado e erudito, quer dizer, no esteio da rede semântica composta pelos valores de ―autenticidade‖, ―sacralidade‖ e ―particularidade‖. No primeiro caso, a cultura é algo que se acha, diferencialmente, por todos os lados e em todas as pessoas. Já no segundo caso, a cultura cultivada é propriedade dos seletos e autorrefereciados grupos cultos e de elite, atentos aos parâmetros de legitimação da esfera estética (ORTIZ, 2015). O argumento de Charles Taylor (2011) acerca da emergência histórica de uma ética da autenticidade no ocidente é valioso para os propósitos desse texto. Segundo o autor, desde o século XIX se estabeleceram afinidades eletivas entre o liberalismo e o romantismo de tal

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Gustavo Lins Ribeiro (2009, p. 11) diz: ―As agências e redes de governança global necessitam lidar com a diferença. O poder centralizador delas baseia-se, em parte, em suas capacidades para conciliar tanto as diversas demandas independentes, originadas do sistema global por elas administrado, quanto as respostas diferenciadas dadas pelo sistema global diante de regulações centralizadoras. Tornar os interesses locais, regionais, nacionais e trans-nacionais compatíveis requer sensibilidade com relação à informação que corre de modo centralizado e descentralizado. Há, portanto, a necessidade de levar-se em conta uma pluralidade de contextos de produção de significado que são interconectados por meio de iniciativas institucionais ou pelo estabelecimento de redes. Agências e agentes transnacionais são mais propensos a organizar a diversidade do que a reproduzir a uniformidade (Hannerz, 1996). Ao mesmo tempo, ―o par unidade/diversidade é inerente ao imaginário e à prática da administração simbólica do mercado mundial‖ (Matterlart. 2005: 61). Em suma, instituições e redes de governança global estão sujeitas às dinâmicas de descentralização/centralização e precisam enfrentar os problemas trazidos pela diversidade à sua (re)produção‖.

maneira que se constituiu um ideal moral da autenticidade74. Assim, o imaginário liberalilustrado perpassado pela sensibilidade romântica faz emergir a preocupação democrática expressa pela ―necessidade de reconhecimento‖ (Taylor, 2011, p. 51-62). O Outro exótico, bárbaro e selvagem dá lugar então a um Outro autêntico, significativo e sempre nativo da sua natividade, quer dizer, um Outro portador de uma ―cultura‖. No entanto, apesar do aprimoramento conceitual da ―cultura‖ levado a cabo pela antropologia, disciplina engajada na montagem de uma matriz discursiva culturalista, os processos sociais marcados pela ascensão da sociedade de massas constituem um desafio ao próprio ideal da autenticidade, uma vez que a homogeneização progressiva da população era entendida como sintoma dos processos de industrialização (ADORNO; HORKHEIMER: 2006) Jesús Martín-Barbero (2015), no livro Dos meios às mediações, nos oferece um panorama rico e complexo das mediações que envolvem a ―cultura‖ e a ―comunicação‖ na passagem do ―popular‖ para o ―massivo‖ numa articulação histórica que nos leva da noção ilustrada de ―povo‖ do século XIX até o processo de especialização comunicativa da cultura em meados do século XX. Acredita-se que aqui há uma chave-interpretativa para conceber o deslizamento semântico entre ―cultura‖ e ―desenvolvimento‖. É importante acompanhar o argumento da passagem do popular ao massivo para compreender a torção significativa que o conceito de cultura sofre nas décadas de 1940-1950. A tese de Barbeiro sugere que o massivo consiste numa nova modalidade de experiência histórica do popular. O advento das novas tecnologias da comunicação – tais como o rádio, a televisão, mas também o jornal e o folhetim – influenciou o longo processo de colisão das distintas temporalidades amalgamadas no terreno fraturado e heterogêneo da experiência histórica da modernidade. A ―cultura‖ deixou de ser o tema exclusivo dos exotéricos antropólogos metidos nos recônditos do mundo atrás de seus sujeito-primitivos para adentrar o campo da modernidade pela via dos projetos das naçõesEstado. A comunicação passou a ser considerada como ―espaço-chave‖ na articulação que liga ―cultura‖ e ―nação‖ às estratégias de hegemonia e legitimação no âmbito do capitalismo tardio. Nestor García Canclini (2012), no prefácio ao livro Cultura y desarrollo, aponta para uma reconceitualização da cultura, a partir da década de 1950 em diante, onde os sociólogos aparecem junto aos comunicólogos para definir os contornos semânticos da posição estratégica que o discurso culturalista tomou no âmbito dos projetos de desenvolvimento social e na geração de riqueza a partir da exploração de novos nichos de mercado. O processo de industrialização do simbólico teve por efeito uma dinamização da produção, circulação e 74

Charles Taylor (2011, p. 38) diz: ―Mas, voltando ao ideal moral da autenticidade: ele se torna crucialmente importante em razão de um desenvolvimento que ocorreu após Rousseau e que associo a Herder – uma vez mais o seu maior e primeiro articulador em vez de seu criador. Herder passa adiante a ideia de que cada um de nós tem um jeito original de ser humano. Cada pessoa tem a própria ―medida‖, na sua maneira de dizer. Tal ideia entrou profundamente na consciência moderna. E também é novidade. Antes do final do século XVIII ninguém pensava que as diferenças entre os seres humanos tinham esse tipo de significado moral‖.

consumo dos processos criativos no contexto de intensificação dos trânsitos e influxos globais de informação e tecnologia proporcionados pelos meios de comunicação de massa cada vez mais abrangentes e tentaculares. Iniciou-se a busca pelas potencialidades da arte e das indústrias criativas como fontes de atração de investimentos, geração de emprego e renda, seja através dos amplos e diversificados mercados de bens simbólico-culturais ou mesmo por via da crescente negociação do patrimônio cultural como elemento propulsor do mercado turístico. Em a Conveniência da Cultura, Geroge Yúdice (2012) sustenta a tese de que a transformação da cultura em recurso é representativa de uma mudança epistêmica. A compreensão da cultura como recurso e fonte de investimento pressupõe aquilo que é racionalmente esperado como retorno. Nesse sentido, a pergunta que se estabelece é a seguinte: quais são as expectativas de retorno para a canalização de investimentos motivados pela narrativa que sustenta a cultura como recurso7? A transformação da imagem em mercadoria audiovisual, a regulamentação dos direitos de propriedade intelectual, a implantação dos complexos industriais da cadeia de produção do turismo, enfim, o advento da economia da cultura e, posteriormente, da economia criativa, é um indicador daquilo que ficou conhecido como ―capitalismo cultural‖ (YÚDICE, p.26). Dessa forma, é também no período dessa inflexão já citada que o campo discursivo do desenvolvimento começa a se encontrar com o campo discursivo da cultura, numa mescla que desafia a autonomia relativa entre as esferas econômicas, políticas e culturais. A cultura passa a ser vista como catalisadora do desenvolvimento humano. Se consolidou, portanto, uma visão holística do desenvolvimento segundo a qual a cultura é um componente central. A suposta prodigiosa explosão da cultura, que se refere ao processo de desautonomização da cultura75, é indicativa do deslizamento semântico aqui tematizado. E é justamente a partir desse deslizamento semântico que podemos prosseguir a argumentação à luz de duas tendências paralelas do mesmo processo: a culturalização da economia e a culturalização da política como partes do processo de universalização da cultura.

Figura 3. - Transformações na matriz econômica: A construção dessa segunda figura promete mobilizar quatro autores e três discussões:1) David Harvey e a passagem do fordismo para a acumulação flexível tal como proposto em A condição pos-moderna; 2) Luc Boltanski e Ève Chiapello naquilo que diz respeito ao Novo 75

Fredric Jameson diz: ―O que devemos perguntar agora é se precisamente essa semi-autonomia da esfera cultural não foi destruída pela lógica do capitalismo tardio. Mas o argumento de que a cultura hoje não é mais dotada da autonomia relativa que teve em momentos anteriores do capitalismo não implica, necessariamente, afirmar o seu desaparecimento ou extinção. Ao contrário, o passo seguinte é afirmar que a dissolução da esfera autônoma da cultura deve ser antes pensada em termos de uma explosão: uma prodigiosa expansão da cultura por todo o domínio do social, até o ponto em que tudo em nossa vida social – do valor econômico e do poder do Estado às práticas e a própria estrutura da psique – pode ser considerado como cultural, em um sentido original que não foi, até agora, teorizado‖.

espírito do capitalismo; 3) Daniel Bell e a sua proposta acerca d‘O Advento da Sociedade PósIndustrial. Todos estes autores tratam de transformações ocorridas na matriz econômica de alguns países centrais a partir da década de 1970. É preciso compreender que os processos implicados no advento da ―nova economia‖ não se dão igualmente ao redor do mundo. Ou seja: se num primeiro momento histórico a sobreposição das atividades do terceiro setor foi restrita aos países ―avançados‖, àqueles com uma infraestrutura capitalista mais desenvolvida, então, historicamente, ao longo dos últimos trinta e cinco anos, os princípios basilares dessa nova matriz econômica também se expandiram para os mais diversos países do mundo. As transformações que ensejaram o advento da sociedade pós-industrial se situam principalmente ao nível da estrutura social, ou seja, são transformações na infraestrutura técnica e organizacional do capitalismo. Naquilo que diz respeito a uma caracterização da sociedade pósindustrial, Daniel Bell propõe cinco dimensões criteriosas.

A primeira, relativa ao setor

econômico, verifica ―a mudança de uma economia de produção de bens para uma de serviços”76, ou seja, o grande contingente da força trabalho não está mais nos setores primários e secundários, agrários e industriais, mas justamente no terceiro setor: a economia de serviços. A segunda dimensão, relativa a distribuição ocupacional, denota “a preeminência da classe profissional e técnica”77, ou seja, a crescente especialização profissional e técnica das classes produtivas. A terceira dimensão, denominada princípio axial, aponta para ―a centralidade do conhecimento teórico como fonte de inovação e de formulação política para a sociedade” 78, quer dizer, a centralidade que o conhecimento teórico ganha para as estratégias de previsão e controle social, tanto no que diz respeito às estratégias políticas do Estado quanto às estratégias de maximização de lucro por via do mercado. A quarta dimensão, que exprime uma orientação 79

futura, é justamente ―o controle da tecnologia e a distribuição tecnológica” , isto é, uma orientação para o planejamento do desenvolvimento tecnológico como o motor da inovação econômica, política e social. A quinta e última dimensão, relativa a tomada de decisões, se apresenta como “a criação de uma nova tecnologia intelectual”80 marcada por um método de investigação científico aplicável a praticamente todas as dimensões da vida social. Ainda com o objetivo de ilustrar as transformações na estrutura social que provocaram o advento da sociedade pós-industrial, quatro elementos são ressaltados para a significação histórica dessa fase do capitalismo. Bell (1973, p.60) diz: 1. Ela reforça o papel da Ciência e dos valores cognitivos, como necessidade institucional básica da sociedade; 2. Ao tomar decisões de maneira mais técnica, ela traz o cientista ou o economista mais diretamente para dentro do processo político; 76

Bell, 1973 p.27 Bell, 1973 p.28 78 Bell, 1973 p. 28 79 Bell, 1973 p. 28 80 Bell, 1973 p. 28 77

3. Aprofundando as tendências já existentes, que levam à burocratização do trabalho intelectual, ela cria um conjunto de pressões para as maneiras tradicionais de definir os objetivos e valores intelectuais; 4. Criando e dando maior campo à intelligentsia técnica, ela suscita questões fundamentais, com referência às relações entre o técnico e o intelectual literário. Temos, assim, um quadro amplo de predicações acerca da fase pós-industrial do capitalismo tardio. Mas qual seria a relação entre tais transformações na estrutura social e a dimensão propriamente da ―cultura‖? Daniel Bell (1973, p.526-531) oferece o diagnóstico de uma crescente disjunção entre a estrutura social e a cultura, entre os fatores relativos a economia-tecnologia-ocupação e aqueles outros fatores relativos a expressão simbólica e a produção de significados. Poderíamos traduzir tal disjunção numa tensão expressa entre a racionalidade formal-instrumental e o ideal moral da autenticidade. É a partir do processo social resultante do estabelecimento de uma ―sociedade de consumo‖ que a disjunção entre estrutura social e cultura recebe contornos dramáticos. Nós poderíamos traduzir a disjunção entre estrutura social e cultura pela tensão entre ascetismo e hedonismo81. O comportamento ético, aquele que denota a atitude pública perante a sociedade, por um lado, é regido pela demanda da profissionalização, pela construção da carreira profissional e a consequente inserção pessoal no mercado de trabalho. É feita uma exigência ascética ao indivíduo para que este aprimore o seu capital humano. Por outro lado, o comportamento estético, aquele responsável pela sensibilidade do cultivo do ―eu‖, é seduzido pelo consumismo afeito às satisfações dos desejos mais corriqueiros e hedonistas. Combinar o comportamento ético-ascético com o comportamento estético-hedonístico é uma tarefa para a figura heroica do indivíduo da sociedade pós-industrial. Em A condição pós-moderna, David Harvey (2014, p. 8) sustenta a tese segundo a qual, a partir da década de 1970 em diante, três elementos são articulados na organização do capitalismo, quais sejam, “a ascensão de formas culturais pós-modernas, a emergência de modos mais flexíveis de acumulação do capital e um novo ciclo de compressão do tempoespaço”. No entanto, este é um autor que se opõe ao diagnóstico do surgimento de uma sociedade pós-industrial sem precedentes. As transformações ocorridas no capitalismo não fazem sucumbir os seus mecanismos de reprodução fundamentados pela maximização dos lucros e pela exploração do trabalho. Assim, o pós-modernismo é visto como um movimento cultural influente, porém incapaz de encerrar nele próprio toda a significação histórica do mundo contemporâneo. 81

Bell (1973, p. 528) diz: O resultado foi uma disjunção no interior da própria estrutura social. Na organização da produção e do trabalho, o sistema exige um comportamento previdente, atividade e autocontrole, dedicação a uma carreira e sucesso. No domínio do consumo, ele promove uma atitude carpe diem, de prodigalidade e ostentação, e a busca compulsiva de distrações. Nos dois campos, entretanto, o sistema é inteiramente mundano, pois toda ética transcendente se desvaneceu.

No capítulo ―Teorizando a transição”, David Harvey oferece um diagnóstico perspicaz da transição do modo de regulação econômica fordista para o da acumulação flexível. A análise segue a orientação que compreende as relações entre ―regimes de acumulação‖ e ―modos de regulação‖ no processo de reestruturação e reorganização do capitalismo. O autor nota que a transição no modo de regulação do capitalismo no momento histórico posterior a década de 1970 ocorre principalmente no campo da tecnologia e do processo de trabalho. No entanto, aspectos estruturais do capitalismo moderno ainda se fazem presentes a despeito da reestruturação reguladora do capitalismo flexível. Três fatores insistem em desafiar as novidades: a necessidade de crescimento através de uma taxa equilibrada da expansão do produto; a exploração do trabalho vivo cujo o objetivo é a extração de mais-valia e o controle da classe trabalhadora por via de uma política salarial; a dinâmica organizacional e a inovação técnica empreendidas no contexto da competição dos mercados. As crises cíclicas do capitalismo, então, estariam na interface desses três elementos mencionados. Uma tendência para a superacumulação apresenta-se incontornável, de tal modo que as receitas políticoeconômicas se fundamentam justamente na administração da crise provocada por essa mesma tendência. Táticas de desvalorização, controle macroeconômico e absorção da superacumulação são colocadas em funcionamento. Para os objetivos desse texto é importante notar quais são as estratégias de absorção do excedente no processo de superacumulação do capitalismo pós-1970 (HARVEY, 2014 p. 163-176) A primeira estratégia de absorção da superacumulação, tal como proposto por Harvey, é o ―deslocamento temporal”82 marcado pela formação de capital fictício e pela financeirização mundial da economia. Essa estratégia se caracteriza pela “exploração de usos futuros”83 a partir da ―absorção de superávits através das acelerações do tempo de giro”84 A superacumulação encontra uma solução paliativa através do deslocamento temporal de capitais favorecido por fluxos transnacionais mediados pelo sistema financeiro. A segunda estratégia é o ―deslocamento espacial”85 que opera por via de uma “expansão geográfica do capital e do trabalho e x c e d e n t e s ” 86. A expansão geográfica do capitalismo amplia as possibilidades de investimento, exploração e geração de riqueza ao redor do mundo, seja através do incentivo ao comércio ou mesmo pela construção da infraestrutura básica nos mais diversos países periféricos. Como nota Harvey: ―o resultado de longo prazo será, quase certamente, o aumento da competição internacional e inter-regional, com os países e regiões que têm menos vantagens sofrendo as mais severas consequências”18. Aqui podemos ver o modo pelo qual as dinâmicas

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Harvey, 2014, p. 171 Harvey, 2014, p.171 84 Harvey, 2014, p. 171 85 Harvey, 2014, p. 172 86 Harvey, 2014, p. 172 83

geoeconômicas do capitalismo moderno suscitam arranjos de dependência geopolítica. Por fim, a terceira estratégia de absorção da superacumulação se caracteriza pelos ―deslocamentos tempo-espaciais” que sintonizam a formação de capitais fictícios com as estratégias de expansão geográfica do capitalismo. Harvey (2014, p. 172) oferece uma ilustração interessante: ―Emprestar dinheiro (com frequência levantado, digamos, nos mercados de capital de Londres ou Nova York por meio da formação de capital fictício) à América Latina para a construção de infraestruturas de longo prazo ou para a compra de bens de capital que ajudem a gerar produtos por muitos anos é uma forma típica e forte de absorção da superacumulação‖. Nota-se a relação entre os deslocamentos tempo-espaciais e as estratégias de fomento ao desenvolvimento nos países periféricos. Não é novidade o caráter expansionista do capitalismo moderno, mas a complexificação da integração dos mercados ao nível global, ocorrida no contexto posterior a Segunda Guerra Mundial, não é fortuita ou mesmo voluntária. A globalização é um processo histórico necessário para a manutenção do sistema capitalista uma vez que a absorção do excedente de capital se impõe diante da frenética superacumulação. Um dos aspectos da acumulação flexível que é caro ao debate do capitalismo culturalcognitivo é a ênfase na informação como fator propulsor da intensificação do giro de capital. A informação passou a mobilizar um mercado próprio através da oferta de serviços em forma de consultorias altamente especializadas e capazes de desvendar os segredos mais cruciais das tendências de mercado. A incorporação dos conhecimentos técnico-científicos passou a fazer parte de uma batalha competitiva cada vez mais acirrada. Nesse sentido, ao perceber que o conhecimento técnico-científico-informacional adquiriu um patamar elevado do ponto de vista das forças produtivas no contexto do regime de acumulação flexível e do capitalismo culturalcognitivo, a problematização do conceito de capital humano, tal como elaborado pelo economista norte-americano Theodore Schultz, na década de 1960, passou a ser necessária para o entendimento das canalizações de investimentos direcionados na formação das capacidades técnicas, instaurando um novo ciclo de especialização da força de trabalho calcado na criatividade e na competência profissionais. Assim, os investimentos massivos em educação encontram não apenas uma justificativa cívico-republicana, mas sobretudo uma justificativa de integração econômica que prima pela intensificação e diversificação das cadeias produtivas, sobretudo na área de tecnologia, informação e cultura. Numa análise comparativa entre textos de gestão empresarial da década de 1960 e 1990, Luc Boltanski e Ève Chiapello (2009) oferecem aos leitores um excelente diagnóstico a respeito do ―novo espírito do capitalismo‖, discussão intimamente atrelada às preocupações aqui elaboradas. Uma espécie de transformação da estrutura normativa e valorativa do capitalismo está em jogo. Por meio da incorporação das críticas ao capitalismo inflexível, fatigante e

heteronômico, ensejadas pelo movimento contra-cultural da década de 1960, uma literatura especializada na gestão empresarial aposta na renovação de valores e ideias. Uma nova versão do empreendedorismo capitalista se apresenta nas palavras de Boltanski e Chiapello (2009, p.130):

Assim, por exemplo, as qualidades que, nesse novo espírito, são penhores de sucesso – autonomia, espontaneidade, mobilidade, capacidade rizomática, polivalência (em oposição à especialização estrita da antiga divisão do trabalho), comunicabilidade, abertura para os outros e para as novidades, disponibilidade, criatividade, intuição visionária, sensibilidade para as diferenças, capacidade de dar atenção à vivência alheia, aceitação de múltiplas experiências, atração pelo informal e busca de contatos interpessoais – são diretamente extraídas do repertório de maio de 1968. [grifo meu] Assistimos à inserção do ideal moral da autenticidade no seio das preocupações produtivistas dos setores empresariais numa mescla que nos conduz da flexibilização das relações de trabalho até a incorporação do valor da diversidade cultural como uma reserva disponível. Opera-se uma administração simbólica da diferença ao nível das relações de mercado através da compreensão segundo a qual, em contextos criativos de produtividade, a própria ―diferença‖ assinala o seu potencial valor agregado. Figura 4. - Transformações na matriz política No decorrer da década de 1960 se tornou comum a ideia de que os países Ocidentais, em especial aqueles regidos pelas formas avançadas do capitalismo organizado, atravessavam por uma fase marcada pelo ―fim da ideologia‖, ―fim da história‖, ―fim da utopia‖ ou mesmo por uma ―era pós-política‖. À primeira vista, este é um diagnóstico estranho para o contexto histórico bipolarizado pelas potências capitalista-americana e comunista-soviética; igual estranhamento ocorre diante das investidas políticas do maio de 1968. Não há a pretensão de discutir concretamente se vivemos num momento histórico pós-ideológico ou pós-político, mas atentar para os potenciais significados que esse debate carrega. Herbert Marcuse (1969), arguto observador das transformações políticas decorrentes da década de 1960, por ocasião do encontro organizado pelo Comitê Estudantil da Universidade Livre de Berlim Ocidental, entre os dias 10 e 13 de julho de 1967, proferiu uma exposição cujo título anuncia: O fim da utopia. O diagnóstico de época contido na exposição de Marcuse consiste, basicamente, na falência progressiva das grandes narrativas políticas modernas na esteira da acei t ação conform i st a do discurso t ri unfal i st a que concl am a a raci onali dade tecnológica enquanto o princípio-fim de organização das sociedades existentes para as quais a fórmula ‗economia de livre mercado + democracia liberal-pluralista‘ seria a expressão do estágio mais avançado da civilização. A política estaria subsumida nas

decisões tecnocráticas, bem como a luta de classes estaria arrefecida pelas conquistas dos direitos trabalhistas e pelas necessidades satisfeitas no terreno da sociedade de consumo. Longe de ser um intelectual compromissado com as teses revolucionárias da esquerda, Daniel Bell (1980), em 1960, publica um livro cujo título nos apetece: O fim da ideologia. O autor está interessado nas circunstâncias históricas e sociais que fizeram emergir um determinado consenso21. Interessante é ver como o diagnóstico de Bell soa familiar às observações feitas por Herbert Marcuse: por um lado, há o reconhecimento de que as grandes narrativas políticas modernas passaram por um franco esgotamento, por outro lado, o mito do desenvolvimento econômico se fixou (naturalizou) como uma necessidade histórica. Em livro recentemente publicado, Alain Badiou (2012) desenvolve a tese segundo a qual somos, num sentido estritamente político, contemporâneos de maio de 1968. O autor diz: Somos contemporâneos de 1968 do ponto de vista da política, de sua definição, de seu futuro organizado, portanto, num sentido muito forte da palavra ―contemporâneo‖. É claro, o mundo mudou, as categorias mudaram: juventude estudantil, operários, camponeses significam outra coisa hoje, e as organizações sindicais e partidárias dominantes na época estão em ruínas. Mas nós temos o mesmo problema, somos contemporâneos do problema que 1968 trouxa à tona, ou seja, a figura clássica da política de emancipação era inoperante. (Badiou, 2012 p.39) O ideário da emancipação política, que reside na premissa básica de qualquer pensamento utópico, é regido por uma rejeição do mundo, ou seja, uma ―Grande Recusa‖ diante do estabilishment. O suposto ―fim da utopia‖, que se traveste em ―fim da história‖, é o sintoma de uma época politicamente guiada pela adequação ao mundo e pela aceitação das suas infelizes mazelas. O terreno do político, nessa configuração particular de esvaziamento das ideologias revolucionárias, é pautado por uma administração tecnocrática dos desequilíbrios; o funcionamento do sistema social é naturalizado e a política segue a orientação da mera redução de danos Ao que concerne o pensamento político de esquerda, três fatores são sugestivos das transformações de época: a) a desconstrução simbólica da classe trabalhadora como sujeito revolucionário; b) a crise de representação das instituições políticas e democráticas, sobretudo da forma-partido como veículo da transformação social; c) a inovação da linguagem política em direção ao firmamento de uma estratégia calcada no par identidadediferença. É especificamente este último fator que trouxe à baila o reconhecimento de novos sujeitos políticos animados, por exemplo, pelo feminismo, pelo movimento negro e pela comunidade queer, isto é, o ímpeto da luta pelo reconhecimento e preservação dos direitos das minorias socioculturais.

É justamente a partir dessa atmosfera que expõe a crise das grandes narrativas políticas modernas que o processo da culturalização dos conflitos políticos foi impulsionado. Argumenta-se que, em resposta a decadência da dimensão heroica da política, se forjou historicamente a ascendência da dimensão heroica da cultura. É justamente aqui que o multiculturalismo, nas suas mais variadas matizes, cumpre o seu papel histórico. O debate acerca do multiculturalismo se torna pertinente para a reflexão na medida em que se considera a sua dispersão global. Will Kymlicka (1995; 1998), mesmo sendo um intelectual profundamente comprometido com a formulação normativa dos princípios basilares do multiculturalismo liberal, também é um excelente observador empírico dos efeitos concretos que as ideias produzem no curso da história. Toma-se de empréstimo a noção de ―odisseia multicultural‖ elaborada pelo autor para expressar justamente o processo histórico da dispersão da gramática multiculturalista por via das redes transnacionais de comunicação constituídas pelos organismos internacionais (IO‘s). No artigo American Multiculturalism in the Internacional Arena, Will Kymlicka (1998) aponta para a construção de um consenso entre as elites globais: 1) todos somos multiculturalistas agora, a questão passa a ser qual o tipo de multiculturalismo adotar; 2) uma concepção aberta, fluída e voluntária do multiculturalismo se faz necessária diante do respeito a escolha individual; 3) a política multicultural visa a redução dos estigmas recaídos sobre as populações historicamente segregadas e racializadas. Nesse processo, a UNESCO cumpre um papel fundamental no sentido de difundir modelos de políticas de reconhecimento, seja através dos modelos de políticas culturais (ações afirmativas ou patrimonialização) o mesmo por via dos modelos de indústrias criativas. Diante dos impasses enfrentados pelas políticas assimilacionistas e exclusivistas dos projetos nacionais baseados em valores universalistas e unitários, um conjunto de ―políticas de

identidade‖, ―políticas de diferença‖ e ―políticas de reconhecimento‖ passou a figurar uma exigência ao Estado democrático de direto no sentido de operar a inclusão afirmativa das particularidades

socioculturais

dos

assim

chamados

―group-differentiated

rights‖

(Kymlicka,1995). Contudo, uma tensão constitutiva se apresenta: o reconhecimento das particularidades culturais para o exercício da cidadania cultural é possível no âmbito da estrutura normativo- universalista característica do Estado democrático de direito? Quais são as linhas divisórias sobre as quais o multiculturalismo se equilibra? Para uma definição preliminar do multiculturalismo, é feita uma consulta ao artigo de Sérgio Costa e Danilson Werler (1997, p.159): O multiculturalismo é a expressão da afirmação e da luta pelo reconhecimento desta pluralidade de valores e diversidade cultural no arcabouço institucional do Estado democrático de direito, mediante o reconhecimento dos direitos básicos dos indivíduos enquanto seres humanos e o reconhecimento das ―necessidades particulares‖ dos indivíduos enquanto membros de grupos culturais específicos. O multiculturalismo é atravessado pelo menos por duas tendências que disputam o seu significado. Por um lado, a concepção dos liberais igualitaristas, tais como Will Kymlicka (1995), sustenta a importância do pertencimento cultural no sentido de reafirmar as liberdades individuais. No entanto, há uma dissociação do processo de reconhecimento das diferenças culturais em relação a arena política do Estado. Os liberais igualitaristas não se opõem às políticas de ações afirmativas, mas ressaltam a importância predominante das instâncias da sociedade civil, a saber, a família, a igreja, os meios de comunicação, os grupos profissionais e as associações culturais, no processo de reconhecimento da diversidade cultural. A neutralidade das instituições públicas é vista como uma condição necessária para o princípio individualista do ―bem‖, ou seja, a imparcialidade do Estado democrático constitui a regra básica para a autodeterminação da vida individual. Por outro lado, os comunitaristas, a maneira de Charles Taylor (2011), enfatizam o nexo entre identidades individuais e coletivas – contrário ao ideal monológico liberal – numa relação recíproca a partir da negociação dialógica do self. Assim, as táticas de reconhecimento dos direitos culturais e dos direitos de minorias encontram no Estado democrático um terreno fértil para operar uma política redistributiva. Os comunitaristas partem do pressuposto de que o Estado democrático de direito se ergue já dentro de uma comunidade política culturalmente constituída, de tal modo que a pretensão de imparcialidade das instituições públicas disfarça o exercício do poder. Apesar de oferecerem linhas de ação distintas, tanto os liberais quanto os

comunistaristas estão assentes no ideal moral da autenticidade. Um aspecto importante das concepções de cidadania multicultural, sobretudo na sua versão liberal-pluralista, é aquilo que Slavoj Zizek (2008) nomeou como ―razão tolerante‖, quer dizer, o princípio básico de que a convivência entre os diferentes prescinde do valor da tolerância e respeito mútuos. De fato, ―tolerância‖ é uma palavra que se repete exaustivamente nos principais documentos oficiais dos governos democráticos e também das convenções internacionais. Na Carta das Nações Unidas, assinada em São Francisco no dia 26 de Junho de 1945, determinadas finalidades são postuladas como objetivos da cooperação internacional, tais como: “A praticar a tolerância e a viver em paz, uns com os outros, como bons vizinhos; A unir as nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais; A garantir, pela aceitação de princípios e a instituição de métodos, que a força armada não será usada, a não ser no interesse comum; A empregar mecanismos internacionais para promover o progresso económico e social de todos os povos;”. O paradigma da pacificação, fundamentado na estratégia da segurança das populações, encontra no princípio da tolerância o seu principal recurso discursivo. Do mesmo modo, na Constituição da UNESCO é dito que: ―O propósito da Organização é contribuir para a paz e para a segurança, promovendo colaboração entre as nações através da educação, da ciência e da cultura, para fortalecer o respeito universal pela justiça, pelo estado de direito, e pelos direitos humanos e liberdades fundamentais.” Mas, afinal, as guerras não cessaram, os conflitos não diminuíram substantivamente, e, atualmente, a crise das imigrações coloca impasses ao mundo junto a escalada recente do terrorismo que desafia a hegemonia ocidental e o próprio paradigma da segurança internacional. Não menos sintomático é a declaração de chefes de Estado como David Cameron, Angela Merkel e Nicolas Sarkozy acerca do ―fim do multiculturalismo‖ 23; e o que dizer sobre a popularidade galopante da extrema direita nos países da Europa continental? Quais as contradições estabelecidas entre o ideal da tolerância multicultural e o seu respectivo sistema político-econômico associado? Slavoj Zizek (2008, p. 140) oferece uma interessante abordagem do problema:

Why are so many problems today perceived as problems of intolerance, rather than as problems of inequality, exploitation, or injustice? Why is the proposed remedy tolerance, rather than emancipation, political struggle, even armed struggle? The immediate answer lies in the liberal multiculturalist‘s basic ideological operation: the ―culturalization of politics.‖ Political differences – differences conditioned by political inequality or economic exploitation – are naturalised and neutralised into ―cultural‖ differences, that is, into diferent ―ways of life‖ which are something given, something that

cannot be overcome. They can only be ―tolerated‖. [...] The cause of this culturalisation is the retreat, the failure of direct political solutions such as the Welfare State or various socialist projects. Tolerance is their post-political ersatz. Após o multiculturalismo se alçar ao posto de narrativa dominante por via de uma insistente culturalização dos conflitos políticos, a diversidade cultural passou a ser celebrada e cultuada como princípio de fé tanto por formuladores de políticas públicas quanto por produtores culturais. Diante dos processos globalizadores intensos, os mesmos que deflagram figurações sociais disjuntivas e conflituosas, o multiculturalismo enquanto um modelo discursivo cumpre uma função decisiva do ponto de vista tanto da pacificação diplomática quanto do estabelecimento das redes mercadológicas do capitalismo global. A tradição, outrora escamoteada pela ideologia do progresso, passa a ser articulada como um recurso fundamental para as criativas estratégias de modernização. É nesse sentido que a odisseia multicultural, considerando as suas ambivalentes implicações históricas no sentido da dispersão da gramática multiculturalista, se enquadra dentro de um processo mais amplo marcado pela administração simbólica da diferença no terreno da política.

III - Analisar de Modelos O processo de universalização da cultura desencadeou o deslizamento semântico responsável pela compreensão da dimensão cultural do desenvolvimento humano. A odisseia multicultural é uma fase avançada do processo de universalização da cultura, nela se faz presente uma espécie de heroísmo culturalista.

Na trajetória da UNESCO, o conceito de

―cultura‖ sofreu transformações ao longo do tempo. Nas décadas de 1950 e 1960, a ―cultura‖ abrangia o campo das artes e das identidades nacionais como resposta aos contextos de descolonização. Nas décadas de 1970 e 1980, o conceito de cultura se aproximou da matriz discursiva do desenvolvimento social e econômico, de tal modo que a ―cultura‖ passou a ser vista como elemento estratégico da cooperação internacional. Nas décadas de 1980 e 1990, haja vista a presença mais enfática do multiculturalismo, a ―cultura‖ foi aproximada da ―democracia‖ através do reconhecimento dos direitos de minorias, dos povos indígenas e dos imigrantes. Na primeira década do novo milênio, a ―cultura‖ aparece vinculada ao ideal da ―sustentabilidade‖ uma vez que a potencialidade de geração de riqueza através do valor das expressões culturais não impunha custos ao meio ambiente24. Uma pergunta a se fazer é a seguinte: como se formou, através das discussões travadas pelas comunidades epistêmicas das redes transnacionais de comunicação compostas por agentes e agências multilaterais, os

modelos de reconhecimento das expressões culturais? Em que medida ocorrem os fluxos globais dos modelos de políticas culturais de significado e dos modelos de indústria criativa? De qual maneira os modelos de desenvolvimento passaram a incorporar a dimensão da cultura? Num texto intitulado ―O sentido e o uso da noção de modelo‖, Claude LéviStrauss (1987, p. 88-89) oferece uma reflexão a partir da análise estrutural: Sem dúvida, a experiência deve sempre ter a última palavra. Mas a experiência sugerida e guiada pelo raciocínio não será igual à experiência bruta dada como partida: esta permanecerá sempre irredutível à análise que procura ultrapassá-la. A prova definitiva da estrutura molecular da matéria está no microscópio eletrônico, cuja lente deixa ver moléculas reais; mas nem por isso se tornarão elas visíveis a olho nu. Da mesma forma, não se pode esperar da análise estrutural que ela mude a maneira pela qual apreendemos as relações sociais tal como elas se manifestam concretamente: ela apenas permite melhor compreendê-las. E se conseguirmos apreender sua estrutura, nunca será no nível empírico em que primeiro apareceram, porém num nível mais profundo e que permaneceu até então despercebido: o das categorias inconscientes, que podemos esperar atingir aproximando, nelas, domínios que, à primeira vista, davam a impressão de não serem relacionáveis. Estes domínios incluem, por um lado, as instituições sociais tal como funcionam na prática, e por outro lado, as diversas maneiras pelas quais, nos seus mitos, seus ritos e suas representações religiosas, os homens tentam velar ou justificar as contradições entre a sociedade real em que vivem e a imagem ideal que dela fazem. Assim, os modelos são imagens ideais do mundo que operam pela justificação das práticas sociais, práticas de governo, práticas acadêmicas, práticas de criação produtiva. Nesse sentido, uma pergunta pertinente a se fazer é: como o mito do desenvolvimento, enquanto um modelo discursivo, justifica as contradições entre os seus princípios e os seus efeitos? Quais as implicações sociais decorrentes da operacionalização do conceito de ―cultura‖ enquanto peça- chave na justificativa dos modelos de desenvolvimento? ? À luz da perspectiva eliasiana, poderia ser feita a pergunta pelos ―padrões civilizatórios‖ contidos em tais modelos, em tais ―imagens de mundo‖. Em Global Flows of Development Models, Gustavo Lins Ribeiro apresenta um quadro geral de análise dos fluxos globais dos modelos de desenvolvimento e os seus modos de disseminação. Convém apenas assinalar que a produção, circulação e apropriação dos modelos se dá em campos de poder atravessados por uma miríade de posições de sujeito. Há uma matriz discursiva que perpassa as tecnologias sociais expressas pelos modelos; a disseminação dos modelos se dá de maneira concentrada ou difusa; os modelos

desencadeiam processos interventivos e demonstrativos; as comunidades que formulam os modelos são epistêmicas, políticas e econômicas; os modelos variam entre micromodelos, macromodelos e mesomodelos. Ainda é necessário avançar numa abordagem sócioantropológica dos ―fluxos de modelos‖. É preciso também construir uma abordagem analítica e arqueológica para compreender os ―jogos de hegemonia‖ dentro dos quais os modelos disputam posições de sentido. A ideia de ―jogos de hegemonia‖ pode ser pensada, talvez, pela confluência entre a noção gramsciana de ―luta pela hegemonia‖ e a noção wittgeinsteiniana de ―jogos de linguagem e modos de vida‖. Mas o que está em jogo é grave: são modos de imaginar o mundo com diversas implicações ontológicas. Os modelos podem ser compreendidos a partir de um duplo ponto de vista: 1) por meio de um léxico estruturalista e pós-estruturalista como sendo uma ―gramática‖ da diferença; o modelo como uma ―grade de pensamento‖ que estabelece uma corrente de inteligibilidade com o mundo; o modelo como expressão de um sistema classificatório que opera os cortes diferenciais (estabelece as séries de relações) necessários para a orientação do sentido. 2) por meio de um léxico hermenêutico e Histórico; o modelo como ―imagem de mundo‖; o modelo como expressão de um padrão civilizatório; o modelo enquanto esquema de compreensão significativa; o modelo no horizonte hermenêutico. Os encaminhamentos em três fases de pesquisa: 1) A construção de uma diversidade predicativa do objeto em potencial a partir da elaboração de narrativas sobre figurações sociológicas. Imagens conceituais e figuras esboçadas de uma problemática sociológica. 2) Construção da série de arquivos a serem analisados; seleção de uma base de dados especializada. Tanto os arquivos quanto a base de dados precisam estabelecer correspondências com aquela diversidade predicativa preliminar. 3) Reconstrução da diversidade predicativa à luz do referencial empírico e do referencial teórico Tendo em vista a construção do referencial empírico através da montagem comparada entre uma série de arquivos e uma base de dados, penso em três áreas de convergência: 1) Arquivos de políticas culturais de significado [acervo do Estado, Ministério da Cultura] 2) Arquivos de multilaterais [acervo da UNESCO] 3) Arquivos de gestão econômica dos bens simbólico-culturais [acervo do ramo de

negócios, marketing e gestão empresarial] A futura análise de modelos consistirá num empreendimento interpretativo das normatividades expressas pelos elementos acima discutidos.

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