A dinâmica política das reformas para o mercado na aviação comercial brasileira: 1990-2002 (Tese de doutorado)

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA

A DINÂMICA POLÍTICA DAS REFORMAS PARA O MERCADO NA AVIAÇÃO COMERCIAL BRASILEIRA (1990-2002) Cristiano Fonseca Monteiro

Rio de Janeiro Agosto de 2004

A dinâmica política das reformas para o mercado na aviação comercial brasileira (1990-2002) Cristiano Fonseca Monteiro

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia – PPGSA, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciências Humanas (Sociologia). Orientadoras: Ana Maria Kirschner (PPGSA/IFCS/UFRJ) Eli Roque Diniz (IE/UFRJ)

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A dinâmica política das reformas para o mercado na aviação comercial brasileira (1990-2002) Cristiano Fonseca Monteiro Orientadoras: Ana Maria Kirschner Eli Diniz Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciências Humanas (Sociologia). Aprovada por: ____________________________________ Presidente, Prof.ª Dr. ª Ana Maria Kirschner ____________________________________ Prof.ª Dr. ª Eli Diniz (co-orientadora) ____________________________________ Prof.ª Dr. ª Cecile Raud Mattedi ____________________________________ Prof. Dr. Charles Pessanha ____________________________________ Prof.ª Dr.ª Maria Antonieta Leopoldi ____________________________________ Prof.ª Dr. ª Regina Morel Rio de Janeiro Agosto de 2004 iii

Monteiro, Cristiano Fonseca A dinâmica política das reformas para o mercado na aviação comercial brasileira (1990-2002)/Cristiano Fonseca Monteiro. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS/PPGSA, 2004, ix : 254 f. : il.; 30cm Ana Maria Kirschner e Eli Diniz (orientadoras) Doutorado em Sociologia : Tese : UFRJ/IFCS/PPGSA Referências Bibliográficas: 242-250. 1. aviação comercial brasileira. 2. política e economia. 3. Sociologia Econômica. 4. Sociologia Política. 5. reformas para o mercado. 6. Estado e mercado. I. Kirschner, Ana Maria. II. Diniz, Eli. III. UFRJ/IFCS/PPGSA. IV. A dinâmica política das reformas para o mercado na aviação comercial brasileira (1990-2002)

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RESUMO A DINÂMICA POLÍTICA DAS REFORMAS PARA O MERCADO NA AVIAÇÃO COMERCIAL BRASILEIRA (1990-2002) Cristiano Fonseca Monteiro Orientadoras: Ana Maria Kirschner (PPGSA/IFCS/UFRJ) Eli Diniz (IE/UFRJ) Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciências Humanas (Sociologia). Esta tese analisa as transformações na aviação comercial brasileira entre os anos de 1990 e 2002. Neste período foi realizado um amplo programa de “reformas para o mercado”, tendo como pano de fundo a transição de uma política econômica de perfil nacionaldesenvolvimentista para uma política orientada para a inserção competitiva na nova ordem do capitalismo global. Prevaleceu nesta fase uma visão negativa das relações entre Estado e mercado, sugerindo que a interação entre atores estatais e grupos de interesses seria nociva ao desempenho da economia. Assim, a transição esteve orientada por um esforço no sentido de anular a racionalidade política da dinâmica econômica, em prol do fortalecimento do mercado. Proponho uma abordagem alternativa que privilegie o aspecto qualitativo da relação entre atores estatais e agentes econômicos privados, sugerindo que a forma como esta relação se estrutura é uma variável importante para o sucesso do funcionamento do mercado e da própria implementação das reformas. A análise mostra que a implementação das reformas foi marcada por uma dinâmica política complexa, compreendendo negociação, disputa, conflito e acomodação de interesses, levando a um jogo de resistência e adesão por parte dos principais atores envolvidos. Sugiro que a exclusão dos mecanismos institucionais de interlocução entre atores estatais e não-estatais da dinâmica política contribuiu para que o setor tenha chegado ao final do período analisado em uma situação de crise, tendo o Poder Executivo sido incapaz de avançar na reorganização do aparato regulatório do setor, com a criação da Agência Nacional de Aviação Civil. Palavras-chave: reformas para o mercado; política e economia; aviação comercial brasileira

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ABSTRACT THE POLITICAL DYNAMIC OF MARKET REFORMS IN THE BRAZILIAN AIR TRANSPORT INDUSTRY (1990-2002) Cristiano Fonseca Monteiro Advisors: Ana Maria Kirschner (PPGSA/IFCS/UFRJ) Eli Diniz (IE/UFRJ)

Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciências Humanas (Sociologia). This thesis analyses the changes in the Brazilian air transport industry between the years of 1990 and 2002. During these years, the sector has undergone a comprehensive program of market reforms, having as a background the transition from a nationalist-developmentalist political economy to one focused on the competitive insertion in the new order of the global capitalism. Throughout these years, a negative view of the relationship between state and market has prevailed, suggesting that the connections between state actors and private economic agents would be noxious to economic performance. Thus, the transition has aimed at abolishing the political rationale from the economic dynamic in order to strengthen the market. I propose an alternative approach that emphasizes the qualitative aspect of the relationship between state actors and private economic agents, suggesting that the way this relationship is structured is an important variable to the success of the market functioning and to the implementation of the reforms itself. The analysis demonstrates that the reforms have been marked by a complex political dynamic, comprising negotiation, dispute, conflict and compromise, leading to a movement of resistance and consent by the main actors involved. I suggest that the exclusion of the institutional mechanisms of interaction between state and non-state actors from the political dynamic has contributed to the crisis which the sector has come to, and also to the fact that the Executive branch has been unable to advance in the reorganization of the regulatory apparatus, with the creation of the National Agency of Civil Aviation. Keywords: market reforms; economy and politics; Brazilian air transport industry

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AGRADECIMENTOS Gostaria de agradecer, em primeiro lugar, às minhas orientadoras Ana Maria Kirschner e Eli Diniz, pela disposição em aceitar realizar juntas o que se revelou um difícil trabalho de orientação, cheio de idas e vindas que demarcaram o não menos complicado processo de amadurecimento intelectual. Agradeço a elas também pela sabedoria com que souberam dosar compreensão e rigor, entendendo os momentos de dificuldade sem deixar de cobrar resultados nos momentos decisivos. Em segundo lugar, gostaria de registrar a minha felicidade em ter desfrutado da absolutamente improvável experiência de uma turma de doutorado. Marcelo Carneiro, Elaine Francisco, Marília Campos, Ulisses Rafael e Luciana Carvalho se tornaram amigos com quem partilhei animadas jornadas etílicas, muitos papos sobre nossos dramas pessoais e, também, o diálogo acadêmico. Neste quesito, Marcelo se tornou um importante interlocutor, com quem tenho travado um frutífero intercâmbio de idéias, de bibliografia e de alguns projetos para o futuro em torno de nossas afinidades intelectuais. Meu apreço aos colegas que eventualmente se agregaram a esta turma: Horácio Antunes, Lia Mattos, Ana Cristina Nobre, Carla Pereira e Christina Vital. Agradeço aos professores com quem tive a oportunidade de discutir e amadurecer esta pesquisa em diferentes momentos: Luiz Antônio Machado, Paola Cappellin, José Ricardo Ramalho, Elina Pessanha, Marco Aurélio Santana, Antônio Carlos de Souza Lima e Elisa Reis, que leram ou ouviram minhas várias tentativas de colocar as idéias em ordem, ajudando a apontar inconsistências e propondo novas perspectivas. Agradeço ainda a Maria Alice Costa, que participou como comentadora da Jornada Interna do PPGSA de 2003, tendo oferecido insights que foram muito valiosos na redação final da tese. Agradeço também ao Professor Charles Pessanha e às Professoras Regina Morel, Cecile RaudMattedi e, de forma muito especial, Maria Antonieta Leopoldi, por terem aceitado participar da minha banca de defesa de tese. Quero também dedicar algumas linhas aos amigos e colegas de Fortaleza, onde tive a oportunidade de trabalhar durante três semestres como Professor Substituto, na Universidade Estadual do Ceará. Jociane Nascimento, pela amizade sincera; Cid Carvalho, com quem dividi não só a moradia, mas também muitas idéias, dúvidas sobre o futuro e boas risadas; Geovani Gil, por ter me confidenciado as angústias por que passou durante o doutorado, me mostrando que eu não estava sozinho; e Pedro Arturo Rojas, Beatriz Mattos e Paulo Temóteo, que formaram meu círculo de amigos “estrangeiros”. Aos coordenadores do curso de Ciências Sociais, João Bosco Feitosa e Maria Neuma Lopes, pelo ótimo ambiente de trabalho proporcionado. Agradeço ainda ao Professor Daniel Pinheiro, pela cordialidade com que me tratou desde o primeiro contato, por ocasião da prova de seleção. Ainda no Ceará, não posso deixar de registrar minha imensa gratidão para com algumas pessoas que me deram apoio material e moral numa fase difícil que implicou abandonar algumas facilidades e assumir muitas responsabilidades. João Batista Vargas me recebeu com generosidade, fazendo com que me sentisse parte de sua família. Nonato Pinheiro foi um amigo pronto para ajudar em todos os momentos. Um agradecimento todo vii

especial, cheio de amor e carinho, a Karine, que foi a minha companheira de jornada nesta fase de muitos “aperreios”, mas também de momentos de muita alegria embalados ao som do Chiclete com Banana. De volta ao Rio, renovo meus agradecimentos aos amigos de longa data que fazem parte de uma geração “à procura de um lugar ao sol”: Flávia Braga, Ledílson Lopes, Nalayne Pinto, Graziella Silva, Sérgio Pereira, Ana Paula Pontes, Roberto Bittencourt, Andréa Osório e Ana Paula Silva. Um agradecimento especial a José Fernando Souto Jr., graças a quem pude realizar a parte final da tese com recursos suficientes para pagar não só as despesas inerentes à pesquisa, mas também as contas de casa. Registro mais uma vez minha gratidão para com os amigos do curso de inglês pelo apoio constante: Bob, Fátima, Ângelo e Daniel. Sou grato a Cláudio Toledo, assessor econômico do Sindicato Nacional dos Aeronautas, que me recebeu em diferentes ocasiões para falar sobre “a dinâmica política da aviação comercial”. Ana Lúcia Faria foi extremamente prestativa, facilitando o acesso ao acervo da biblioteca do SNA, onde realizei parte importante dos levantamentos para a tese. Agradeço também aos Srs. George Ermakoff e Mauro Gandra, por terem encontrado tempo em suas agendas para me conceder valiosos depoimentos. Meu amigo Wilfrid Schroeder me recebeu em sua casa, em Brasília, onde passei alguns dias realizando levantamentos. Faço ainda uma escala no Rio Grande do Sul, onde quero registrar meus agradecimentos aos familiares e amigos de Gravataí, que sempre me receberam de braços abertos e com um bom churrasco. Por não falarmos nunca sobre assuntos acadêmicos, com eles pude me divertir, descansar e recarregar as baterias. Gostaria de agradecer a Adriano Monteiro, que me proporcionou o primeiro contato com o mundo acadêmico. Quero registrar também o quanto sou grato a Hélvio Carpim Corrêa, pelo seu profissionalismo, objetividade e dedicação ímpares no exercício da medicina. Last but not least, agradeço aos meus pais, Fernando e Edira, e à minha irmã, Fernanda, pelo suporte constante diante dos percalços dos últimos quatro anos, não permitindo que eles se transformassem em obstáculos intransponíveis. Eles proporcionaram toda sorte de recursos materiais quando eu precisei. Mais do que isso, no entanto, eles me proporcionaram algo que não se pode expressar em palavras. Nos momentos em que eu simplesmente não podia estar lá, eles estiveram presentes, mantendo vivo o laço com a minha filha, Clarissa. A ela, dedico esta tese.

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SUMÁRIO Agradecimentos Lista de siglas Lista de tabelas

vii-viii xi-xii xiii

1. Introdução

1

1.1. A centralidade da dinâmica política

3

1.2. Um panorama da trajetória brasileira

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1.3. Empresa e empresários na virada para o século XXI

15

1.4. As reformas para o mercado na aviação comercial brasileira

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2. Aspectos teóricos

35

2.1. A abordagem da Sociologia Econômica

38

2.2. A abordagem do Institucionalismo Histórico

46

2.3. Alguns casos latino-americanos

49

2.4. Em busca de uma Sociologia Política do mercado

53

2.5. Conclusões

58

3. A construção do mercado de aviação comercial no Brasil (1927-1990)

59

3.1. Os anos “heróicos”

60

3.2. A II Guerra Mundial e a consolidação das instituições da aviação comercial

67

3.3. A virada para a década de 1960: crise e reorganização do setor

75

3.4. A consolidação do modelo regulatório durante os governos militares

83

3.5. A crise dos anos 1980

90

3.6. Conclusões

101

ix

4. A abertura do mercado de aviação comercial no Brasil (1990-1998)

105

4.1. A primeira fase da abertura: o Governo Collor, a revisão do Acordo de Transporte Aéreo Brasil-Estados Unidos e a privatização da Vasp

108

4.2. A dinâmica do setor após o primeiro ciclo da abertura

130

4.3. O primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso: a acentuação da abertura

137

4.4. Conclusões

150

5. Novamente o debate sobre a crise: as arenas, os atores e suas posições (1999-2002)

155

5.1. O Poder Executivo: Monetaristas x Desenvolvimentistas, Militares x Civis

155

5.2. Os empresários e seu órgão de representação

167

5.3. Os sindicatos de trabalhadores

187

5.4. O Legislativo

195

5.5. Conclusões

196

6. As negociações em torno da ANAC

200

6.1. O discurso do Poder Executivo

203

6.2. A visão dos empresários e dos trabalhadores sobre o projeto

209

6.3. O substitutivo ao PL 3846

222

6.4. Conclusões

228

7. Conclusão

230

Referências Bibliográficas

242

ANEXOS 1. A evolução da aviação comercial no Brasil 2. Principais momentos da implementação das reformas 3. Ocupantes dos postos-chave nas entidades entre 1990 e 2002

251 253 255 x

LISTA DE SIGLAS ABAV – Associação Brasileira de Agentes de Viagens ASSEAC – Associação dos Executivos da Aviação Comercial ATAERO – Adicional de Tarifa Aeroportuária ATP – Adicional de Tarifa Portuária BNDE – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica CBA – Código Brasileiro de Aeronáutica CERNAI – Comissão para Estudos Relativos à Navegação Aérea Internacional CINDACTA - Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle do Tráfego Aéreo CIP – Conselho Interministerial de Preços CNI – Confederação Nacional da Indústria COFINS – Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social CONAC (até 1992) – Conferência Nacional de Aviação Civil CONAC (a partir de 2000) – Conselho Nacional de Aviação Civil CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito CPMF – Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira CTA – Centro Tecnológico Aeronáutico CUT – Central Única dos Trabalhadores DAC – Departamento de Aviação Civil DEPV – Departamento de Eletrônica e Proteção ao Vôo FAB – Força Aérea Brasileira FIESP – Federação das Indústrias do Estado de São Paulo FIRJAN – Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro FMI – Fundo Monetário Internacional FNAA – Federação Nacional de Aeroviários e Aeronautas FNTTA – Federação Nacional dos Trabalhadores em Transporte Aéreo IATA – International Air Transport Association INCAER – Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica INFRAERO – Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuária INSS – Instituto Nacional de Seguridade Social IEDI – Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial IGP-DI – Índice Geral de Preços – Disponibilidade Interna ICMS – Imposto sobre Circulação de Mercadoria e Serviços IOF – Imposto sobre Operações Financeiras IPVA – Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores ISS – Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza MF – Ministério da Fazenda MME – Ministério das Minas e Energia OACI – Organização de Aviação Civil Internacional PDSAC – Plano de Desenvolvimento do Sistema de Aviação Civil PDT – Partido Democrático Trabalhista xi

PFL – Partido da Frente Liberal PIS – Programa de Integração Social PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro PNBE – Pensamento Nacional das Bases Empresariais PPB – Partido Progressista Brasileiro Procon – Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor PSDB – Partido da Social-Democracia Brasileira PT – Partido dos Trabalhadores PTB – Partido Trabalhista Brasileiro QAV – Querosene de Aviação RENACI – Reunião Nacional de Aviação Civil RIN – Rede de Integração Nacional Seae – Secretaria de Acompanhamento Econômico Seori – Secretaria de Organização Institucional do Ministério da Defesa SDE – Secretaria de Direito Econômico SEAP – Secretaria de Abastecimento e Preços SITAR – Sistema Integrado de Transporte Aéreo Regional SNA – Sindicato Nacional dos Aeronautas SNEA – Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias SNETA – Sindicato Nacional das Empresas de Táxi Aéreo SUMOC – Superintendência de Moeda e Crédito TST – Tribunal Superior do Trabalho VDC – Vôo Direto ao Centro VTD – Vôos de Turismo Doméstico

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1. Resultados operacionais, linhas domésticas e internacionais. 1967-1978

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Tabela 2. Número de funcionários na indústria. 1968-1978

23

Tabela 3. Lucratividade da indústria. 1981-1989

24

Tabela 4. Evolução da inflação, custo do combustível e tarifas

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Tabela 5. Número de funcionários da indústria. 1980-1990

25

Tabela 6. Lucratividade da indústria. 1990-2002

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Tabela 7. Número de funcionários da indústria. 1990-2002

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Tabela 8. Número de passageiros transportados. 1938-1953 (anos selecionados)

73

Tabela 9. Subvenções fornecidas pelo Governo para as empresas aéreas para reequipamento. 1957-1961

77

Tabela 10. Variação do número de cidades que recebem serviço aéreo comercial e número de empresas transportadoras. Anos escolhidos entre 1930 a 1977

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xiii

1. Introdução

Esta tese desenvolve uma abordagem sociológica sobre as transformações ocorridas na aviação comercial brasileira entre os anos de 1990 e 2002, com ênfase no segmento dedicado ao transporte de passageiros. Neste período, o setor passou por transformações no seu marco regulatório e na estrutura do seu mercado, tendo como pano de fundo a transição de uma política econômica de perfil nacionaldesenvolvimentista para uma política orientada para a inserção competitiva na dinâmica do capitalismo global. Ao contrário das interpretações que procuram reduzir esta transição a um processo “inexorável”, marcado pela preeminência da racionalidade econômica sobre a racionalidade política, pretendo mostrar que no caso da aviação comercial, esta transição foi marcada em todo o seu desenvolvimento pela racionalidade política. E que, ainda em contraposição às interpretações de viés economicista, a dinâmica política permanece decisiva para explicar o sucesso (ou fracasso) do novo paradigma econômico. Este paradigma foi adotado pelo Brasil ao longo dos anos 90, quando ganhou ascendência na agenda política um conjunto de medidas que ficaram conhecidas como “reformas neoliberais” ou “reformas para o mercado”, compreendendo uma agenda de estabilização macroeconômica (controle da inflação, disciplina fiscal) e de liberalização da atividade econômica, através de abertura comercial, privatização, desregulamentação e, finalmente, re-regulamentação da atividade econômica dentro de novos parâmetros de competitividade internacional. Este modelo veio substituir o padrão estadocêntrico que caracterizou todo um ciclo de modernização da economia brasileira começando com o governo Vargas até os primeiros anos da redemocratização. Não obstante o tamanho e a importância das transformações havidas desde os anos 1930, a sociedade brasileira chegou aos anos 1980 ainda marcada por imensas desigualdades econômicas e traumatizada pelos sucessivos regimes de exceção, particularmente pela experiência da ditadura militar. Ao mesmo tempo em que o modelo do nacional-desenvolvimentismo se viu deslegitimado por não ter resolvido o problema da exclusão social, em sua versão derradeira, com os governos militares, criou

1

uma espécie de desconfiança em relação às instituições do Estado, que passaram a ser percebidas como inerentemente corrompidas, seja pela arbitrariedade e violência dos instrumentos de repressão, seja pelos mecanismos clientelistas da relação entre o Estado e os demais atores sociais. A crescente inflação, o alto endividamento, as desvalorizações cambiais e a defasagem tecnológica completavam o cenário da crise dos anos 1980. Ao mesmo tempo em que as bases do nacional-desenvolvimentismo perdem legitimidade, ganhou força no cenário internacional o discurso da globalização, segundo o qual o contexto nacional – no âmbito da política, da economia, e também da cultura – estaria perdendo espaço para uma verdadeira integração global, lastreada pelas novas tecnologias de informação e ideologicamente sustentada pelo fim da polaridade entre os blocos capitalista e socialista. Com o fim desta polaridade, estaríamos assistindo ao virtual fim das ideologias e da história – em última instância, ao fim da política. Como teremos ocasião de observar na seção seguinte, a adoção das chamadas políticas neoliberais, e especialmente a desregulamentação da economia, obedeceu a uma certa seletividade, tendo impactado de diferentes formas os diversos setores da economia. É a partir desta percepção que este trabalho ganha sentido, uma vez que seu principal recorte está no enfoque dado a um setor específico inserido na complexa economia brasileira. Penso que é possível confirmar, no caso da aviação comercial, o aludido padrão de seletividade, o que poderá ser evidenciado pelo timing e pelos caminhos, por vezes ziguezagueantes, com que as mudanças foram se implementando. Penso, da mesma forma, ser possível demonstrar a permanência da dimensão política, que de maneira nenhuma estaria anulada, ao contrário do que afirmam os discursos “fundamentalistas” sobre a globalização1. Em resumo, esta tese tem como foco a implementação das reformas para o mercado na aviação comercial, mais especificamente, a desregulamentação e re-regulamentação do setor. Pretendo evidenciar o que estou chamando de dinâmica política através da análise das disputas travadas entre atores do poder público e atores privados ligados à atividade. Considero, quanto ao significado prático que este trabalho pode assumir, que é no sentido desta dinâmica que pode residir o sucesso, não apenas de implementar as

1

Para uma análise pormenorizada do que seriam estes argumentos, ver FERRER (1997).

2

reformas tout court, mas de fazer frente aos desafios, estes inescapáveis, trazidos pela globalização.

1.1. A centralidade da dinâmica política Em função do grau de amadurecimento da reflexão sobre o tema, parece desnecessário uma incursão mais longa sobre os determinantes que tornaram as reformas neoliberais hegemônicas no Brasil e no mundo no final do século XX2. Da mesma forma, a literatura parece já ter dado conta satisfatoriamente da crítica às aludidas interpretações fundamentalistas da globalização, da revelação de seu caráter ideológico e da explicitação dos efeitos negativos que a implementação das reformas teve para diversos segmentos sociais3. Uma breve revisão de algumas contribuições pode servir, no entanto, para balizar a interpretação a ser desenvolvida. O ponto de partida destas contribuições é a articulação dos planos interno e externo como dimensões que se complementam na definição dos rumos que podem tomar as reformas para o mercado. Reconhece-se, em primeiro lugar, a existência de condicionamentos, senão constrangimentos, advindos do novo contexto de globalização. A fragilização dos países endividados em relação às Instituições Financeiras Internacionais criou, para estas, a oportunidade de impor uma série de medidas – as reformas em questão – como contrapartida da manutenção das linhas de crédito. Profissionais ligados a estas instituições, com circulação nos meios financeiros e nas grandes corporações passaram a ser recrutados para os postos-chave de governo, visando, dentro da lógica de fragilização supra-citada, reconquistar legitimidade perante os organismos internacionais de financiamento. Abre-se espaço, a partir daí, para o fortalecimento deste novo ideário, onde a inserção externa ganha precedência sobre as antigas prioridades que marcaram a fase da substituição de importações (DINIZ 2000: 17-30).

2

Ver, a respeito, SALAMA e VALIER 1991; SALLUM JR. 1998; CANO 1999; GWYNE 1999. Com maior ou menor ênfase em cada um destes aspectos, todos os seguintes trabalhos podem ser citados como referências: BATISTA JR. 1997; BORON 1998; FERRER 1997; FLIGSTEIN 1997a e 1997b; GWYNE e KAY 1999 e LIMOEIRO-CARDOSO 2000. 3

3

Ao contrário do que preconizam as abordagens fundamentalistas, mesmo neste contexto de perda relativa de autonomia por parte dos Estados nacionais, o plano interno permanece plenamente relevante para a análise. Se há novidade no atual processo de globalização, está em que a relação entre plano interno e externo se complexificam, implicando a busca de novas abordagens. Desta forma, as restrições externas quanto à possibilidade de ação não representam o sepultamento do plano interno como unidade relevante de análise, mas sim um desafio intelectual e prático a ser enfrentado (IANNI 1996; VELASCO E CRUZ 1998). Um segundo ponto a ser destacado diz respeito à superação do economicismo próprio das análises fundamentalistas. A anulação dos espaços nacionais tratada anteriormente teria como corolário, nos termos da ideologia da globalização, a preeminência da racionalidade econômica sobre as demais. A política, por sua vez, ficaria subsumida aos imperativos do mercado, sendo a reprodução do capital o elemento dinamizador legítimo da sociedade global, que ficaria esvaziada de qualquer determinação de ordem extra-econômica. A este respeito, Diniz lembra que “a estruturação da nova ordem mundial não pode ser dissociada da complexa trama de interesses que lhe dá sustentabilidade” (DINIZ 2000: 18). Sob ponto de vista semelhante, Velasco e Cruz caracteriza como teleológica a maneira como as reformas são concebidas pelas representações mais simplificadoras, pressupondo uma convergência de todas as trajetórias nacionais a um modelo idealizado de economia de mercado. Ao contrário, trata-se de um processo instituído pela disputa entre os atores envolvidos, de forma que as mudanças advindas com as reformas não podem ter uma natureza unilinear. Outrossim,

“na medida em que colocamos no centro da análise as atividades dos atores estratégicos, seus recursos de poder, suas escolhas, somos levados a reconhecer que esse processo de reestruturação é essencialmente aberto, indeterminado, movido como ele é por projetos contraditórios e pelo choque de interesses incompatíveis. Nesse sentido, temos de questionar a própria idéia de um ‘estado final’ quando aplicada às reformas econômicas nos países em desenvolvimento.” (VELASCO E CRUZ 1998: 23)

4

A dinâmica do sistema global é dada, neste sentido, por um constante processo de negociação entre as instituições financeiras e os governos locais, pela negociação entre países na formação de blocos comerciais, e ainda pela pressão do capital financeiro e das grandes corporações para que os governos criem ambientes mais propícios à reprodução do capital. O fato destas relações serem assimétricas, por sua vez, em nada reduz a responsabilidade dos atores estratégicos quanto às escolhas feitas, escolhas estas que podem conduzir o sentido das mudanças a diferentes caminhos. O que, nos termos aqui propostos, significa afirmar a importância da dimensão política como variável decisiva no processo de ajuste à nova ordem4. Sob este prisma, o Estado emerge não mais como unidade de análise de um plano

estrutural,

mas

sim

como

um

dos

atores

estratégicos

num

plano

5

multidimensional . Desta forma, o governo assume um novo papel: não se trata simplesmente de um mero agenciador de um conjunto de medidas pré-estabelecidas que, de uma forma ou de outra, teriam que vigorar num dado espaço territorial, sob pena de exclusão total do sistema mundial. O governo tem sua responsabilidade aumentada no que diz respeito a uma gama de escolhas as quais, estas sim, definirão o modo de inserção no novo cenário internacional. Quanto às prioridades da ação governamental, Diniz salienta que a criação e manutenção de um ambiente de estabilidade macroeconômica não é garantia de estabilidade plena para os países inseridos no sistema global, ao contrário do que sugere a ortodoxia neoliberal. Este sistema tem se caracterizado crescentemente pela incerteza6, onde não há como se antecipar o custo das ações, o que seria o fator mais limitador da soberania de todos os Estados nacionais. No entanto, seguindo o raciocínio, a autora lembra que os efeitos da instabilidade internacional se potencializam quanto maior for a

4

Citando novamente Diniz: “Não há dúvida de que a dimensão econômica – via transnacionalização da produção e do comércio mundiais, expansão e aceleração dos fluxos financeiros internacionais, rapidez e intensidade dos avanços tecnológicos puxados pelos setores das telecomunicações e da informática – constitui um aspecto crucial, e certamente o mais aparente, da globalização. Entretanto, embora menos visível, a dimensão política não é menos importante” (DINIZ 2000: 18). 5 Ver, a respeito, a coletânea organizada por EVANS et al. (1985). Nesta, propõe-se a retomada do Estado como objeto de análise inserido numa perspectiva multidimensional que inclui as especificidades quanto à estrutura interna do Estado, a sua relação com atores sociais no plano nacional e sua inserção no contexto internacional. 6 Os atentados de 11 de setembro são um exemplo mais do que eloqüente desta assertiva.

5

vulnerabilidade do país em questão. Neste sentido, a busca de uma estratégia própria seria o caminho necessário para se fugir de uma lógica imediatista na qual as ações internas seriam meras respostas momentâneas às oscilações externas. A conquista da governabilidade em um ambiente crescentemente marcado pelo seu oposto, destarte, passa a ganhar novo sentido, qual seja, “(a) capacidade de alcançar o equilíbrio entre ajuste interno e inserção internacional” (DINIZ 2000: 23). Retomando o argumento sobre a centralidade dos Estados nacionais, argumenta a autora:

“A recusa a exercer um papel mais ativo e independente tende a agravar posições de desvantagem relativa. Nessa linha, mais uma vez, deve-se destacar a centralidade do papel dos Estados nacionais, tanto em relação ao enfrentamento de seus desafios internos, quanto no que se refere aos processos de coordenação de políticas de regulação global da economia (...). Portanto, a globalização não exclui, senão que reafirma, a política do interesse nacional; não no sentido de um nacionalismo autárquico ou xenófobo, mas enquanto capacidade de avaliação autônoma de interesses estratégicos, tendo em visa formas alternativas de inserção externa.” (DINIZ 2000: 23-24) No caso específico da América Latina, a crítica à negação da política ganha maior relevância à luz do contexto histórico em que as reformas para o mercado entraram em pauta. Foi no contexto da redemocratização que a maior parte dos países latino-americanos se viram diante da imperiosidade de ajustar seus modelos econômicos à nova dinâmica do sistema global7. A relação entre a consolidação da democracia e a implementação da agenda neoliberal tem sido de tensão, senão de incompatibilidade, podendo ser considerada um dos principais desafios a ser enfrentados pelos países da região na virada do milênio.

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As principais exceções ficam por conta do Chile e da Argentina, que iniciaram suas reformas ainda sob a vigência dos governos militares. Vale destacar que este timing diferenciado reforça o argumento sobre a permanência da relevância do espaço nacional, uma vez que ambos os países implementaram suas reformas nos anos 1970, bem antes do desenlace de eventos tidos pela versão ideológica da globalização como decisivos para sua plena consolidação, tais como o fim da URSS e a própria crise da dívida dos países latino-americanos, ambos se dando na década posterior (Cf. VELASCO E CRUZ 1998: 7-8).

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Eduardo Gamarra (1994) sugere que os países latino-americanos produziram soluções híbridas para fazer face a este desafio, articulando velhas estratégias de governo à implementação de medidas modernizadoras da economia. Propondo uma distinção geracional para definir os caminhos seguidos pelos governos pós-ditadura no enfrentamento das questões citadas acima, Gamarra salienta que a primeira geração de governantes dedicados à reforma foi, em regra, incapaz de agregar apoio político suficiente para dar conta da agenda econômica, tendo sucumbido às pressões dos grupos emergentes para reduzir as resistências às medidas, em geral paliativas, adotadas para fazer frente à crise. Frustrando as expectativas de amplos setores sociais, o legado desta primeira geração foi uma crise de governabilidade, ante o agravamento da questão social, na qual se inclui a escalada inflacionária. A partir da segunda geração, em meio a um cenário de crise generalizada, a implementação da agenda ganhou contornos de inevitabilidade. É sob este ponto de vista que se resgataram velhas estratégias de ação governamental que se articularam às políticas modernizantes de ajuste. Por um lado, a formulação das políticas governamentais retomou o padrão excludente e insulado que caracterizara os governos militares. Por outro, retomaram-se os velhos mecanismos de patronagem na formação das coalizões de sustentação política do governo. O bom exercício do governo dependeria, assim, da capacidade de tecer novas redes de patronagem em substituição às antigas, visando atualizar a base de apoio governamental. Para Gamarra, no contexto das reformas para o mercado prevaleceu uma “visão administrativa da democracia”, consistindo na “administração efetiva e eficiente da economia” e pressupondo “um Executivo forte cercado por um grupo de especialistas ‘economicamente corretos’ que acreditam que as respostas para os problemas da região serão resolvidos pela aplicação correta e contínua da terapia neoliberal” (GAMARRA 1994: 11). O autor lembra que esta visão se contrapõe à visão clássica da democracia na qual, reconhecida a pluralidade de interesses presentes na sociedade, cabe construir mecanismos de interlocução e busca de consenso entre estes interesses, assim como deste conjunto com os centros de poder. Qualquer perspectiva quanto à natureza e a direção do processo de democratização dos países latino-americanos

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estaria, deste modo, intimamente ligada à maneira como se deu a articulação entre os atores políticos e o Estado na formulação das políticas governamentais.

1.2. Um panorama da trajetória brasileira O caso brasileiro não constituiu exceção às tendências delineadas por Gamarra. Aqui as reformas neoliberais representaram ruptura com um passado bem identificado, a “Era Vargas”. Ao longo de 50 anos, entre ciclos democráticos e autoritários, vigorou no Brasil uma concepção de desenvolvimento onde o Estado teve papel central como regulador, promotor e em muitos casos gestor direto de importantes setores da economia. O desempenho deste papel se fez articulado a um padrão claro de formulação de políticas, especialmente no campo da economia, marcado pelo alto grau de concentração decisória no Executivo. Uma das implicações deste padrão, como salienta Diniz, é ter levado à “consolidação de uma modalidade de presidencialismo dotado de amplas

prerrogativas,

consagrando

o

desequilíbrio

entre

um

Executivo

sobredimensionado e um Legislativo crescentemente esvaziado de seus poderes” (DINIZ 2000: 39), além de uma sistemática de representação de interesses incapaz de se expressar pela via dos partidos políticos, reforçando o próprio esvaziamento do Congresso. A inserção dos agentes econômicos no sistema político oficial pela via do corporativismo de Estado, trazendo-os para o interior do Executivo através da participação em conselhos e comissões de caráter setorial ligadas diretamente aos núcleos de poder, influiu nas estratégias de intervenção e na visão destes sobre a sua relação com o próprio Estado e com a sociedade. Enquanto os trabalhadores ficaram excluídos dos canais oficiais de interlocução sobre os principais temas relativos à política econômica, o empresariado emerge como o ator que teve maior espaço de ação no que diz respeito à dinâmica institucional de formulação e deliberação sobre este tema, de modo que uma consideração das suas estratégias é fundamental para o entendimento da lógica maior que este trabalho pretende abordar. Dentre as estratégias do empresariado brasileiro ao longo do século XX8, devese destacar em primeiro lugar o desenvolvimento de um sistema dual de organização, 8

Vale acrescentar que a ênfase nas estratégias empresariais é uma contribuição de trabalhos os quais procuraram demonstrar que, a despeito de não ter sido a força hegemônica nas sucessivas fases de

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com a criação de associações paralelas ao sistema corporativo oficial. No caso do empresariado industrial, verificou-se historicamente o crescimento do peso político de determinadas associações e de algumas federações regionais, com destaque para a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo – FIESP, em relação à entidade que oficialmente deveria representar o conjunto do setor, a Confederação Nacional da Indústria – CNI. Em segundo lugar, de modo complementar à primeira tendência, podese falar de uma pulverização dos interesses, tendo prevalecido estratégias de acesso direto aos núcleos de poder por parte dos empresários, com a apresentação de demandas particularistas, privilegiando questões regionais, setoriais ou até mesmo de empresas específicas. Neste sentido, ganha relevo o virtual abandono de estratégias coletivas de atuação, aí incluída a formação de uma entidade abrangente capaz de agregar os interesses dos diferentes setores9. A ausência dos trabalhadores nas principais instâncias governamentais de debate e deliberação ligadas à política econômica apenas acentuou este traço, sintetizado por Diniz como segue:

“Historicamente, o empresariado brasileiro revelou, ao longo das diferentes fases da industrialização substitutiva de importações, grande dificuldade para formular plataformas de maior amplitude capazes de transcender seus interesses mais específicos. Configurou-se como um ator político destituído de percepção de longo alcance e de visão de conjunto, o que teve, certamente, alguma relação com o fato de ter surgido e amadurecido sob regimes autoritários. (…) Desenvolvendo uma visão restrita e particularista, bem como uma prática de maximização de ganhos imediatos, os empresários revelaram fraca disponibilidade e reduzida abertura para o enfrentamento das questões sociais ligadas à redução da desigualdade na distribuição da riqueza e no acesso aos benefícios gerados pelo desenvolvimento econômico. Sempre que vinham à tona, sob o impacto de movimentos de base popular, as reformas sociais seriam percebidas predominantemente sob a ótica do aumento dos custos das atividades empresariais e, portanto, como mal a ser evitado ou ameaça a ser debelada.” (DINIZ 2000: 82) No contexto da redemocratização, quando a pauta político-econômica se deslocava da ênfase no mercado interno para a inserção do país no processo de

modernização econômica do Brasil desde a década de 30, o empresariado não perdeu o estatuto de ator político, tendo influenciado o sentido que assumiu o processo. Ver, a respeito, DINIZ (1978) e LEOPOLDI (2000). Outro trabalho que explora a relação entre Estado e agentes econômicos é o de KIRSCHNER (1995), abordando o caso do setor do trigo. 9 Sobre este ponto, ver também SCHNEIDER (1995).

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globalização, o estilo particularista de ação característico do empresariado não lhe permitiu estar à frente de um projeto mais amplo para a sociedade brasileira. Ao contrário, nos primeiros anos da Nova República a adesão do empresariado a uma

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ideologia liberalizante contrastou com uma postura política marcada pelo particularismo, persistindo as demandas por protecionismo e políticas de incentivo setorial10. Como é típico de um período de transição, também por parte das elites estatais prevalecia a falta de acordo quanto aos rumos a ser tomados do ponto de vista de um novo projeto de desenvolvimento. A percepção do esgotamento do modelo de substituição de importações, somada à imperiosidade de um novo padrão que revertesse a tendência concentradora e elitista seguida durante os governos militares, colocou ao governo Sarney o desafio de conciliar metas típicas da ortodoxia liberal – controle da inflação, equilíbrio orçamentário – com demandas próprias da consolidação democrática, tais como crescimento econômico e distribuição de renda. A Constituição de 1988 representou um dos marcos deste processo, na medida em que incorporou uma série de demandas populares no campo do direito trabalhista, civil e político ao lado de itens próprios da agenda neoliberal. Desta forma, a ação estatal se caracterizou por um estilo contraditório, ora apostando em estratégias tais como os chamados “pactos sociais”, ora orientando-se para o reforço do insulamento burocrático. Esta última foi, porém, a tendência prevalecente à medida que os sucessivos planos de controle da inflação se revelavam ineficazes a médio prazo. Assim, já no governo Sarney, a pauta mais abrangente da redistribuição de renda e a estratégia mais específica dos pactos sociais cederam espaço para uma crescente ênfase no controle inflacionário e no fortalecimento da tecnocracia como espaço privilegiado de formulação das políticas econômicas. Tendência esta que se consolidou, junto com a clara opção pelas reformas para o mercado, a partir da eleição de Fernando Collor em 1989 (DINIZ 1997: 113-138). Em contextos de acentuação da crise econômica nos governos de Fernando Collor e de Itamar Franco, chegou-se a tentar a retomada de estratégias de concertação, com destaque para as Câmaras Setorias11. No entanto, especialmente a partir da eleição 10 A análise de CANOSA (1999) sobre a Firjan e a de MINELLA (1994) sobre os banqueiros ilustram este ponto. 11 Dentre elas destacou-se a do setor automotivo, cujas análises mostram que este novo mecanismo institucional teve o mérito de alargar e publicizar o espaço de negociação entre Estado e sociedade, constituindo-se numa experiência bem sucedida de formulação de política industrial, com resultados positivos quanto à manutenção do emprego, diversificação da oferta com ênfase nos novos carros populares e aumento da arrecadação, graças ao aumento das vendas (Cf. DINIZ 1997: 139-174). ARBIX (1996) discute a câmara setorial do setor automotivo no contexto maior da flexibilização das relações de

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de Fernando Henrique em 1994, a orientação governamental estreitou-se no sentido da ortodoxia neoliberal. A exclusão de espaços de interlocução entre burocracia estatal e grupos sociais em prol de um estilo tecnocrático de gestão se enquadra numa concepção maior da relação entre a política e a economia na qual a primeira seria inerentemente corrompedora da segunda. Assim, a pretensão da ortodoxia neoliberal era de que, com a ênfase no ajuste macroestrutural – controle da inflação, controle das contas públicas e demais medidas correlatas – estar-se-ia produzindo benefícios universalmente partilhados, uma vez que estas medidas dariam condições ao fortalecimento do mercado12. A partir daí, caberia aos agentes econômicos buscar formas de melhor se inserir no novo ambiente competitivo e internacionalizado que caracterizaria a economia brasileira da década de 1990, sendo este o novo caminho do crescimento econômico em tempos de globalização. De fato, institucionalmente operou-se o desmonte dos mecanismos tradicionais de interlocução entre Estado e interesses privados – desde as antigas comissões, muitas já extintas no governo Collor, até as estratégias mais recentes de concertação do tipo das Câmaras Setoriais, abandonadas a partir do primeiro mandato de Fernando Henrique. Pressupondo um tipo de ação governamental reduzida à manutenção de um ambiente macroeconômico de estabilidade financeira e austeridade fiscal, a estratégia do governo tendeu para a insularização, tendo como objetivo isolar as principais instâncias

trabalho, salientando a importância deste arranjo institucional para que a referida flexibilização não resvalasse para uma mera precarização do trabalho. Para uma análise pormenorizada da trajetória da câmara do setor automotivo, ver ainda ARBIX (1997) 12 Num artigo publicado na revista Veja, um dos principais representantes da ortodoxia neoliberal no Brasil ilustrou essa posição. Segundo o autor, com a redemocratização, instaurou-se no Brasil uma dinâmica de “clientelismo de massa”, onde todos os grupos vieram reivindicar ao Estado participação no que historicamente se consolidou como uma “sociedade do privilégio”. Tal dinâmica, no entanto, se mostrou inviável em função do Estado ter assumido, para poder sustentá-la, despesas além de sua capacidade financeira. De forma que “O nobre propósito de ‘incluir os excluídos’ a qualquer custo acabou corrompido pelo fato de que o dinheiro advinha da tributação dos próprios ‘excluídos’ através da inflação. É o Espírito (da Constituição) de 1988.” A seqüência sintetiza o típico diagnóstico e a terapia da ortodoxia: “Todos têm direito, mas simplesmente não é possível conceder tantos Privilégios a tanta gente; não vamos acabar com a Sociedade do Privilégio multiplicando Direitos e Privilégios de forma irreal. Com efeito, quem vai terminar com a Sociedade do Privilégio é a Economia de Mercado, e não é outro o motivo pelo qual a Estabilização, a Abertura, a Desregulamentação e a Privatização geraram tantas tensões.” E completa, revelando a filosofia subjacente à concepção neoliberal: “A Economia de Mercado é subversiva numa Sociedade do Privilégio, pois propugna a competição, a impessoalidade e a Meritocracia e dispensa, tanto quanto possível, a interveniência de um Estado cheio de vícios” (Franco, Gustavo. “A sociedade do privilégio”, Veja, 11/9/2002).

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decisórias da interferência dos interesses privados. Isto, por sua vez, acabou por reproduzir o padrão típico do modelo de desenvolvimento anterior, concentrado no Poder Executivo. A partir de então, especialmente no que diz respeito à gestão da economia, o que prevaleceu foi um estilo tecnocrático de gestão, baseado numa pretensa supremacia da abordagem técnica e da racionalidade econômica em relação à racionalidade política, o que “conduziria a uma visão asséptica da administração pública, percebida como campo de competência exclusiva de uma elite acima do questionamento da sociedade ou da classe política.” (DINIZ 2000: 39). A resultante deste processo, no entanto, não aponta necessariamente no sentido da maior eficácia por parte das ações do governo, ao mesmo tempo em que não contribui para o aprimoramento do processo democrático. Questiona-se, por outro lado, até que ponto o estilo tecnocrático teria sido de fato capaz de barrar os mecanismos informais de acesso aos núcleos de poder.13 Por outro lado, autores como Boschi e Lima (2001) argumentam que as reformas neoliberais não eliminaram a lógica de intervenção do Estado na economia, senão que alteram os termos desta intervenção, que passa a se subordinar ao tripé “estabilização, privatização e abertura comercial”. Consistente com os argumentos favoráveis à relevância da lógica política, os autores argumentam:

“O impacto das reformas operadas ao longo dos anos 90 no Brasil é, por vezes, subestimado por avaliações apressadas que tendem a sugerir uma substituição do Estado pelo mercado em função do direcionamento da economia naquele sentido. Embora possa ter ocorrido um enfraquecimento do Estado, sobretudo em termos de sua capacidade de implementação de políticas sociais, não é fato que as reformas orientadas para o mercado tenham destituído o Estado de sua capacidade de intervenção. Se, em outros contextos, essa capacidade ficou sobremaneira comnprometida, no caso brasileiro é surpreendente a recomposição que se opera, tanto no plano das iniciativas estatais, quanto no da resposta dos atores privados em termos de readaptação e reconstrução da representação dos interesses privados. Trata-se de mudanças estruturais de envergadura que, em um espaço bastante curto de tempo, levaram à redefinição do ambiente institucional” (BOSCHI e LIMA 2002: 210)

13

Ver, a respeito, COSTA FILHO (1997).

13

O intervencionismo estatal se traduziria, sob os imperativos da abertura e da estabilização econômica, na política regulatória, a qual “adquire enorme centralidade como elemento propulsor na redefinição das relações entre os atores e, portanto, na delimitação do espaço público da nova ordem(...)” (BOSCHI e LIMA 2002: 212). É neste contexto que surgem as agências reguladoras como resposta institucional encontrada para mediar a relação público/privado. Do ponto de vista da democratização e das relações entre poderes no Brasil, os autores argumentam que as agências representariam um retrocesso em relação à trajetória percorrida no Brasil desde o início do corporativismo até os anos 1980. Em primeiro lugar, porque o corporativismo teria sido, a despeito de sua origem autoritária, um modelo baseado na representação de interesses, ou seja, um modelo onde os atores tinham algum espaço para a vocalização de suas demandas. Além disso, ao chegar no final de seu ciclo, o sistema político brasileiro teria alcançado um expressivo grau de amadurecimento democrático, com a organização dos atores não-estatais, a institucionalização da competição política através das eleições e o fortalecimento do Congresso, (que) se destaca “como uma esfera progressivamente dotada de identidade própria e de protagonismo político, não somente ensejados pela dinâmica da representação política, mas também em virtude da ampliação de seu espaço institucional no processo decisório.” (BOSCHI e LIMA 2002: 208) Ao excluir a representação como forma de relacionamento entre agentes econômicos e poder público, a política regulatória baseada nas agências pressuporiam a redução da dinâmica política à lógica da “eficiência”, medida por resultados econômicos. Embora tenha reforçado seu protagonismo político enquanto arena para onde convergiriam os grupos de interesse no novo contexto, o Congresso teria seu poder reduzido vis-à-vis o Executivo, limitando-se aos rituais de aprovação da composição de seus quadros dirigentes – indicados por este. Por outro lado, a pretensa autonomia das agências reguladoras seria limitada na prática, dada a tendência a privilegiar o interesse dos investidores e a ação dos lobbies. Neste sentido, as agências estariam introduzindo uma nova modalidade de corporativismo opondo investidores e consumidores, onde o Executivo reassumiria ascendência sobre o Legislativo, e a democratização da atividade

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estatal estaria limitada uma vez que os dois grupos não se fariam representar de forma equitativa, com ampla vantagem para o capital. Assim,

os

agentes

econômicos

nacionais

encontrariam

um

ambiente

absolutamente desafiador ao longo dos anos 1990. A próxima seção é dedicada a uma análise das estratégias destes atores – na dinâmica política e na dinâmica econômica – diante dos inúmeros desafios apresentados pelo novo contexto.

1.3. Empresas e empresários na virada para o século XXI Se do ponto de vista da atuação política, o empresariado brasileiro entrou na década de 90 ainda marcado pelo padrão particularista de ação, pesquisas recentes mostram que ele chega na virada do milênio tendo acumulado experiências que apontam para um outro direcionamento. Já entre fins dos anos 80 e início dos anos 90, ganharam destaque no cenário político nacional entidades empresariais não corporativas, voltadas para o tratamento de questões transetoriais e eventualmente, pretendendo formular e propor projetos de mais longo alcance para a sociedade brasileira. Dentre elas, destacam-se o Pensamento Nacional das Bases Empresariais – PNBE, o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial – IEDI e os Institutos Liberais (DINIZ E BOSCHI 1993). Apesar do caráter abrangente de suas propostas, no entanto, estas experiências permaneceram limitadas em termos de alcance político. Eduardo Gomes e Fabrícia Guimarães (1999), por exemplo, dão conta de que a ação política mais intensa por parte do PNBE perdeu fôlego com a chegada de Fernando Henrique à presidência, uma vez que este governo teria levado ao poder a maior parte das bandeiras da entidade (GOMES e GUIMARÃES 1999: 78). Assim, Diniz e Boschi questionam a pertinência de se falar sobre um “novo empresariado” naquele contexto (DINIZ e BOSCHI 1993: 129-130). Os mesmos autores vão perceber tendências sensivelmente distintas em trabalho mais recente, retratando uma nova configuração política do empresariado (DINIZ e BOSCHI 2002). Os autores realizaram uma série de entrevistas com lideranças das principais entidades de classe – organizações corporativas e associações setoriais de caráter voluntário – e com dirigentes das novas associações de caráter não corporativo.

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O estudo enfocou a percepção destes atores sobre a agenda das reformas para o mercado, a avaliação da estrutura de representação de interesses e a percepção da sua articulação com o Estado. Quanto ao primeiro ponto, as opiniões variaram do apoio às reformas à crítica em relação à falta de um projeto de desenvolvimento nacional – destacando-se aí a inexistência de um projeto para o setor produtivo brasileiro. Em relação à representação de interesses, confirma-se a perda de visibilidade de entidades como o PNBE e o IEDI, enquanto entidades do sistema corporativo – como a CNI e a FIESP – passam por um processo de modernização. Há ainda novos movimentos como a Ação Empresarial, pretendendo uma abrangência maior em termos dos setores econômicos, e tendo como alvo da atuação o Congresso Nacional. Na sua relação com o Estado, deve-se mencionar a reorientação da atuação do empresariado para o Legislativo, dado o foco, por parte do Poder Executivo, no cenário transnacional e no já mencionado ajuste macroestrutural. Além da maior predisposição dos empresários a concorrer a postos eleitorais, ganhou relevo a pressão política via lobbies, atividade que veio a ser crescentemente percebida como legítima (ainda que não regulamentada). Ao contrário da visão tradicional sobre os lobbies como essencialmente corruptos, os entrevistados enfatizaram a importância deste mecanismo no sentido de subsidiar os parlamentares com informações técnicas sobre os temas tratados14. A reorientação da ação política do empresariado para o Legislativo reforça a idéia de que a dimensão política não foi abolida pelas reformas para o mercado. Em seu estudo sobre as reformas no setor de seguros, Maria Antonieta Leopoldi (1999) sustenta que, embora a decisão de que haveria abertura e desregulamentação já tivesse sido tomada desde o início da Nova República, a sua implementação tem-se feito ao longo dos anos através de disputas, negociações e lutas entre agentes econômicos e o

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Vale mencionar aqui o depoimento de um empresário ligado à ABDIB sobre o caso da flexibilização do monopólio do Petróleo: “O Executivo formulou um projeto de lei e o enviou ao Congresso. O projeto era muito ruim. De verdade, era muito ruim. A rigor, o projeto era produto provavelmente de mescla de culturas, não tinha alma, não tinha um direcionamento estratégico, provavelmente não tinha nem abertura suficiente, nem regras suficientemente claras e tal. A ABDIB fez um processo legítimo de lobby no Congresso Nacional, que passou por coisas como fazer publicar um livro como se regulamentou petróleo em 54 países no mundo. Tinha de tudo lá, desde como Cuba estava abrindo seu mercado até como era a exploração de petróleo no Mar do Norte pelos países do Mar do Norte – a Inglaterra, a Noruega, etc. De trazer especialistas do exterior para discutir abertamente com congressistas coisas que haviam funcionado bem…” (DINIZ e BOSCHI 2002: 37).

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Estado, assim como entre as diversas instâncias que compõem o Poder Público. Os caminhos por que este tipo de processo tem passado inclui consultas e negociações entre Estado e agentes econômicos, debates, seminários públicos, processos judiciais e lobbies sobre o Congresso, reafirmando a dimensão política da implementação das reformas para o mercado no setor por ela estudado. A autora salienta, contudo, o uso intenso das medidas provisórias como um dos traços que também caracterizam o processo. Descrevendo toda a trajetória seguida desde que a decisão de reformar o setor foi explicitada, a autora conclui seu trabalho levantando uma série de questões sobre os rumos que o processo pode seguir, especialmente quanto às perspectivas do Estado, uma vez afastado de seu papel “tutelar” sobre o setor, assumir um papel regulador e fiscalizador. Ao contrário da clareza de que se travestem as orientações mais genéricas do ideário neoliberal, a sua implementação ganha na prática ares de incerteza. As seguintes considerações da autora servem para reforçar a idéia de que a dimensão política permanece relevante num contexto de globalização e de implementação das reformas para o mercado.

“A história da transformação dessa estratégia (abertura comercial, privatização, desregulação e formação de blocos regionais) em políticas de reestruturação econômica, num cenário de incertezas internacionais (…) e de lutas políticas internas está sendo escrita neste momento. Cada setor da economia vem tendo uma trajetória específica de reestruturação. O conjunto destas análises setoriais é que permitirá visualizar todo o processo de reforma brasileira.” (LEOPOLDI 1999: 240). As trajetórias setoriais não se escrevem, por outro lado, apenas a partir das relações entre Estado e agentes econômicos. Além da condição de atores políticos, é preciso levar em consideração a própria razão de ser destes atores, qual seja, a condição de atores à frente de um negócio. Novamente, a abordagem que vem prevalecendo sobre o tema parece insuficiente, na medida em que reduz o jogo do mercado a uma dinâmica destituída de significado. Assim, a inserção das empresas brasileiras no contexto da globalização seria uma mera adaptação a um contexto sobre o qual não teriam nada a acrescentar. Nesta adaptação, algumas empresas travaram alianças ou foram incorporadas por grupos maiores, eventualmente ligados ao capital internacional, enquanto outras se lançaram em processos bem-sucedidos de reestruturação que as

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colocaram em patamares internacionais de competitividade. Houve ainda empresas que simplesmente deixaram de existir15. Ao contrário da abordagem predominante, a inserção das empresas neste novo jogo não é algo destituído de significado, porque além de agentes econômicos orientados para o lucro, as empresas constróem também uma relação de significado com a sociedade em que estão inseridas.16 Sob esta perspectiva, a racionalidade econômica não é a única presente no livre jogo do mercado, permitindo-nos falar da cultura empresarial, por ela entendendo-se o conjunto de valores e de práticas internas à empresa, tendo impacto sobre o processo de reorganização econômica neste contexto de transição. Estes estudos abordaram grandes empresas brasileiras, mostrando as transformações por que passaram diante das mudanças nas políticas governamentais. Os casos do Banco do Brasil (RODRIGUES 1999) e da Varig (MONTEIRO 2000a), mostram algumas destas grandes empresas, que num contexto anterior estiveram vinculadas a um projeto de promoção do desenvolvimento e construção da nação, passaram a assumir uma postura mais presa aos resultados financeiros. Os autores procuram mostrar que num contexto de mercado e de orientação para os resultados financeiros, as empresas não estariam simplesmente abandonando uma lógica do significado em nome de uma lógica da racionalidade, mas criando novos sigificados na sua relação com a sociedade brasileira. O estudo de Ana Maria Kirschner (1999) sobre grandes empresas familiares, por outro lado, mostra que a sucessão no comando da empresa tem sido uma oportunidade, nem sempre aproveitada, de renovar a mentalidade dos empresários brasileiros, em prol de uma postura mais profissional, portanto mais capacitada para enfrentar os desafios do novo contexto.

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Para uma análise deste movimento, ver BIRCHAL 2002. Esta perspectiva está baseada nos trabalhos de autores franceses que têm se articulado em torno do campo da Sociologia da Empresa. A principal referência deste campo, Renaud Sainsaulieu, propõe tomar a empresa como “lugar de produção do social”, ou seja, uma realidade muito mais rica e complexa do que uma mera unidade de produção técnica, ou um espaço neutro onde se reproduziriam as relações sociais mais amplas. Segundo o autor, “a empresa não é uma forma técnica atemporal e fora da história das sociedades. Ela se alimenta do contexto institucional, social e cultural de sua época” (SAINSAULIEU 1992: 26). Ver ainda SAINSAULIEU (1997). Para um desenvolvimento destes argumentos, assim como para uma revisão mais ampla da literatura sobre Sociologia da Empresa, ver KIRSCHNER e MONTEIRO (2001, 2002). 16

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1.4. As reformas para o mercado na aviação comercial brasileira Desde seu nascimento até a década de 1950, teve vigência na aviação comercial brasileira um modelo altamente liberalizado. Motivado pelas oportunidades criadas com a desmobilização dos equipamentos e da mão-de-obra empregados na Segunda Guerra Mundial, diversos empreendedores se lançaram no mercado. Como teremos oportunidade de discutir em detalhes mais adiante, esta onda viria a se esgotar na medida em que o setor avançou tecnologicamente, e foram criadas aeronaves maiores e mais sofisticadas, demandando mais investimentos. As inúmeras localidades que passaram a receber serviços aéreos nos dez anos do pós-guerra se viriam abandonadas. Muitas empresas encerrariam suas atividades, sendo incorporadas por outras, e as empresas sobreviventes teriam que operar sob condições muito mais difíceis. Na virada para a década de 1960, com a introdução dos jatos, esta situação se agravou. O governo era obrigado a subsidiar as empresas na compra destas aeronaves, assim como era obrigado a subsidiar as operações internacionais, consideradas essenciais do ponto de vista da afirmação da política externa. No plano doméstico, as pequenas localidades eram abandonadas, e as rotas concentradas nos trechos mais densos. Com a grande oferta concentrada em poucos trechos – como por exemplo, a rota Rio-São Paulo –, a despeito do grande movimento, muitos aviões decolavam nos mesmos horários e acabavam saindo vazios, prejudicando a rentabilidade das operações. Este foi um período de muitos acidentes, que segundo algumas interpretações teriam como causa fundamental a falta de preocupação com a segurança diante da necessidade de fazer frente à concorrência no mercado. Nesta ocasião, um amplo movimento motivado pela atuação dos trabalhadores, do Congresso e de pesquisadores da área, veio cobrar das autoridades medidas visando colocar fim à crise instalada no setor, especialmente no que dizia respeito à segurança e ao dispêndio de recursos públicos. Foi então dado início a uma seqüência de encontros – as Conferências Nacionais de Aviação Civil – reunindo empresas e autoridades governamentais, de forma a fazer um diagnóstico e propor soluções para a aviação comercial. Gradualmente, e de forma definitiva a partir do golpe de 1964, chegou-se no caso do mercado doméstico à conformação de um modelo baseado em dois pilares: a

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“realidade tarifária” e a “competição controlada”. Com o primeiro princípio, pretendiase abolir a política de subsídios, fazendo com que os usuários arcassem com todos os custos das operações. Com o segundo, pretendia-se evitar o tipo de concorrência “predatória” prevalecente no contexto anterior, em que algumas rotas tinham excesso de oferta, e outras tinham oferta deficiente. No caso do mercado internacional, prevaleceu a capacidade de articulação política de um dos líderes empresariais do setor: o presidente da Varig, Ruben Berta. Através de sua atuação junto aos representantes do poder público, ele lutou contra a proposta de trabalhadores e especialistas de criação de uma estatal para atuar nestas rotas, a “Aerobrás”. Sua proximidade das autoridades fez com que obtivesse de Getúlio Vargas autorização para voar para Nova Iorque em 1955, recebesse de Jânio Quadros o pedido para incorporar a Real Aerovias (que detinha concessões para os Estados Unidos e Japão) em 1961, fosse “convocada” por Castelo Branco para assumir as rotas da Panair do Brasil em 1965, e, finalmente, levaria a Varig a ter a preferência das autoridades para incorporar a Cruzeiro do Sul em 1975, quando Berta já estava morto. Assim, a empresa que até o início dos anos 1950 era uma pequena empresa regional, circunscrita a rotas ligando Porto Alegre ao interior do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e ao Uruguai, se tornaria a maior empresa de aviação comercial da América Latina. Além dos segmentos internacional e doméstico, as autoridades criaram a “aviação de terceiro nível”, através do Sistema Integrado de Transporte Aéreo Regional – SITAR. Esta iniciativa viria suprir as pequenas localidades abandonadas desde a crise dos anos 1950/1960 com serviços aeronáuticos. O país foi dividido em cinco regiões, em cada uma das quais operaria uma empresa em regime de monopólio (Rio-Sul, Tam, Nordeste, Taba e Votec). As operações seriam subsidiadas com um adicional tarifário cobrado dos passageiros em vôos domésticos. Este segmento abriu à Embraer espaço para a comercialização de seu primeiro avião para transporte de passageiros, o Bandeirante. O modelo vigente entre as décadas de 1960 e 1980, portanto, era baseado numa forte presença estatal no mercado, e em uma estreita aproximação entre empresários e autoridades governamentais, de que a Varig, líder do mercado, era o maior emblema.

20

Uma das principais conseqüências deste modelo foi a elitização do transporte aéreo.17 Com efeito, uma pesquisa realizada pelo Departamento de Aviação Civil – DAC entre 29 de março e 4 de abril de 1976 em alguns dos principais aeroportos brasileiros constatou, num universo de 34.443 questionários respondidos, o seguinte quadro:



mais de 50% dos usuários utilizam o avião mais de sete vezes por ano;



70% dos passageiros viajam a negócios, 10% a turismo e 5% em função de estudo, além de 15% de “motivos não declarados”;



53% das viagens são pagas por organizações privadas, 33% pelo próprio passageiros e 12% por órgãos públicos;



84% dos passageiros são do sexo masculino.18

Desta pequena pesquisa, depreende-se que o perfil do usuário do transporte aéreo no Brasil era do homem de negócios viajando a serviço, com alguma freqüência. O sistema de transporte aéreo se consolidava, então, como uma atividade voltada para um segmento bastante exclusivo da população.19 Por outro lado, o padrão de intervenção estatal foi altamente positivo para o desempenho das empresas, que alcançaram resultados financeiros expressivos.

17

Como de resto, esta seria uma das características do modelo de desenvolvimento legado pelos governos militares, nos marcos de uma “modernização autoritária” (Cf. SILVA 1996). 18 Aerovisão. Revista do Ministério da Aeronáutica, n. 41, julho de 1976, p. 2. 19 É verdade, por outro lado, que surgiram iniciativas visando baratear o custo das passagens, especialmente para fins de turismo. Foi o caso, por exemplo, dos “Vôos de Turismo Domésticos - VTD”. Estes vôos foram criados em 1972, tendo como regra o oferecimento de descontos de 40% para passagens adquiridas para viagens em grupo, previamente organizados por uma agência de viagens. Eram os chamados “pacotes turísticos”, que deveriam incluir também a compra de serviços em terra (hospedagem, translado de e para o aeroporto, e pelo menos um city tour). No entanto, suas condições eram bastante restritivas – exclusivas para viajantes interessados em fazer turismo, e não, por exemplo, para viajantes interessados em visitar familiares. Por outro lado, o número de usuários dos VTD era pouco expressivo – 620 no ano de criação, 1972; 23.130 em 1976. Para efeito de comparação, num país como os Estados Unidos, onde o mercado de aviação é bem mais popularizado, o movimento anual de um único aeroporto chega na casa das dezenas de milhões. (Aerovisão. Revista do Ministério da Aeronáutica, n. 47, janeiro de 1977, p. 5).

21

Analisando os dados apresentados na Tabela 1, referentes aos resultados operacionais20 para os anos de 1967 a 1978 mostram que as quatro empresas operando no mercado doméstico21 tiveram, no primeiro ano da série, um resultado modesto ou prejuízo. O resultado, para o conjunto do setor, foi negativo. Enquanto a Vasp e a Transbrasil vieram obter resultados positivos já na virada para a década de 1970, a Varig já iniciaria a série com resultado positivo, multiplicando este resultado por mais de 30 ao seu final. A Cruzeiro do Sul, que operava algumas rotas internacionais para a América do Sul, também começa a série com resultado positivo, mas sofreria uma queda abrupta em meados dos anos 1970, vindo a falir. Incorporada pela Varig, voltou a obter resultados positivos. Entre 1967 e os anos do “milagre econômico”, o setor passaria de um prejuízo de cerca Cr$ 44 milhões, em valores de 1978, para um lucro de mais de Cr$ 1 bilhão. O fim do milagre, no contexto da crise do petróleo, levaria o conjunto das empresas a uma queda de cerca de 50% de 1973 para 1974, mas elas viriam a ser recuperar, alcançando lucro de Cr$ 2 bilhões no final da série. Analisando os números da Tabela 2, percebemos que há um movimento ascendente que, vale assinalar, não obedece as mesmas tendências do resultado operacional. Enquanto na Tabela 1 há um salto anual entre os anos de 1970 e 1973, o número de funcionários permanece estável entre 1970 e 1972 (há redução entre 1970 e 1971), e um aumento significativo só se daria em 1973 e 1974, período em que o resultado operacional decresce. Ainda assim, embora não se dê nas mesmas proporções, fica evidente que o modelo organizado na década de 1960 teve um impacto positivo para as empresas, que deixaram de depender dos subsídios governamentais e mesmo assim passaram a obter resultados financeiros positivos, e para o nível de emprego, que cresceu quase 40%. Por outro lado, esteve associado a uma visão elitista do mercado, ao priorizar um segmento muito exclusivo da população, de alto poder aquisitivo, especialmente executivos e burocratas viajando a serviço.

20

O resultado operacional se refere à relação entre a receita e as despesas realizadas nas operações aéreas, isto é, referentes a itens como combustível, pessoal, taxas aeroportuárias e aeronaves, entre outros, excluindo impostos e encargos financeiros. 21 Até 1970, existia a Paraense, que encerrou suas atividades diante de dificuldades financeiras e da ocorrência de uma seqüência de acidentes com suas aeronaves.

22

Tabela 1. Resultados operacionais, linhas domésticas e internacionais. 1967-1978 (Cr$ 1.000, a preços constantes de 1978) Ano Cruzeiro Varig Transbrasil Vasp Indústria(*) 1967

11.997

31.694

- 1.620

- 68.463

- 44.334

1968

17.518

125.285

- 7.320

- 49.383

33.914

1969

68.002

221.241

-10.011

-52.517

181.333

1970

60.032

170.508

-27.140

34.657

224.804

1971

80.703

531.368

-9.285

56.608

667.393

1972

166.312

667.397

49.001

178.405

1.061.116

1973

22.342

958.189

66.718

176.704

1.223.954

1974

-32.219

482.689

22.102

131.576

604.148

1975

-233.470

664.787

38.769

256.472

726.558

1976

260.037

682.797

41.552

-24.678

876.603

1977

277.084

461.434

1.686

230.044

970.249

1978

409.682

1.033.493

131.624

500.388

2.075.186

Fonte: Anuário Estatístico DAC (*) O DAC se refere ao conjunto do setor como “indústria”, termo que será reproduzido nas tabelas baseadas em dados do órgão.

Tabela 2. Número de funcionários da indústria. 1968-1978 Ano

Núm. Func.

1968

19.913

1969

20.106

1970

21.421

1971

21.089

1972

21.758

1973

24.679

1974

27.134

1975

26.313

1976

27.214

1977

28.166

1978

27.729

Fonte: Anuário Estatístico DAC

23

Uma série referente à década de 1980, por outro lado, mostra resultados bem diversos em relação ao desempenho da década de 1970 (Tabela 3). A série inicia com prejuízo tanto no segmento doméstico quanto no internacional. Há uma pequena recuperação em 1982, e um retorno ao prejuízo em 1983, ano em que se apresentaria um dos grandes problemas da aviação comercial daí em diante: a defasagem das tarifas domésticas diante da inflação. Como pode ser ver na Tabela 4, em 1983 as tarifas domésticas ficariam defasadas em relação à inflação e a um importante componente dos custos operacionais, o combustível. Em 1984, as autoridades promoveriam uma política de reajustes superior à inflação (foi concedido um reajuste tarifário total de 330% contra uma inflação de cerca de 220%), que seria abandonada a partir dos governos da Nova República. A prioridade ao combate da inflação imporia às empresas uma defasagem crescente das tarifas em relação à inflação. Com a perda relativa de poder das autoridades do Ministério da Aeronáutica vis-à-vis as autoridades econômicas, esta defasagem se ampliaria, o que fica evidente na lucratividade negativa crescente apresentada no final da década.

Tabela 3. Lucratividade da Indústria. 1981-1989 (%) Ano

Total

Doméstico

Internacional

1981

-3,5

-3,3

-4,0

1982

0,2

-- (*)

0,3

1983

-4,6

-11,3

2,0

1984

5,6

6,1

5,0

1985

3,7

6,8

0,5

1986

6,5

4,9

8,2

1987

1,9

2,7

1,0

1988

-4,2

-7,1

-1,4

1989

-13,6

-19,1

-7,8

Fonte: Anuário Estatístico do DAC (*) Valor não informado. Para efeito de comparação, no entanto, a Varig, Cruzeiro do Sul e Transbrasil tiveram lucro de, respectivamente, 6,2%, 9,7% e 4,8%, enquanto a Vasp teve prejuízo de 11,7%.

24

Tabela 4. Evolução da inflação, custo do combustível e tarifas (%) Ano

IGP-DI

Querosene Aviação Tarifas Aéreas (Galeão) Domésticas

1983

210,99

211,59

196,90

1984

223,81

262,80

330,96

1985

235,11

156,41

201,72

1986

65,00

8,5

3,89

1987

415,94

536,66

564,42

1988

1.037,56

916,91

925,93

1989

1.782,93

1.813,73

1.532,48

1990

1.476,56

---

1.635,74

Fonte: Anuário Estatístico DAC

Num contexto de custos crescentes, defasagem tarifária e conseqüente perda de rentabilidade, as empresas continuaram apostando numa estratégia de crescimento, como se depreende dos números apresentados na Tabela 5. Numa tendência que sofreria apenas uma pequena interrupção entre 1982 e 1984, o número de funcionários cresceu em quase 30% ao longo da década. Tabela 5. Número de funcionários da indústria. 1980-1990 Ano

Num. Func.

1980

31.117

1981

31.838

1982

34.122

1983

34.040

1984

33.812

1985

36.409

1986

38.736

1987

39.655

1988

39.617

1989

39.559

1990

40.346

Fonte: Anuário Estatístico DAC

25

Um movimento mais intenso no sentido da abertura aconteceria durante o governo Fernando Henrique Cardoso, quando seriam eliminadas virtualmente todas as barreiras regulatórias do setor. A oferta de descontos foi liberada, a oferta de novos vôos e novos horários ficou restrita apenas à capacidade operacional dos aeroportos, a distinção entre empresas nacionais e regionais deixou de existir e as empresas nãoregulares, que faziam vôos charter, foram liberadas para vender passagens desvinculadas de pacotes turísticos. Com estas mudanças, o setor assistiu a períodos de intensa “guerra tarifária”, que permitiram o acréscimo de um significativo número de pessoas ao universo de usuários. No entanto, as oscilações da economia brasileira eventualmente levariam a uma crise no mercado, que sempre foi respondida com a redução na oferta de descontos. A Tabela 6 mostra uma série referente à lucratividade da indústria entre 1990, ano que precedeu a introdução das primeiras medidas de abertura do setor, até 2002. Chama atenção o fato do segmento internacional ter apresentado resultados negativos expressivos em praticamente todos os anos da série, com apenas um resultado positivo em 0,16%. Se a entrada no mercado internacional foi uma das prioridades apresentadas pela Vasp e Transbrasil como caminho para escapar dos resultados negativos impostos pela defasagem tarifária, os números referentes à década de 1990 mostram que a estratégia foi equivocada. Neste sentido, fica evidente a razão pela qual a Vasp e a Transbrasil tenham progressivamente abandonado estas rotas. A primeira encerrou suas últimas operações internacionais em 2000, e a segunda, junto com a paralisação completa de suas atividades, em 2001. A Tam tentou uma expansão nas rotas internacionais, voando para Miami, Paris, Buenos Aires, Frankfurt e Zurique, mas os resultados negativos fizeram com que a empresa abandonasse as duas últimas rotas, assim como projetos em andamento para voar para Madri e Roma. A Varig, por sua vez, reduziu significativamente suas operações internacionais, contando com a participação na aliança global Star Alliance para redistribuir seus passageiros a partir de alguns destinos mais rentáveis, como Miami, Nova York, Los Angeles, Madri, Paris, Frankfurt, Londres e Milão.

26

Tabela 6. Lucratividade da Indústria. 1990-2002 (%) Ano

Doméstico

Internacional

Total

1990

---

---

-13,6

1991

-17,34

-4,24

-10,39

1992

-6,02

-15,40

-11,42

1993

0,54

-9,32

-4,91

1994

14,45

0,16

6,96

1995

13,47

-0,38

6,45

1996

14,95

- 15,33

-0,16

1997

12,77

-2,66

4,85

1998

4,45

-2,73

0,81

1999

-0,38

-5,55

-2,96

2000

5,85(*)

-4,14

2,06

2001

-7,24

-11,08

-8,7

2002

-8,29

-4,00

-6,67

Fonte: Anuário Estatístico DAC (*) Em 2000, o DAC reuniu as empresas de aviação regional ao grupo das empresas domésticas, alterando em parte a base de comparação, mas não a tendência geral

Quanto ao mercado doméstico, após um início de década com grandes prejuízos, devidos pelo menos em parte à defasagem tarifária imposta pela rigidez das autoridades econômicas, foi capaz de obter resultados positivos, especialmente após a introdução do Plano Real, em 1994. Os anos finais da série, no entanto, indicam um prejuízo crescente. A permanência do problema da defasagem tarifária, diante de uma ainda mais rígida política de controle de preços por parte das autoridades econômicas, ao mesmo tempo em que o real sofreu sucessivas desvalorizações, levou o setor a perdas cada vez maiores. Com as “guerras tarifárias”, o aumento no número de passageiros transportados não fez com que a receita crescesse, tendo levado as empresas do mercado doméstico à diminuição dos ganhos conquistados desde a introdução do Plano Real. Com a abertura, o mercado passou por mudanças importantes em sua estrutura: as empresas regionais líderes, Tam e Rio-Sul, passaram a competir nas principais rotas nacionais (ligando cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Belo Horizonte,

27

Curitiba e Porto Alegre). A Tam, especificamente, entrou no mercado doméstico e ganhou fatias crescentes do mercado, até superar o grupo Varig. Algumas empresas de vôo charter foram criadas (Fly, Via Brasil, Nacional), deixando de operar diante da crise a partir de 2001, mas uma nova empresa especificamente fixou-se no mercado: a Gol. Esta empresa, baseada no conceito low cost, low fare (tarifas reduzidas e custos reduzidos) começou suas operações em 2001 e em fins de 2002 já detinha a terceira posição no mercado doméstico.

Tabela 7. Número de funcionários da indústria. 1990-2002 Ano Núm. Func. 1990

40.346

1991

44.445

1992

37.814

1993

35.457

1994

31.012

1995

29.978

1996

29.538

1997

29.033

1998

31.343

1999

28.490

2000

33.713 (*)

2001

38.651

2002

29.730

Fonte: Anuário Estatístico DAC (*) Em 2000, as empresas regionais foram incorporadas ao segmento doméstico.

Os trabalhadores do setor, por fim, foram afetados de forma mais intensa pela abertura. Como se pode observar na Tabela 7, foram perdidos cerca de dez mil postos de trabalho entre 1990 e 1994, quando se inicia um período de estabilidade. Com a “guerra tarifária” de 1998, há um movimento de contratação, que se reverte após a desvalorização cambial de 1999. O aumento entre 2000 e 2001, que deve ser relativizado uma vez que houve uma expressiva mudança na base de comparação, com a

28

inclusão das empresas regionais no mercado doméstico, se reverte mais uma vez em 2002, com o retorno aos patamares de meados da década anterior. Diante da crise instalada no setor, e na contramão da postura predominante ao longo de seus oito anos de mandato, uma das últimas medidas do governo Fernando Henrique Cardoso em relação ao setor foi o envio de uma Medida Provisória prevendo um pacote de auxílio às empresas aéreas, através de perdão de dívidas, suspensão provisória de impostos e abertura de crédito às empresas, via BNDES. Aproximando-se da perspectiva que predominou ao longo do governo Fernando Henrique, Bolívar Pêgo Filho analisa o pacote de medidas criticando o seu alcance limitado vis-à-vis os custos que ele representaria para a sociedade. Segundo o analista,

“Essas medidas proporcionam um pequeno alívio às principais empresas aéreas brasileiras, particularmente à Varig, mas estão longo de resolver os seus problemas econômico-financeiros de uma forma estrutural. Possivelmente, haverá um maior custo para toda a sociedade, uma vez que o governo está propondo mais uma ‘ajuda’ do que efetivamente apresentando propostas que possam obter resultados que permitam as companhias resolverem seus problemas no médio e longo prazos. A aviação civil mundial passa por uma grande crise, porque as economias dos países desenvolvidos estão com baixas taxas de crescimento, o transporte aéreo já está totalmente disseminado nessas economias e pelo elevado risco de ataques terroristas, principalmente para as companhias que têm vôos para os Estados Unidos.” (PÊGO FILHO 2002: 74) O autor tem razão ao afirmar que o setor se encontra numa crise desde o final dos anos 1980, e que as incertezas dos anos 1990 e início do século XXI vieram agravar. No entanto, como foi argumentado anteriormente, o clima de incerteza e as dificuldades inerentes à dinâmica da economia global não podem servir de justificativa para que o poder público abra mão de uma política ativa no sentido de garantir algum grau de participação nesta dinâmica. Se o tipo de pacote seria a política mais desejável, trata-se de outra questão. O próprio autor oferece alguns subsídios para um debate neste sentido, ao mencionar alguns dos entraves existentes no mercado de aviação comercial,

29

especialmente em relação aos custos do setor. A conclusão do autor esclarece quais seriam estas dificuldades, ao afirmar:

“O Brasil possui as principais condições para ser um dos maiores ofertantes de serviços aéreos do mundo: grande extensão territorial, mercado potencial, boa infra-estrutura aeroportuária e companhias aéreas com muita experiência. Entretanto, falta-lhe capacidade competitiva, que só ocorrerá com ampliação e fortalecimento do mercado interno, flexibilização da legislação (particularmente para viabilizar preços e serviços diferenciados), redução da carga tributária e do impacto das variáveis exógenas (por exemplo, câmbio) e aumento do porte das empresas (com base em um modelo de gerenciamento empresarial).” (PÊGO FILHO 2002: 77-78)22 Sem deixar de reconhecer este conjunto de impedimentos à competitividade do setor, alguns autores têm insistido no argumento do aumento da concorrência como principal mecanismo capaz de garantir a maior eficiência das empresas de aviação comercial. Inspirados na experiência norte-americana da deregulation, os trabalhos de CASTRO e LAMY (1993), FRANCO et al. (2002) e TAVARES (1999) defendem que a virtual eliminação de todos os mecanismos de controle de natureza econômica sobre o mercado de aviação comercial nos Estados Unidos, simbolizada pela extinção do Civil Aeronautics Board, seria um exemplo a ser perseguido pelo Brasil. Com base na literatura internacional sobre aquela experiência, os autores salientam que a deregulation teria promovido uma redução na média das tarifas e a diversificação da oferta, com ganhos de produtividade na indústria. Assim, o caso norte-americano serviria de lição para que o Brasil buscasse um setor aéreo mais competitivo, com tarifas mais reduzidas e empresas mais eficientes. Os próprios trabalhos citados pelos autores, no entanto, mostram que teria havido uma maior concentração no mercado a médio prazo, na medida em que algumas empresas tradicionais faliram ou foram incorporadas pelas sobreviventes, enquanto nenhuma das empresas criadas após a desregulamentação teriam sobrevivido. Apesar da

22

O Informe Infra-estrutura n. 42, do BNDES, apresenta posição semelhante, lembrando que diante da perspectiva de abertura do mercado interno para empresas estrangeiras – proposta que esteve em pauta no Congresso e dentro do governo na segunda metade dos anos 1990 – tornaria as empresas ainda mais fragilizadas (BNDES 2001).

30

redução média nas tarifas, com a adoção de um modelo de tráfego aéreo baseado na criação de grandes centros de distribuição de tráfego nos principais aeroportos norteamericanos (o sistema de “hubs and spokes”23), algumas empresas teriam conquistado o virtual monopólio sobre seus hubs.24 Tais conseqüências, indesejáveis do ponto de vista de uma abordagem econômica convencional, seria devida à falta de uma ação antitruste mais eficiente (TAVARES 1999: 34). Castro e Lamy sugerem, de forma mais abrangente, que

“o transporte aéreo doméstico norte-americano parece evoluir para uma nova situação de oligopólio que arrisca levar de novo a uma redução da concorrência, o que deverá conduzir os EUA a recorrer novamente à sua legislação antitruste. Porém, observa-se que a desregulamentação extremada provocou uma situação de demanda de neo-regulamentação, no que diz respeito às políticas comerciais, em particular sobre o sistema de reserva e a qualidade do serviço das companhias (...).” (CASTRO e LAMY 1993: 52)25

A despeito das evidências apresentadas a respeito do próprio caso norteamericano, especialmente as considerações apresentadas por Castro e Lamy sobre a

23 Este sistema consiste na organização da malha através da concentração das operações em um grande aeroporto (o hub) para onde convergem as linhas (spokes) da empresa, ao invés de uma malha com linhas diretas entre diferentes aeroportos. Assim, os passageiros voando entre duas cidades médias voam para o hub, de onde fazem conexão para a cidade de destino. 24 Por outro lado, Coelho e Nascimento (2001) citam um documento produzido pelo próprio governo norte-americano, através de uma comissão criada no governo Clinton para fazer um diagnóstico da crise em que se encontrava a aviação comercial norte-americana em meados dos anos 1990. Segundo o documento, “encontramos uma indústria aérea que é mais competitiva do que antes da desregulamentação, em 1978, na qual há mais competição ombro a ombro entre cidades, e cobra menos dos viajantes em dólares reais do que cobrava em 1978. Ao mesmo tempo, é uma indústria que perdeu enormes quantias em dinheiro nos últimos três anos, e nunca obteve sustentação e um retorno substancial sobre investimentos;perdeu um grande número de funcionários mais habilitados, especialmente fornecedores e fabricantes de equipamentos; sofreu cancelamentos, adiamentos e reduções nos pedidos de novas aeronaves, pouco tempo depois de ter passado por uma compra improcedente de equipamentos. Essas enormes oscilações causaram uma tremenda ruptura nos setor de manufatura.” (Comissão Nacional para Assegurar uma Indústria Forte e Competitiva 1994: 6 apud COELHO e NASCIMENTO 2001: 41). Os autores citam também a posição da Federação Internacional dos Trabalhadores em Transporte, para quem a desregulamentação teria imposto aos trabalhadores “flexibilização” das relações de trabalho e desemprego. 25 Neste sentido, vale mencionar a observação do prêmio Nobel Joseph Stiglitz acerca da economia norteamericana, em entrevista recente ao jornal O Globo: “Nós herdamos muitas regulamentações ultrapassadas, da década de 30. Era evidente que precisávamos mudar as leis, mas também adotávamos com freqüência o mantra da desregulamentação. Logo, nos desfizemos de muitas regulamentações, quando na verdade deveríamos ter nos perguntado quais eram as leis necessárias à nova era.” (Stiglitz, J.. “Entrevista”, O Globo, 3/11/2003.

31

importância

das

instituições

reguladoras

mesmo

em

um

contexto

de

“desregulamentação”, o conjunto destes autores preconiza nas conclusões de seus trabalhos o aprofundamento da “desregulamentação” da aviação comercial brasileira como “lição” a ser tirada do caso norte-americano, de forma a aumentar a competitividade e a eficiência de nossas empresas. Ao dar ênfase estrita à desregulamentação, estes autores se baseiam numa leitura simplificadora da dinâmica econômica, especialmente no que diz respeito à relação entre Estado e mercado. Baseados na expertise econômica convencional, estes autores pretendem que a equação simples “mais mercado, menos Estado” seja capaz de dar conta dos desafios impostos pela nova dinâmica do capitalismo global. O argumento aqui apresentado enfatiza algo distinto: é na qualidade das relações entre Estado e mercado que reside parte importante do que seria preciso para dar conta dos desafios da nova ordem. Assim, proponho uma leitura que abandone a representação que orienta a leitura economicista do mercado, baseada num modelo ideal do “mercado competitivo”, em prol de uma representação sociológica do mercado, baseada nos seus atores concretos, seus interesses, suas ideologias. Sem pretender o mesmo grau de normatividade da perspectiva econômica, sugiro que a abordagem sociológica pode trazer contribuições importantes para orientar os atores estatais e nãoestatais na construção da almejada inserção competitiva do Brasil em geral, e de seus diferentes setores econômicos (a aviação em particular), na dinâmica do capitalismo global.

*

*

*

Neste trabalho, foram utilizadas diferentes fontes relativas ao período analisado, procurando articular a possibilidade de acesso às mesmas e os objetivos de cada um dos capítulos. No capítulo relativo à história do setor, foram utilizadas narrativas de autores acadêmicos e não-acadêmicos, que se baseiam em documentos oficiais e depoimentos informais para retraçar a trajetória do setor. Dentre estes documentos, estão registros do Congresso Nacional e do Poder Executivo, publicações das empresas de aviação comercial e correspondências entre autoridades. Realizei também levantamentos em publicações do Ministério da Aeronáutica, como a revista Aerovisão, e de entidades

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não-oficiais ligadas ao setor, como a Revista Brasileira de Direito Aeroespacial. Para o período mais recente, especificamente a década de oitenta, lancei mão das reportagens reunidas no arquivo da biblioteca Aldo Pereira, do Sindicato Nacional dos Aeronautas, que contém matérias jornalísticas sobre empresas, organizações sindicais, temas e eventos específicos da aviação brasileira. Para os capítulos referentes ao período compreendido entre 1990 e 2002, realizei levantamentos nas publicações das principais instituições ligadas ao setor. O boletim Dia a Dia, do Sindicato Nacional dos Aeronautas, foi publicado ao longo de todo este período, tendo servido de referência não só para a entidade representativa dos trabalhadores, mas para informações sobre os demais atores ligados à aviação comercial e para uma análise mais ampla do desenvolvimento do setor. Em relação ao Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias, o único informativo existente é o SNEA Informa, que foi publicada entre fins de 1997 e início de 2000. Já o DAC passou a publicar o DAC Notícias a partir de 1994, oferecendo também algumas informações na sua página na internet. Além dos informativos, utilizei as notas taquigráficas dos depoimentos de representantes das empresas, do sindicato e do Governo Federal (Aeronáutica, área econômica e outros setores) a várias comissões da Câmara de Deputados, disponíveis via internet na página da instituição a partir de 1999. Relativamente a este período, também lancei mão do arquivo da biblioteca do Sindicato Nacional dos Aeronautas, com reportagens extraídas de diversos jornais: O Globo, Jornal do Brasil, Jornal do Commercio, O Dia, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, Folha da Tarde, Correio Braziliense, Jornal de Brasília, Gazeta Mercantil e Valor Econômico. Também utilizei artigos publicados nas revistas Veja e Isto É Dinheiro. Neste material, encontrei não apenas notícias, mas também artigos assinados e entrevistas com algumas das personalidades que estiveram envolvidas no processo em análise. Realizei, ainda, entrevistas complementares com: George Ermakoff, atual presidente do SNEA; Mauro Gandra, ex-diretor do DAC, ex-ministro da Aeronáutica e ex-presidente do SNEA; Cláudio Toledo, assessor econômico do Sindicato Nacional dos Aeronautas.

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Esta tese está dividida em sete capítulos. Nesta introdução, procurei situar o objeto dentro de uma discussão mais ampla, dizendo respeito à relação entre a dinâmica econômica e a dinâmica política num contexto de globalização. Procurei mostrar que a aviação comercial brasileira tem encontrado dificuldades de inserção neste novo contexto, e que os argumentos baseados na abordagem econômica convencional seriam insuficientes para dar conta da nova dinâmica, propondo uma abordagem sociológica, que dê ênfase nas relações entre os atores concretos do Estado e do mercado. No próximo capítulo, desenvolverei esta abordagem com base numa literatura internacional abordando as relações entre Estado e mercado. Darei ênfase a duas perspectivas teóricas que me parecem convergentes: a Sociologia Econômica e o Institucionalismo Histórico. Tento encontrar uma síntese para esta discussão numa Sociologia do Mercado, com base nos trabalhos de Pierre Bourdieu e Neil Fligstein. Os capítulos seguintes são dedicados ao material empírico. O capítulo 3 faz um histórico do desenvolvimento do setor de aviação comercial no Brasil, procurando mostrar as articulações entre os agentes privados e o Estado desde os anos de formação do setor até a consolidação do modelo intervencionista que vigorou entre os anos 1960 e 1980. O capítulo 4 abordará o ciclo de abertura do setor, com as primeiras medidas tomadas durante o governo Collor (1990-1992), até a radicalização da abertura no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso (1994-1998). O capítulo 5 tratará do aprofundamento da crise no setor, tendo como marco a desvalorização do real frente ao dólar em 1999. A análise se encerra com o fim do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, em 2002. É nesta mesma conjuntura que se dará a tentativa de criação da Agência Nacional de Aviação Civil, em substituição ao DAC, num disputado processo que culminaria com a inviabilização da criação da agência antes do fim do mandato de Fernando Henrique Cardoso. O último capítulo traz uma conclusão com um balanço das principais questões abordadas na tese.

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2. Aspectos teóricos

O discurso da “negação da política” teve como principal corolário a redução do debate sobre as relações entre Estado e mercado a uma questão quantitativa. Quanto mais Estado, pior o desempenho do mercado. Quanto menos Estado, maior espaço teriam os agentes para empreender, produzir, portanto desenvolver o sistema econômico, sendo esta a tendência de um mercado “livre”, ou seja, livre das interferências (negativas) do Estado e da dinâmica política. Dois paradigmas complementares deram lastro a esta visão das relações entre Estado e mercado: o neoclássico e o neo-utilitário. Embora ambos estejam baseados nas mesmas premissas sobre o comportamento humano, o que para o primeiro seria virtude para a dinâmica da economia se transformaria, para o segundo, no grande vício da dinâmica política. A principal característica destes paradigmas é sua capacidade de extrapolar para o nível macro uma concepção microeconômica da ação, que seria orientada exclusivamente por algo próximo do que Weber chamou de “racionalidade formal referente a fins”26. No entanto, ao contrário de Weber, que sugeriu um modelo de ação marcada pela interação com outros agentes, dotada de significados culturais e

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Embora partilhe com as perspectivas neoclássica e neoutilitária a ênfase na ação, Weber salientou em diversas oportunidades que uma ação racional não esgotaria todas as formas de ação, senão que serviria apenas como um tipo ideal dentro da proposta de uma Sociologia compreensiva, isto é, capaz de captar o seu “sentido subjetivo”. Alguns trechos de suas notas metodológicas em Economia e sociedade deixam esta posição clara: “Em virtude de sua compreensibilidade evidente e de sua inequivocabilidade – ligada à racionalidade –, a construção de uma ação orientada pelo fim de maneira estritamente racional serve, nesses casos, à Sociologia como tipo (‘tipo ideal’). Permite compreender a ação real, influenciada por irracionalidades de toda espécie (afetos, erros), como ‘desvio’ do desenrolar a ser esperado no caso de um comportamento puramente racional. Nessa medida, e somente por esse motivo de conveniência metodológica, o método da Sociologia ‘Compreensiva’ é ‘racionalista’.” (WEBER 1994: 5, grifos no original) E diferente dos paradigmas supracitados, que preconizam toda uma organização da dinâmica econômica no que parece ser de fato um “preconceito racionalista”, Weber chama atenção para o limite de sua abordagem metodológica: “No entanto, é claro que esse procedimento não deve ser interpretado como preconceito racionalista da Sociologia, mas apenas como recurso metodológico. Não se pode, portanto, imputar-lhe a crença em uma predominância efetiva do racional sobre a vida. Pois nada pretende dizer sobre a medida em que na realidade ponderações racionais da relação entre meios e fins determinam ou não as ações efetivas” (WEBER 1994: 5, grifos no original). Além disso, Weber propõe outros três tipos ideais de ação – racional referente a valores, afetiva e tradicional – salientando: “Só muito raramente a ação, e particularmente a ação social, orienta-se exclusivamente de uma ou de outra destas maneiras. E, naturalmente, esses modos de orientação de modo algum representam uma classificação completa de todos os tipos de orientação possíveis, senão tipos conceitualmente puros, criados para fins sociológicos, dos quais a ação real se aproxima mais ou menos ou dos quais – ainda mais freqüentemente – ela se compõe. Somente os resultados podem provar sua utilidade para nossos fins” (WEBER 1994: 16, grifos no original).

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construída historicamente (daí a definição de ação social), o indivíduo neoclássico e neoutilitário é construído fazendo-se abstração do contexto cultural em que está inserido, tendo como único sentido a maximização dos ganhos, seja em termos financeiros ou de poder. No caso da dinâmica econômica, a teoria neoclássica representa indivíduos e instituições da ordem econômica (bancos, empresas e outras organizações) como agentes isolados uns em relação aos outros, que só se relacionariam no momento da troca, isto é, no encontro do mercado, com fins exclusivamente comerciais, sempre visando obter maior vantagem nas transações. Somado a esta representação da ordem econômica, estaria a concepção neo-utilitária da ordem política, aplicando o mesmo modelo da maximização dos ganhos para interpretar a relação entre Estado e sociedade. No caso da dinâmica política, no entanto, a busca pela maximização teria um efeito perverso. Os grupos no interior do Estado precisariam conquistar permanentemente o apoio dos demais atores sociais de modo a permanecer nas posições de poder. Para isso, seria preciso oferecer incentivos a estes atores, que se materializariam em recursos diretos (empréstimos, subsídios, empregos) ou no que a literatura internacional chama de rents, através de intervenções no mercado em benefício destes grupos (protecionismo alfandegário e incentivos fiscais, por exemplo). Nos termos da teoria neo-utilitária, os agentes do Estado estariam presos, em nome de sua permanência na estrutura estatal, à lógica da oferta de recursos e rents. Por sua vez, os demais atores sociais – e aí se inclui, com destaque, o empresariado –, tenderiam a investir no chamado rent seeking e na “busca de lucro via atividades improdutivas”27. Não haveria incentivos ao investimento em atividades produtivas geradoras de crescimento econômico (EVANS 1995: 22-25; SCHNEIDER e MAXFIELD 1997: 3-4; CHANG 2002: 104-111). Este tipo de abordagem conduziria, conforme salientou Eli Diniz, a um “jogo de soma zero”, polarizando Estado e mercado, e por extensão burocracia governamental e grupos de interesse. Assim, segundo a autora,

“Da dinâmica social e do jogo dos interesses particulares emergiriam forças desagregadoras, ameaçando a integridade do Estado e a coerência das políticas governamentais. O fortalecimento de um dos termos implicaria necessariamente o enfraquecimento do outro. Grupos 27

Na literatura em inglês, Directly Unproductive Profit-Seeking Activities

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organizados fortes, enquanto fontes de demandas corporativas, seriam particularmente deletérios, representando ameaça potencial de captura do Estado.” (DINIZ 2000: 60). Desta forma, ao Estado caberia retirar-se de um envolvimento direto nas atividades econômicas e com os agentes econômicos, limitando-a a medidas visando criar um ambiente macroeconômico de inflação controlada e disciplina orçamentária. Interferências de outras naturezas deveriam ser eliminadas através da abertura comercial, privatização das empresas estatais e desregulamentação da economia, de modo a abolir a racionalidade política do funcionamento do mercado. Políticas setoriais e estratégias de concertação envolvendo Estado e grupos de interesse passam a ser abolidas, sob o argumento de que incentivariam a busca por benefícios para os grupos envolvidos. O mercado, tal como concebido pela abordagem neoclássica e pela neoutilitária, passa a ser considerado o único mecanismo legítimo de coordenação da ordem econômica, constituindo-se em condição suficiente para o crescimento por garantir uma alocação eficiente dos recursos, que seria a tendência “natural” de um mercado livre. Este capítulo toma como ponto de partida a análise de Eli Diniz (2000: 60-75) sobre o que a autora chama de “padrões alternativos” de interação entre Estado e mercado, que permitiriam pensarmos esta relação não do ponto de vista quantitativo – mais ou menos Estado – mas de um ponto de vista qualitativo, em que ganhariam relevo aspectos como os arranjos institucionais, regime político, a lógica de atuação dos grupos de interesse e as formas de articulação entre Estado e sociedade. Esta perspectiva ganha corpo através da convergência das abordagens da Sociologia Econômica e do Institucionalismo Histórico, que seriam as abordagens alternativas, respectivamente, à teoria neoclássica e à teoria neo-utilitária.

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2.1. A abordagem da Sociologia Econômica28 A teoria sociológica clássica teve como uma de suas principais linhas de desenvolvimento a relação entre economia e sociedade, ou ainda, a abordagem dos fenômenos ligados à ordem econômica. Weber e Durkheim são reconhecidos como os autores que introduziram o termo “Sociologia Econômica”29. Com efeito, como mostra Cécile Raud (2003), estes autores ofereceram alguns dos enfoques principais que sustentariam as abordagens contemporâneas da Sociologia Econômica. Entre eles, está a idéia de uma “abordagem pluralista do ator econômico”, ou seja, uma representação do ator que não se limita à visão do indivíduo maximizador, orientado pela realização de interesses materiais. Weber, por exemplo, sugeriria um tipo de ação econômica social, voltada para a maximização do interesse mas influenciada pela ação de outros membros da sociedade. Por outro lado, se Weber atribui um domínio relativamente autônomo à ação econômica – aquela movida por interesses materiais – Raud lembra que para Weber, “os interesses, e os meios adequados para satisfazê-los, são situados socialmente e historicamente, na medida em que eles devem ser legitimados pelos valores existentes na sociedade” (RAUD 2003: 17).30 Durkheim, ao analisar o mercado, lembraria que este era um fato social, e teria um papel na produção da solidariedade orgânica, quando os atores sociais teriam na

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A discussão relativa à Sociologia Econômica foi desenvolvida inicialmente em MONTEIRO (2000a: 20-26) e KIRSCHNER e MONTEIRO (2001, 2002). Vale registrar que, diferente dos trabalhos anteriores, relativizo aqui a idéia de uma “nova” Sociologia Econômica. O principal argumento apresentado pelo autor considerado fundador da Nova Sociologia Econômica, Mark Granovetter, é de que a “velha” Sociologia Econômica, que ele identifica com a Sociologia Industrial norte-americana e a abordagem “economia e sociedade” de Talcott Parsons e Neil Smelser, não questionaria a Economia clássica e neoclássica, aceitando seus pressupostos. Por isso, aceitariam a divisão intelectual do trabalho que teria excluído da análise sociológica os fenômenos da ordem econômica. Segundo Granovetter, “havia uma atitude muito respeitosa na maior parte da velha Sociologia Econômica em relação à teoria econômica clássica e neoclássica. (…) A ‘Nova Sociologia Econômica’ está muito mais preparada para sustentar que os sociólogos têm algo a dizer sobre os processos econômicos em geral e que isto complementa e em alguns casos substitui o que a teoria econômica tem a dizer” (GRANOVETTER 1990: 107; Cf. SWEDBERG 1997: 241). Não obstante, alguns autores vêm chamando atenção para a importância da linha de continuidade entre a Sociologia Econômica clássica e a contemporânea, especialmente se incluirmos os fundadores da Sociologia (Cf. STEINER 1999: 26-29; RAUD 2003). Para mais argumentos sobre a Sociologia Econômica contemporânea, ver WANDERLEY (2002) e LOPES JR. (2002). 29 A respeito da contribuição de Weber para a Sociologia Econômica, ver SWEDBERG 1998. 30 Daí a distinção sugerida por Weber entre a “racionalidade formal” e a “racionalidade material”. A primeira diria respeito ao cálculo de meios e fins, sendo o cálculo financeiro o meio mais formal, do ponto de vista deste tipo de racionalidade. A segunda diria respeito a um cálculo de meios envolvendo fins de natureza ética e política, entre outras.

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troca mercantil uma instância de socialização (RAUD 2003: 5-6). Em sua discussão sobre a moral cívica, por outro lado, Durkheim defenderia que o respeito ao contrato – “instituição básica do mercado” – residiria no caráter sagrado que teria assumido o indivíduo na sociedade moderna. Segundo Raud, “as regras morais permitem assegurar a confiança no mercado, mesmo entre pessoas que não se conhecem diretamente, pelo respeito aos mesmos valores fundamentais da sociedade moderna, ou seja, os direitos do indivíduo” (RAUD 2003: 19). Depois de Weber e Durkheim, Karl Polanyi foi responsável por desenvolver um dos principais argumentos utilizados nas análises contemporâneas da Sociologia Econômica: a “inserção social da economia” (“social embeddedness of the economy”). Este argumento se constitui num dos pontos de partida para a crítica da perspectiva neoclássica, que estaria fundada numa separação do econômico do social, ou ainda, na crença de que a ordem econômica se desenvolveria com base numa lógica própria, estranha à dinâmica social em geral. Karl Polanyi foi capaz de articular o material etnográfico produzido por autores como Malinowski, Thurnwald e Boaz com uma análise histórica do desenvolvimento da economia moderna, enfatizando a natureza bastante diversa entre as sociedades estudadas pelos clássicos da Antropologia e a sociedade européia e norte-americana. Com efeito, os estudos antropológicos sobre o Kula e o Pottlach serviram para mostrar que nem todas as sociedades tiveram um sistema de produção e distribuição das riquezas baseado no interesse individual. Este seria uma marca distintiva da economia de mercado, que por sua vez teria se desenvolvido apenas num momento bastante avançado da história da civilização ocidental (POLANYI 1944, 1977). Ao propor a distinção entre um significado formal e um significado substantivo para a ação econômica, Polanyi sugere que o primeiro não é, como quis fazer crer a Economia clássica, passível de aplicação a todas as sociedades no tempo e no espaço. O desenvolvimento de um significado formal para a economia seria, para este autor, contingente, e particular da sociedade moderna. A “ação economicista” (economizing action), em que estaria baseado este significado formal, se constituiria em oposição à ação socialmente condicionada, característica das sociedades pré-industriais (POLANYI 1957).

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Polanyi também chamou atenção para o caráter “socialmente instituído” da ordem econômica, e neste sentido pôs em questão a idéia de que toda e qualquer ordem econômica seria a expressão de uma forma idealizada de natureza humana. Este autor demonstrou ainda que a emergência da ordem econômica moderna, a economia de mercado, foi marcada por intensos processos de luta social. Na Inglaterra, a liberação de mão-de-obra no campo, destituindo amplos setores da população inglesa de seu meio de subsistência, somada a uma série de medidas legais por parte do Estado, seria uma expressão destas lutas. A sociedade, não se rendendo ao mercado, pressionou por medidas políticas que oscilaram entre o que o autor trata como uma forma de autoproteção desta sociedade, e a promoção do mercado, o “moinho satânico” que seria por princípio nocivo à ordem social. Historicamente, a sociedade moderna teria se caracterizado por um movimento pendular entre uma ordem socialmente protegida e uma ordem ameaçada pelo “moinho satânico” do mercado. Polanyi contribuiu para a desnaturalização do homo economicus, o agente economicista que agiria conforme um padrão de racionalidade formal, motivado tão somente pela realização de um interesse próprio e por uma propensão natural à troca, desconectado de qualquer vínculo substantivo com o meio social em que está inserido. Segundo Polanyi, a economia pré-industrial era imersa nas instituições e tradições sociais em geral, sendo regida pela reciprocidade ou pela redistribuição. Com a sociedade moderna, a idéia de uma ordem econômica autônoma em relação ao meio social teria emergido de fato, mesmo que sua materialização tenha sido sempre provisória, e sujeita à retomada de diferentes mecanismos de proteção social. Um dos pilares em que têm se baseado os estudos sobre política e economia de maneira alternativa às teorias neo-utilitária e neoclássica é a abordagem de redes. Ao contrário do “ator isolado” daquelas teorias, esta abordagem enfatiza as relações de confiança e reciprocidade que unem os atores. Ao contrário da ênfase na “maximização dos ganhos” e no pretenso aumento de eficiência garantido por este comportamento, a abordagem de redes sugere que a confiança e a reciprocidade seriam os mecanismos capazes de promover um maior fluxo de informações e dar maior credibilidade às ações de cada ator perante os demais. Num cenário de maior confiança, aumentariam os incentivos ao investimento e aos projetos de longo prazo (SCHNEIDER e MAXFIELD 1997: 6-15).

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A abordagem de redes foi introduzida na Sociologia Econômica por Mark Granovetter, que reformulou a idéia de “inserção social da economia” desenvolvida por Karl Polanyi. Para Granovetter, esta concepção serviria para desconstruir tanto a representação formalista do homo economicus, quanto a representação substantivista, que ele atribuiu ao entendimento que Polanyi deu ao argumento da “inserção social”. Sua proposição é de que, por um lado, as sociedades tradicionais não teriam um nível de “inserção social da economia” tão grande quanto é atribuído pela perspectiva substantivista, e por outro, as sociedades modernas não seriam tão destituídas desta “inserção social” quanto pretendem os formalistas (GRANOVETTER 1985: 482-483; SWEDBERG e GRANOVETTER 1992: 9-10). Assim, Granovetter sugere que a ação econômica nas sociedades modernas também estaria inserida nas relações sociais. A forma como Granovetter resolve o dilema das versões sub e super socializadoras está no conceito de redes, que surge no seguinte trecho:

“O argumento da inserção (social) enfatiza o papel das relações pessoais concretas e das estruturas (ou ‘redes’) de tais relações na geração de confiança e no desestímulo à desonestidade. A preferência difundida por realizar transações com indivíduos de boa reputação implica que poucos estão realmente satisfeitos em contar apenas com a moralidade geral ou os arranjos institucionais para se resguardar de problemas” (GRANOVETTER 1985: 498, grifos no original)31. Além de explicar fenômenos pontuais, como a procura de emprego e a realização de negócios, a abordagem de redes poderia explicar também a conformação de determinados setores econômicos, onde as relações pessoais tenham pesado na definição do modelo institucional. É o caso dos serviços públicos de energia elétrica, estudados por Patrick McGuire. O modelo norte-americano de distribuição de energia elétrica, baseado em pequenas fornecedoras privadas, responsáveis pela produção de sua própria energia, teria sido forjado com a chegada de um indivíduo, Samuel Insull, que estava no centro de uma variada rede de contatos, que incluía banqueiros norte-

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Alain Caillé (1998) sustenta que, ao dar ênfase às relações de confiança e reciprocidade, Granovetter estaria lançando mão, mesmo sem saber, do paradigma da dádiva concebido por Marcel Mauss (1995), sendo o kula nada mais que um exemplo do fenômeno das redes. “Sem saber – já que os sociólogos americanos ignoram completamente Mauss –, Granovetter centra sua reflexão a respeito das redes exatamente naquilo que Mauss descobrira em sua busca da dádiva através da infinita variedade de culturas: fidelidade e confiança.” (CAILLÉ 1998: 18)

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americanos e ingleses, políticos e profissionais técnicos de diferentes regiões dos Estados Unidos. Com base nesta rede, ele foi capaz de organizar um sistema de produção e distribuição que eventualmente ganharia uma dinâmica própria,32 reproduzindo-se daí em diante de forma independente da estrutura de rede inicial (MCGUIRE 1986 apud GRANOVETTER 1990: 102-104). Este tipo de pesquisa abriu espaço para que Granovetter explorasse o conceito de “construção social da realidade” proposto por Berger e Luckman para desenvolver o conceito homólogo de “construção social da economia”. De acordo com aqueles autores, quando uma instituição se torna realidade, as pessoas orientam suas ações com relação a um conjunto de atividades sancionadas por outros atores sociais, tratando o padrão como algo que existe fora do tempo e que não poderia ser diferente. Mas este sentido das instituições como “externas e objetivas” seria um efeito que a sociedade produziria sobre seus membros, levando-os a naturalizar os arranjos sociais presentes. Berger e Luckman enfatizam que seria impossível entender uma instituição sem entender o processo histórico pelo qual ela foi produzida. Granovetter se remete neste ponto à noção de “path-dependent development” para explicar o tipo de forma organizacional e institucional estudado por McGuire, argumentando que as instituições econômicas são construídas pela mobilização de recursos através de redes sociais, conduzidas, claro, contra um pano de fundo de constrangimentos dados pelo desenvolvimento histórico prévio da sociedade, política, mercado e tecnologia (GRANOVETTER 1990: SWEDBERG e GRANOVETTER 1992: 18).33 Outro importante estudo empírico baseado na abordagem de redes é o trabalho de Richard Locke, sobre a reestruturação econômica da Itália nos anos 80 (LOCKE 1995). Ao analisar o caso italiano, o autor ressalta uma aparente contradição entre a dinâmica política e o desempenho econômico daquele país. Do ponto de vista político, a Itália pareceria reunir uma série de pontos fracos, tais como a falta de um modelo nacional forte e coerente, instabilidade governamental, desequilíbrios macroeconômicos e problemas específicos como a existência de atividades terroristas. Do ponto de vista do desempenho econômico, no entanto, o país foi capaz de se reestruturar nos anos 80 apresentando crescimento do PIB, da taxa de poupança e da produtividade, obtendo em alguns casos índices superiores aos dos países considerados “modelos” de 32 33

Granovetter usa o termo inglês “lock in”. Como veremos adiante, este tipo de argumento está no cerne do Institucionalismo Histórico.

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reestruturação bem-sucedida. Tudo isso apesar do fracasso das tentativas de se adotar no país estratégias de ajuste baseadas nestes modelos bem-sucedidos, como por exemplo o neo-corporativismo dos países nórdicos e a ênfase no livre-mercado, ao estilo norteamericano. O autor lembra que as abordagens tradicionais da Economia Política Comparada, ao privilegiarem a dimensão nacional como plano de análise, trataram o caso italiano acentuando o caráter “anômalo” de suas instituições. Ao fazê-lo, no entanto, não deram conta dos elementos dinâmicos da economia italiana. A alternativa explicativa sugerida, então, é a de uma análise da micropolítica, que busque nos processos locais a chave para a compreensão do que seria a “realidade italiana”. É sob este prisma que Locke incorpora a abordagem de redes desenvolvida por Granovetter para explicar como, conforme o tipo do que ele chama de “infra-estrutura sócio-política” – a estrutura de redes – na qual estariam inseridos os atores econômicos, diferentes resultados podem advir no que diz respeito aos processos econômicos. Ele propõe uma tipologia destas redes (LOCKE 1995: 25-27), que poderiam ser:



Policêntricas: rede densa de associações e grupos de interesse abrangentes ligados por meio de laços horizontais. Nestes casos, a informação flui com mais liberdade entre os atores, e mesmo onde há desacordos e eventuais rupturas, outros grupos podem servir de ponte para a comunicação entre os agentes.



Polarizadas: caracterizadas por um pequeno número de grupos de interesses, organizados paroquialmente e com pouco desenvolvimento organizacional. Há pouca fluência na comunicação, e quando há conflito, a tendência é de se produzir um “jogo de soma zero”.



Hierárquicas: forma híbrida, incorporando aspecto de ambas, gerando, assim, resultados também híbridos em termos do sucesso quanto ao desenvolvimento econômico em geral. A informação não flui tão livremente, porque ela é trocada apenas entre atores ligados por laços verticais. Desta forma, os atores localizados nas posições mais altas terão acesso a mais informações, e a um quantum maior de poder. Geralmente, as decisões são tomadas num estilo verticalizado.

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Analisando a reestruturação na indústria automobilística italiana, Locke ressalta as trajetórias distintas assumidas pelas duas principais empresas do país, a Fiat e a Alfa Romeo. No caso da primeira, as relações industriais se caracterizaram historicamente pela produção em massa, uso de mão-de-obra semi-qualificada e por um misto de paternalismo e autoritarismo na postura da empresa com os empregados. Em determinadas conjunturas, prevaleceu um acirramento dos conflitos entre as partes, com destaque para o episódio do “Outono Quente” no final dos anos 1960, quando o sindicalismo foi capaz de impor uma série de demandas ao patronato, alcançado uma série de conquistas em relação ao controle do trabalho. Dentre estas, destaca-se um ganho real dos salários acima da inflação nos primeiros anos da década de 1970. Ao mesmo tempo, a indústria automobilística entrou em crise em nível mundial, crise esta que se refletiu na empresa de modo especialmente dramático. Ante a aludida crise, a postura do sindicato foi contrária a negociar uma reestruturação, a qual necessariamente envolveria perdas para as partes envolvidas. Atendo-se às mesmas táticas de confronto que marcaram a experiência do “Outono Quente”, os sindicalistas eventualmente se viram derrotados pelos dirigentes da Fiat. Dada a gravidade da crise, os dirigentes da empresa partiram para uma confrontação que chegou ao ponto de se ter promovido atos públicos contra o sindicato, os quais vieram a ser apoiadas pela população e por parte dos próprios funcionários. O resultado para o sindicato foi a perda de legitimidade perante a opinião pública e os trabalhadores, assistindo a uma acentuada redução de seus filiados. Na virada para os anos 1980, a reestruturação da Fiat passou a ser implementada sem a participação do sindicato, com a retomada de uma postura repressiva no interior da fábrica. A empresa conquistou bons níveis de produtividade, qualidade e competitividade, mas o sindicato perdeu boa parte de sua legitimidade e de sua capacidade de ação. No caso da Alfa Romeo, a crise da empresa era ainda mais grave, uma vez que havia se consolidado na produção de carros de luxo desde sua fundação, e justamente no

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período que antecedeu à crise mundial do setor, no início dos anos 1970, decidiu entrar no mercado de carros populares. As relações industriais, no entanto, eram qualitativamente diferentes às da Fiat, sendo caracterizadas por uma mão-de-obra mais qualificada e por um padrão de negociação amadurecido entre sindicato e empresa. A crise, que levou a Alfa Romeo a ser comprada pela própria Fiat nos anos 1980, também foi superada e a empresa também foi capaz de se reestruturar, tornando-se competitiva. Ao contrário da experiência da Fiat, no entanto, a representação sindical na Alfa Romeo esteve sempre disposta a negociar a reestruturação, conquistando legitimidade e maior espaço entre os trabalhadores. Para além das características internas do setor, ou mesmo das diferentes estratégias de competitividade (que ademais tenderam a convergir ao longo dos anos 70, quando ambas empresas passaram a apostar na diversificação do segmento de carros populares), a maneira diferenciada como a reestruturação foi efetivada se deveu, segundo o argumento de Locke, ao fato de que as empresas estavam situadas em ambientes muito diferenciados no que diz respeito à “infra-estrutura sócio-política”. Na cidade de Turim, onde estava sediada a Fiat, prevalecia um baixo índice de associativismo, a inexistência de atores capazes de mediar as tensões entre sindicato e empresa, de modo que a relação entre ambos se aproximava do tipo de redes polarizadas. A Alfa Romeo, por outro lado, tinha sede em Milão, cidade com maior número de associações secundárias capazes de manter o fluxo de informação e uma distribuição mais equilibrada de recursos, impedindo a desconexão completa entre empresa e sindicatos. Prevaleceu, então, uma estrutura de redes mais próxima do tipo “policêntrico”. Neste caso, a percepção dos atores valorizava a negociação, enquanto no anterior, esta percepção estava mais marcada por uma idéia de “tudo ou nada”, num jogo de soma-zero. Dois pontos merecem ainda destaque segundo o autor. Primeiramente, Locke chama atenção para os limites em termos de eficácia que podem ter as tentativas de replicar

experiências

estrangeiras.

As

estratégias

de

fomentar

arranjos

neocorporativistas na Itália ou as tentativas de fortalecimento do livre-mercado com base em experiências desenvolvidas, respectivamente, no contexto dos países escandinavos e dos Estados Unidos, mostraram-se incapazes de dar conta dos problemas enfrentados pela Itália. E isto, em boa parte, devido ao caráter heterogêneo da economia

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política daquele país. Por outro lado, Locke afirma que a sua abordagem do caso italiano pode iluminar novas interpretações das economias industriais avançadas em geral, haja vista as transformações no sentido de maior fragmentação que vêm caracterizando o capitalismo contemporâneo. 2.2. A abordagem do Institucionalismo Histórico Como vimos, as instituições aparecem como um dos elementos centrais de uma Sociologia Econômica. De forma semelhante, segundo Peter Hall e Rosemary Taylor (2003), a teoria política contemporânea teria assistido a uma crescente ênfase no papel das instituições para a compreensão seja da comunidade política propriamente dita, seja da economia política em geral. Assim, os autores falam da expansão de um “neoinstitucionalismo”, movimento que se desdobraria em pelo menos três vertentes: o institucionalismo histórico, o institucionalismo sociológico e o institucionalismo da escolha racional. Enquanto os dois últimos seriam versões das teorias, respectivamente, formalistas e substantivistas criticadas por Granovetter, o institucionalismo histórico seria aquele que representaria uma tentativa de fugir da limitação de ambas as abordagens. Ao fazê-lo, esta versão do institucionalismo reconheceria a centralidade de uma ação orientada por interesses, mas procurariam situa-la no interior de um complexo de regras formais e informais34, estruturas de poder e trajetórias históricas – aí incluídas as “situações críticas e as conseqüências imprevistas” – que teriam impacto sobre o resultado das ações e o próprio (re)ordenamento institucional.35 Na linha do institucionalismo histórico está o trabalho de Peter Evans sobre a relação entre as dinâmicas da política e da economia no caso da indústria de informática em países do terceiro mundo (EVANS 1995).36 O ponto de partida de Evans é de que o processo produtivo envolvendo tecnologias avançadas oferece maior espaço para que os 34

Daí a definição de “instituição” formulada por Hall e Taylor, que seriam “os procedimentos, protocolos, normas e convenções oficiais e oficiosas inerentes à estrutura organizacional da comunidade política ou da economia política. Isso se estende das regras de uma ordem constitucional ou dos procedimentos habituais de funcionamento de uma organização até às convenções que governam o comportamento dos sindicatos ou as relações entre bancos e empresas” (HALL e TAYLOR 2003: 196). 35 Sobre o institucionalismo, ver também THÉRET (2003), que traça um paralelo entre as abordagens institucionalistas da Sociologia e da Economia. Este artigo mostra que há abordagens econômicas que fogem ao paradigma neoclássico, como por exemplo, a Escola da Regulação, que segundo o autor guardaria relação direta com o Institucionalismo Histórico. Sobre a perspectiva da Escola da Regulação, ver BOYER 2001. 36 Ver também EVANS (1997).

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países busquem desenvolver setores produtivos que lhes permitam se inserir nos “nichos de mercado” mais atraentes na divisão internacional do trabalho. No entanto, ao contrário do que pressupõe a abordagem liberal, o empresariado não é um ator disposto a correr riscos, preferindo se concentrar em atividades consolidadas do que apostar na criação de novos setores, especialmente aqueles mais avançados e com maiores custos iniciais. Desta forma, a entrada em segmentos com maior vantagem competitiva não pode depender apenas do espírito empreendedor dos empresários locais. Enquanto em termos neoliberais o debate esteve centrado no eixo “mais Estado/menos Estado”, Evans propõe que o ponto principal relacionado à transformação industrial e ao desenvolvimento econômico não diz respeito à quantidade, mas sim à qualidade da presença do Estado na economia.37 Evans propõe uma tipologia do Estado moderno baseada em dois pólos opostos: o Estado predatório e o Estado desenvolvimentista. O primeiro tipo é construído a partir do caso do antigo Zaire, onde as lideranças políticas se caracterizaram por uma relação de apropriação intensiva dos recursos do Estado, inviabilizando a oferta de serviços e de investimentos à população.38 O tipo oposto é construído a partir do caso da Coréia do Sul, cuja burocracia de Estado foi capaz de liderar um projeto de transformação industrial que inseriu o país no rol das nações desenvolvidas. O Estado desenvolvimentista se distingue quanto à sua estrutura interna pela existência de um corpo de funcionários, isto é, por uma burocracia, que se aproxima do tipo ideal weberiano. Suas principais características seriam a constituição de uma burocracia dotada de coerência corporativa – um autêntico esprit de corps – que por sua vez seria garantido pelo preenchimento de critérios tais como a formação de alto nível de seus quadros e pela existência de um plano de carreira estruturado segundo um modelo meritocrático. Uma identidade profissional forjada sob tais critérios seria capaz de impor barreiras à cooptação por parte de interesses privados e ao mesmo tempo de se mobilizar com vistas à busca de bens coletivos. Às características internas somam-se as relações entre Estado e sociedade. Além da coerência corporativa, é preciso que o Estado esteja suficientemente conectado com

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Sobre este ponto, ver também BLOCK 1994, cujos argumentos são apresentados no final do capítulo. Evans lembra que “predação é apenas um termo pejorativo para o comportamento racional maximizador e individualista” (EVANS 1997: 68). A existência de um tipo oposto é o que põe em xeque a universalidade sugerida pela teoria neo-utilitária para este comportamento.

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os agentes econômicos privados para garantir que as políticas de estímulo a estes agentes terão efetividade. Em países como a Coréia do Sul e o Japão, as conexões entre burocracia estatal e agentes econômicos tiveram caráter formal – através de espaços institucionalizados de interlocução – e também caráter informal, através de contatos pessoais, como por exemplo a passagem pelas mesmas instituições de ensino. Daí deriva a definição de Evans para o tipo de Estado que foi capaz de promover o desenvolvimento econômico nos países por ele estudados. Seriam os Estados dotados de uma autonomia inserida, expressão que, pelo seu tom paradoxal, sugere o caráter dinâmico das relações entre Estado e sociedade. Neste sentido, ganha relevo o capítulo conclusivo em que o autor propõe uma reflexão sobre os limites e as possibilidades de renovação da autonomia inserida. Ali, o autor destaca o movimento de contestação do Estado por parte dos atores trazidos à cena social pela própria política de desenvolvimento por ele capitaneada. No caso da Coréia, uma vez atingido um patamar avançado de desenvolvimento, a elite industrial gestada pelo Estado desenvolvimentista passou a adotar uma ideologia anti-estatista, baseada numa posição de maior poder político e econômico, com maior capacidade de se articular diretamente à dinâmica internacional sem passar pelos canais do Estado39. A hipótese de Evans é a de que o desenvolvimento de novas forças sociais demanda relações entre Estado e sociedade diferentes das que produziram uma primeira fase de desenvolvimento. O autor, no entanto, destaca que os laços de autonomia inserida entre Estado e sociedade se limitaram na maioria dos casos por ele estudados, especialmente a Coréia do Sul, à elite empresarial. Um dos desafios colocados num contexto pósdesenvolvimento, então, diria respeito à capacidade do Estado em ampliar o escopo de suas relações com a sociedade, incorporando novos atores, sob pena do desenvolvimento ser excludente do ponto de vista de todo um conjunto de atores sociais, e eventualmente até do próprio Estado.40

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Evans cita a campanha de Chung Ju Yung para a presidência em 1992. Originalmente à frente do chaebol liderado pela Hyunday (o qual deveu sua consolidação à política de fortalecimento industrial estudada pelo autor), o candidato adotou o slogan “Get government out of business” (EVANS 1995: 229). 40 Em sua conclusão, o trabalho de Ben Schneider sobre a relação entre atores estatais e a organização do empresariado na América Latina sugere a possibilidade de extensão de seus argumentos para o caso do sudeste asiático (SCHNEIDER 2001). A partir da análise dos casos do Brasil, Argentina, Colômbia, México e Chile, Schneider mostra que os agentes estatais são capazes de criar incentivos (intencionais ou não), motivados pela necessidade de apoio em momentos de crise ou transição do modelo de desenvolvimento, para que o empresariado busque formas coletivas de atuação. A pretensão do autor é oferecer uma perspectiva analítica alternativa à abordagem de tom neo-utilitário que reduz a ação por

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2.3. Alguns casos latino-americanos A análise de alguns casos latino-americanos reforça a percepção de que política e economia se relacionam de modo complexo. Diferentemente dos contextos analisados anteriormente, no entanto, a regra na América Latina tem sido a inexistência de traços históricos do mesmo tipo da “autonomia inserida” ou da existência de uma “infraestrutura sócio-política” identificados nos estudos de Evans e Locke. No contexto latino-americano, quando se fala em “relações formais e informais” entre Estado e empresariado, reforça-se a imagem de corrupção e rent-seeking, ao mesmo tempo em que idéias de associativismo e confiança entre Estado, empresariado e trabalhadores soam um tanto quanto fora de lugar dadas as experiências de autoritarismo que varreram o continente. Ainda assim, pode-se falar de determinadas configurações em que Estado e empresariado foram capazes de, em colaboração, promover mudanças econômicas de maneira bem-sucedida. Rosemary Thorp e Francisco Durand (1997), por exemplo, fazem uma comparação entre os casos da Colômbia, Peru e Venezuela, onde a variável dependente é a capacidade de mudança, e não o crescimento econômico em si. Neste caso, os autores lançam mão de argumentos baseados na Teoria das Escolhas Racionais (que curiosamente guarda íntima relação com o paradigma neo-utilitário) para mostrar como a percepção dos atores sobre custos e oportunidades favoreceram a consolidação institucional e colaboração com o governo. Dentre os três casos estudados, a Colômbia é o único onde foi possível gerenciar as mudanças no sentido de adaptar a economia ao novo contexto da globalização. Na Colômbia, o sucesso na implementação das mudanças se deu graças aos laços entre Estado e uma associação empresarial de caráter abrangente, criada a partir do principal produto nacional de exportação, o café. Esta associação era o FNC (Fondo Nacional del Café), onde se reuniam empresários com negócios espalhados em diversos setores da economia, sendo na prática uma umbrella association. Esta associação foi criada nos anos 1920, num momento em que na Colômbia as pequenas fazendas se tornavam os principais produtores e o setor enfrentava a concorrência do café brasileiro. A partir daí, governo e associação consolidaram uma tradição de colaboração que se parte dos agentes do Estado à lógica eleitoral, e neste sentido, pode ser considerada complementar à de Evans.

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estendeu aos setores para além do plantio do café. A associação, vale destacar, atuou não só na negociação com o governo, mas também no desenvolvimento de tecnologia e em recursos comuns para comercialização do produto. Ao mesmo tempo, a produção do café, que era regionalizada e descentralizada, fomentava a criação de indústrias. Foi assim que se criou em torno do Fondo uma cultura comum de confiança e reciprocidade entre Estado e agentes econômicos. Peru e Venezuela, por sua vez, também criaram entidades de caráter abrangente. No entanto, a opção por uma política eminentemente liberalizante ao longo de sua história criou no Peru um ambiente em que os grupos locais não se sentiram incentivados a investir nas associações empresariais ou em ações coletivas. A tendência do empresariado foi investir na associação com os grupos internacionais e, assim sustentados, buscar canais de interlocução diretos com o governo. No caso da Venezuela, o Estado e os agentes econômicos se organizaram em torno da exploração do petróleo, que garantiu recursos suficientes para sustentar a oferta de benefícios para os agentes locais. A estratégia do empresariado, então, orientou-se pela busca por estes recursos, desconsiderando estratégias de mais longo prazo, como o investimento na diversificação da atividade econômica. Tanto no Peru como na Venezuela, as mudanças ocorridas a partir dos anos 70 colocaram os respectivos modelos em crise. Nestes casos, pesou a ausência de uma relação de colaboração institucionalizada, orientada para a busca de soluções coletivas e de longo prazo, levando a crise a ganhar contornos mais dramáticos. Eventualmente, o Peru sob Fujimori assistiu à emergência de uma confederação intersetorial com a qual a implementação de mudanças veio a ser negociada. Já no caso da Venezuela, prevaleceu a aposta num modelo radical de mercado com Carlos André Perez. Com esta estratégia, ganhou espaço um corpo de tecnocratas que promoveu o ajuste de modo totalmente isolado do empresariado. O que os autores ressaltam ter redundado num “desastre” do ponto de vista da atividade industrial, uma vez que o empresariado ficou relegado às incertezas de uma economia internacionalizada, o que é especialmente agravado quando se trata de um país dependente de um produto como o petróleo. A trajetória chilena de implementação do ajuste neoliberal, por sua vez, é um exemplo das tensões entre um tipo de intervenção política fundada na idealização da

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lógica de mercado em sentido puro, tal como representada pelo modelo neoclássico, e a dinâmica política concreta. As análises de Patrício Silva (1995) e Eduardo Silva (1997) fazem uma cronologia desta trajetória, que começa com o golpe militar que destituiu o governo socialista de Allende em 1973. Para o empresariado, o golpe representou antes de mais nada a recuperação do “direito à propriedade privada”, assim como a construção de um modelo não intervencionista de Estado. Enfraquecido politicamente e historicamente incapaz de formular um projeto próprio de desenvolvimento, o empresariado se viu limitado a legitimar o governo militar ante esta dupla “conquista”. Na falta de um projeto coerente por parte da sua coalizão de apoio, o governo Pinochet colocou a gestão da economia nas mãos de um grupo de economistas de orientação neoliberal, os chamados Chicago Boys. Enquanto os atores do campo popular foram perseguidos politicamente, o empresariado ficou excluído do debate sobre a política econômica, haja vista o estilo de gestão dos Chicago Boys que se orientou pela exclusão dos setores sociais em relação ao centro de poder. Por outro lado, ganharam espaço no campo econômico os agentes ligados ao setor financeiro e ao capital internacional. Os grandes grupos econômicos passaram a dominar virtualmente toda a economia chilena, controlando bancos, grandes indústrias mundialmente competitivas e meios de comunicação. Com um alto grau de concentração das atividades econômicas, estes grupos se viram dotados de um maior poder de barganha, eventualmente obtendo acesso aos núcleos de poder. Assim, ficou claro que “estes conglomerados financeiro-industriais haviam se convertido nos novos protagonistas do processo de desenvolvimento

impulsionado pelo projeto econômico neoliberal”

(SILVA 1995: 8). Durante este período, ao qual Eduardo Silva se refere como “neoliberalismo radical” (SILVA 1997: 156-165) prevaleceu um clima de incerteza no conjunto do empresariado, com redução dos investimentos. Já no início dos anos 80, se desenhou um quadro de crise econômica que, do ponto de vista da tecnocracia neoliberal, era passageiro e passível de correção pelo próprio mercado. No entanto, de passageira a crise passou crescentemente a ser percebida como duradoura, e os governos militares se viram diante de um clima de contestação que ganhou proporções de massa, enquanto os empresários, sem deixar de apoiar politicamente o regime, manifestaram-se em favor de

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uma ação mais pragmática por parte do governo, voltada para o apoio dos setores industriais nacionais. A partir de 1983, ganhou força um “neoliberalismo pragmático” (SILVA 1997: 165-172) com a ênfase numa nova ordem liberal (não mais neoliberal, e restritiva, como a dos Chicago boys) em que o empresariado nacional ganhou mais espaço dentro do governo para negociar políticas específicas, sem abrir mão dos princípios mais gerais da economia de mercado. Eventualmente a economia chilena retomou o crescimento, reforçando a percepção de que a participação do empresariado na definição das políticas econômicas do país era fundamental para a sua modernização. Um evento em particular foi decisivo na orientação das ações do empresariado: a derrota de Pinochet no plebiscito de 1988. Com este resultado, eleições teriam de acontecer, e as forças políticas liberais teriam de disputá-las dentro de um espaço com o qual elas não tinham intimidade: o debate público e a disputa partidária. Neste contexto, a grande questão que se colocava para o empresariado dizia respeito à possibilidade do modelo liberal ser derrotado por forças de esquerda de orientação econômica estatista. Visando reduzir a resistência por parte da classe empresarial, os partidos democráticos de esquerda procuraram afirmar uma nova postura, reconhecendo o empresariado como portador de um importante papel na modernização chilena, processo no qual se incluía o fortalecimento da economia de mercado. Com efeito, venceram as eleições os partidos democráticos de centro-esquerda organizados na Concertación. Este período, chamado de “Democrático” (SILVA 1997: 173-179) assistiu à reorientação do debate político no sentido do enfrentamento do déficit social que permanecera intocado nos anos de neoliberalismo radical e pragmático. A partir de um trabalho de negociação e busca de grandes consensos nacionais empreendido pelo governo, no qual se engajaram empresários, trabalhadores e partidos de oposição, entrou como um dos primeiros itens da pauta o enfrentamento do forte déficit social existente, o que deveria ser feito com base num financiamento que não prejudicasse o crescimento econômico e a estabilidade financeira. Uma série de acordos nacionais foram travados, nos quais por um lado se reafirmaram os compromissos em torno da economia de mercado e do papel central da iniciativa privada, e por outro foram estabelecidas metas de aumento da renda real dos trabalhadores e de itens mais específicos ligados à saúde no trabalho e qualificação

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profissional, entre outros. Vale assinalar também que a eliminação da pobreza, neste novo contexto, foi tratada pelo governo como problema estratégico, inseparável do projeto de modernização do país, e não como problema moral. Segundo Eduardo Silva e Patrício Silva, o resultado global foi amplamente positivo em termos de crescimento econômico, redução do desemprego e outros indicadores. Ainda no caso chileno, o trabalho de Cecília Montero (2002) sobre o cluster da salmonicultura oferece uma outra visão sobre a relação “público x privado” e desempenho econômico. A autora aborda a formação dos clusters para mostrar que se trata de uma nova forma de governabilidade econômica, baseada na cooperação e na interdependência, onde o enfoque migra das empresas individualmente para o conjunto de atores – empresários, setor público, instituições de ensino e pesquisa e outros – que participam da dinâmica econômica que necessariamente está articulada à dinâmica política. Para a autora, este seria um mecanismo mais eficiente de inserção no comércio internacional globalizado, afirmando que “a nova dinâmica do desenvolvimento se baseia na capacidade de cada conglomerado produtivo localizado de competir potencializando seus recursos naturais, capital humano e capital social” (MONTERO 2002: 40).41

2.4. Em busca de uma Sociologia Política do mercado A teoria sociológica contemporânea tem insistido, contra o argumento neoclássico, que não se pode falar de algo como o mercado como uma entidade abstrata, exterior ao conjunto de relações sociais presente em cada sociedade, a qual seria capaz de dar conta dos desafios do crescimento e do desenvolvimento econômico diante das incertezas do atual estágio do capitalismo globalizado. A crítica da representação neoclássica do mercado, por outro lado, não implica a inexistência de algo a que se

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A autora, no entanto, não tem uma apreciação tão otimista em relação ao futuro do cluster da salmonicultura chileno, uma vez que se trata de “cluster baseado em recursos naturais”, e como tal, enfrenta desafios que extrapolam a capacidade de intervenção da dinâmica política local. A questão da sustentabilidade ambiental, a dependência em relação a grandes empresas estrangeiras, a mudança no perfil dos produtores locais (fazendo desaparecer os laços que deram o impulso inicial à formação do cluster) e a demanda por mais recursos públicos torna a vitalidade deste modelo um desafio para todos os atores envolvidos.

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possa dar o nome de mercado. Neste sentido, uma das direções em que a Sociologia Econômica contemporânea tem se desenvolvido é o da construção da dimensão social e política do mercado.42 A dimensão política das relações de mercado tem sido explorada em diferentes sentidos, mas com base nos trabalhos de Pierre Bourdieu (1997) e Neil Fligstein (1990, 2001a, 2001b), explorarei dois sentidos específicos: o sentido de mercado como campo de luta entre agentes econômicos,43 e a relação das instituições políticas com a organização do mercado. Para explicar o comportamento dos agentes econômicos no mercado, Bourdieu parte de uma pesquisa empírica sobre o mercado de moradia numa região francesa, discutindo a centralidade das políticas públicas na conformação deste mercado, através do que ele chama de “construção social da oferta”. Bourdieu aplica sua clássica teoria do habitus e do campo para explicar o comportamento dos agentes econômicos no mercado, dando ênfase à disputa entre os atores dominantes e dominados como central para explicar a disputa entre empresas. A dinâmica do mercado, no entanto, não estaria descolada daquela de outros campos,44 e atores externos ao mercado – com destaque para o Estado – teriam papel importante na conformação da organização do campo, isto é, na disputa entre dominadores e dominados.45 Neil Fligstein vem desenvolvendo numa série de livros e artigos uma visão articulada da relação entre economia e política, que ele define através da metáfora do “mercado

como

política”

(FLIGSTEIN

2001b).

O

primeiro

momento

do

42

Por dimensão social, entendemos algo bem diverso dos movimentos que pretendem ligar a imagem dos agentes econômicos a ações em prol do bem-comum, como por exemplo o movimento de “responsabilidade social das empresas”. Social é aqui utilizado no sentido weberiano do termo, ou seja, envolvendo um conjunto de ações reciprocamente orientadas (WEBER 1994: 3), podendo ser tanto de dominação como de cooperação. 43 Deve-se registrar que a utilização do conceito de “luta” na Sociologia Econômica não é uma novidade. Como mostra RAUD (2003: 7), Weber utilizou este conceito (que na teoria econômica seria apenas “competição”) ao lado da “troca” como dois processos básicos que definiriam a interação no mercado. 44 Neste sentido, Bourdieu afirma: “Assim, as mudanças no interior do campo são freqüentemente ligadas a mudanças nas relações com o exterior do campo” (BOURDIEU 1997: 58). 45 Dominadas ou dominantes, as empresas são também percebidas por Bourdieu como um campo, e ele chega mesmo a destacar que se trata de uma “caixa-preta” na qual seria preciso penetrar, pois lá encontramos “não indivíduos, mas, uma vez mais, uma estrutura, aquela do campo da empresa que dispõe de uma autonomia relativa em relação aos constrangimentos associados à posição no campo das empresas” (BOURDIEU: 1997: 60). O autor o faz sem levar em consideração a existência, na França, de um consolidado campo da Sociologia da Empresa. Os autores deste campo têm analisado a empresa como um constructo social, incorporando múltiplos valores e projetos, sendo capaz de construir uma cultura e uma identidade própria, dotada de uma relação de “autonomia relativa” com o meio social. Para uma revisão desta literatura, ver KIRSCHNER e MONTEIRO (2001, 2002).

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amadurecimento desta abordagem foi a pesquisa sobre grandes corporações norteamericanas, em um recorte histórico que vai do final do século XIX até a década de 1970 (FLIGSTEIN 1990). O autor propõe um modelo teórico acerca da relação entre atores na empresa – empresários e gerentes –, e Estado, baseado na premissa de que os atores estariam sempre em busca da criação de “campos organizacionais” dentro dos setores da produção em que atuam, os quais garantiriam uma certa estabilidade para a ação no campo econômico46. Esta estabilidade seria eventualmente atingida, e prevaleceria uma determinada concepção de controle, que por sua vez, perderia espaço quando houvesse mudanças no ambiente competitivo. Estas mudanças podem ser provocadas pela entrada de novas empresas no mercado com condições de alterar a configuração presente, por crises externas ao mercado, ou pela ação do Estado. O autor apresenta uma narrativa histórica sobre o processo de consolidação das diferentes concepções de controle em meio ao desenvolvimento do capitalismo norteamericano, a partir do surgimento das grandes corporações. A sua narrativa explicita aspectos particulares da cultura política e econômica americana, tais como a importância da legislação e das instituições que zelam pela sua garantia, especialmente o Judiciário, e a importância dos atores-chave ocupando postos nas instituições públicas. Assim, a mudança nos postos-chave da burocracia estatal, como o cargo de attorney general ou os quadros dirigentes de uma agência, conduzia a mudanças na aplicação da legislação – por exemplo, na aplicação mais ou menos rigorosa das leis anti-truste – com impacto sobre as estratégias empresariais e a conformação do mercado.47

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Diferente da concepção tradicional do empresário, que seria um empreendedor disposto a correr riscos, Fligstein sugere que os capitalistas estariam sempre em busca de um mundo estável, em que pudessem desenvolver suas atividades com segurança. As mudanças na organização do mercado “não seriam produto de atores maximizadores em firmas eficientes trabalhando para se tornar ainda mais eficientes. Gerentes e empresários não foram otimizadores ou provedores. Ao contrário, eles construíram cursos de ação baseados em suas análises dos problemas de controle por eles enfrentados. As novas concepções e as estratégias e estruturas resultantes foram bem-sucedidas até o ponto em que permitiram às firmas sobreviver e crescer” (FLIGSTEIN 1990: 2). Em um artigo mais recente, Fligstein afirma: “A questão principal é que as estruturas sociais dos mercados e a organização interna das empresas são melhor apreendidas quando tomadas como tentativas de atenuar os efeitos da concorrência com outras empresas. Esboço uma abordagem político-cultural e uso a metáfora ‘mercado como política’ para discutir como essas estruturas sociais se tornam realidade, produzem mundos estáveis e se transformam” (FLIGSTEIN 2001b: 27). 47 As seguintes concepções de controle teriam emergido na economia norte-americana: “Manufatureira”, “Vendas e Marketing”, “Financeira” e finalmente aquela ligada ao “Valor Acionário” (“Shareholder’s value”). Cada uma refletiria o resultado da dinâmica político-institucional e dos jogos de poder internos às empresas, levando determinados grupos a ter mais poder que outros. A última concepção, presente a

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Na mesma linha seguida por Bourdieu, Fligstein sugeriu que o mercado seria um campo de luta dividido entre empresas dominantes (“incumbents”) e empresas desafiadoras (“challengers”). As dominantes seriam aquelas cujas respostas para o problema da estabilidade do mercado predominariam. A princípio, as empresas desafiadoras obedeceriam à lógica das dominantes, mas sua ação estaria orientada para aproveitar as oportunidades de ocupar novos nichos, criar novos mercados ou alterar a configuração de poder existente, dependendo sempre dos recursos disponíveis, sejam eles internos ou externos ao mercado. Resumindo o conjunto da argumentação aqui apresentada, num artigo voltado para uma discussão sobre o papel do Estado na economia, Fred Block propõe um novo paradigma para se pensar as relações entre Estado e mercado, o qual

“reconhece que a atividade econômica sempre envolve alguma combinação da atividade estatal e do mercado. A ação do Estado é inevitável porque os Estados são necessários para a constituição das economias. Todavia os mercados também são uma característica inevitável da organização social porque quando os indivíduos podem fazer escolhas, os mercados representam um mecanismo lógico e útil para agregar estas escolhas. Os mercados, porém, podem ser estruturas em diferentes formas; variações nas regras gerais produzirão resultados muito diferentes. A questão é que tudo depende das especificidades na forma como a ação do Estado os mercados se combinam.” (BLOCK 1994: 697)48

partir dos anos 1980, demarcaria o fortalecimento dos acionistas, de forma que as estratégias empresariais passariam a priorizar a remuneração destes sobre quaisquer outros fatores. Tal concepção de controle estaria intimamente ligada ao modelo norte-americano de globalização, criticado por Fligstein no mesmo tom de outros autores citados anteriormente. Segundo Fligstein: “No coração da economia norteamericana se desenvolveu a idéia de que uma empresa pode se reduzir a seu balanço anual, e que sua função principal é garantir um fluxo de rendimentos a seus proprietários e acionistas. Assim, ativos de performance insuficiente devem ser vendidos a preços vis e os lucros redistribuídos aos acionistas ou reinvestidos em setores onde as taxas de lucro sejam mais atrativas. Esta visão da empresa se cristalizou em reação às incertezas dos anos 70 (…). É assim que durante esta década se desenvolveu, a partir da economia financeira, a concepção de empresa em termos de ‘valor acionário’. A idéia de base é que somente a performance financeira deve servir de critério às decisões estratégicas” (FLIGSTEIN 1997a: 45). 48 Ainda segundo o autor, os atores sempre terão alguma escolha do ponto de vista econômico, a menos que se encontrem em sociedades completamente repressivas. Por outro lado, é preciso que se fale dos constrangimentos e controles de natureza política sobre os bens produtivos. Block lembra que estes são claramente perceptíveis em sociedades cuja economia esteja organizada num modelo socialista ou feudal. “Mas o mesmo é verdade para o executivo de uma firma capitalista contemporânea; sua discricionariedade é claramente limitada por uma complexa estrutura legal e cognitiva, incluindo as relações específicas entre os presidentes, a diretoria e as agências reguladoras do Estado” (BLOCK 1994: 699).

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Dentro deste novo paradigma, haveria uma série de interseções entre o funcionamento do mercado e a intervenção estatal, como por exemplo o que Block chama de “estrutura das relações recorrentes”, que diz respeito a temas como os direitos dos trabalhadores e dos patrões, os quais são definidos pela ação do Estado. Há também a interseções relativas às formas de pagamento – o dinheiro e o crédito –, que são estatalmente reguladas, o que significa que o governo sempre vai influir na disponibilização de crédito e na emissão de moeda, não havendo como ser “neutro” quanto ao resultado de suas políticas neste sentido. As sociedades, assim, sempre teriam algum grau de escolha quanto a maior tendência à estabilidade dos preços ou ao maior crescimento econômico. O autor salienta ainda a interseção relativa ao controle das fronteiras internacionais: controle da circulação de bens, capital e trabalho, assim como as organizações internacionais (FMI, Banco Mundial) e seu papel no contexto mundial. Block lembra que estas instituições não representariam de forma igualitária os cidadãos de todo o mundo, senão que sua ação refletiria o balanço de poder político e econômico global49. Esta constatação reforça a idéia de que a questão principal sobre as regras econômicas internacionais não pode ser quanto de regulação simplesmente, mas envolve um debate sobre quais formas de regulação são legítimas ou não. Como conclusão, Block sustenta que o novo paradigma apresenta questões mais importantes do que o antigo, aquele limitado à questão de quanto de intervenção deve haver. No entanto, dada a forte divergência entre ambos os paradigmas, há uma ampla e complexa agenda de pesquisa para a Sociologia Econômica. A falta de clareza quanto ao significado e o alcance das transformações em curso, de resto, realça a importância de se continuar estudando a transformação do papel do Estado no contexto das reformas para o mercado.

49 Nas palavras do autor: “As forças dominantes têm tido uma influência desproporcional na definição das ‘regras do jogo’ que regulam as transações econômicas. No entanto, as forças dominantes têm tentado confundir este exercício de poder invocando a ciência econômica para justificar um conjunto particular de regras como capazes de produzir os melhores resultados possíveis.” (BLOCK 1994: 704). Sobre o papel do Estado no campo das relações internacionais, ver ainda EVANS 1985.

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2.5. Conclusão Tentei desenvolver aqui uma reflexão, inspirado em DINIZ (2000), sobre a relação complexa entre economia e política, questionando o reducionismo dos neoclássicos e neo-utilitários, que sustentam o modelo neoliberal de gestão da política econômica. A revisão de um conjunto de trabalhos produzidos por sociólogos e cientistas políticos dedicados ao tema mostra que diversas experiências concretas de trajetórias bem-sucedidas de desenvolvimento econômico não ratificam o modelo neoliberal. Ao contrário, ressaltam a importância dos mecanismos formais e informais que articulam Estado, empresariado e demais atores sociais. Todos os estudos, por outro lado, assinalam o caráter tendencial de suas constatações, sugerindo uma atitude prudente quanto às possibilidades de um padrão de ação estatal inclusivo no que diz respeito à formulação e implementação de medidas no campo econômico. O risco de que a aproximação entre Estado e grupos sociais resvale para corrupção, práticas de rent seeking ou simplesmente para o reforço de um padrão particularista de atuação por parte dos grupos envolvidos não pode ser eliminado por decreto. Vale acrescentar ainda que, num ambiente de constante incerteza como o do atual contexto de globalização, não se pode falar de um caminho certo para o crescimento econômico. Mas os exemplos mostram que há caminhos alternativos que podem conduzir a este resultado, e que eles não passam por uma relação simples entre Estado e mercado. Portanto, é do ponto de vista de uma análise capaz de captar as complexidades desta relação que a questão deve ser enfrentada.

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3. A construção do mercado de aviação comercial no Brasil (1927-1989) Neste capítulo, apresentarei o desenvolvimento do setor de aviação comercial no Brasil, desde a realização dos primeiros vôos comerciais na década de 1920 até as vésperas da introdução das “reformas para o mercado” na aviação comercial, na década de 1980. Este período compreende a criação das primeiras empresas e das primeiras medidas com vistas à regulamentação do setor; o surgimento da principal burocracia do setor, o DAC; a posterior criação do Ministério da Aeronáutica com a incorporação da aviação civil sob a “Doutrina do Poder Aéreo Unificado”; a fase de expansão do setor no pós-guerra; a crise que sucedeu a esta fase; e, finalmente, a consolidação e crise do modelo de intervenção governamental que caracterizou a política dos governos militares para a aviação comercial. A cada um destes momentos, corresponderá uma seção, onde procurarei salientar os principais aspectos da dinâmica política que conduziria o setor a assumir uma determinada feição. Esta dinâmica envolveu, em geral, uma articulação entre o plano internacional e o plano doméstico. Em relação ao plano doméstico, será dada ênfase às articulações entre empresas e Estado. Numa fase do capitalismo brasileiro em que o Estado liderou a organização do conjunto da economia, é na aproximação entre estes dois atores que parece estar a chave para explicar a conformação do próprio setor. Esta aproximação, que envolveu canais institucionalizados e vias informais, permitiria no caso da aviação comercial que uma empresa em particular, graças à capacidade de articulação de seu principal dirigente com as autoridades governamentais, deixasse no espaço de uma década a condição de pequena empresa regional para se tornar líder absoluta do setor. A conformação assumida pelo setor durante os governos militares seria desafiada na redemocratização, com a perda relativa de poder das autoridades aeronáuticas vis-à-vis outros setores do governo, especialmente as autoridades econômicas. Um dos pilares da política dos governos militares para o setor, a “realidade tarifária”, que teria permitido às empresas obter rentabilidade positiva durante anos, seria substituído na prática por uma política de controle de preços, consoante com as sucessivas tentativas de controle da inflação a partir de 1985. Esta política conduziria a

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uma defasagem tarifária em relação à inflação e aos custos do setor – muitos deles cotados em dólar, aumentando quase que diariamente – a qual teria sido responsável pela crise em que o setor se encontraria quando entrou em cena o debate sobre a introdução das reformas para o mercado na aviação comercial brasileira.

3.1. Os anos “heróicos” A aviação comercial brasileira nasceu em 1927,50 com uma ligação entre as cidades de Porto Alegre, Rio Grande e Pelotas, que ficaria conhecida como a “Rota da Lagoa”. O vôo foi operado por um hidroavião de fabricação alemã, o Dornier Wal, com capacidade para oito passageiros. O avião, batizado de Atlântico, foi trazido para o Brasil pelo Condor Syndikat, grupo criado pelo governo alemão com o intuito de promover a venda de aeronaves produzidas naquele país. O Atlântico foi transportado de navio da Alemanha para Montevidéu em 1926. De lá, passou por Buenos Aires e pelo Rio Grande do Sul, seguindo posteriormente para o Rio de Janeiro, onde pousou em 27 de novembro de 1926. Em 1º de janeiro de 1927 realizou um vôo para Florianópolis levando a bordo Victor Konder, Ministro da Viação e Obras Públicas. A viagem com o ministro foi bem sucedida, e o grupo alemão recebeu do Ministério de Viação e Obras Públicas, “a título precário e de experiência”, autorização por um ano para operar rotas entre Rio de Janeiro e a cidade de Rio Grande, com escalas em Santos, Paranaguá, São Francisco e Florianópolis, além de algumas rotas para o interior do Rio Grande do Sul, com destaque para a ligação entre Porto Alegre e Rio Grande com escala em Pelotas, a “Rota da Lagoa”51. Ao mesmo tempo em que fazia os primeiros vôos comerciais no Rio Grande do Sul, o Condor Syndikat negociava junto ao governo federal a criação de uma empresa de âmbito nacional e preparava a importação de novos aviões. Ao mesmo tempo, um imigrante alemão tentava no Rio Grande do Sul negociar junto às autoridades locais a implantação de uma empresa aérea. O imigrante, Otto 50

Desde a década de 1910 já se davam os primeiros ensaios no sentido de criar uma aviação civil no Brasil. Em 1911, por exemplo, deu-se a fundação do Aeroclube do Brasil. Em 5 de janeiro de 1920, foi criada a Inspetoria Federal de Viação Marítima e Fluvial que, embora não tivesse no nome nenhuma referência à aviação, acumulava atribuições relativas à atividade. 51 O primeiro vôo comercial foi realizado em 3 de fevereiro de 1927, e em 17 de maio do mesmo ano seria realizado o 50º vôo (PEREIRA 1987: 44-45).

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Ernst Meyer, foi recebido na capital gaúcha pelo Presidente da Câmara de Comércio, Alberto Bins, que viabilizou um encontro entre este e o Presidente da Província, Borges de Medeiros. O chefe político gaúcho propôs à Assembléia Legislativa a concessão de isenção fiscal ao empreendimento, que foi aprovada através da Lei 413, a qual isentava de taxas e impostos, num prazo de 15 anos, empresas que se fundassem para explorar a navegação aérea. Com o apoio político garantido no governo gaúcho, Meyer encontrou no Condor Syndikat o apoio técnico necessário. O grupo alemão ofereceu suporte através do próprio avião, o “Atlântico”, e apoio operacional (inclusive a tripulação), em troca de 21% de participação acionária na empresa em gestação. Do ponto de vista financeiro, Otto Meyer conseguiu fazer com que 550 pessoas, “em sua maioria proprietários e comerciantes das áreas de colonização alemã na região oriental do estado”, participassem da constituição do capital que deu origem à primeira empresa de aviação comercial brasileira (FUNDAÇÃO RUBEN BERTA 1996: 54).52 A VARIG – SA Empresa de Viação Aérea Rio-Grandense – foi oficialmente registrada como empresa privada em 7 de maio de 1927, tendo recebido em 10 de junho seguinte, pelo Decreto 17.832, autorização para voar para todo o Rio Grande do Sul, litoral de Santa Catarina, e para Montevidéu, esta última rota dependendo de autorização por parte do governo uruguaio. Devidamente constituída, a Varig assumiu, em junho de 1927, a “Rota da Lagoa”. A forte presença alemã na constituição inicial da aviação comercial brasileira revela um traço característico da atividade em seu período de formação: para além de um negócio, a aviação era um verdadeiro campo de luta entre as potências mundiais. Alemanha, França e Estados Unidos (também a Itália, em menor escala) se lançaram numa disputa pelas ligações aéreas, confirmando o caráter estratégico que a aviação vinha assumindo desde a Primeira Guerra Mundial. Tratava-se de uma atividade nova, 52

Num estudo de caráter exploratório sobre alguns fatores intervenientes na criação da empresa, Nadja Brandão (1994) traça um panorama sócio-político-econômico da Porto Alegre dos anos 20, e mostra a origem dos primeiros acionistas da Varig, na sua maioria, de origem alemã, havendo também alguns brasileiros sem raízes familiares germânicas, mas que estudaram naquele país. O estudo procura mostrar que houve uma convergência de fatores, dentre os quais se destacam a mentalidade positivista do então presidente da Província, Borges de Medeiros (e portanto, afeita à idéia de progresso, de que o avião seria um expoente), e notadamente a solidariedade de uma comunidade empresarial teuto-brasileira – pequenos proprietários, fazendeiros e comerciantes – para com Otto Meyer. Embora a autora não explore o assunto desta perspectiva, a sua narrativa permite traçar um paralelo direto com a abordagem de redes proposta por GRANOVETTER (1985, 1990) e desenvolvida por MCGUIRE (1986).

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pouco conhecida e portanto pouco regulamentada pelas autoridades governamentais,53 a qual poderia servir para os projetos de construção de hegemonia por parte das grandes potências. Embora não tenham formado nenhuma empresa nacional, os franceses participaram desta luta através de missões militares e de uma rota ligando Paris a Buenos Aires com escalas em Natal e no Rio de Janeiro, além de rotas intermediárias. Tal rota foi realizada regularmente a partir de 192854. A empresa Latecoère, depois denominada Aeropostale, realizou o transporte de malas postais que viajavam da Europa até Dakar, de lá prosseguiam de navio até o Brasil, onde novamente eram embarcadas nos aviões, seguindo até Buenos Aires. Ao contrário dos alemães, cujos equipamentos eram hidroplanos e portanto prescindiam de uma infra-estrutura de pouso mais complexa, os franceses operaram nestas rotas aviões de operação terrestre. Por isso, foram responsáveis pela implantação dos primeiros campos de pouso no Brasil. Os norte-americanos, por sua vez, chegaram ao Brasil através de Ralph O´Neil, fundador da NYRBA, empresa cujo nome reunia as iniciais das cidades servidas pela sua principal rota: Nova York, Rio de Janeiro e Buenos Aires. O´Neil, no entanto, não foi capaz de obter subsídios do governo norte-americano, então comprometido com o sucesso da Pan American Airlines. Ao mesmo tempo, o empreendedor já havia sido aconselhado pelo ministro Victor Konder a organizar uma empresa subsidiária brasileira, atendendo à legislação (Cf. PEREIRA 1987: 324). Incapaz de manter as operações sem subsídios, a NYRBA foi vendida em 1930 para a Pan American Airlines, que passou a receber subvenção do governo norte-americano.55 Atendendo à legislação brasileira, a NYRBA se transformou em Panair do Brasil, subsidiária da empresa norteamericana.

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Não obstante, já existia uma legislação referente à navegação aérea no Brasil, definida pela lei 4911, de 12 de janeiro de 1925, estabelecendo instruções para exame, cartas, licença e matrículas de aeronaves, além de definir o Ministério da Viação e Obras Públicas como responsável pelo setor. Naquele momento, a regulamentação viria dar base legal para que o governo brasileiro pudesse dar autorização à missão Latecoère (ver nota 5, a seguir) para operar uma rota comercial passando pelo Brasil (Cf. RIBEIRO 2001: 13). 54 A rigor, o grupo francês foi o primeiro a receber uma autorização para operar no país o transporte de passageiros, correio e carga, em 1925. No entanto, segundo PEREIRA (1987: 26-27), a autorização não foi aprovada pelo Tribunal de Contas da União. Só em 1927 uma autorização plena seria concedida. 55 Segundo Aldo Pereira, O´Neil não havia conseguido o subsídio para suas linhas porque o Diretor Geral dos Correios, Walter Brown, queria subsidiar a Pan American Airlines (PEREIRA 1987: 325).

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De volta ao Condor Syndikat, este veio a receber do governo brasileiro autorização para constituir uma empresa brasileira, o Sindicato Condor, que recebeu autorização oficial para operar em janeiro de 1928, embora já estivesse provisoriamente autorizado para voar desde meados do ano anterior. A nova empresa rapidamente expandiu suas rotas ligando o Rio de Janeiro ao sul do país, depois a Salvador, Maceió, Recife e Natal. Em 1930, a empresa começava a voar para o oeste, chegando a Corumbá e Cuiabá. A linha para o norte chegaria a Fortaleza em 1935 e Belém em 1936. As operações eram todas feitas com hidroaviões, do mesmo tipo do Atlântico e de outros modelos de porte semelhante. Já em 1930, o Sindicato Condor toma a iniciativa de retirar sua participação na Varig, de forma a concentrar-se nas operações ao longo da costa brasileira, estratégicas no transporte de mala postal entre a Europa e a América do Sul. Pode-se dizer que esta iniciativa abriu espaço para um importante momento da formação de uma aviação comercial brasileira desvinculada, pelo menos diretamente, de interesses estrangeiros56. Sem aviões, a empresa gaúcha se viu impossibilitada de continuar suas operações, a menos que obtivesse algum tipo de suporte financeiro. A empresa, então, teve de recorrer ao poder público. Em 24 de abril de 1930, Otto Meyer firmou um contrato com o governo gaúcho, representado pelo Secretário do Interior do Rio Grande do Sul, Oswaldo Aranha, em que este se comprometia a ceder um campo de pouso, recursos para construção de instalações adequadas e também recursos para a aquisição de oito aeronaves, quatro para transporte de passageiros, duas para transporte de malas postais e duas para treinamento. Oswaldo Aranha estava, então, diretamente envolvido com o movimento que culminaria na Revolução de 3 de outubro daquele ano. O líder político seria chamado por Getúlio Vargas a ocupar o Ministério da Justiça, enquanto Flores da Cunha foi declarado Interventor Federal no Estado. Este, sob o argumento de que o contrato não havia sido aprovado pela Assembléia Legislativa, que viera a ser dissolvida pelo movimento revolucionário, se recusava a cumpri-lo, apesar de insistentes pedidos neste sentido do próprio Oswaldo Aranha57. Entre 1930 e 1931, o presidente do Conselho 56

O relato que segue está baseado no depoimento de Adroaldo Mesquista da Costa, que esteve entre os fundadores da Varig, ao Boletim Informativo n. 2, Museu da Varig apud PEREIRA 1987: 53-54. 57 Segundo o depoente, Oswaldo Aranha teria enviado uma carta em que afirmava: “Seria um crime desamparar a Varig, Flores, quando seu reerguimento está nas tuas mãos e ela reclama do Governo, apenas o cumprimento de um compromisso. No fim do mês corrente, se reunirá a assembléia dos

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Fiscal Alberto Bins renunciou ao cargo, e Adroaldo M. da Costa o substituiria, ameaçando convocar uma assembléia geral para dissolver a empresa. Convocado por Flores da Cunha, o substituto de Alberto Bins conseguiu fazer com que o interventor autorizasse a transferência de recursos acertada no contrato, levando o governo a adquirir uma participação na Varig, e indicando para seu representante o próprio Alberto Bins, na qualidade de “Fiscal do Governo”. Desta forma, a empresa gaúcha retomou suas operações, cobrindo ao longo dos anos 1930 o interior do estado e algumas rotas para Santa Catarina. Apesar de ainda depender de suporte técnico do Sindicato Condor e de contar com tripulantes alemães, este seria um movimento inicial no sentido de uma maior autonomia para a aviação comercial brasileira. Representando um outro passo neste sentido, em 1933, uma nova empresa viria se juntar às três já existentes (Condor, Varig e Panair): a Viação Aérea São Paulo, Vasp. Fundada por empresários paulistas,58 a empresa receberia permissão para estabelecer tráfego aéreo em todo o território nacional em 31 de março de 1934, realizando inicialmente vôos para o interior de São Paulo (Ribeirão Preto, São Carlos, São José do Rio Preto) e Minas Gerais (Uberaba). Entretanto, já em 1934 e ao longo de 1935, a empresa se defrontou com algumas dificuldades de ordem técnica, especialmente a paralisação das atividades em Ribeirão Preto devido às más condições da pista de pouso e a fortes chuvas na capital paulista, que também tornaram impraticáveis as operações no Campo de Marte, único campo de pouso disponível na cidade de São Paulo. Diante de tais dificuldades, os dirigentes da empresa paulista decidiram recorrer ao governo estadual. Segundo Aldo Pereira, o interventor federal Armando de Salles Oliveira, “homem da iniciativa privada, ligado à corrente progressista do empresariado paulista, (...) encontrou na estatização da Vasp a solução para a sua sobrevivência e progresso futuro”. Desta forma, o estado de São Paulo se tornou acionista majoritário da empresa, tendo o município entrado com participação minoritária. Ao garantir a continuidade de suas operações via participação estatal, Varig e Vasp confirmavam, por um lado, o significado político estratégico da atividade, já credores e ela será obrigada a desaparecer se o Estado não acorrer em seu auxílio. Estou certo de que não permitirás que isto suceda e assim sendo terás o teu nome ligado a mais um ato de justiça e benemerência” (Cf. PEREIRA 1987: 53). 58 Segundo Aldo Pereira, sua diretoria tinha como membros Heribaldo Siciliano, Antônio Carlos Couto de Barros, José Mariano Camargo Aranha e Fernando Guedes Galvão, “todos eles representantes dos altos interesses econômicos e financeiros paulistas, genuínos homens da iniciativa privada” (PEREIRA 1987: 184).

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demonstrado através dos vínculos entre as demais empresas, Sindicato Condor e Panair do Brasil, com seus respectivos países. Por outro lado, as dificuldades técnicas envolvidas, que incluíam não só o domínio da tecnologia aeronáutica, mas também fatores impossíveis de ser controlados, mas que afetavam diretamente as operações, como as condições meteorológicas, geravam custos aparentemente acima da capacidade financeira da iniciativa privada. A participação do Estado, neste sentido, parecia condição necessária para o desenvolvimento do setor. Um episódio na década de 1930, descrito por Claudia Fay (2001), revela outro momento da disputa em torno da autonomia da aviação comercial brasileira. Trata-se da troca de correspondências entre o embaixador brasileiro nos Estados Unidos, Oswaldo Aranha, e o então comandante do Primeiro Regimento de Aviação, Tenente Coronel Eduardo Gomes, em 1937. Neste ano, a Pan American Airlines solicitou ao governo brasileiro autorização para operar uma rota entre o Rio de Janeiro e Assunção passando por São Paulo, Curitiba e Foz do Iguaçu. Oswaldo Aranha se posicionaria favoravelmente à concessão da autorização à empresa norte-americana, enquanto Eduardo Gomes seria contrário, alegando haver empresas brasileiras – especificamente o Sindicato Condor e a Vasp – fazendo a mesma solicitação, com capacidade para cumprir o trecho (FAY 2001: 26).59 Enquanto Eduardo Gomes sustentava o argumento da “defesa dos interesses nacionais”, Oswaldo Aranha defendia que a autorização à empresa norte-americana representaria parte do esforço de cooperação com os Estados Unidos, mencionando oportunidades em que os norte-americanos teriam colaborado, inclusive no campo militar, com o Brasil. Por fim, deve-se destacar que nas próprias empresas estrangeiras a relação entre os interesses da matriz e os interesses locais não era mecânica, como se depreende do

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Fay salienta, por outro lado, que as empresas ditas brasileiras também tinham vínculos estrangeiros, especificamente com os alemães (o caso evidente é o do Sindicato Condor). Ainda segundo a autora, Eduardo Gomes teria assinalado que dentre as empresas brasileiras, a Panair do Brasil não havia feito nenhuma solicitação por se tratar de “testa de ferro” da empresa norte-americana, portanto não pretendendo interferir nos interesses da matriz.

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relato de Frederico Hoepken, ex-dirigente do Sindicato Condor, sobre as rotas exploradas pela empresa no período. Enquanto os alemães pretendiam priorizar a rota litorânea, ele defendia uma visão alternativa. Hoepken havia trabalhado como engenheiro civil no interior do Brasil antes de ingressar na linha aérea (ele também havia servido na aviação naval alemã), e defendia que as rotas deveriam se orientar para o oeste ao invés de se manter concentradas no litoral. A sua aproximação com as autoridades governamentais, neste caso, foi decisiva para que a aviação comercial brasileira estendesse seu alcance para o interior do país. Segundo seu depoimento:

“Havia duas correntes na Condor. Uma alemã, da Lufthansa, que queria que os melhores recursos ficassem na linha do litoral; outra minha, criando linhas para o interior. Eu sempre ganhava a discussão porque ia falar no DAC e no Palácio do Catete pedindo o apoio do governo para os meus projetos.” (PEREIRA 1987: 160-161) Ao longo da década de 1930, começaram a se formar as principais instituições do setor. Em 22 de abril de 1931, foi criado o Departamento de Aeronáutica Civil, órgão subordinado ao Ministério de Viação e Obras Públicas.60 Já em 6 de janeiro de 1932, foi assinado o decreto 20914 estabelecendo que era competência exclusiva do Governo Federal regular a aeronáutica civil no país, através do DAC. A regulação envolveria temas tais como aeronaves, espaço aéreo, sobrevôo, aeronautas, transporte aéreo e aeroportos. Em 1938, por fim, é publicado o primeiro Código Brasileiro do Ar. Em 11 de dezembro de 1933, foi criada a “Associação das Empresas Aeroviárias”, tendo como presidente José Bento Ribeiro Dantas, da Vasp. A Associação foi criada no Rio de Janeiro, tendo participado de sua fundação representantes das empresas Pan American Airlines, Syndicato Condor, Panair do Brasil, Varig, Vasp, Air France, Cia. Aeropostal Brasileira e Aerolloyd Iguassú.61 Já as entidades representativas dos trabalhadores

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Esta denominação permaneceu até 1941, quando o órgão foi absorvido pelo recém criado Ministério da Aeronáutica. A partir daí, a denominação mudou para “Diretoria de Aviação Civil”, tendo mudado novamente na reforma administrativa de 1969, quando foi adotada a atual denominação, “Departamento de Aviação Civil”. O órgão será denominado a partir daqui, genericamente, como o DAC. A aeronáutica militar, por sua vez, estava desmembrada em duas seções das forças armadas: Aviação Naval e Aviação Militar. 61 Informações retiradas do website do SNEA (www.snea.com.br). Em um informativo da entidade, é destacada a passagem pela presidência de um estrangeiro, o Representante Geral da Air France Jean de Barral. Sua gestão se restringiu ao período entre janeiro e outubro de 1939, quando tramitava no Ministério do Trabalho o processo de transformação da associação em sindicato. Uma lei federal

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teriam seu embrião na “Associação Profissional da Panair do Brasil”, fundada em 2 de janeiro de 193662. Esta fase da aviação comercial brasileira costuma ser descrita como uma fase “heróica”,63 com infra-estrutura precária de apoio ao vôo, pouquíssimos recursos de navegação e tecnologia incipiente. As operações de transporte de mala postal entre a Europa e o Brasil feitas pela Aeropostale, por exemplo, tinham as seguintes características, descritas por Aldo Pereira:

“Desde 1º de março de 1928 a mala postal procedente da França era transportada de Dakar até Natal em rápidas corvetas da marinha francesa. De Natal era levada de avião até Santiago, escalando em Recife, Maceió, Salvador, Caravelas, Vitória, Rio de Janeiro, Santos, Florianópolis, Porto Alegre, Pelotas, Montevidéo, Buenos Aires e Mendoza. (...) Era uma verdadeira maratona, os aviões voando dia e noite, nas mais precárias condições meteorológicas. As tripulações se revezavam, mas algumas vezes os pilotos cumpriam a viagem toda. Alguns desses pilotos passaram para a história como verdadeiros heróis, tais como Mermoz, Guillaumet e Saint-Exupéry.” (PEREIRA 1987: 116) O marco que encerraria a chamada “fase heróica”, dando lugar a uma nova ordem na aviação comercial brasileira e internacional, seria a II Guerra Mundial, que será abordada na próxima seção.

3.2. A II Guerra Mundial e a consolidação das instituições da aviação comercial

A virada para a década de 1940 traria mudanças importantes neste cenário. Conquanto não perdesse seu sabor de aventura, a aviação passou por um profundo amadurecimento, cujo marco foi a Segunda Guerra Mundial. Em termos de tecnologia, com a derrota dos alemães, a indústria aeronáutica deste país perdeu a expressiva

publicada naquele ano proibiria estrangeiros de ocupar cargo de presidência em associações sindicais (Cf. SNEA 2003). 62 Cf. PEREIRA (1995: 25). 63 Um dos ícones desta fase foi o aviador e escritor Antoine de Saint-Éxupery, que ocupou no final dos anos 1920 a posição de diretor da Aeroposta Argentina, subsidiária da Aeropostale francesa (PEREIRA 1987: 25).

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participação que tinha nas empresas em operação. Foi a indústria aeronáutica norteamericana que passou a dominar os céus, especialmente com seus DC-3 e C-47 que, utilizados durante o conflito para o transporte de cargas e tropas, foram vendidos a preços irrisórios no imediato pós-guerra. Junto com eles, profissionais qualificados e uma infra-estrutura de apoio ao vôo mais desenvolvida também se fizeram disponíveis. Em termos político-institucionais, deu-se a consolidação de um abrangente aparato regulatório envolvendo aspectos tanto operacionais quanto comerciais, a partir da Convenção de Chicago (1944). Quando a guerra estava próxima de terminar, alguns países perceberam a necessidade de atualizar os acordos internacionais sobre aviação civil, de modo a acompanhar as transformações tecnológicas da atividade.64 A Convenção de Chicago detalhou os regulamentos sobre a atividade em nível internacional, distinguindo, por exemplo, tipos de aeronave (oficial a serviço do governo; comercial; civil sem fins comerciais; e ainda as aeronaves sem piloto). As aeronaves oficiais e aquelas “sem piloto” (foguetes, por exemplo) não poderiam voar sobre território estrangeiro sem autorização, enquanto aquelas de uso civil não comercial poderiam fazê-lo, inclusive podendo aterrissar. Já as aeronaves comerciais dependeriam de autorização para pouso em território estrangeiro. Eventuais restrições eram aceitas, desde que não fossem estabelecidas em caráter excludente, ou seja, desde que fossem restrições aplicadas às aeronaves de todos os países estrangeiros.65 A Convenção de Chicago definiu como princípio fundamental a plena soberania dos Estados sobre seu território e sobre o espaço aéreo por ele definido. No entanto, a convenção entendeu que a utilização do espaço aéreo não poderia ser reduzida aos interesses de cada país, de forma que os países signatários concordaram em admitir algumas formas de sobrevôo e pouso considerados “inofensivos”, isto é, sem embarcar

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O primeiro fórum internacional organizado para tratar das atividades aeronáuticas foi a Conferência de Paris, em 1919. Confrontados com a utilização do avião como “máquina de guerra”, os países decidiram estabelecer limites à sua utilização fora de suas fronteiras. O princípio básico consagrado em Paris foi o da soberania nacional sobre o território e sobre o espaço aéreo por ele delimitado. Desta forma, a utilização do avião para fins comerciais estaria sujeita à autorização do país de destino. Institui-se, como contrapartida, a liberdade de “vôo inofensivo”, significando a liberdade de sobrevoar território estrangeiro sem pousar, ou pousar apenas para reabastecimento ou realização de reparos de emergência (Cf. GUIMARÃES 1951). 65 Utilizei estes argumentos anteriormente (MONTEIRO 2000b) para mostrar que a globalização, se entendida como a existência de uma ordem social (e política) irredutível ao âmbito nacional, não seria um fenômeno exclusivo do final do século XX, senão que, no caso da atividade aeronáutica, existia praticamente desde seu surgimento.

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ou desembarcar passageiros. Ficou definido também que seria proibido realizar cabotagem, isto é, transportar passageiros entre dois pontos de um mesmo país estrangeiro. Daí terem sido definidas as “cinco liberdades do ar”, que seriam: liberdade de sobrevôo; liberdade de “pouso inofensivo” (pousar para reabastecimento, sem desembarque ou embarque de passageiros); liberdade para transportar passageiros provenientes da nação de origem da aeronave para uma nação estrangeira; liberdade de embarcar passageiros em países estrangeiros para o país de origem da aeronave; liberdade de transportar passageiros entre dois países que não o de origem da aeronave66. Deve-se destacar ainda a criação da Organização de Aviação Civil Internacional (OACI), que dali em diante seria responsável pela organização da parte técnica da atividade aeronáutica em nível internacional. Os proponentes da conferência tencionavam abranger, além dos aspectos técnicos, também questões de natureza comercial. No caso dos norte-americanos, havia o interesse no estabelecimento de uma política de “céus abertos”, baseada na plena liberdade de realizar transporte de passageiros entre nações. No entanto, a maior parte dos países europeus, liderados pela Inglaterra, se posicionaram a favor de uma regulamentação mais detalhada do transporte aéreo internacional.67 Ao fim do encontro, nenhuma das partes logrou sucesso. Assim, a definição quanto aos direitos de transporte comercial internacional veio a se dar através de acordos bilaterais, baseados no princípio da reciprocidade “real ou potencial” de tráfego, significando com isso que para cada direito cedido por um país (isto é, de um avião de outro país pousar em seu território para fins comerciais), este país teria direito a realizar um vôo para o outro país.68 O primeiro destes acordos foi o “Tratado de Bermuda” (1946), entre Estados 66

Cf. RIGALT (1961). Havia ainda mais três “liberdades” complementares, assim explicadas por NEVES e SOTO (2000): “Atualmente já fala-se da existência de outras três liberdades do ar. A 6a Liberdade é a possibilidade de embarcar ou desembarcar passageiros, mala postal e carga comercial destinados ou procedentes de um Estado situado aquém ou além do Estado de nacionalidade da aeronave, com escala intermediária neste último, sendo resultante da combinação da 3a e 4a Liberdades. A 7a Liberdade é o privilégio de embarcar ou desembarca passageiros, mala postal ou carga comercial destinados ou procedentes a um Estado, em aeronave de bandeira de um terceiro Estado e operada por transportador aéreo de mesma nacionalidade da aeronave sem escala neste último Estado. A 8a Liberdade corresponde ao privilégio de exploração do serviço de navegação aérea de cabotagem ou doméstica por aeronave de bandeira estrangeira e operada por empresa de transporte aéreo de mesma nacionalidade da aeronave” (NEVES E SOTO 2000: 27). 67 RIGALT (1961) ressalta ainda a posição da Holanda – por uma ampla liberalização, inclusive com a concessão da “oitava liberdade” (ver nota anterior) – uma vez que o país tinha uma frota bem estruturada, sem mercado doméstico expressivo. Por outro lado, a Argentina se posicionou por um modelo redistributivo, que visasse reduzir as desigualdades entre as nações. 68 Sobre o tema, cf. OLIVEIRA 1951.

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Unidos e Inglaterra, no qual vieram a se basear centenas de outros tratados.69 Ainda no que concerne à parte comercial, deve-se destacar a criação da International Air Transport Association (IATA), fundada em Havana, em 1945, estabelecendo-se com sede em Montreal. No plano doméstico, deve-se destacar a criação do Ministério da Aeronáutica, em 20 de janeiro de 1941. O novo ministério foi criado sob a inspiração da “Doutrina do Poder Aéreo Unificado”, reunindo o acervo material e humano tanto da Aviação Naval e Militar, quanto do DAC. Embora não apresente maiores detalhes a respeito, um documento comemorativo dos setenta anos do DAC chama atenção para o fato de que na época “a opinião pública exigia a unificação dos dois setores” (RIBEIRO 2001: 14), ao mesmo tempo em que afirma, sobre os antecedentes de sua criação:

“a década de trinta foi pródiga em movimentos intelectuais e políticos que defendiam tanto a doutrina do poder aéreo unificado quanto a criação de uma força aérea independente (…), consubstanciando as opiniões de pensadores e pioneiros da aviação” (RIBEIRO 2001: 82). Também em 1941, a “Associação das Empresas Aeroviárias” recebeu a aprovação do Ministério de Estado dos Negócios do Trabalho, Indústria e Comércio para se transformar em “Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias”, designação que permanece até hoje. Já em 1942, foi fundada a Associação Profissional dos Aeronautas do Distrito Federal, sendo que em 1946, a entidade tomaria a iniciativa de solicitar ao Ministério do Trabalho o reconhecimento da entidade como “Sindicato dos Aeronautas do Rio de Janeiro”. No ano seguinte, a base territorial da entidade seria estendida a todo o país, tornando-se Sindicato Nacional dos Aeronautas. Do ponto de vista das empresas, a conjuntura da Segunda Guerra impôs uma importante mudança, com a eliminação dos vínculos diretos entre duas empresas, Varig e

Sindicato Condor, e os interesses alemães. No caso da empresa gaúcha, tal

movimento foi representado pelo afastamento de seu presidente, Otto Meyer, da direção

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Os acordos envolviam um detalhamento relativamente extenso, incluindo freqüências semanais, tipo de aeronave e número de assentos. A oferta era definida a partir de uma “demanda presumida”, e caso houvesse interesse em aumentar a oferta de vôos, uma nova rodada de negociação precisava ser feita entre as autoridades.

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da empresa. Em seu lugar, entrou Ruben Martin Berta, que viria a ser um dos principais atores da consolidação do modelo brasileiro da aviação comercial, duas décadas depois. Quanto ao Sindicato Condor, os vínculos eram diretos, e a continuidade de suas operações dependeu do afastamento dos dirigentes alemães, e a nacionalização do capital da empresa. Isto porque, iniciada a guerra, os norte-americanos cortaram o fornecimento de combustível e outros insumos à empresa, que teve sua operacionalidade comprometida. Segundo Aldo Pereira (1987: 119), foi o mesmo Oswaldo Aranha, que anos antes havia se posicionado favoravelmente aos interesses norte-americanos em prejuízo do Sindicato Condor, quem, na condição de Ministro das Relações Exteriores, se empenhou na nacionalização da empresa. Embora não forneça detalhes, Pereira afirma que o governo brasileiro editou um Decreto-lei incorporando ao patrimônio nacional os créditos da Lufthansa relativos ao Sindicato Condor, e distribuiu os ativos “a umas poucas pessoas por ele indicadas” (PEREIRA 1987: 120). Além dos dirigentes alemães, também os funcionários desta nacionalidade foram afastados, tendo sido indicado para dirigir a empresa José Bento Ribeiro Dantas, que havia sido o primeiro presidente da Associação das Empresas Aeroviárias, na época, representando a Vasp. Por fim, o nome da empresa foi mudado de Sindicato Condor para Cruzeiro do Sul, e a frota composta por aviões de origem alemã foi paulatinamente substituída por aviões de origem norte-americana. Também a Panair do Brasil daria um primeiro passo no sentido de sua nacionalização, quando em 1946 deu-se a elevação do capital da empresa de 80 milhões para 100 milhões de cruzeiros, tendo a Pan American Airlines cedido 48% da participação neste capital a investidores brasileiros. Com esta medida, ela estaria apta a se candidatar à operação de rotas internacionais, uma vez que o Ministério da Aeronáutica publicaria naquele ano o Aviso 96, segundo o qual as empresas que tivessem interesse em se candidatar a operar rotas internacionais dentro dos acordos bilaterais deveriam ter pelo menos 51% do controle do capital na mão de brasileiros (PEREIRA 1987: 328).70 Diante do novo quadro internacional, com a disputa entre norte-americanos e alemães sido vencida pelos primeiros, e frente a uma opção das autoridades aeronáuticas brasileiras por priorizar o capital nacional, a aviação comercial 70

A Panair, no entanto, não entraria em conflito com os interesses da norte-americana. Ela se dedicou às rotas internacionais para a Europa e Oriente médio, não voando para os Estados Unidos, o que a colocaria em disputa direta com a Pan American Airlines.

71

brasileira se afastava da condição de “campo de luta” entre as potências mundiais, caracterizando-se como um campo de luta mais autônomo. Duas importantes empresas criadas nos anos 1940 foram a Aerovias Brasil (1942) e a Real (1945). A primeira empresa era subsidiária do grupo TACA (Transportes Aéreos Centro-Americanos), dirigido por norte-americanos, que tinha o interesse de se firmar no Brasil. A empresa foi responsável por vôos não-regulares entre Brasil e Estados Unidos durante a Segunda Guerra, e com a assinatura do acordo bilateral entre Brasil e Estados Unidos, a empresa foi indicada para representar o Brasil. Em 1947, a empresa foi vendida a industriais paulistas e, em 1949, foi comprada pelo Estado de São Paulo. Já a Real foi criada por dois pilotos, Vicente Mammana Neto e Linneu Gomes, que compraram um DC-3 para dar início às operações. Na década seguinte, embora sendo uma empresa de menor porte e com menos capacidade operacional, a Real incorporaria a Aerovias Brasil criando o consórcio “Real Aerovias”, com vôos para os Estados Unidos e América Latina, chegando a operar por algum tempo uma rota para o Japão, antes de ser absorvido pela Varig, em 1961. Além destas, foram criadas mais de uma dezena de empresas ao longo da década de 194071, realizando um salto na atividade aeronáutica do país. Dados citados por Claudia Fay (2001) mostram que entre 1940 e o início da década de 1950 o total de quilômetros voados se multiplicou por doze, o número de passageiros por vinte e a tonelagem de carga por quase setenta vezes (Tabela 8). Ainda de acordo com os dados apresentados na Tabela 8, a explosão da década de 1940 daria lugar a uma estabilização nos anos de 1951, 1952 e 1953. Tratava-se, com efeito, de uma nova conjuntura. Embora continuassem em operação, os DC-3 passaram a conviver com aeronaves maiores, fabricadas especificamente para uso civil, novas,

71

Muitas destas empresas operariam por pouco tempo, tendo falido ou sido absorvidas pelas empresas maiores, num movimento de “consolidação” que iniciaria na década de 1950 e se estenderia até os anos 1960. Além da Aerovias Brasil e da Real, algumas das empresas criadas foram: Viação Aérea Santos Dumont, Aerovias Minas Gerais, Transportes Aéreos Salvador, Aeronorte, Lóide Aéreo Nacional, TASA, Universal Transportes Aéreos, Companhia Itaú de Transportes Aéreos, SAVAG, OMTA, Linhas Aéreas Wright, Transportes Aéreo Nacional, Loíde Aéreo, entre outras, totalizando 29 novas companhias. Muitas destas empresas foram criadas por pilotos, alguns de origem militar, que aproveitaram a oportunidade de adquirir aviões DC-3 a custos reduzidos. Ver anexo 1.

72

com maior tecnologia e, portanto, mais caras. Estas aeronaves seriam utilizadas nas rotas domésticas de maior densidade e nas rotas internacionais, que representariam importante oportunidade de negócios para as empresas, nem tanto pelas receitas auferidas, e mais pelas subvenções pagas pelo governo. Sob os marcos da Convenção de Chicago e dos tratados bilaterais, o transporte aéreo internacional ganhou um status político ainda maior: transportar passageiros e cargas significava transportar a “bandeira” do país.72

Tabela 8. Número de passageiros transportados. 1938-1953 (anos selecionados) Ano

Nº de viagens

Percurso efetuado (km)

Nº de Passageiros

1938

8.052

6.919.651

63.423

1948

60.186

53.200.536

1.000.984

1951

110.538

96.068.300

2.241.707

1952

111.344

96.600.775

2.214.707

1953

119.874

104.235.107

2.611.329

Fonte: O Observador Econômico – ano XIX, n. 226, dezembro de 1954, p. 60 (apud FAY 2001: 77)

É com a entrada no mercado das rotas internacionais de longo curso que começa a transformação da Varig, até então uma pequena empresa com rotas restritas à região sul do país,73 na empresa líder do mercado de aviação comercial, posição que viria ocupar na década seguinte. A forma como a empresa gaúcha conseguiu a designação para operar o vôo para Nova York foi emblemática do tipo de estratégia perseguida pela empresa no sentido de se fortalecer no mercado. Seu dirigente, Ruben Berta, foi capaz 72

A respeito, a edição comemorativa dos setenta anos do DAC afirma: “Já em 1950, a União subvencionava as linhas aéreas internacionais, naquela época exploradas pelas principais empresas que integravam o campo doméstico. A lei 1815, de 1953, concedeu a essas vários benefícios, como a isenção de impostos (exceto sobre a renda) e a dispensa do pagamento de taxa aeroportuária. Porém, tais medidas não eram suficientes. Ao permitir a expansão de nossas transportadoras para o setor internacional, cuidando, no entanto, de assegurar igual quilometragem para a rede interna, o Estado reconheceu tanto a precariedade dessa rede interna quanto a necessidade de aparelhar as empresas para o tráfego internacional, no qual a competição era muito acirrada. Além disso, a política externa do Governo brasileiro exigia a presença de aeronaves nacionais nos céus e nos aeroportos de outros países. Partindo destas premissas, a União concedeu às transportadoras nacionais uma contribuição financeira, a vigorar por cinco anos, destinada a reequipá-las em harmonia com os últimos progressos técnicos. Essa medida trouxe grandes benefícios ao transporte aéreo no Brasil, porque colocou nossas empresas ao lado das mais adiantadas dos países desenvolvidos” (RIBEIRO 2001: 84). 73 A Varig realizava apenas uma rota internacional, de curto alcance, para Montevidéu e Buenos Aires.

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de obter a concessão graças à aproximação com Getúlio Vargas, num episódio que foi descrito por Nero Moura, Ministro da Aeronáutica no segundo governo Vargas.

“Em um dos primeiros despachos que tive com Getúlio, o presidente disse: ‘O Berta ajudou muito na campanha, e eu gostaria que você olhasse com simpatia as pretensões da Varig, atendendo-as com boa vontade’. O Berta veio no dia seguinte apresentar suas ‘pretensões’. Propôs-se a assumir a rota da Cruzeiro sem subvenção.” (MOURA 1996: 255) O ministro, então, se reuniu com seus técnicos, de forma a elaborar um plano de designação das rotas internacionais que evitasse a competição direta entre as empresas brasileiras, definindo três setores: Europa (Panair do Brasil), América do Norte (Aerovias) e América do Sul (Varig, Cruzeiro e alguns vôos da Panair). No caso da Aerovias, no entanto, Moura afirma que o desempenho era muito fraco, com vôos freqüentemente atrasados ou cancelados, “uma desmoralização total”. A Cruzeiro do Sul, candidata natural a operar as rotas da Aerovias por já ser designada para aquelas rotas, não as realizaria sem subsídio, de forma que o ministro solicitou à empresa que declarasse oficialmente esta condição. Quando Berta veio cobrar de Nero Moura seu pedido, ouviu a seguinte resposta: “Quero preparar um expediente, uma coisa bem feita, para amanhã não dizerem que lhe dei essa rota de presente.” Moura teria concedido sucessivos prazos para que a Aerovias regularizasse suas operações, e a empresa não teria sido capaz de atender às exigências. Em 1952, a concessão para Nova York da Cruzeiro do Sul foi cancelada e passada à Varig, enquanto a Aerovias continuaria a voar para Miami. Ao concluir a narrativa sobre o episódio, Moura fez a seguinte consideração:

“Ao receber a concessão da linha, o Berta se prontificou a colocar quadrimotores para Nova Iorque num prazo extremamente curto. Cumpriu o compromisso à risca, operando a linha com eficiência e ordem. Não é à toa que a Varig se tornou a potência que está aí.” (MOURA 1996: 258)74 74

O vôo para Nova York, no entanto, só teria início em 1955, quando a Varig recebeu os Super Constellation comprados especificamente para a rota. A ligação era feita, até então, exclusivamente pela gigante Pan American Airlines. Vale registrar ainda que a Varig, eventualmente, receberia os subsídios negados à Cruzeiro para a operação, uma vez que em 1955, o governo editou a Lei n. 2.685, concedendo subvenção às rotas internacionais (Cf. FAY 2001: 152).

74

Este marco na trajetória da Varig teria conseqüências para toda a organização subseqüente do setor de aviação comercial, abrindo espaço para que viesse a se tornar a empresa líder no mercado doméstico e internacional. A capacidade de aproximação com o centro do poder, característica da formação do capitalismo brasileiro, seria decisiva para o sucesso da empresa gaúcha.75 Por outro lado, desenhava-se um cenário de crise na aviação comercial na segunda metade dos anos 1950. O setor viveria um reordenamento institucional que só se completaria na década seguinte, após o golpe militar de 1964. Neste contexto, a capacidade de influência sobre as políticas governamentais seria ainda mais decisiva, como se verá na seção seguinte.

3.3. A virada para a década de 1960: crise e reorganização do setor Da estabilização alcançada no início dos anos 1950, a aviação comercial brasileira entrou para uma conjuntura de crise na segunda metade da década. A crise se fazia visível tanto pela dificuldade financeira das empresas, quanto pela quantidade de acidentes ocorridos. Diante deste cenário, duas Comissões Parlamentares de Inquérito foram organizadas para abordar o tema, enquanto os trabalhadores encontraram na luta pela segurança das operações aéreas um dos principais vetores de sua atuação política. Do ponto de vista dos militares da aeronáutica, a crise era percebida da seguinte forma:

“A partir de 1957, as desvalorizações sucessivas da moeda nacional e os constantes aumentos de preços e salários repercutiram negativamente na saúde financeira das empresas de transporte aéreo, colocando em perigo nossa aviação comercial. O Conselho Nacional de Economia e a

75

A partir deste momento, a Varig foi capaz de disputar o transporte de autoridades, inclusive o Presidente da República, em seus deslocamentos internacionais. Já em 1956, a Varig transportou Juscelino Kubitschek em sua viagem aos Estados Unidos e Europa (já eleito, antes de tomar posse). Em entrevista, uma antiga funcionária da empresa fez o seguinte relato sobre a viagem: “Levamos o Juscelino Kubitschek primeiro, quando ele tinha sido eleito mas não empossado, levamos ele para os Estados Unidos, (...) e dali nós fomos para Europa, fomos para Londres, para Portugal, para Alemanha e deixamos ele na Itália. Naquela época a Panair do Brasil ainda voava; e aí, a Panair do Brasil se ressentiu muito porque afinal ela é que (...) queria levá-lo para a Europa (era a empresa que fazia esta rota regularmente), mas como nós tivemos que levá-lo primeiro para os Estados Unidos, então dali, e nós o deixamos na Itália, e da Itália para o Brasil a Panair do Brasil o trouxe. Foi um vôo especial só para ele.”

75

Comissão Parlamentar de Inquérito instituída em 1959 para investigar a crise concluíram que o aumento na cotação do dólar americano era a principal causa. O dólar é a moeda em que é paga cerca de metade das despesas das companhias aéreas (...).” (RIBEIRO 2001: 88-89) O documento menciona, no entanto, outros fatores que estiveram na agenda da comissão, considerados decisivos para o enfrentamento da crise, dentro os quais se destacam a “excessiva oferta de vôos entre Rio e São Paulo”, formação de “dois cartéis” (Real, Panair e Lóide Aéreo de um lado, e Varig, Vasp e Cruzeiro do Sul de outro), e principalmente o “elevado número de acidentes”.76 A respeito da segurança, a historiadora Cláudia Fay cita os depoimentos à CPI, em 10/10/1961, de Bento Ribeiro Dantas (presidente da Cruzeiro do Sul e do Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias) e Ruben Berta (Varig). O primeiro teria declarado que a situação era “explosiva”, mostrando-se admirado que as empresas ainda estivessem voando. O segundo teria reforçado esta percepção, afirmando estar a indústria à beira de um colapso.77 Esta situação, no entanto, não se deveu necessariamente à falta de incentivos diretos e indiretos por parte do governo. Como vimos, existiam as subvenções para rotas internacionais desde 1955. No plano doméstico, mesmo com o fim do boom do pósguerra, as empresas continuaram apostando numa estratégia de crescimento, encontrando para tal um ambiente relativamente liberalizado. Um importante incentivo para esta estratégia foi a Instrução 113 da SUMOC, feita ainda em 1955, que permitia a importação de equipamentos sem cobertura cambial, o que lhes facilitava a incorporação de aeronaves à frota (FAY 2001: 124-125). Por outro lado, as empresas gozaram, entre 1955 e 1959, de uma taxa preferencial de câmbio para a aquisição de equipamentos no exterior, inclusive aeronaves. Segundo dados do Banco do Brasil fornecidos à CPI, o total de câmbio favorecido fornecido às empresas atingiu US$ 44

76

Com base em dados levantados em PEREIRA (1987) e publicações do setor, Cláudia Fay lista nada menos que 26 acidentes envolvendo aeronaves brasileiras entre 1959 e 1962, desde os antigos DC-3 até jatos recém adquiridos (FAY 2001: 167-168). 77 Baseada no Diário do Congresso Nacional, a autora cita ainda uma declaração de voto do presidente da comissão, Deputado Miguel Bahury, que teria destacado “como causa para tantos desastres aéreos a falha de pessoal, causada pela estafa da tripulação, exposta a excesso de horas, principalmente noturnas, além da carência de recursos dos órgãos técnicos, pois muitos campos de pouso, por descuido do Ministério da Aeronáutica, eram desprovidos dos equipamentos mínimos de segurança. Destacou também que alguns dirigentes de empresa, por ambição e desonestidade, dedicavam sua atenção para outras atividades, prejudicando o desempenho das empresas” (FAY 2001: 165).

76

milhões de dólares entre 1955 e 1959 (FAY 2001: 153). Além destes, as empresas receberam ainda do governo subvenções diretas da ordem de US$ 26.224 milhões entre 1957 e 1961 (ver Tabela 9). Inicialmente, a Lei 3.039 de 20/12/1956 estipulou um total de Cr$ 450 milhões a ser distribuídos para as empresas em parcelas anuais. Em 26/7/1961, a Lei n. 3.928-A veio atualizar este montante, destinando R$ 1.150 bilhões retroativos a 1958 (FAY 2001: 158).78

Tabela 9. Subvenções fornecidas pelo Governo para as empresas aéreas para reequipamento. 1957-1961 (Prestações anuais em US$ 1.000) Empresa

1957

1958

1959

1960

1961

Total

Panair

2.875

2.875

4.231

4.064

4.732

18.777

Real

487

1.727

1.727

1.727

1.555

7.520

Varig

431

2.165

2.637

2.510

2.729

10.472

Vasp

1.984

2.362

2.289

2.174

2.058

10.867

Total

6.074

9.129

10.884 10.475

11.074 47.636

Subvenções p/ reequipamento

10.400 12.540

11.500 11.500

5.320

51.060

Subvenções p/ linhas internacionais

5.300

4.700

2.640

3.360

6.800

22.800

Saldo Final

9.426

8.111

2.034

4.385

1.046

26.224

Fonte: CARVALHO (1963: 248) apud FAY (2001: 156)

As subvenções envolviam pagamentos por quilômetro voado (linhas nacionais e internacionais) e também para reequipamento das frotas, exigência que havia se tornado premente diante do salto tecnológico do setor, que havia passado dos DC-3 para trinta passageiros da década de 1940, voando a cerca de 200 Km/h, para os jatos Boeing 707

78

Significativo do padrão de relacionamento entre poder público e interesses privados é a contrapartida da lei de 1961, que em seu artigo 8º “obrigava todas as empresas subvencionadas pela União a conceder abatimentos nas passagens, nunca inferior a 50%, aos membros do Congresso Nacional, aos funcionários do Congresso em missão oficial e aos jornalistas profissionais, mediante a requisição da associação de classe a que fossem filiados, desde que em viagem no exercício da profissão. O benefício deveria ser estendido a dois dependentes dos congressistas, bem como ao cônjuge do jornalista e do funcionário, quando em missão para o exterior” (FAY 2001: 159).

77

da virada dos anos 1960, transportando em torno de cento e cinqüenta passageiros a 900 Km/h. Segundo Claudia Fay, no entanto, “a segurança da subvenção fez com que as empresas se lançassem em ambiciosos planos de reequipamento, muito acima de sua capacidade e acima das necessidades de mercado” (FAY 2001: 157). Além do aspecto quantitativo, a heterogeneidade dos equipamentos também pesou negativamente na estratégia das empresas. Além dos 707 trazidos pela Varig, a Real trouxe os Convair Coronado e a Panair do Brasil os DC-8, aviões equivalentes em porte, mas para os quais foi preciso trazer toda uma infra-estrutura específica, com destaque para as peças sobressalentes. Segundo Fay,

“Ao custo total de mais de 70 milhões de dólares, comprometendo receitas até 1968, cada grande jato precisara de material sobressalente no valor de 32 milhões de dólares, calculados para utilizar durante 10 anos. Como a situação econômica das empresas estava difícil, passaram então à supercompetição, as tarifas continuaram elevando-se, mas, paralelamente, havia a campanha por maiores subvenções e isenções tributárias mediante o slogan ‘aviação indústria enferma’.” (FAY 2001: 158)79 A crise do setor se expressaria, de fato, na diminuição do número de cidades servidas e na redução do número de empresas em operação (Tabela 10). De um total de trinta e cinco localidades em 1930, com três companhias em operação, chega-se a quase trezentas cidades em 1955, num ano em que treze empresas estavam em operação, número o qual chegara a 19 em 1950. Entre 1955 e 1960, percebe-se uma expressiva redução tanto nos destinos quanto no número de empresas, num movimento que se estenderia até a década de 1970. Do ponto de vista da atuação dos trabalhadores, merece destaque uma proposta que vinha amadurecendo desde a década anterior, mas que ganhou corpo diante da situação de crise do setor: a criação de uma estatal para a aviação comercial brasileira. A criação de uma “Aerobrás” se tornou uma importante bandeira de luta dos sindicatos

79

A autora menciona ainda que a comissão de inquérito havia recebido dados do Conselho de Desenvolvimento Econômico que apontavam estar o capital próprio de todas as empresas limitado a 2 bilhões de cruzeiros, enquanto o passivo chegava a mais de 10 bilhões de cruzeiros. Além disso, havia dívidas com a previdência, o BNDE e o Banco do Brasil (FAY 2001: 159-160).

78

de trabalhadores da aviação comercial.80 Numa iniciativa paralela, acolhendo proposta de Arp Procópio Carvalho, professor do Instituto de Tecnologia Aeronáutica, o deputado federal Aloysio Nonô chegou a apresentar um projeto de lei criando a Aerobrasil S. A., com participação minoritária da União, projeto este que seria complementado pela criação de um Conselho de Aeronáutica Civil, subordinado à Presidência da República (FAY 2001: 170).81 Tabela 10. Variação do número de cidades que recebem serviço aéreo comercial e número de empresas transportadoras. Anos escolhidos de 1930 a 1977. Ano

Cidades Servidas

Companhias em operação

1930

35

3

1940

85

4

1945

128

10

1950

204

19

1955

291

13

1960

250

12

1965

220

7

1968

170

5

1971

132

4

1974

130

4

1977

125

4 nacionais e 5 regionais

Obs.: o número máximo de cidades servidas foi de 344, alcançado em 1957. Fontes: para o número de cidades servidas (30 a 45), Sr. Washington Riscado, da Panair do Brasil. De 1950 em diante, Guia Aeronáutico. Para o número de companhias, Sr. Riscado (30 a 45), e Guia Aeronáutico de 1950 em diante. Citado em ANDERSON 1979. 80

Segundo Aldo Pereira, após as duas CPIs que investigaram as causas da crise econômica e da falta de segurança no setor, o “ambiente era propício ao retorno da idéia de lutar pela Aerobrás, cuja criação foi aprovada no Segundo Congresso dos Trabalhadores nos Transportes Aéreos realizado em Porto Alegre no ano de 1960. No Terceiro Congresso dos Trabalhadores em Transportes Aéreos, realizado no Recife em setembro de 1963, a tese da criação da Aerobrás foi aprovada por aclamação, tal era a certeza que tinham os trabalhadores de ser ela a solução ideal para resolver os problemas da aviação comercial, pois somente uma profunda modificação estrutural permitiria seu natural desenvolvimento” (PEREIRA 1987: 435). 81 Segundo Claudia Fay, o entendimento dos envolvidos era de que a criação de uma empresa de capital misto permitiria ao governo maior controle sobre a aplicação dos recursos. A autora cita o discurso do deputado Aloysio Nonô, questionando a oferta de subvenções às empresas: “Quanto nos custa a manutenção deste prestígio? O Governo brasileiro vem dispensando generosa e progressiva atenção às nossas companhias exploradoras do transporte aéreo. Vem estas recebendo, a partir de 1950, extensos favores do poder público; é a isenção tributária ampla, exclusão única do imposto sobre a renda; é a subvenção por quilômetro voado nas linhas aéreas internacionais; é a isenção de taxas aeroportuárias, do aluguel de bens e serviços e instalações mantidas pela União, é o câmbio favorecido para importação de aeronaves, ,equipamento, combustível e lubrificantes; é a fiança do governo para compra a crédito no estrangeiro!” (Diário do Congresso Nacional, 7/11/1961 [seção I], suplemento, p. 9 apud FAY 2001: 170).

79

Segundo Aldo Pereira, o projeto do deputado “foi considerado pouco satisfatório pelos trabalhadores, que entendiam que ao Estado cabia o direito e o dever de controlar uma empresa de tão grande importância econômica, social e até mesmo estratégica (...)” (PEREIRA 1987: 435). No entanto, com participação majoritária ou minoritária, a possibilidade de estatização se tornou um dos principais pontos de conflito entre os atores do setor. A proposta de criação da Aerobrás oporia trabalhadores, de um lado, e empresários e autoridades aeronáuticas, de outro, levando estes a se posicionar radicalmente contra a iniciativa. Enquanto os trabalhadores discutiam a estatização do setor, as autoridades aeronáuticas decidiram convocar as empresas para um amplo debate sobre a situação da aviação comercial, que se realizaria no âmbito das Conferências Nacionais de Aviação Civil (as CONACs).82 O primeiro destes encontros se deu em Petrópolis, e ficou conhecido como “Conferência do Castelo”, por ter se realizado no Castelo Country Club. O encontro foi presidido pelo diretor-geral do DAC, Brigadeiro Dario Azambuja, tendo dela participado os principais dirigentes empresariais: Ruben Berta (Varig), Paulo Sampaio (Panair do Brasil), Oswaldo Pamplona (Vasp), Marcílio Gibson Jacques (Lóide Aéreo), Bento Ribeiro Dantas (Cruzeiro do Sul) e seus assessores, além de representantes da SUMOC e do BNDE num total de trinta e seis participantes (cf. FAY 2001: 169). As CONACs não tinham caráter deliberativo, mas serviriam de orientação para as políticas governamentais. Não obstante, a iniciativa serviu para fortalecer os laços entre poder público, especialmente o DAC, e as empresas, gerando uma maior coesão entre estes atores, o que, como vimos, é um fator que tende a pesar no desempenho do setor como um todo. Assim, mais importante do que o caráter formalmente nãodeliberativo do encontro, deve se levar em consideração o significado destes laços do ponto de vista institucional. Um importante desdobramento deste encontro foi o consenso entre os participantes quanto à oposição em relação ao projeto de criação da 82

A publicação comemorativa dos setenta anos do DAC faz a seguinte consideração sobre esta iniciativa: “As autoridades reconheceram a necessidade da adoção de um plano geral que, além de estabelecer como seria saneada economicamente a indústria, evidenciasse tanto a cautela do Governo quanto o emprego judicioso dos recursos para isso alocados. As medidas administrativas deveriam corrigir as falhas existentes e possibilitar ao Executivo exercer, efetivamente, poder disciplinador sobre a aviação comercial. A elaboração do plano ficou a cargo do DAC. Foi julgado conveniente convocar os presidentes das principais empresas de transporte aéreo e seus assessores para uma conferência em que se discutisse os assuntos ligados ao problema” (RIBEIRO 2001: 89).

80

Aerobrás. Mas o encontro não se limitou a esta objeção, tendo sido levantadas outras propostas que estariam longe de ser definitivas para a organização da aviação comercial brasileira. Segundo Floriano Dias (1962), na Conferência de Petrópolis se evidenciou também uma preocupação com o universo de usuários do serviço. Por um lado, havia a preocupação com a diminuição dos serviços aéreos para as localidades do interior, e por outro, discutia-se a inclusão de um espectro mais amplo da população ao sistema. Assim, propôs-se uma tarifa estática, “compatível com o poder aquisitivo das populações de mais alto grau de subdesenvolvimento” (DIAS 1962: 30), visando estabelecer um sistema tarifário capaz de competir com o transporte de superfície83. Por outro lado, pretendia-se eliminar a concorrência através das “guerras tarifárias”, em nome de um sistema de tarifas mais próximo dos custos reais das operações, o que por sua vez permitiria a eliminação gradual das subvenções, objeto de críticas por parte de atores externos ao setor84. No seguinte trecho, Dias traduz esta preocupação por parte dos participantes da CONAC:

“A classificação da aeronave em faixa de pontos, seguindo o seu custo operacional, acompanhada da classificação do serviço de bordo, traduz a realidade industrial há tanto buscada. Ainda que a tarifa não possa cobrir o custo real do serviço, a participação do auxílio do governo irá sendo reduzida à medida em que a recuperação da indústria se processar, ao mesmo tempo em que o duplo artificialismo de sua composição (custo operacional fora da realidade e, nessa condição, indiretamente coberto por favores cambiais) ir-se-á extinguindo” (DIAS 1962: 31). As deliberações da I CONAC foram assim resumidas num documento recente do DAC (DAC 1997: 44):



estímulo à fusão e associação de empresas aéreas, visando reduzi-las a duas linhas internacionais e três domésticas;

83

Segundo o autor, teria sido proposta a criação de um sistema com três classes de serviço, conforme o tipo de aeronave e o padrão do serviço de bordo: “luxo”, “segunda classe” e “popular” (DIAS 1962: 30). 84 Cabe mencionar que ANDERSON (1979) e PEREIRA (1987) afirmam que esta CONAC também teve nos subsídios um de seus principais focos de discussão.

81



estímulo à especialização das empresas nos serviços aéreos oferecidos, com vista à maior eficiência;



incentivo à fusão de serviços comuns, com vista à redução dos custos de operação;



repúdio ao monopólio – estatal ou privado.

Quanto ao último item, cabe salientar que embora fizesse referência ao monopólio privado, seu foco parecia estar mais concentrado na possibilidade da criação de uma Aerobrás, ou seja, num monopólio estatal. O discurso de dois oficiais da Aeronáutica, por ocasião da transmissão do cargo de presidente da Comissão para Estudos Relativos à Navegação Aérea Internacional (CERNAI) do DAC,85 mostra a ambigüidade deste “repúdio”, ao defender a criação de uma empresa única para as rotas internacionais, enfatizando que deveria se tratar de uma empresa privada. Destacando as novas condições do transporte aéreo internacional, um dos oficiais afirma que as empresas se defrontariam com maiores custos e o “recrudescimento da competição”.

“Nessa ocasião, não mais será possível subsistir o sistema de competição que ora prevalece de várias empresas de vários países operando nos mesmos pontos e nas mesmas rotas. Empresas aéreas, e até mesmo nações, para explorarem eficientemente o tráfego aéreo, terão que associar-se, sob pena de serem alijadas do mercado internacional. (...) “Ao longo desta idéia, penso, portanto, que o Governo brasileiro deveria orientar-se no sentido de facilitar ou incentivar a constituição de uma empresa brasileira internacional única, que servisse como instrumento de sua política, para exploração do tráfego aéreo internacional, constituída, talvez, pela participação de todas as nossas empresas domésticas, e, portanto, nitidamente de caráter privado.” (AMARANTES e CUNHA MACHADO 1961: 8) A situação do setor, após a I CONAC, não se alterou substancialmente. As principais propostas, como a redução da oferta e as fusões, não foram levadas adiante de

85

Trata-se do órgão responsável pela formulação das políticas relativas ao transporte aéreo internacional, atuando inclusive nas negociações de acordos bilaterais de transporte aéreo.

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forma consistente,86 e em 1963 autoridades e empresas se reuniram novamente, desta vez no Rio de Janeiro, para a II CONAC, também conhecida como “Conferência do Glória”. A conferência reafirmou o “repúdio ao monopólio”, embora admitisse “monopólios regionais” sobre linhas domésticas de baixa densidade. Estas linhas seriam incluídas num sistema à parte, a Rede de Integração Nacional (RIN), para a qual seriam oferecidos subsídios. Tais linhas seriam aquelas consideradas de interesse nacional, e como não ofereciam rentabilidade econômica, contariam com apoio do governo. Para os demais segmentos do mercado, Dole Anderson (1979) salienta que o foco mudou dos subsídios para a “realidade tarifária”, ou seja, para um sistema de tarifas que cobrisse plenamente o custo das operações.

3.4. A consolidação do modelo regulatório durante os governos militares A proposta da Aerobrás continuava encontrando eco nas organizações dos trabalhadores e nos meios políticos, ao mesmo tempo em que sofria oposição sistemática por parte das empresas, tendo Ruben Berta, da Varig, se destacado neste papel. Por outro lado, em depoimento na Câmara dos Deputados em 1962, o Professor Arp Procópio, um dos idealizadores da Aerobrás, já percebia na trajetória da empresa gaúcha o risco iminente de formação de um monopólio privado. A empresa dirigida por Ruben Berta havia absorvido, no ano anterior, o consórcio Real-Aerovias, que detinha parcela importante do tráfego doméstico e algumas rotas internacionais, inclusive aquela para o Japão.87 A situação da Varig no mercado foi assim descrita por Arp Procópio:

86

Em termos de fusões, houve duas significativas: a Varig absorveu o consórcio Real-Aerovias e a Vasp absorveu o Lóide Aéreo. Chegou-se a cogitar uma fusão entre a Panair do Brasil e a Cruzeiro, que não vingou (Cf. ANDERSON: 50). 87 Segundo relato do comandante Rubens Bordini, em seu livro de memórias, Jânio Quadros teria convocado Ruben Berta a assumir o controle do consórcio dizendo-lhe: “Berta, a Real está falida, e seis mil aeroviários e aeronautas vão perder seus empregos, quando ela cessar suas atividades. Eu não posso deixar essas famílias no desamparo! Vejo só duas soluções: ou a Varig compra a Real, ou eu crio a Aerobrás” (BORDINI 1996 apud FAY 2001). Segundo Claudia Fay, Berta teria feito o seguinte comentário sobre a compra da Real, em depoimento na Câmara dos Deputados: “fizemos um péssimo negócio: a Real está falida, mas não poderíamos deixar de atender a um apelo do Presidente Jânio Quadros, que nô-lo endereçou em forma de exigência. Além disso, fizemos a aquisição por patriotismo” (Diário do Congresso Nacional, maio de 1962, p. 2404 apud FAY 2001: 194).

83

“A Varig estava formando o monopólio; em 1962, tinha mais de 50% do tráfego, trabalhando em ‘pool’ com a Vasp e a Cruzeiro do Sul. Na realidade, tinha 84% a 86% de todo o tráfego. A única empresa competidora era a Panair do Brasil e, mesmo assim, com 14% do tráfego interno do Brasil.”88 Entre a posição dos trabalhadores e a das empresas e autoridades aeronáuticas, pesaria a favor destas o golpe militar de 1964. O golpe colocaria fora da arena política as principais lideranças sindicais da aviação comercial, e consolidaria a dinâmica política baseada na aproximação entre autoridades aeronáuticas e empresas. Em 1964, estavam em operação quatro grandes empresas: Cruzeiro do Sul, Panair do Brasil, Varig e Vasp. Além destas, operavam ainda a Sadia89 e a Paraense.90 Dentre estas, no entanto, destacava-se a liderança da Varig, através do ativismo de Ruben Berta. Assim como por ocasião da concessão da rota para Nova York e da absorção do consórcio RealAerovias, pesaria a favor da empresa gaúcha a capacidade de seu líder de se aproximar dos governantes da vez e garantir a ampliação de seu poder sobre o mercado.91 O passo que consolidaria a chegada da empresa gaúcha à condição de líder absoluta do mercado de aviação comercial no Brasil foi dado com a decretação da falência da Panair do Brasil, por iniciativa do governo Castello Branco, passando as rotas, aeronaves, instalações e parte do pessoal da empresa extinta para a Varig. São conflitantes as interpretações sobre a razão para a iniciativa do governo. O discurso

88

Depoimento de Arp Procópio de Carvalho à CPI, Diário do Congresso Nacional, 16 de maio de 1962, p. 2414 apud FAY (2001: 146). 89 A Sadia, que posteriormente teria seu nome mudado para Transbrasil, foi a única sobrevivente dentre as empresas criadas entre os anos 1940 e 1950. Seu presidente, Omar Fontana, era um filho de pecuarista do interior de Santa Catarina, que se tornou piloto e decidiu transportar a carne produzida na cidade de Concórdia, no interior catarinense, para São Paulo utilizando um avião alugado da Panair do Brasil. O sucesso da iniciativa levou Fontana a adquirir aviões próprios, que eventualmente foram utilizados no transporte de passageiros. A empresa transferiria sua sede para São Paulo, vindo a se firmar no mercado doméstico como uma das grandes empresas nacionais. A Transbrasil voltará a ser mencionada nas páginas seguintes. 90 A empresa foi fundada em 1952, voando no interior do país a partir de Belém, tendo tido sua licença suspensa pelas autoridades aeronáuticas em 1970, quando tinha apenas duas aeronaves em condições de vôo. 91 Em um livro que retrata a trajetória dos trabalhadores da aviação comercial, Vito Giannoti faz a seguinte menção à relação de Berta com os militares: “Conforme provado por historiadores como Rene Dreifuss, o presidente da Varig era membro do IBAD, o instituto de estudos e aglutinação políticas que foi um dos pólos articuladores do golpe militar de 1964. os aviões da Varig foram graciosamente colocados a serviço do golpe, naquele 31 de março. Essa estreita ligação Varig-ditadura militar pode ajudar a entender como esta companhia foi presenteada, no ano seguinte, com as linhas da Panair” (GIANOTTI 1995: 61).

84

oficial salienta a situação financeira precária, assim como a falta de condições técnicooperacionais, devido à “falta de profissionalismo” de seus dirigentes. Segundo publicação do DAC, “Em fevereiro de 1965, deu-se a ruidosa falência da Panair do Brasil. O fator desencadeador desse acontecimento foi o uso desregrado e pouco profissional da concessão, em detrimento do atendimento ao usuário. A exposição de motivos do então Ministro da Aeronáutica – Marechal-doAr Eduardo Gomes – ao Presidente Castelo Branco é bastante clara quanto ao endividamento acelerado e à má situação econômicofinanceira da empresa, que se refletia na segurança de vôo, pela impossibilidade de aquisição de peças sobressalentes necessárias à manutenção dos aviões. (...) “Irregularidades administrativas, tais como excesso de pessoal e empreguismo, abuso na emissão de passagens gratuitas e de mero favor, e abusos nos contratos de serviços rotineiros ocasionavam atrasos freqüentes – alguns superiores a cinqüenta horas – nos vôos internacionais, com total descaso em relação ao passageiro. Pesquisando-se documentos da época, percebe-se que ao Governo não cabia outra medida senão determinar o enceramento das atividades da Panair.” (RIBEIRO 2001: 96-97) A versão da empresa, por outro lado, articula a decisão tomada pelos militares à posição política do grupo que comprou a participação majoritária na Panair do Brasil em 1961, tendo à frente os empresários Mário Simonsen e Celso da Rocha Miranda, este ligado ao setor de seguros, e aliado político de Juscelino Kubitschek. Em um livro de memórias da Panair do Brasil, chama-se atenção para a atitude do governo ter-se dado quando a empresa estava com os salários de seus funcionários em dia e não tinha títulos vencidos, sugerindo que a empresa tinha sido vítima do poder discricionário dos militares (BARBOSA 1996).92

92

Aldo Pereira propõe ainda uma terceira linha de interpretação. A falência da Panair teria sido decretada para garantir que a Varig, uma vez assumindo as rotas daquela, obtivesse receita suficiente para honrar dívidas com o Chase Manhatan Bank. A história ganha sentido, segundo Pereira, porque Mário Simonsen estava disputando com o representante no Brasil do banco norte-americano, Walter Salles, a participação no mercado de café. “Antes do fechamento da Panair a imprensa noticiou o encontro de David Rockfeller, Walter Moreira Salles e Ruben Berta, então presidente da Varig, realizado no restaurante da revista O Cruzeiro. A entrevista, apesar de ter chegado ao conhecimento público, foi tão sigilosa que do assunto nela tratado nem Mário Simonsen tomou conhecimento” (PEREIRA 1987: 332). Mas o autor não isenta de responsabilidade os controladores da Panair do Brasil, afirmando em seguida: “Pergunta-se hoje (...) por que seus antigos diretores e principais acionistas, encabeçados por Paulo Sampaio e Celso da Rocha Miranda, não vêm a público e contam toda a verdade pelo até hoje indecifrado mistério. O que os impede de falar é a ética capitalista, a ética dos banqueiros. Eles se digladiam, lutam até às últimas conseqüências mas são incapazes de vir a público para retaliar eventuais adversários”.

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Independente das razões que levaram ao fechamento da Panair do Brasil, a Varig foi a principal beneficiada com o ato, tendo absorvido suas rotas internacionais, de modo que a empresa gaúcha ascendeu à condição de única representante do Brasil nas operações internacionais. Confirmando a previsão do Professor Arp Procópio de Carvalho,93 e contrariando a posição assumida durante as CONACs e em outras oportunidades, Berta levou a Varig a deter o monopólio, dentre as empresas brasileiras, para as rotas internacionais de longo curso, fato que levou a empresa a ser conhecida por seus opositores e críticos como “Bertabrás”.94 Ainda em 1966, um importante marco da organização do setor foi a reformulação do Código Brasileiro do Ar”, através do Decreto-Lei n. 32, de 18/11/1966, tendo como um de seus principais pontos a exigência de 4/5 de capital nacional para as empresas concessionárias do setor, assim como sede no Brasil. No entanto, questões críticas como as tarifas, subsídios e concessão de rotas permaneciam não resolvidas, de forma que as autoridades convocaram uma terceira CONAC, realizada em 1968, novamente no Rio de Janeiro. Segundo documento do DAC, este encontro reafirmou as recomendações das duas primeiras CONACs e, a despeito de já se tratar de fato consumado, teria dado “maior ênfase ao repúdio ao monopólio”. Por outro lado, diante da existência de uma estatal entre as sobreviventes do movimento de consolidação do setor, a Vasp, reforçou-se o “estímulo à privatização de empresas” (DAC 1997: 44). Dentre

as

recomendações

originadas

nas

CONACs

anteriores,

duas

caracterizariam o marco regulatório do setor a partir de então: a política de “competição controlada” e “realidade tarifária”. Visando a racionalização do sistema, os horários dos vôos passaram a ser organizados de forma a evitar a superposição de rotas, isto é, evitar que dois vôos saíssem em horários próximos para o mesmo destino sem que houvesse uma demanda que os justificasse. E não poderia haver concorrência através das tarifas, de modo que as empresas passaram a cobrar tarifas semelhantes para os mesmos

93

Ver nota 39. Quando Celso da Rocha Miranda e Mário Simonsen compraram a Panair do Brasil, contavam em seu grupo com Erick de Carvalho, antigo dirigente da Panair que havia sido convidado para ingressar na Varig quando a empresa gaúcha começou a voar para Nova York. Um diretor do DAC chamou os empresários para uma reunião, manifestando sua preocupação de que a aquisição da empresa seria uma tentativa de repassá-la posteriormente à Varig. Na reunião, o diretor teria dito: “Gostaria de saber se esta aquisição tem como finalidade transferi-la para a Varig. Se tem, quero avisar que não permitirei que se constitua um monopólio que só virá a prejudicar os interesses nacionais. Antes que se constitua a Bertabrás, eu constituirei a Aerobrás” (BARBOSA 1996: 69). 94

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trechos. Com esta estratégia, pretendia-se evitar gastos desnecessários e fazer com que os usuários arcassem com os custos do serviço, eliminando os subsídios. Um último passo da consolidação do setor seria dado em meados dos anos 1970, quando a Varig absorveu a Cruzeiro do Sul. Conforme relata Claudia Fay (2001), inicialmente as autoridades aeronáuticas fizeram uma consulta à Cruzeiro do Sul e à Transbrasil sobre a possibilidade das duas empresas realizarem uma fusão, proposta que foi aceita pelos dirigentes de ambas. No entanto, as autoridades teriam desistido da idéia ante a situação financeira precária das duas empresas. A autora menciona diferentes propostas que teriam surgido na época, como a realização de uma fusão entre a Transbrasil e a Varig, e outra entre a Vasp e a Cruzeiro do Sul, e a absorção da Transbrasil e da Cruzeiro do Sul pela Vasp (assim, haveria uma grande empresa de âmbito nacional que faria o contraponto do domínio da Varig sobre as rotas internacionais). Esta última proposta esbarraria, no entanto, no fato da Vasp ser uma empresa estatal, o que contrariava a posição que as autoridades aeronáuticas vinham firmando em conjunto com as demais empresas desde as CONACs.95 Em meio a diferentes propostas, a Varig acabou sendo a empresa que incorporou a Cruzeiro do Sul, passando a deter mais de 50% do mercado doméstico e, ao assumir as rotas da Cruzeiro para a América do Sul e Caribe, se tornou a representante exclusiva do Brasil no transporte aéreo internacional. Restava ainda resolver o problema do abandono das localidades de menor porte, problema que foi resolvido em 1975, com a criação do Sistema Integrado de Transporte Aéreo Regional (SITAR). Criado pelo Decreto 76.590, de 12 de novembro de 1975, o SITAR consistiu na criação de cinco regiões em cada uma das quais uma empresa seria designada para operar em regime de monopólio, apoiada ainda num subsídio que seria custeado por um compulsório de 3% cobrado das passagens aéreas nacionais. As empresas e as respectivas regiões foram: Taba, na Bacia Amazônica; Votec, na Bacia do Tocantins-Araguaia; Nordeste, na Bacia do São Francisco, Tam, no Centro-Oeste e Rio95

Na época, o presidente da Transbrasil, Omar Fontana, se demonstraria cético em relação a esta proposta, ao afirmar: “Tudo vai depender das intenções dos diretores da Vasp. Se eles estiverem bem intencionados, dispostos a privatizar a empresa, não haverá problemas. Eu, pessoalmente, porém, não acredito nesta fusão” (Revista Visão, 9/6/1975, p. 47 apud FAY 2001: 265). Já no ano de 1980, o então ministro da Aeronáutica, Délio Jardim de Mattos, declarou em audiência na Câmara de Deputados, após ser questionado sobre a possibilidade de criação de uma “Aerobrás”: “Excelência, a Aeronáutica sempre lutou contra a criação da Aerobrás, pelos defeitos que tem uma companhia do governo. Somos mais pela privatização” (MATTOS 1979: 31).

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Sul, na região do centro-sul do país. Neste sistema, seriam operados aviões de pequeno porte, com destaque para o primeiro avião de transporte de passageiros produzido pela Embraer, o Bandeirantes. Em conferência proferida no ano de 1973 na Escola Superior de Guerra, o então Ministro da Aeronáutica Araripe Macedo chamou atenção para a importância das medidas tomadas a partir de 1964, que teriam permitido já em 1968, a obtenção de um superávit no transporte aéreo regional brasileiro. A partir de 1969, as subvenções vinham sendo progressivamente eliminadas enquanto os resultados operacionais continuavam crescendo.96 Além de ressaltar o acerto das medidas tomadas após 1964, as autoridades retornam sempre ao tema da “doutrina do poder aéreo unificado”. As virtudes do modelo de manutenção das aviações civil e militar sob controle único – dos militares – são realçadas sempre sob a lógica da economia e da racionalização dos esforços, como segue no discurso de posse do Tenente-Brigadeiro Deoclécio Lima de Siqueira na direção geral do DAC, em 20 de março de 1975.

“O Brasil tem dado ao mundo um exemplo magnífico e admirável de bom senso, de racionalidade, de equilíbrio e de inteligência. Refiro-me à nossa Doutrina de condução das coisas da Aeronáutica pelo Estado Brasileiro. Toda a legislação, desde há muito, consubstancia esta Doutrina, que se resume em integrar, numa mesma entidade, o nosso Ministério, todas as atividades ligadas ao espaço. Com isto o Brasil pôde dar um passo gigante à frente de quase todos, senão de todos os povos do mundo, e, assim, hoje, quando outros se esvaem numa duplicidade supérflua de gastos, com a manutenção de atividades para a Aviação Militar ao lado de outras iguais para a Aviação Civil, no nosso país toda a infra-estrutura que apóia os aviões, sejam eles militares ou não, está unificada, e, assim unificada, é mais econômica, mais eficiente, mais padronizada, mais racional, portanto mais inteligente. (…) Na condução de sua Aeronáutica, o Brasil, com em tantos outros setores, estabeleceu o seu modelo e dele não deseja, nem quer se afastar, porque sabe muito bem que só o sucesso não admite discussão. (…) Por isso a Aviação, no seu todo, é mais eficiente nas mãos dos que a viveram em sua plenitude, dos que a elegeram como ideal de suas vidas. Por isso a nossa Doutrina tem sido sábia. Enfeixando todas as atividades aéreas

96

Aerovisão. Revista do Ministério da Aeronáutica, n. 8, outubro de 1973, p. 4.

88

civis no Ministério, e este, num mesmo sistema cuja cabeça é o DAC, onde não falta o espírito aeronáutico, garante-se o êxito deste setor.”97

Outro ponto reafirmado é a adesão dos oficiais da Aeronáutica ao modelo da iniciativa privada. Num texto publicado na revista Aerovisão em 1977, intitulado “A aviação civil e o poder Aeroespacial”, retomando a importância das medidas tomadas a partir de 1964, afirma-se:

“O Transporte Aéreo Regional Doméstico, após superar a fase desastrosa do período 1946/1965, quando quase meia centena de empresas engalfinhava-se em competição altamente ruinosa, (…) vem se firmando aos poucos, estruturado em melhores bases técnicas e econômicas. A partir de 1965, várias medidas sanearam o setor como parte de um contexto abrangendo toda a política nacional – contenção do processo inflacionário, reduzindo-o a níveis suportáveis sem afetar o desenvolvimento do país, nova política salarial, verdade tarifária, eliminação progressiva das subvenções, abolição dos descontos tarifários e gratuidades e disciplinamento da oferta da capacidade de transporte. (…) Desde os primórdios dos transportes aéreos no Brasil, o Governo tem adotado uma política de privatização do setor e a iniciativa privada tem se revelado competente, eficiente e progressista. A participação do Estado no campo da iniciativa privada somente se justifica por razões de Segurança Nacional, por ausência de capacidade técnica ou financeira da iniciativa privada ou por insuficiência da mesma. A conjuntura atual não inclui nenhum dos três casos.”98 A confiança das autoridades na iniciativa privada pode se explicar, talvez, pela existência de relações próximas entre ambos. Não só através das já mencionadas CONACs, de caráter esporádico, mas também através de contatos mais freqüentes, como participação em fóruns comuns, reuniões comemorativas e outros. Para citarmos dois exemplos, a revista Aerovisão menciona um almoço de confraternização realizado em fins de 1973 no Salão Nobre do Ministério da Aeronáutica, tendo como convidados os presidentes das companhias aéreas de aviação comercial e oficiais-generais que

97

Aerovisão. Revista do Ministério da Aeronáutica, n. 13, março dd 1974, p. 7. Em seu discurso, o novo diretor geral do DAC cita também a criação da Infraero como mais um sinal positivo no sentido da manutenção da referida doutrina. A empresa estatal, criada no ano anterior para administrar a infraestrutura aeroportuária brasileira, estava vinculada ao Ministério da Aeornáutica. Tal medida permitiu ainda o fim da incidência dos gastos com aeroportos civis sobre a Força Aérea Brasileira, “distorção que de há muito, vem comprometendo o fortalecimento da expressão militar do Poder Aéreo Brasileiro”. 98

Aerovisão. Revista do Ministério da Aeronáutica, n. 56, outubro de 1977, p. 5.

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ocupavam cargos ligados à aviação civil.99 Da mesma forma, a Revista Brasileira de Direito Aeroespacial, assim como a instituição responsável pela sua publicação, a Sociedade Brasileira de Direito Aeroespacial, serviram como espaço de interlocução entre representantes do poder público e das empresas, na difusão de conhecimento técnico e jurídico sobre a atividade. A aproximação entre autoridades aeronáuticas e dirigentes empresariais teria como contrapartida um relacionamento absolutamente conflituoso entre estes e os representantes dos trabalhadores. Com a perseguição às lideranças sindicais, estes atores seriam virtualmente excluídos da dinâmica política, situação que perduraria até a redemocratização, nos anos 1980.

3.5. A crise dos anos 1980 Em janeiro de 1985, a Gazeta Mercantil destacou a seguinte declaração do diretor-geral do DAC, a respeito da aviação comercial: “Acabou a crise”. A recuperação da economia brasileira, depois de um ano de 1983 fraco, levou a indústria a recuperar-se dos prejuízos em 1984, estimando-se um crescimento do setor entre 6% e 8%. A matéria ainda fez o seguinte destaque:

“Outra política realizada pelo DAC, neste ano, e responsável pelo esperado ‘resultado operacional positivo de todas as empresas do transporte aéreo’, segundo o diretor do DAC, foi a de manter o nível do break even point das empresas em 55% de sua ocupação, através de reajustes das tarifas acima da inflação. ‘Temos de levar em consideração que o transporte aéreo é indexado ao dólar’, lembra Lacerda Netto (Diretor-Geral do DAC). O combustível, os preços das peças importadas e as operações de compra de aeronaves são todos feitos em moeda estrangeira. As empresas que operam na aviação doméstica mantiveram seus índices de ocupação em torno de 60%, isto é, conseguiram acabar o ano com um resultado operacional positivo.”100 99

Aerovisão. Revista do Ministério da Aeronáutica, n. 11, janeiro de 1974, p. 2. “‘Acabou a crise’, diz diretor-geral do DAC”, Gazeta Mercantil, 7/1/1985. O break even point é o número de assentos em um avião que deve ser preenchido para que o vôo passe a se tornar lucrativo. Num avião de 100 lugares, se o break even point é de 55, então a partir do 56º passageiro, o vôo começa a se tornar lucrativo. Com base em dados da corretora Schahin Cury, o Jornal do Commercio apresenta os seguintes dados, comparando os anos de 1983 e 1984: “Com relação às tarifas aérea, elas apresentaram, em 1984, uma evolução de 330,9% contra uma inflação de 223,8%. Esse aumento real de certa forma compensou a política tarifária adotada no ano anterior, quando houve uma evolução de 196,9% contra uma inflação de 211%” (“Céu de brigadeiro”, Jornal do Commercio, 11/6/1985). 100

90

A iniciativa das autoridades de conduzir as empresas à lucratividade operacional através do aumento das tarifas acima da inflação era consistente com o modelo adotado para o transporte aéreo desde fins dos anos 1960, com a política de “realidade tarifária” e o abandono da estratégia de popularização do transporte aéreo preconizada no contexto pré-1964. Optando por focar suas estratégias numa demanda composta por homens de negócio e burocratas viajando a serviço, as empresas contavam com uma boa margem de manobra para majorar seus preços sem que isso representasse risco de perda de passageiros, especialmente quando as empresas não competiam entre si através das tarifas. Com a redemocratização, e a entrada em pauta do controle da inflação como prioridade das autoridades econômicas, a situação das empresas começou a mudar. Visando debelar a inflação, as autoridades passaram a controlar diretamente os preços – como no caso dos “congelamentos” – e no caso da aviação comercial, o controle que era exercido pelo Ministério da Aeronáutica através do DAC passou a ser dividido com o Ministério da Fazenda. A partir de então, a dinâmica política concentrou-se em boa parte na pressão por parte das empresas, com o suporte do DAC, para obter reajustes tarifários, e na resistência das autoridades econômicas em concedê-los. Em junho de 1985, por exemplo, as empresas pressionaram pelo reajuste, e apesar da resistência das autoridades econômicas, prevaleceu a força do Ministério da Aeronáutica, que conseguiu aprovar o reajuste, como se depreende dos seguintes trechos de reportagens do período:

“A decisão do Governo Federal, de adiar o reajuste das passagens aéreas domésticas, foi recebida com preocupação pelas companhias de aviação. ‘Como uma parte considerável de nossos custos varia com o dólar, na prática acabamos tendo aumentos de custos quase todos os dias’, disse, sexta-feira, Aristeu Teixeira de Mendonça, vice-presidente da Vasp, a empresas aérea estatal paulista. Mendonça lembrou que as companhias já tiveram seus custos agravados pela recente greve dos aeronautas e aeroviários, não só pelos dias parados como também pelo acordo salarial que acabaram assinando com os empregados. ‘Um adiamento muito prolongado, agora, poderá jogar todas as empresas no vermelho’, considerou. O temor das companhias, segundo o vicepresidente da Vasp, está numa volta à situação de 1983, quando as

91

empresas, mesmo voando com um índice de ocupação da ordem de 70%, ainda assim registravam prejuízos operacionais. ‘O DAC adotou, desde então, uma política de realismo tarifário, exatamente para reverter aquela situação’, lembrou”101 “O Ministério da Aeronáutica pleiteou um aumento das tarifas aéreas a partir de 1o deste mês, em 31,17 %. O Conselho Interministerial de Preços (CIP) não autorizou esse reajuste. O ministério voltou à carga e ontem conseguiu um reajuste um pouco superior ao pedido no início do mês. O último aumento das tarifas aéreas autorizado pelo Governo foi em março deste ano, em 23,8%.”102 O trecho seguinte, de uma matéria publicada no Jornal do Commercio por ocasião de um novo pedido de reajuste (novembro de 1985), ilustra os fortes vínculos entre o Ministério da Aeronáutica e as empresas. Desta vez, além de insistir sobre os fatores pesando sobre o aumento dos custos – especialmente o aumento no combustível – as autoridades aeronáuticas enfatizariam “os esforços” feitos pelas empresas para manter a qualidade dos serviços.

“O diretor-geral do Departamento de Aviação Civil, tenente-brigadeiro Waldir Fonseca, informou ontem que o Ministério da Aeronáutica encaminhou ao Ministério da Fazenda um estudo que prevê um reajuste de cerca de 10% das tarifas aéreas domésticas. O reajuste, segundo ele, é necessário em conseqüência do aumento do preço do combustível (importado) de aviação, que ocorreu na primeira quinzena de outubro. Sem esse reajuste, os prejuízos da aviação civil brasileira podem se acentuar, deixando o setor de acompanhar o custo real do transporte aéreo. “O brigadeiro disse que o reajuste proposto do Ministério da Fazenda ‘não é, na realidade um aumento, mas sim uma compensação pelo aumento do preço do combustível e ainda pela variação cambial, que afeta a aviação brasileira.” (...) “O brigadeiro destacou os esforços que têm sido feitos pela Transbrsil, Vasp e pelo grupo Varig-Cruzeiro para a manutenção em nível elevado dos padrões do transporte aéreo brasileiro, tanto em operacionalidade quanto em termos de conforto. Para o diretor-geral do DAC, é necessário, realmente, manter em níveis compatíveis a aviação civil, considerando a sua ‘importância para a própria economia nacional, até porque a maior parte dos que viajam de avião o fazem a serviço.’

101 102

“Medida preocupa as empresas”, Gazeta Mercantil, 1/6/1985. “Tarifas aéreas sobem 34,17% neste domingo”, O Globo, 15/6/1985.

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“Segundo o brigadeiro, a aviação civil brasileira, tanto a doméstica quanto a internacional, tem-se mantido em nível igual ao das melhores do mundo, e o papel exercido pelo Departamento de Aviação Civil do Ministério da Aeronáutica é tão-somente o de contribuir para evitar que haja uma competição ruinosa, que não será benéfica para nenhuma das empresas, respeitado o princípio da livre-iniciativa.” Nos momentos iniciais da Nova República, a despeito da resistência das autoridades econômicas, o Ministério da Aeronáutica ainda tinha poder de pressão para forçar reajustes que atendessem aos interesses das empresas. No entanto, com a introdução do Plano Cruzado, o poder relativo da área econômica cresceria dentro do Poder Executivo, e a capacidade de resistência à pressão da Aeronáutica seria incrementada. Neste momento, seria dado início a uma política rígida de controle dos reajustes à qual as empresas atribuiriam a responsabilidade pelo endividamento que, ainda segundo os empresários, estaria na raiz da crise que se prolongaria até a virada do século. Já em 2001, por ocasião dos debates em torno da criação da Agência Nacional de Aviação Civil, o presidente da Tam, Rolim Amaro, abordou o problema dos reajustes tarifários, registrando a postura favorável às empresas por parte da Aeronáutica, por oposição à rigidez das autoridades econômicas.

“Confesso que, depois de vinte anos no corredor do CIP/SEAP, enfim, desde 1985, quando o Executivo levou para o Ministério da Fazenda, com o Ministro Francisco Dornelles, a unificação do sistema de preços do serviço público nacional, começou o calvário das empresas aéreas. Justiça se faça, o Ministério da Aeronáutica era muito mais atento, vigilante, eficaz na correção tarifária. Vínhamos tendo uma inflação brutal, que não era corrigida a tempo e no volume necessário para que pudéssemos ter nosso produto remunerado corretamente.”103 O presidente do SNEA George Ermakoff apresentaria uma leitura semelhante, destacando a progressiva perda de poder do DAC e da Aeronáutica diante de outros setores do governo, para prejuízo das empresas. Segundo Ermakoff,

103

Rolim Amaro. Depoimento à Comissão Especial – Projeto de Lei n. 3846/00. Câmara dos Deputados/Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação, 26/6/2001, p. 28

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“As empresas aéreas foram durante muitos anos controladas pelo DAC, e o Ministério da Aeronáutica tinha algum tipo de ascendência sobre os outros Ministérios. Então assuntos como tarifa, era o próprio Ministério da Aeronáutica que determinava. E esse poder ele foi perdendo com o fim do regime militar e o Ministério da Fazenda passou a controlar alguma coisa, o Ministério de Minas e Energia outro, preço do combustível. Então, o que aconteceu foi o enfraquecimento do DAC, e alguns outros ministérios absorvendo (o poder do DAC) sem nenhum compromisso com o setor.”104 O primeiro grande revés sofrido pelas empresas se deu já por ocasião da introdução do Plano Cruzado, que congelou todos os preços, inclusive as tarifas aéreas, às vésperas da concessão de um reajuste, que seria da ordem de 30%. As empresas operaram por um ano sem reajuste, mas em dezembro de 1986, quando a explosão do consumo provocada nos primeiros meses do Plano Cruzado já havia se esvaecido, as empresas retomaram a pressão por reajustes. Entre a apresentação formal do pedido105 e sua concessão, no entanto, foram três meses de negociações, tendo as autoridades concedido apenas parte do reajuste pedido pelas empresas e pelo DAC, sob o argumento de que as empresas deveriam repassar aos consumidores parte dos ganhos obtidos com o aumento do número de passageiros após o Plano Cruzado.106 Duas matérias publicadas pela Gazeta Mercantil em dezembro de 1989 dão uma mostra da situação crítica com que as empresas chegaram ao final da década de 1980, às

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George Ermakoff, Entrevista ao autor, 11/5/2004. “Varig quer aumento de 29% nas passagens”, Jornal do Commercio, 19/12/1986. Segundo a matéria, o SNEA encaminhou o pedido ao DAC, salientando que “quando o congelamento de preços entrou em vigor, a defasagem já era de 29%.”. Em janeiro o DAC deu parecer favorável à solicitação, incorporando ao reajuste um percentual mais elevado referente aos aumentos salariais concedidos no período, o aumento do dólar e a própria inflação referente ao período de vigência do Plano Cruzado (“DAC concorda com elevação de 55% na passagem aérea”, Jornal do Commercio, 13/1/1987). 106 “SEAP autoriza aumento de 35% para as passagens aéreas”, Gazeta Mercantil, 14/3/1987. Além do controle sobre as tarifas, o plano teria trazido ainda outro prejuízo às empresas: a cobrança de um empréstimo compulsório na compra de passagens aéreas internacionais. O compulsório, que incluía também a compra de combustíveis e automóveis, havia sido introduzido pelo ministro da Fazenda Dilson Funaro, em junho, dentro de um pacote de medidas que foi chamado de “Cruzadinho”. O presidente da Varig, Hélio Schmidt, abordaria o assunto em uma exposição na Conferência Nacional do Comércio, em reunião comemorativa dos sessenta anos da empresa gaúcha. Segundo O Globo, “estava presente o Presidente da Embratur, João Dória Júnior, que também se manifestou contra o compulsório. ‘O empréstimo ainda não caiu, disse Smidt, por causa da resistência do Ministro da Fazenda, Bresser Pereira’, mas ele garantiu que o Presidente José Sarney está sensível ao problema e que dificilmente o compulsório ficará em vigor até o fim do ano” (“Smidt defende o fim do compulsório em passagens”, O Globo, 29/7/1987. O compulsório foi extinto pelo substituto de Bresser Pereira, Maílson da Nóbrega, em 1/1/1988 (“Compulsório de tarifas aéreas acaba em 1o de janeiro”, Jornal do Brasil, 22/12/1987). 105

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vésperas da posse de Fernando Collor, que daria início à introdução das “reformas para o mercado” na aviação comercial brasileira.

“As tarifas aéreas encontram-se ainda defasadas em 30% e até setembro último as empresas que operam linhas domésticas acumularam prejuízos de US$ 42 milhões. No ano passado, o prejuízo conjunto da Varig, Transbrasil e Vasp atingiu US$ 122 milhões, superando as perdas verificadas no ano anterior, que foram de US$ 10 milhões. As empresas perdem dinheiro desde novembro de 1986, porque depois do congelamento passaram a ter tarifas corrigidas abaixo da variação dos custos de operação, segundo relatório entregue pelo Sindicato das Empresas Aeroviárias (SNEA) ao Departamento de Aviação Civil (DAC).”107

“Pelo terceiro ano consecutivo o setor de transporte aéreo fechará o balanço no vermelho, com um prejuízo operacional conjunto estimado em US$ 1,2 bilhão, depois de amargar resultado negativo acumulado de US$ 2 bilhões nos exercícios de 1987 e 1988, conforme o Departamento de Aviação Civil (DAC). Uma parte desse desempenho é atribuída à defasagem tarifária verificada ao longo desses anos e que chegou a alcançar 60% no atual exercício, situando-se em torno de 25% atualmente. “Conforme pronunciamento do DAC à comissão de fiscalização e controle da Câmara Federal, mais de 70% dos custos das empresas estão concentrados nos itens folha de pagamento, câmbio, combustíveis e depreciação/arrendamento de aeronaves. E todos esses itens são administrados pelo governo, estando, portanto, fora do controle das empresas. O próprio Ministério da Aeronáutica solicitou ao Ministério da Fazenda autorização para voltar a administrar os reajustes tarifários, que têm ficado abaixo do necessário para a saúde financeira das companhias.”108 Um segundo tópico introduzido na agenda política da aviação comercial, no início da Nova República foi a mudança no regime de concessão das rotas internacionais, com o fim da exclusividade da Varig nestas operações. Este foi o assunto mais polêmico da IV CONAC, realizada entre setembro e outubro de 1986 no Rio de Janeiro. De um lado, a Varig defendia a manutenção do modelo em vigor, e de outro, a Vasp e a Transbrasil pretendiam receber concessões de rotas internacionais, que além do prestígio de “representar a bandeira brasileira”, permitiriam acesso a receita em 107 108

“Relatório aponta 30% de defasagem tarifária”, Gazeta Mercantil, 9/12/1989. “Empresas voltam a ter prejuízo operacional”, Gazeta Mercantil, 30/12/1989.

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dólares, crucial num quadro de defasagem das tarifas domésticas. Pelo próprio desenrolar da disputa, que favoreceria a Vasp e a Transbrasil, é possível que as autoridades aeronáuticas estivessem dispostas a mudar o regime de concessão, embora houvesse evidências de que não se tratava de um consenso absoluto.109 A postura de cautela a respeito do assunto por parte do então ministro da Aeronáutica, Brigadeiro Moreira Lima, ilustra a inexistência de uma posição firme por parte das autoridades aeronáuticas. Como noticiou o Jornal de Brasília, embora admitisse a possibilidade de mudanças,

“O ministro disse que a reivindicação da Vasp e da Transbrasil de realizarem vôos internacionais regulares é um dos pontos da conferência, mas que, segundo ele, exigirá estudos profundos, ‘para que as decisões sejam baseadas na realidade da aviação brasileira’.”110 A posição do então presidente da Varig, Hélio Smidt, não se limitou à defesa da manutenção do modelo vigente. É possível que, com a mesma preocupação de seus antecessores, que temiam a estatização do sistema aéreo, Smidt também defendeu a privatização da Vasp em uma de suas exposições na CONAC.111 Ao mesmo tempo, Vasp e Transbrasil também não chegaram a uma visão comum sobre o tema, conduzindo a questão a um impasse, como se depreende da leitura do seguinte trecho de matéria publicada em O Globo:

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Cf. “Transbrasil e Vasp poderão ganhar linhas”, Correio Braziliense, 22/9/1986. Segundo a matéria, a CONAC estaria começando “em tom nada amistoso, evidenciando profundas divergências entre o próprio ministro da Aeronáutica e o diretor-geral do DAC, que ontem, em entrevista publicada no Rio, voltou a defender que o decreto do presidente Médici, concedendo exclusividade à Varig nos vôos internacionais, seja integralmente respeitado até 1988; no dia anterior, o tenente-brigadeiro Moreira Lima, ministro da Aeronáutica, anunciara que iria rever essa situação com o presidente Sarney nos próximos meses.” 110 “Transporte aéreo pode ter novas diretrizes”, Jornal de Brasília, 28/9/1986. 111 “O presidente da Varig, Hélio Smidt, defendeu ontem um modelo privativista para o transporte aéreo, durante palestra na Conferência da Aviação Comercial (...). Ele recomendou que sejam realizados esforços pelo Governo federal no sentido de transferir para o capital privado o controle acionário de sociedades hoje em poder do setor estatal. (...) Smidt lembrou que ‘a aviação comercial brasileira nasceu e se desenvolveu na área da iniciativa privada e a legislação que define o regime de exploração dos serviços aéreos regulamenta o seu funcionamento, levando em conta essa realidade. A política aeronáutica praticada pelo Governo, segundo ele, ‘vem se provando acertada e tem permitido o desenvolvimento saudável da aviação comercial, habilitada a atender eficientemente o pujante crescimento do mercado doméstico e a crescente demanda do mercado internacional’. Na sua palestra, Smidt disse, ainda, que ‘ a participação estatal nas empresas é exceção, e mesmo assim ela representa concorrência desleal por facilitar o uso de recursos a que as empresas da iniciativa privada não têm acesso’” (“Hélio Smidt quer transporte aéreo todo privatizado”, Jornal do Commercio, 30/9/1986).

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“Depois de um dia inteiro de debates no 4o Congresso Nacional de Aviação Civil (CONAC), em que, pela primeira vez, estiveram reunidos para discutir o tema polêmico da política de concessão dos vôos internacionais,os Presidentes da Varig, Hélio Smidt, da Transbrasil, Omar Fontana, e da Vasp, Antônio Angarita, não encontraram melhor forma de tratar esse problema. “Omar Fontana chegou a propor uma reserva de mercado, para a Varig/Cruzeiro, das linhas internacionais que operam atualmente e a concessão de novas linhas regulares internacionais para a Vasp e Transbrasil. Contudo, sua proposta não recebeu o apoio dos outros dois Presidentes. Angarita sustentou a tese da abertura total dos serviços aéreos internacionais, enquanto Smidt defendeu a manutenção da atual política de exclusividade dos vôos internacionais para a Varig/Cruzeiro. “Ao defender a atual política que chamou de exclusividade à Varig e à Cruzeiro, Hélio Smidt alegou que os vôos internacionais, apesar de proporcionarem receitas substanciais, são bastante onerosos e, por isso, oferecem uma rentabilidade muito pequena. Dessa forma, o Presidente da Varig teme que, se for aumentado o número de empresas brasileiras a operarem internacionalmente, poderia ser necessária a volta do subsídio do Governo através da cobrança de impostos a serem incluídos nas tarifas aéreas e que foram extintos em 1979. (...) “No fim do encontro de ontem, o Diretor do Departamento de Aviação Civil (DAC), Brigadeiro Valdir Pinto da Fonseca, afirmou que será criado um grupo de trabalho composto de representantes do DAC e de empresários para estudar todas as propostas formuladas durante o IV CONAC, inclusive a política de vôos internacionais.” 112

A despeito das divergências a respeito das concessões de rotas internacionais, os vínculos entre empresariado e autoridades aeronáuticas mantinham-se fortes113. Por outro lado, no contexto de redemocratização, os trabalhadores vinham assumindo uma postura cada vez mais ativa na agenda política em geral, mas ficaram excluídos de uma participação ativa na CONAC. Os sindicatos foram convidados a participar apenas como observadores, sem direito a voz, no mesmo status que entidades externas à

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“Empresas não fecham acordo sobre vôos ao exterior”, O Globo, 1/10/1986. Cf. “Empresas reafirmar importância do DAC”, Jornal de Brasília, 25/9/1986. Segundo a matéria: “As empresas aéreas comerciais reafirmaram, através de recomendação ao ministro da Aeronáutica, Otávio Moreira Lima, total apoio à permanência, no âmbito do Ministério, do órgão que traça as diretrizes básicas da aviação civil – o Departamento de Aviação Civil (DAC), que consideram exercer um importante papel na manutenção e fortalecimento da unidade do poder aéreo.”

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atividade aeronáutica.114 O relacionamento conflituoso entre aeronautas, de um lado, e empresários e autoridades aeronáuticas, de outro, estaria na raiz do movimento do “Pássaro Civil”, a retirada do controle da aviação civil do âmbito militar. Durante a Constituinte, o movimento mobilizaria cada um dos grupos, com o apoio de parlamentares, em torno da defesa ou do combate à proposta. Em depoimento à Subcomissão da Questão Urbana e Transporte do Senado Federal, durante a Constituinte, o então presidente do Sindicato Nacional dos Aeronautas, José Caetano Lavorato, fez a defesa da mudança no controle do setor lembrando que o Brasil era um dos poucos países do mundo a ter um sistema unificado, sob o argumento de que a aviação seria assunto de segurança nacional. Para o dirigente sindical, no entanto, a aviação deveria ser considerada assunto de interesse público. Lavorato lembrou que os militares teriam uma progressão na carreira que os obrigava a passar pouco tempo num mesmo cargo, muitas vezes permanecendo pouco tempo no controle da aviação comercial. Assim, o órgão tendia a ficar suscetível à pressão das empresas, orientando-se por atender aos interesses daquelas.

“Etiópia, Gana, Ruanda, Arábia Saudita, Guiné Bissau e Argentina, são países que têm a aviação civil vinculada a um ministério militar, como o Brasil. O resto do mundo tem a aviação civil vinculada a um ministério civil ou diretamente ligada ao ministério dos transportes na maioria, ou a um ministério próprio. Razão pela qual, no nosso entendimento, não deve prevalecer nessa estrutura a visão de segurança nacional porque a questão do transporte aéreo é de interesse público e não de segurança nacional. Quando houver necessidade de se manter a segurança do País, é claro, serão convocados não só os ministérios militares como qualquer

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A coluna do jornalista Sebastião Nery faria as seguintes considerações a respeito do assunto: “O DAC convocou, a realizar-se entre os dias 22 de setembro e 1o de outubro, no Rio Othon Palace Hotel, a IV Conferência Nacional de Aviação Comercial (CONAC), ‘para o estudo e análise de assuntos concernentes a Aviação Comercial Brasileira. O patrocinador da CONAC é o DAC. O Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias (SNEA) e o Sindicato Nacional das Empresas de Táxi Aéreo (SNETA) serão os co-patrocinadores. Todas as empresas de transporte aéreo do País serão ‘participantes efetivos em todas as comissões, com direito e voz. E os aeronautas? E o Sindicato Nacional dos Aeronautas? Se quiser participar, será na condição de simples ‘observador’, ‘sem direito a voz’, como dezenas de outras entidades convidadas e que nada têm diretamente a ver coma aviação, como a ‘Comissão de Turismo e Lazer da Câmara Federal’ e a ‘Secretaria de Transportes de Mato Grosso’, para citar duas. Por isso, o Sindicato Nacional dos Aeronautas, com muita razão, ao receber o convite, devolveu, indignado, dizendo que, a continuar apenas ‘observando’ o que o DAC e as empresas fazem da aviação brasileira, sem nada poder falar, lá não irá” (Sebastião Nery, “DAC veta aeronautas na reunião da aviação”, Tribuna da Imprensa, 26/8/1986.

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outro setor, como já aconteceu, quando houve a convocação até de empresas privadas de transporte de passageiros e transporte de cargas para cumprir uma necessidade imediata, puxada pelo próprio poder estabelecido na época em nosso País. Portanto, não é necessário, a título de manter a unidade do poder aéreo, manter a aviação civil sob a tutela do Ministério da Aeronáutica. “Essa tutela mantém uma estrutura de decisão que é inadequada ao desenvolvimento do transporte aéreo civil. Por que? Para manter essa tutela é necessário que o Ministério da Aeronáutica coloque militares nos diversos postos, não só no Departamento de Aviação Civil, como também em outros setores ligados ao controle de tráfego, como na Infraero e outras unidades que eles chamam de ‘Sistema de Aviação Civil’. Entretanto, pelo próprio desenvolvimento da carreira do militar, ele passa eventualmente por seus postos nesse sistema. Isso causa um sistema de decisão falho, retrógrado, à mercê dos interesses das empresas. Tanto é que hoje não temos uma política estabelecida de transporte aéreo no País, temos, sim, uma política de lucro com o transporte aéreo. A tendência, já a alguns anos de transporte no País, é a do monopólio privado, que não é interesse da Nação, não é interesse do povo.”115

Este último argumento seria usado poucos anos depois pelos governos Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso para defender a introdução das “reformas para o mercado” no setor. Da mesma forma, o argumento seguinte, de que o setor era elitizado, também faria parte do repertório de críticas dos adeptos das reformas. Embora também antecipasse o cerne do argumento das “reformas”, que daria ênfase à “falta de concorrência” do setor, Lavorato lembraria que a estrutura de tomada de decisões do próprio órgão era excessivamente concentrada, refletindo apenas os interesses dos empresários. Esta seria a razão para se defender a desvinculação da aviação do controle militar, que serviria para “arejar” a estrutura decisória, a qual deveria incluir outras instâncias do poder público como o próprio Congresso.

“Hoje, o transporte do País está elitizado, não há uma política estabelecida. Na discussão que tive com o próprio Departamento de Aviação Civil, com o seu Diretor e o Ministro da Aeronáutica, perguntei a S. Exa. quem é que estabelece a política de transporte aéreo no País. S.

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José Caetano Lavorato. Depoimento à Subcomissão da Questão Urbana e Transporte. Senado Federal/Subsecretaria de Taquigrafia, 14/5/1987, pp. 4-5.

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Exa. respondeu que não é o Departamento de Aviação Civil e sim o Estado Maior da Aeronáutica, através do seu Ministro. Perguntei ao Ministro: ‘quem discute com V. Exa. a política de transporte aéreo no País? Não houve resposta, não há política estabelecida de transporte aéreo, há uma política que depende do jogo de interesse das empresas aéreas. (...) “O que há na política do transporte aéreo? No caso da ponte aérea Rio São Paulo, onde há os maiores índices de aproveitamento – senão o maior do mundo – está estabelecido não a concorrência para baratear o custo, mas sim, o pool, que, na verdade, é um monopólio, onde o valor da passagem é cobrado de acordo com esse monopólio, que é um pool entre as empresas. E nos setores, e nas linhas onde não se devia ter concorrência, e sim o estabelecimento de uma política geral de transporte, há a concorrência. O que faz isso? Os recursos do País, mesmo que se diga hoje que diminuiu o nível de subvenção às empresas aéreas, o estudo da política estabelecida na história das empresas aéreas brasileiras mostra que o recurso de dinheiro gasto, por este País, para manter o transporte aéreo elitizado é muito grande. Mesmo que houvesse algum custo na separação dos ministérios, haveria um benefício muito grande com o estabelecimento de uma política geral do transporte aéreo. Não há, por outro lado, uma política integrada de transporte, o transporte aéreo não pode ficar isolado.”116 Apesar de estar antecipando algumas das tendências que de fato orientariam a dinâmica política do setor na década seguinte, os trabalhadores não lograriam sucesso com a campanha do “Pássaro Civil”. O Ministério da Aeronáutica exerceria uma forte pressão sobre os parlamentares no sentido de barrar a proposta dos trabalhadores,117 que por sua vez também se mobilizariam junto aos parlamentares. Confirmando os laços estreitos entre autoridades aeronáuticas e os empresários, estes também se mobilizaram no sentido de defender a manutenção do DAC sob controle militar.118 Os trabalhadores 116

José Caetano Lavorato. Depoimento..., p. 5-7. O seguinte trecho, de uma matéria publicada na Folha de São Paulo, relata a atuação da Aeronáutica: “O Ministério da Aeronáutica enviou aos deputados e senadores que integram a Comissão da Ordem Econômica do Congresso constituinte um documento classificando como ‘prematura, intempestiva e impatriótica’ a eventual decisão de retirar da tutela militar o controle sobre a Aviação Civil. A Aeronáutica está fazendo uma grande pressão para manter o Departamento de Aviação Civil (DAC) sob a sua responsabilidade. O relatório preliminar da comissão ficará pronto neste sábado, o que justifica o intenso lobby militar nos últimos dias. Hoje de manhã, os integrantes da Comissão da Ordem Econômica farão uma visita ao Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle do Tráfego Aéreo (CINDACTA), em Brasília, em mais uma tentativa de reverter a situação a seu favor. Embora a Aeronáutica tenha concentrado, nesta semana, meia dúzia de oficiais para defender seus argumentos, nos bastidores da comissão existe também o lobby dos aeronautas, aeroviários e controladores de tráfego aéreo, que defendem a desvinculação do DAC da órbita militar” (“Aeronáutica pressiona para controlar a aviação civil”, Folha de São Paulo, 4/6/1987). 118 Cf. “Aviação comercial quer ficar com Aeronáutica”, O Estado de São Paulo, 11/6/1987. Segundo a matéria: “Presidentes de 11 empresas de aviação comercial divulgaram ontem um documento defendendo a permanência do setor do Ministério da Aeronáutica. Eles assumiram o compromisso de apoiar ‘o 117

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conseguiram algumas conquistas, especialmente o compromisso do ministro da Aeronáutica em incorporar representantes dos trabalhadores às comissões de investigações de acidentes,119 mas como a história da década seguinte mostraria, a estrutura de poder montada por militares e empresários em torno da aviação comercial brasileira ainda teria fôlego para resistir por um bom tempo às pressões por mudanças.

3.6. Conclusões Neste capítulo, procurei mostrar os principais aspectos da dinâmica política que orientou o desenvolvimento da aviação comercial brasileira. Em seus momentos iniciais, esta dinâmica obedeceu a uma lógica de disputa entre as grandes potências mundiais (Alemanha, Estados Unidos e, em menor escala, França) que formaram no Brasil subsidiárias de suas empresas. Por outro lado, assistiu-se ao esforço por parte de lideranças empresariais e políticas regionais (especificamente do Rio Grande do Sul e de São Paulo) no sentido de constituir iniciativas parcialmente autônomas em relação a esta disputa entre as potências internacionais. No pós-guerra, os norte-americanos assumiriam a hegemonia sobre o setor, na medida em que os avanços tecnológicos por eles desenvolvidos durante o conflito se tornaram disponíveis para uso civil, e seus antigos rivais se viram derrotados e, portanto, enfraquecidos. As aeronaves norte-americanas desmobilizadas foram vendidas a preços irrisórios, assim como as bases construídas para servir de ligação entre os Estados Unidos e a África, ao longo da costa brasileira, passaram a ser usadas para embarque e desembarque de passageiros. Nos marcos da política de desenvolvimento permanente trabalho feito pelo ministério no plenário da Assembléia Nacional Constituinte em defesa dos mais legítimos interesses da atualidade e do futuro do transporte aéreo no Brasil’. O documento dos empresários foi uma resposta ao lobby que vem sendo feito pelos sindicatos dos aeronautas e dos aeroviários, que pretendem transferir o setor para a administração civil, acabando assim com o serviço integrado de controle do tráfego e defesa aérea atualmente em vigor. O deputado Noel de Carvalho (PDT-RJ) propôs emenda favorecendo a posição dos sindicatos. A iniciativa foi aprovada na Subcomissão de Transportes e ele pretende reapresenta-la, como pedido de destaque, durante a votação do substitutivo, a partir de amanhã. O anteprojeto do senador Severo Gomes (PMDB-SP), relator da Comissão de Ordem Econômica, não trata da questão. Mesmo assim, os assessores parlamentares da Aeronáutica revelaram que já têm o apoio de 45 parlamentares da comissão temática garantindo que rejeitarão a proposta de Noel de Carvalho. Assinaram o documento de apoio ao Ministério da Aeronáutica os presidentes da Varig/Cruzeiro, Vasp, Transbrasil e de outras empresas comerciais. O pessoal da reserva da FAB também está trabalhando para a manutenção da atual situação. Ontem, o exministro Délio Jardim de Mattos encontrou-se com vários parlamentares, convencendo-os de que a aviação civil deve permanecer sob a responsabilidade da Aeronáutica.” 119 “Aeronautas ganham comissão”, Jornal do Commercio, 14/6/1987.

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perseguida pelo Brasil, a aviação comercial assumiria um sentido mais autônomo em termos de suas empresas. Através de uma política de incentivos (isenções fiscais, câmbio preferencial, subsídios), o governo brasileiro procurou estimular as empresas nacionais a se atualizar tecnologicamente, firmando-se tanto no segmento doméstico quanto no internacional. Seguindo as tendências da aviação mundial, o transporte aéreo se consolidou no Brasil como um instrumento de poder político e econômico, representando um vetor de integração internacional e prestígio. À conjuntura favorável do pós-guerra, sucedeu um quadro em que as condições operacionais e econômicas se tornaram mais difíceis. A indústria aeronáutica alcançou um desenvolvimento surpreendente entre a Segunda Guerra e o final dos anos 1950, passando dos rústicos aviões DC-3, que voavam a velocidades médias de 200 Km/h transportando uma média de trinta passageiros, para os jatos Boeing 707, que eram capazes de voar a mais de 900 Km/h transportando cerca de 150 passageiros em vôos diretos entre dois continentes. Os custos operacionais saltaram na mesma escala. No Brasil, o boom do pós-guerra se reverteu, e a maior parte das empresas criadas faliu. As sobreviventes passaram a competir nos trechos mais rentáveis, deixando de lado as localidades do interior. Neste momento, a dinâmica política estaria concentrada na construção de um novo modelo para o setor, capaz de reverter as perdas, a dependência dos subsídios, as condições precárias de segurança e o desequilíbrio entre a oferta excessiva nos segmentos mais rentáveis e a falta de vôos para as localidades de menor porte. Entre as primeiras iniciativas para reorganizar o setor, no fim dos anos 1950, e a consolidação do novo modelo, na década seguinte, a dinâmica política do setor seria marcada pela ruptura produzida pelo golpe de 1964. Na virada para a década de 1960, pressionadas pelo Congresso, pelos trabalhadores e por outros atores direta ou indiretamente ligados ao setor, as autoridades aeronáuticas deram início a uma série de encontros – as CONACs –, em conjunto com outros setores do Executivo e com as empresas, no sentido de reorganizar a aviação comercial. A orientação política do governo João Goulart se refletiria em propostas que visavam estabelecer diferentes tipos de serviço, capazes de abranger um maior espectro da população ao mercado de transporte aéreo. Por outro lado, ganhou espaço a proposta de criação de uma estatal

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para o setor, a qual sofreria forte oposição dos empresários e, eventualmente, das próprias autoridades aeronáuticas. Com o golpe de 1964, as disputas em torno da abrangência do mercado e da criação de uma estatal seriam encerradas, com a consolidação de um modelo baseado na “realidade tarifária” e na “competição controlada”, que dariam um perfil elitista ao transporte aéreo, voltando-se ao público de maior poder aquisitivo. Por outro lado, as sucessivas incorporações de empresas concorrentes (Real Aerovias, Panair e Cruzeiro do Sul), sempre atendendo à “convocação” das autoridades, revelariam a capacidade de articulação dos dirigentes de uma das empresas, a Varig, junto ao núcleo do poder. Por esta via, a empresa emergiria como representante exclusiva do país no transporte aéreo internacional e líder absoluta do mercado doméstico. Os trabalhadores sempre estiveram excluídos das arenas formais de discussão sobre o setor, o que se confirmou durante as CONACs. Após 1964, os trabalhadores seriam virtualmente eliminados da dinâmica política, uma vez que as principais lideranças sindicais seriam perseguidas e caçadas. Os trabalhadores ressurgiriam na dinâmica política no contexto da redemocratização. Através da campanha do “Pássaro Civil” durante a Constituinte, eles antecipariam algumas das questões que estariam no cerne dos argumentos favoráveis às “reformas para o mercado”. O perfil elitista do mercado e o estilo fechado de gestão do DAC como órgão militar, levando-o a conferir prioridade aos interesses das empresas em relação aos interesses do conjunto da sociedade, seriam usados como argumentos a favor da mudança no aparato regulatório do setor, inclusive a criação de uma outra estrutura burocrática fora da estrutura militar. A perda relativa de poder das autoridades aeronáuticas vis-à-vis as autoridades econômicas levaria a política de combate à inflação, através do rígido controle sobre as tarifas, a ganhar precedência sobre a política de “realidade tarifária”. Num contexto de escalada inflacionária e de desvalorização cambial diária, as empresas brasileiras se viriam enfraquecidas, chegando ao final dos anos 1980 em situação financeira precária. Vasp e Transbrasil viram no mercado internacional uma saída para a defasagem tarifária, e aproveitaram a oportunidade da revisão do acordo de transporte aéreo entre Brasil e Estados Unidos para reivindicar o fim da exclusividade conferida à Varig neste

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segmento, onde as tarifas eram cotadas em dólar. Este seria um primeiro passo para a longa caminhada no sentido da abertura do mercado de aviação comercial no Brasil.

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4. A abertura do mercado de aviação comercial no Brasil (1990-1998) Neste capítulo, será analisada a dinâmica da abertura do mercado de aviação comercial no Brasil, articulando sua dimensão política e as mudanças ocorridas no mercado propriamente dito. Por um lado, a análise enfatizará os interesses em jogo, as negociações e disputas em torno do alcance e do ritmo da abertura, destacando as relações de poder entre os diferentes atores, aí incluído o Estado. Por outro lado, será desenvolvida uma leitura do mercado como campo de luta entre as empresas, que através de suas estratégias, estão constantemente redefinindo a estrutura do mercado, seja em termos das condições de competição, do perfil dos usuários e, num plano mais geral, do papel do transporte aéreo dentro da sociedade brasileira. Como vimos no capítulo anterior, o mercado de aviação comercial chegou ao final dos anos 1980 marcado por uma dinâmica política de aproximação entre autoridades aeronáuticas e empresas, forjada em espaços institucionais mais ou menos formalizados, como as CONACs e os constantes eventos reunindo ambos os atores. Já se podia perceber, por outro lado, uma área de atrito entre as empresas e as autoridades econômicas, especialmente por conta do controle das tarifas e em função da carga tributária. Os trabalhadores, por sua vez, estiveram excluídos da maior parte das arenas de interlocução, tendo sua inserção na dinâmica política do setor sido marcada pelo enfrentamento com a Aeronáutica, de que a campanha pelo “Pássaro Civil” foi o maior emblema, e com os empresários, através das greves e, como contrapartida, a perseguição aos líderes sindicais. Quanto ao mercado, ele se caracterizava por uma grande homogeneidade, com três empresas de âmbito nacional, sendo que uma delas – o grupo Varig/Cruzeiro – detinha cerca de 50% do mercado e a exclusividade da designação para as rotas internacionais. As tarifas eram controladas pelas autoridades governamentais e a oferta de descontos não era permitida, assim como rotas e horários não podiam ser sobrepostos. A principal rota do país, a ponte aérea entre Rio de Janeiro e São Paulo, era operada num sistema de pool entre Varig, Vasp e Transbrasil.120 Havia ainda o mercado 120

Aqui também se revela a predominância da Varig, que era proprietária das aeronaves que operavam entre os aeroportos Santos Dumont e Congonhas. A Vasp e a Transbrasil pagavam pela utilização dos aviões Electra II pertencentes à empresa gaúcha.

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regional, organizado pelo SITAR, onde cinco empresas operavam em regime de exclusividade em cinco diferentes regiões do país, a partir de capitais para cidades do interior. O perfil da demanda era, da mesma forma, extremamente homogêneo: homens viajando a serviço, na sua maioria executivos. O perfil elitizado do mercado de aviação comercial reproduzia o padrão de desenvolvimento econômico do país, especialmente aquele legado pelos governos militares. Além de elitista, este padrão passou a ser crescentemente associado a um modelo gerador de ineficiência, por estar baseado em formas de proteção ou incentivos (ambos identificados como “privilégios”) dados ás empresas nacionais. Fernando Collor foi eleito em 1989 com um discurso de ruptura com este padrão de desenvolvimento, introduzindo um amplo programa de reformas econômicas, compreendendo desregulamentação, privatização e abertura de diversos setores da economia de forma a acabar com os ditos privilégios e, por este caminho, superar a exclusão e a ineficiência do modelo anterior. As reformas para o mercado deveriam suprimir as distorções que o mercado sofrera em anos de intervencionismo estatal. Como foi destacado anteriormente, a implementação das reformas para o mercado não obedeceu a uma lógica unilinear nos diferentes contextos em que foram aplicadas, prevalecendo ao contrário uma lógica política de negociação, disputa, conflito e acomodação de interesses que imprimiria um ritmo e uma dinâmica própria em cada setor. No caso da aviação comercial, as mudanças no sentido da abertura poderiam ser resumidas, esquematicamente, na seguinte polaridade: de um lado, o núcleo do Poder Executivo (Presidência, Gabinete Civil, área econômica), pressionando pela liberalização do mercado, e de outro, os atores ligados à atividade (autoridades aeronáuticas, empresários e trabalhadores) realizando um movimento de resistência e adesão às pressões do núcleo do governo. Ao dar ênfase a um jogo de resistência e adesão, deve ficar claro que estes atores não tiveram, a priori, um posicionamento ideológico contrário à abertura e ao aumento da competição no mercado. Como a análise do material referente ao período irá demonstrar, a postura de cada um dos atores esteve muito mais atrelada à sua posição

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relativa dentro da dinâmica política e da estrutura do mercado, assumindo via de regra um caráter estratégico. As disputas se concentraram mais na forma como este princípio seria aplicado, na extensão e no quantum de abertura que seria desejável, do que numa simples luta “a favor” ou “contra” a abertura em si. A disposição por parte do Poder Executivo para implementar uma agenda liberalizante, por outro lado, também não pode ser compreendida como um vetor de sentido único. A capacidade de exercer maior ou menor pressão esteve diretamente ligada à legitimidade do próprio governo para enfrentar as resistências e impor a agenda da abertura. Por outro lado, não se pode atribuir ao conjunto do Poder Executivo uma homogeneidade em torno das concepções que norteariam a implementação das reformas. Neste aspecto inserem-se não apenas o alcance e a profundidade das mudanças, como também o padrão de relacionamento do Estado com os atores sociais não-estatais. Portanto, a despeito de um discurso mais ou menos homogêneo a favor das “reformas para o mercado”, o próprio Poder Executivo não as conduziu de forma unívoca. Neste capítulo, será mostrada a dinâmica política da abertura da aviação comercial, num período compreendido entre a eleição de Fernando Collor e o fim do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso. Esta dinâmica se revelará nas relações de disputa e negociação entre o poder público e interesses privados; nas relações entre as diferentes instâncias do poder público; nas relações das empresas entre si; e nas relações delas com trabalhadores e usuários do transporte aéreo. Será dada ênfase, também, às mudanças na configuração do mercado, com a entrada em cena de novos atores, as mudanças na correlação de forças e as mudanças no perfil da oferta e da demanda. O principal marco desta primeira fase foi a privatização da Vasp, que deflagrou uma primeira “guerra” no mercado e assinalou um primeiro ciclo do processo. No entanto, a despeito da onda liberalizante que caracterizou esta primeira fase, e de algumas mudanças importantes no sentido da abertura, continuaram vigorando dispositivos bastante intervencionistas. Assim, um segundo momento-chave da abertura se daria com a eliminação da maior parte destes dispositivos por parte do DAC, diante da ameaça por parte do Executivo de abrir o mercado doméstico para as empresas estrangeiras, levando as empresas a deflagrar uma segunda “guerra tarifária”, entre fins de 1997 e 1998.

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Este capítulo está divido em quatro partes, além desta introdução. Na primeira, serão analisadas as posições dos principais atores em relação à implementação da abertura, em seu momento inicial, assim como as primeiras movimentações no mercado de aviação comercial em função das primeiras medidas liberalizantes, a privatização da Vasp e a renovação do Acordo de Transporte Aéreo entre Brasil e Estados Unidos. Na seção seguinte, será feito um balanço desta primeira fase da abertura, destacando alguns eventos que demarcaram mudanças no padrão do relacionamento entre autoridades, empresários e trabalhadores. Será discutida também a crise que marcou os anos iniciais da década de 1990, e a tentativa frustrada de implementação das câmaras setoriais. Na terceira seção, será analisada a conjuntura pós-Plano Real, onde se destaca a emergência da Tam no cenário das empresas nacionais e o aprofundamento da abertura do mercado de aviação comercial. Na última seção, serão assinaladas as principais questões que emergiram ao longo do capítulo.

4.1. A primeira fase da abertura: o Governo Collor, a revisão do Acordo de Transporte Aéreo Brasil-Estados Unidos e a privatização da Vasp O principal marco da primeira fase da abertura da aviação comercial brasileira foi a entrada de um novo ator no mercado, ou melhor, a mudança no perfil de um destes atores: a Vasp. Na condição de estatal, a empresa havia se acomodado ao papel secundário que lhe foi dado pelas autoridades. Uma vez privatizada, lançou-se numa estratégia agressiva de expansão, tanto no mercado doméstico quanto no internacional. Depois de anos de estabilidade, amplamente dominado pela Varig, o mercado de aviação comercial assistiu à entrada em cena de um ator disposto a desafiar a dominação da empresa gaúcha e transformar a estrutura do mercado. A postura agressiva da Vasp, cujo novo dono, Wagner Canhedo, empenhou-se politicamente na defesa de uma liberalização radical do mercado, contrastaria com a atitude mais ou menos cautelosa dos demais atores. Com efeito, parece ter prevalecido dentre autoridades aeronáuticas, os demais empresários e os trabalhadores uma postura conservadora em relação ao alcance da abertura. Para compreender esta postura, seria preciso identificar o que estaria em jogo para cada um destes atores.

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Do ponto de vista da Aeronáutica, a posição em relação à abertura esteve atrelada à manutenção do controle sobre o setor, ameaçada desde a Constituinte com a campanha do “Pássaro Civil”. Para as empresas, estava em jogo por um lado a amplitude da abertura pretendida pelas autoridades governamentais, e por outro a entrada de novos atores no mercado, aumentando a instabilidade e, portanto, os riscos121. Para os trabalhadores, a abertura teria implicações diretas sobre os empregos, representando ameaças ou possibilidades conforme a correlação de forças que se estabeleceria dali em diante. Foi em função destas variáveis que os atores se organizaram e atuaram no sentido de resistir ou aderir à abertura. A postura pró-iniciativa privada historicamente consagrada no interior do DAC permitiu a seus representantes manifestar uma certa afinidade em relação ao discurso pró-mercado que passaria a orientar as políticas governamentais na década de 1990. Pode-se dizer que havia algum grau de disposição para abrir o mercado de aviação comercial dentro do DAC, a se medir pelo discurso do representante do órgão em um seminário sobre desregulamentação organizado pelos sindicatos dos trabalhadores da aviação em meados de 1991. Segundo relato feito pelo informativo do SNA, o representante do DAC apresentou uma série de medidas que o Governo vinha tomando no sentido da flexibilização, assim resumidas:

“Estabelecer uma política de transporte aéreo baseada na livre competição, com a retirada gradual e progressiva da extensa e ampla regulamentação, que limita a sua exploração, nas aviações de todos os níveis, a ser seguida na área dos negócios da aviação civil. (Neste sentido) a qualidade do serviço ofertado decorrerá da livre competição existente no mercado apenas supervisionado.” 122

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O aumento da instabilidade seria percebido negativamente caso possamos concordar com o argumento de FLIGSTEIN (2001b) de que os atores no mercado procuram construir “mundos estáveis”. Com efeito, ao contrário da imagem schumpeteriana do empresário inovador, disposto a correr riscos, a previsibilidade e a segurança parecem ser um valor muito caro a todos os agentes do mercado. A postura de Wagner Canhedo, que a princípio incorporaria o modelo schumpeteriano, na verdade se explicaria não pela luta no mercado propriamente dita, mas pela sua posição dentro da dinâmica política. Como veremos adiante, Canhedo entrou no mercado da aviação comercial sustentado por laços estreitos com o núcleo do Poder Executivo. 122 Dia a Dia. Informativo do SNA, n. 27, 26/7/1991, p. 2.

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Ao mesmo tempo em que havia uma posição favorável à abertura, procurava-se deixar claro que a mesma não significava uma plena desregulamentação, pelo menos na mesma extensão em que se dera nos Estados Unidos na década de 1970: “Isso não quer dizer, porém, que o Governo está desregulamentando o setor, a exemplo do que ocorreu nos EUA. (…) É prioritária a participação vigorosa dos órgãos pertinentes de nosso Ministério na formulação e apresentação ao Estado-Maior, de uma política abrangente que permita o incentivo e não o controle, a supervisão e não a limitação de todas as atividades afins com a cultura aeronáutica em nosso país.”123 Naquele seminário, o representante do DAC garantiu que a orientação do Ministério da Aeronáutica era de abrir a livre concorrência sem desregulamentar o mercado. Nas suas palavras: “Não podemos estar alheios às mudanças no cenário internacional. Mas em momento algum pretendemos desregulamentar o mercado de aviação civil”. Desta forma, o oficial considerava preferível chamar a abertura de “flexibilização”.124 Com relação à representação empresarial, pode-se dizer que ela seguia a tendência predominante do empresariado brasileiro no período, ao adotar uma retórica pró-mercado, admitindo o aumento da competição, ao mesmo tempo em que do ponto de vista prático, defendia posturas mais conservadoras. Em entrevista ao Jornal do Commercio em 1991, o presidente do SNEA Walterson Caravajal dizia não estar preocupado com uma maior abertura do mercado doméstico, lembrando que o sucesso das empresas dependeria mais do desempenho da economia como um todo. Caravajal admitia, inclusive, o aumento da competição com a entrada de novas empresas neste segmento, ao mesmo tempo em que concentrava sua preocupação na liberalização do mercado internacional. “Havendo reaquecimento da economia, em um país com a nossa potencialidade, existe e existirá lugar para as três empresas nacionais competirem no mercado interno, e até para mais que pudessem se estabelecer com eficiência. A dificuldade maior é na competição internacional, porque a representação do Brasil estaria com três 123

Id.. A deregulation norte-americana era bastante criticada pelas autoridades aeronáuticas brasileiras, que nela identificaram um processo de falências, concentração de mercado, desemprego e instabilidade. “Se os americanos não agüentam com uma economia soberba, imagina por aqui” - id., p. 2.

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bandeiras, mas isto é uma decisão de política aeronáutica e a autoridade, dentro da idéia do Governo de liberalizar, entende que a abertura deveria ser feita.”125

Num outro trecho da entrevista, no entanto, Caravajal expôs uma posição que revela o alcance limitado da abertura vislumbrada pela entidade, ao comparar a situação anterior às mudanças na regulamentação com a situação vivida pelas empresas ao longo de 1991: “Existia uma fórmula para que, em benefício do usuário, não fossem colocadas linhas em horários muito próximos, deixando o restante em aberto. Isto sofreu recentemente uma pequena mudança, mas a nosso ver, a autoridade aeronáutica voltará a existir determinando regras, como o aproveitamento de determinado vôo como necessário antes da autorização de outro vôo. A tendência é a de que volte a ser como sempre foi e a empresa precisará demonstrar que o mercado existe para justificar o novo vôo.”126 Do ponto de vista dos trabalhadores, a abertura poderia significar a diversificação do mercado e a ampliação das oportunidades de trabalho, mas também a precarização das condições de trabalho frente às novas exigências de competitividade para as empresas. Esta tensão se expressaria também na postura dos trabalhadores, “seduzidos” pelas novas oportunidades, em relação aos valores caros ao sindicato, muitos deles construídos dentro dos marcos anteriores à política de abertura127. Estas ambigüidades seriam identificadas pelo presidente do Sindicato Nacional dos Aeronautas, José Caetano Lavorato, em artigo publicado no informativo da entidade. “Sem fazer uma análise das repercussões futuras da atual flexibilização, liberalização ou abertura brasileira do transporte aéreo, o fato é que o

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“Abertura pode expor aviação nacional” (Entrevista com Walterson Caravajal), Jornal do Commercio, 4/8/1991. 126 Id., grifos meus. 127 Abordando a reestruturação produtiva do setor automobilístico no ABC paulista, Iram Jácome Rodrigues coloca uma questão que de certa forma sintetiza a contradição entre o sentido das mudanças trazidas à baila pelas mudanças dos anos 1990 e os valores que tradicionalmente caracterizaram a atuação sindical: “o movimento da reestruturação produtiva traz consigo uma dispersão, fragmentação sem precedentes nas fileiras da classe trabalhadora. De outra parte, coloca um dilema fundamental para os sindicatos: como compatibilizar um processo que é dispersivo e fragmentário, em outras palavras, extremamente individualizante, com os temas que continuam caros à atividade sindical: solidariedade, atividade coletiva etc.. É, pois, uma situação que traz uma ambigüidade significativa para o sindicalismo” (RODRIGUES 1997: 246).

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estabelecimento da concorrência, aliado à necessidade da modernização da frota e ampliação de linhas nacionais e internacionais transformaria a correlação de forças a nosso favor se estivéssemos organizados. “Entretanto, paradoxalmente as empresas que hoje disputam os profissionais – pilotos, comissários e mecânicos de vôo – com experiência e admitem novos aeronautas, não estão conseguindo fazê-lo sem que isso reverta em recuperação das perdas salariais, impostas até hoje ou em melhores condições de trabalho. Muito pelo contrário, o achatamento salarial continua, as diárias são baixas, a Regulamentação Profissional é descumprida, os acordos anteriores rasgados, a Convenção Coletiva não existe, os salários de admissão dos novos aeronautas é aviltante (o chamado salário de estagiário) e até o nosso ‘princípio sagrado’ da senioridade é desconhecido. “Na verdade, estamos sendo vencidos pela sedução do avião novo, da provável promoção – mesmo que seja fora da lista de senioridade, desde que nos beneficie – pela possibilidade de voar uma nova linha e pelo desejo de crescimento de ‘nossa empresa’.”128 Como se vê, os discursos estão marcados por uma adesão à abertura com restrições. No caso das autoridades aeronáuticas e dos empresários, uma postura favorável como princípio, mas conservadora do ponto de vista prático. Para os trabalhadores, prevalecia uma percepção de que a abertura trazia perspectivas contraditórias: de um lado, possibilidades imediatas (“o avião novo”, “voar uma nova linha”) e de outro, a ameaça aos valores construídos pela luta sindical. De forma a completar o cenário dos atores no contexto de introdução das reformas, é preciso destacar a atuação da empresa líder do mercado, a Varig. A aproximação entre empresas e autoridades foi uma das marcas da dinâmica política do setor, e no caso da Varig, os vínculos com o núcleo do poder tiveram papel-chave para determinar a posição alcançada pela empresa no mercado nacional. Em que pese a diretriz fundamental do governo Collor visar a transformação do mercado, submetendo a posição da Varig a algum grau de ameaça, a empresa permaneceu fiel à sua estratégia de aproximação com as autoridades governamentais, especialmente Collor e seus assessores diretos. A Varig entrou na década de 1990 ainda imbuída do ideário de “grande empresa” herdado dos anos 1970, quando foi capaz de articular-se ao projeto de “Brasil Grande” dos governos militares (MONTEIRO 2000a). A permanência do ideário de 128

Dia a Dia, n. 23, 28/6/1991, p. 4.

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“Varig Grande” pode ser percebida numa mensagem dirigida aos aeronautas da empresa pela respectiva gerência, no início de 1990.

"A Varig, enquanto grande empresa brasileira e líder latino-americana, é ímpar no contexto mundial; definitiva e constantemente tem que entrar com o seu necessário gigantismo, que lhe exige crescimento constante para que seja garantida sua sobrevivência" (apud Monteiro 1999a : 89, grifos meus)129 Da mesma forma, a Varig continuou sendo a transportadora oficial do presidente da República em seus deslocamentos internacionais130. Ainda relacionado ao transporte de autoridades, merece ser mencionada a iniciativa de criar uma ligação direta em Brasília e Maceió. O vôo inaugural, com a presença do presidente da Varig, foi prestigiado por parlamentares, autoridades do primeiro escalão e familiares do presidente.131 Além desta prática, estratégica para estar em contato com o núcleo do poder, a Varig também construiu outros espaços de aproximação. Um deles foi a participação do próprio presidente Fernando Collor, da ministra da Economia Zélia Cardoso de Mello e do ministro da Aeronáutica, Sócrates Monteiro, na “Convenção Geral de Tráfego e Vendas” da Varig, realizada em Brasília, no auditório do Banco Central, onde o presidente Fernando Collor fez o discurso de abertura.132

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Consistente com este discurso, o então presidente da empresa Rubel Thomas anunciaria um programa de investimentos atingindo a cifra de US$ 3 bilhões em 5 anos, para a compra de 64 novas aeronaves a ser recebidas nos dez anos seguintes, visando atender um crescimento de demanda estimado em 6% ao ano. 130 Esta prática seria descontinuada apenas no Governo Fernando Henrique, que passou a utilizar um avião da Força Aérea Brasileira para seus deslocamentos. 131 “Varig inaugura vôo sem escala para Maceió”, Correio Braziliense, 31/3/1990. “O vôo direto da Varig para Maceió é o primeiro com essas características, já que a companhia e todas as outras que operam em linha comercial só tinham opções com escalas em outras capitais nordestinas, como Salvador e Aracaju. O vôo inaugural de ontem foi dos mais concorridos, tendo levado personalidades ilustres, como o governador de Alagoas, Moacir de Andrade, e o presidente da Varig, Rubel Thomas, além da ministra da Ação Social, Margarida Procópio, e o irmão do presidente Fernando Collor, Pedro Collor. Grande parte dos parlamentares federais de Alagoas também viajou ontem para seu Estado no vôo direto da Varig.” 132 “Presidente quer mais concorrência no setor”, Gazeta Mercantil, 31/7/1990. Segundo a matéria: “O presidente Fernando Collor de Mello abriu, ontem, a convenção geral de tráfego e vendas da Varig, que se realiza no auditório do Banco Central, até amanhã. Cerca de 350 pessoas – entre gerentes gerais e de vendas, no Brasil e do exterior – estão participando do evento, cuja abertura também foi prestigiada pelos ministros da Economia, Zélia Cardoso de Mello, e Sócrates Monteiro, da Aeronáutica.” A nota mencionou ainda alguns trechos do discurso do presidente: “‘Vamos trabalhar com inteligência, com criatividade e absoluta determinação’, afirmou Collor, em seu discurso, ao defender a concorrência entre as empresas do setor de transporte aéreo. No seu entendimento, a competição deve ser encarada com o um estímulo e não como uma ameaça. ‘Vamos guardar do passado apenas o que for positivo, livrando-nos definitivamente dos preconceitos, dos provincianismos, da desconfiança em relação ao

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Ao longo de 1990, um dos desafios com que a Varig se defrontou foi a significativa redução no número de passageiros transportados, provocada pelo programa de estabilização baseado na retração da demanda. Considerado “uma corajosa atitude do Governo”133, o quadro foi assim descrito por Rubel Thomas:

“No início do plano, realmente, fomos tremendamente afetados. No campo doméstico, tivemos de reduzir a oferta mais ou menos na proporção de 20%. Nos meses de abril, maio e junho, operamos praticamente com uma perda de demanda em torno de 29% nos vôos domésticos. No campo internacional, houve perda entre 2% e 3%. Agora, a partir de julho, houve recuperação. Foi muito bom, tivemos ganhos nos vôos internacionais de cerca de 6%. No doméstico, em comparação com julho do ano passado, tivemos receita 5% menor. Em agosto, a perda foi de apenas 3%, o que indica que, de fato, estamos retomando o caminho da normalidade.”134 Um desafio potencial, no entanto, se desenhava com o processo de privatização da Vasp, que se encontrava em andamento. Em outra entrevista, perguntado sobre a forma como a Varig recebia a privatização da empresa paulista, o dirigente respondeu:

“De forma muito salutar. Nós queremos ver a Vasp privatizada, acho que o presidente da Vasp, Marcelo Antinori, está fazendo um esforço muito grande seguindo a orientação do governador de São Paulo, Orestes Quércia. Fazemos votos que ele tenha êxito. A idéia não nos assusta em absoluto, bem pelo contrário, é o que nós queremos. A competição é salutar e nós gostamos dela.”135

progresso, do comodismo, das proteções cartoriais’, destacou.” Outra oportunidade que demarcou a aproximação das autoridades com a empresa foi a visita do Ministro da Aeronáutica, Sócrates Monteiro, às instalações da Varig onde se encontram os simuladores para treinamento dos tripulantes técnicos, que foi relatada em uma breve nota no Jornal de Brasília: “O Ministro da Aeronáutica, Ten. Brg. do Ar Sócrates da Costa Monteiro, fez uma viagem de ida e volta, do Rio a Paris, num tempo recorde de quarenta minutos. O próprio ministro pilotou o avião, um Boeing 747, que o levou à capital francesa em companhia do presidente da Varig, Rubel Thomas e diretores da empresa. A ‘viagem’ foi realizada num simulador de vôo do Boeing 747, durante a visita que o ministro da Aeronáutica fez à Varig e que incluiu o Centro de Treinamento de Vôo simulado, que é um dos mais completos e modernos do mundo” (Jornal de Brasília, 30/4/1991). 133 Relatório Anual da Administração de 1990. 134 “Thomas destaca êxito do plano econômico da Varig” (Entrevista com Rubel Thomas), Jornal do Commercio, 18/8/1990. Perguntado sobre as perspectivas para o segundo semestre, Thomas retomou o problema da defasagem tarifária: “Esperamos contar com a compreensão do Governo, para não trabalharmos defasados em termos de tarifas, como ocorreu com a indústria nos últimos dois anos. Com essa correção, teremos um segundo semestre favorável em termos de resultados operacionais, capazes de cobrirem o déficit do primeiro semestre.” 135 “Entrevista com Rubel Thomas”, Jornal de Brasília, 5/7/1990.

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A visão positiva em relação ao aumento da competição, por outro lado, encontraria alguns limites no que diz respeito ao início de processo de flexibilização tarifária. Como vimos, a política de “realidade tarifária” era um dos mais importantes pilares da regulação do setor. Segundo esta política, as tarifas deveriam refletir a estrutura de custos das empresas, garantindo assim a sustentabilidade econômica das operações. Embora admitisse algum grau de flexibilização neste campo, Thomas salientou a necessidade de “cautela”, remetendo à experiência dos anos 1950, quando num quadro de competição acirrada entre as empresas, o resultado havia sido o encerramento das atividades de várias delas.

“A iniciativa (da flexibilização) é válida, porém deve ser examinada com cautela. Dentro dos parâmetros que o DAC recomenda, elas são válidas e me parece que a sugestão é variada: 10% para cima e 25% para baixo e isso me parece perfeito, pois permitirá certo disciplinamento e flexibilidade entre as empresas, com aproveitamento de rota mais baixa e tudo mais. (...) Não devemos esquecer o passado, nosso segmento exige investimentos. Já estou com 31 anos nessa atividade e pude presenciar o que aconteceu com a Real, com a Cruzeiro, a Panair e outras 10 ou 20 empresas que desapareceram, foram engolidas por outras que, no final, também desapareceram. Uma área com investimentos vultosos precisa praticar tarifas que reflitam exatamente os seus custos.”136 A medida, no entanto, não surtiria maiores efeitos antes da conclusão da privatização da Vasp, cujo leilão aconteceu em 4 de setembro de 1990, tendo o grupo liderado por Wagner Canhedo vencido, como único participante. Assim, o primeiro ano do governo Collor não foi um ano de mudanças concretas no mercado de aviação comercial. Foi apenas em 1991 que, já à frente da empresa paulista, Canhedo se lançou na tentativa de mudar a estrutura do setor, através de estratégias agressivas na conquista de maior espaço no mercado. Disposto a desafiar o conjunto do mercado, Canhedo travou uma série de embates com os demais atores, que perpassaram tanto o segmento internacional quanto o segmento doméstico.

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“Thomas destaca êxito do plano econômico da Varig” (Entrevista com Rubel Thomas), Jornal do Commercio, 18/8/1990.

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O primeiro destes embates se daria em torno da ratificação pelo Congresso Nacional do novo Tratado Internacional de Transporte Aéreo entre Brasil e Estados Unidos, em substituição ao tratado vigente desde 1946. O novo acordo bilateral, celebrado em março de 1989, só viria a ser promulgado em dezembro de 1991, após longas negociações em torno dos novos critérios que regulariam o acesso ao mercado. O fim da política de monodesginação, que garantia à Varig a exclusividade dentre as empresas brasileiras, vinha sendo o principal objeto de disputa. Como vimos, desde a IV CONAC, esta política vinha sendo questionada pela Transbrasil e pela Vasp, cujas operações estavam restritas ao âmbito doméstico137. O interesse das duas empresas no acesso às rotas internacionais, além da expansão dos negócios, estava na possibilidade de se obter receitas em dólar. As empresas alegavam que após a transferência do controle sobre o reajuste das tarifas domésticas do DAC para o Ministério da Fazenda, as tarifas vinham sofrendo constante defasagem, levando a um crescente desequilíbrio nos custos. As tarifas internacionais, cotadas em dólar, contribuiriam para a retomada da rentabilidade. Pelo novo acordo, o mercado Brasil-Estados Unidos seria divido entre os vôos destinados à costa leste norte-americana (Washington, Nova York e Miami) e a costa oeste (Los Angeles e São Francisco). O acordo celebrado em 1989 previa que duas empresas poderiam ser designadas para cada fração do mercado. A intenção das autoridades brasileiras era conceder à Vasp as novas rotas para Los Angeles e São Francisco, e à Transbrasil as rotas para a costa leste. A Varig continuaria operando nas duas regiões. No entanto, antecipando a postura agressiva que assumiria naquela conjuntura, a recém-privatizada Vasp se mostraria insatisfeita com a divisão proposta, reivindicando a abertura de todo o mercado às três empresas. Segundo jornais do período, enquanto o acordo tramitava no Congresso, os governos do Brasil e dos Estados Unidos chegaram a introduzir um aditivo eliminando as restrições inicialmente propostas, o que atendia ao interesse da Vasp. Os parlamentares, no entanto, vetaram a mudança, num episódio que rendeu polêmica entre as empresas, colocando de um lado a Vasp a favor de uma maior liberalização das regras, e de outro a Varig e a Transbrasil, que defenderam uma postura mais cautelosa

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Antes da promulgação do novo acordo, no entanto, Transbrasil e Vasp receberam permissões para operar vôos não-regulares para Orlando, na Flórida e Aruba, no Caribe, respectivamente.

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de forma a evitar um crescimento da oferta acima da demanda138. A postura que prevaleceu no Congresso foi de cautela, sob o argumento de que uma liberalização excessiva poderia representar risco para o conjunto das empresas brasileiras. O senador Alberto de Carli (PTB-AM) proferiu o seguinte discurso, denunciando as alterações que haviam sido introduzidas no acordo. “Tive a oportunidade de apurar que as modificações introduzidas indubitavelmente caracterizam desconfiguração do espírito que prevaleceu na elaboração do documento ora em tramitação pela Comissão de Relações Exteriores da Câmara de Deputados. “A meu ver, e segundo todos tiveram oportunidade de ler nos jornais, os novos itens acordados ao invés de trazer vantagens ao Brasil está, isto sim, causando preocupação e risco às empresas aéreas brasileiras. Sob a falaz expressão ‘competição justa e construtiva no transporte aéreo’, as empresas brasileiras poderão entrar em desastrosa concorrência entre elas próprias, vindo ainda, como conseqüência do princípio da reciprocidade, enfrentar acirrada concorrência estrangeira, podendo até virem a ser tragadas pelas gigantes norte-americanas, a exemplo do que se observou em outras partes do mundo. (...) “Chamou-nos particularmente a atenção e acreditamos ser de fácil comprovação a menção do Sr. Relator ao fato de que países em melhores condições econômicas que o Brasil não conceberem a fragmentação de forças nesta área, mantendo somente uma empresa de âmbito internacional devido, acima de tudo, a empresa aérea representar o prestígio e a imagem do país no exterior, missão esta que, em nosso entender, vem sendo indubitavelmente executada com notável sucesso e de forma condigna aos elevados interesses da nação pela Varig.”139 O então presidente do SNEA, Walterson Caravajal, expressaria posição semelhante, reforçando o argumento de que países mais desenvolvidos que o Brasil não adotavam uma política de multidesignação, e criticando a defesa de uma liberdade irrestrita no setor.

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“Acordo Aéreo é aprovado na Câmara”, Jornal de Brasília, 14/11/1991. A matéria reproduz o comentário do porta-voz da Vasp, Carlos Brickman, que afirma: “Respeitamos a decisão dos parlamentares, mas a Vasp é contra monopólios e a favor da livre-competição”, mais adiante salientando que a Varig “sempre teve interesse em bloquear a execução do acordo no Congresso”. O presidente da Varig, por sua vez, defendeu a decisão do parlamento: “A decisão da Comissão é correta, porque evita a superposição de linhas (...). Hoje já há 47 vôos semanais, e este número subirá para 61 em janeiro de 1993. O mercado não está crescendo na mesma velocidade.” O jornal destaca ainda que a posição da Varig teve apoio da Transbrasil. 139 A íntegra do discurso foi publicada em “Acordo sobre transporte aéreo preocupa senador”, Jornal do Commercio, 27/8/1991.

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“Totalmente livre não é uma prática nem mesmo nos países que a potencialidade econômica justifica a aviação como um mercado importante; ou nos países de grande extensão, como o Brasil. Quase sempre há ação de controle governamental. Já no mercado internacional, essa regulagem é feita através de acordos bilaterais entre governos, os quais, de modo geral, são discutidos entre as entidades aeronáuticas do País, consultando os interesses das empresas de bandeira, que, no caso da Europa, são na grande maioria do próprio Estado. Afora os Estados Unidos, que têm designação de várias bandeiras, as autoridades aeronáuticas têm uma empresa de bandeira que representa o País, mesmo os de grande pujança, como Alemanha e França. “No caso do Brasil, vemos com alguma preocupação a designação tríplice. Não porque possa prejudicar a bandeira, mas porque sempre gera reciprocidade. Com a designação de três empresas brasileiras para operarem os Estados Unidos, virão três americanas e, geralmente, vêm as de maior poder. (...) “Que isso (o novo acordo) representa grande dificuldade não há dúvida, porque as empresas que virão, seja a United ou a Delta, qualquer uma delas é pelo menos seis vezes maior do que a Varig. É como disputar um peso galo com um peso pesado. Não diria, entretanto, que isto envolva o risco de sobrevivência da empresa nacional. O Atlântico Sul representa 5% do faturamento destas empresas, enquanto que, para o Brasil, cerca de 60%. Eu diria que a indústria do transporte aéreo é tradicionalmente de rentabilidade baixa. Sendo assim, é preciso ter a convicção de que a operação precisa se dar com aproveitamento alto e nível de tarifa adequado. Do contrário, não é a concorrência que pode comprometer a sobrevivência, mas o próprio mercado internacional em sua competição.”140 Enquanto congressistas e uma parte dos empresários manifestavam preocupação com a possibilidade das empresas norte-americanas dominarem o mercado, o novo presidente da Vasp, Wagner Canhedo, posicionava-se de forma diversa em relação ao assunto. Em artigo publicado na Folha de São Paulo, o empresário expressou a seguinte posição: “Custa crer (...) que pessoas inteligentes, como se supõe serem aquelas que escrevem editoriais nos jornais, sintam-se tão afetadas pelo receio provinciano da eventual exposição do mercado brasileiro às empresas americanas. Ora, o mercado americano é muito maior do que o brasileiro. Se o nosso está se abrindo a elas, o delas está se abrindo a nós for força do contrato de reciprocidade. Só teremos a ganhar com aquele imenso mercado. A hipótese de ‘dumping’ por parte das gigantes 140

“Abertura pode expor aviação nacional” (Entrevista com Walterson Caravajal), Jornal do Commercio, 4/8/1991.

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americanas é fantasiosa. Ele nunca ocorreu em relação ao Brasil nem ocorrerá enquanto perdurar a regulação tarifária. Tanto que a Varig, concorrendo com a American Airlines, uma das maiores empresas aéreas do mundo, e também com a Pan Am, consegue realizar enorme rentabilidade no seu segmento internacional. Essa questão é um fantasma criado para assustar os mal-informados.”141 A disposição de Canhedo para enfrentar uma eventual concorrência com as empresas norte-americanas seria reproduzida também no plano interno. Aproveitandose do clima de fortalecimento da concorrência que o Governo Federal tentava imprimir aos diferentes setores da economia brasileira, a Vasp no ano seguinte à sua privatização protagonizou uma intensa luta para ampliar sua participação no mercado doméstico. A entrada de Canhedo no mercado demarcaria uma mudança radical na cultura do setor, acusado de ser um dos setores que melhor representavam o modelo fechado, “cartorial”, dentro da economia brasileira. O movimento foi registrado pela Revista Veja na seguinte forma: “Nunca houve tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo nos céus do Brasil. Há uma briga feia entre os empresários Omar Fontana, dono da Transbrasil, e seu concorrente, Wagner Canhedo, dono da Vasp. Fontana acusa a Vasp de colocar aviões nas mesmas linhas operadas pela Transbrasil há anos – saindo um pouco mais cedo e tomando passageiros de sua empresa. (...) “Já há algum tempo, Fontana está irritado com o concorrente. Em dezembro do ano passado, a Vasp inaugurou um vôo entre São Paulo e Salvador com horário de partida quinze minutos mais tarde do que o do jato da Transbrasil que faz essa rota há treze anos. Foi um golpe desleal, segundo Fontana. Com a proximidade dos horários, nem o avião da Vasp nem o da Transbrasil decolam com passageiros suficiente para cobrir os custos do vôo. Há outras quinze linhas em situação semelhante. Canhedo estaria assumindo deliberadamente um prejuízo apenas para prejudicar a Transbrasil. ‘O novo dono da Vasp está impondo uma competição desleal e danosa’, acusa Fontana. “‘As empresas que operavam antes da nossa entrada no mercado não estavam habituadas a uma concorrência acirrada’, devolve Canhedo. Na semana passada, Fontana reuniu suas queixas num documento que levou ao diretor do Departamento de Aviação Civil, DAC, tenente-brigadeiro Sérgio Luiz Bürger. Fontana quer que o Governo intervenha e impeça a Vasp de continuar com a ‘superposição predatória em horários e

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Wagner Canhedo, “Cortina de fumaça”, Folha de São Paulo, 7/6/1991.

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serviços suficientemente atendidos’. Canhedo argumenta que assumiu a Vasp numa situação difícil, e, apesar do prejuízo de 275 milhões de dólares que contabilizou no ano passado, a companhia está conseguindo acertar as contas justamente porque está adotando uma postura mais agressiva. Fontana diz que, se a Vasp não parar com sua estratégia de chutar a botina da concorrência, sua empresa pode chegar ao final do ano com um prejuízo ainda maior do que os 63 milhões de dólares que registrou no ano passado. ‘Por enquanto ainda estamos resistindo, mas, se essa situação continuar, as condições a médio prazo são imprevisíveis,’, diz o comandante da Transbrasil. O que explica toda essa movimentação é a quebra do cartório da aviação comercial, um dos mais antigos e rígidos da economia brasileira.”142 A Varig reforçaria a iniciativa da Transbrasil enviando um ofício próprio ao DAC, no qual inclui uma queixa à Tam por estar operando, na condição de empresa regional, uma rota entre São Paulo e Belo Horizonte via aeroportos de Congonhas e Pampulha, contrariando as regras do transporte aéreo regional. Quanto à Vasp, a Varig chamou atenção para o aumento da oferta na baixa temporada:

“A Varig, maior empresa aérea do país, enviou ofício ao DAC em que critica a Vasp por colocar em risco o desempenho econômicofinanaceiro das companhias do setor, em mais um lance da competição que vêm travando as três grandes. (...) Habitualmente, toda a indústria promove redução da oferta no período de março a junho, para atenuar os efeitos da queda de demanda que anualmente tem se manifestado nesse período, denominado de baixa estação. Fica evidente que, não havendo consenso entre as empresas para a prática comum da redução da oferta, os índices de aproveitamento tendem a cair a níveis que tornam as operações anti-econômicas, alterando-se ainda os percentuais de participação no mercado’, diz o documento da Varig.”143

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“Batalha nos ares”, Veja, 15/5/1991, grifos meus. O episódio também foi abordado por outros órgãos da imprensa, como o Jornal do Brasil: “Depois de salientar ‘a pouca familiarização dos novos controladores da Vasp com as peculiaridades do transporte aéreo regular’, Fontana (presidente da Transbrasil) sublinha ao DAC ser preciso fiscalizar práticas desleais do setor. ‘Se é louvável o surgimento de novos competidores para que os usuários tenham ampliada a liberdade de escolher os serviços de sua preferência, não é menos válida a necessidade de salvaguardas para as hipóteses de abuso do poder econômico ou de práticas comerciais não compatíveis com a seriedade e responsabilidade da indústria do transporte aéreo’, diz” (“Transbrasil recorre contra a Vasp”, Jornal do Brasil, 14/5/1991). 143 “Varig também acusa a Vasp”, Jornal do Brasil, 29/5/1991.

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Wagner Canhedo, por sua vez, defendeu-se através de entrevistas e artigos publicados na imprensa, argumentando que a Varig e a Transbrasil não estariam habituadas a um ambiente de competição. A Vasp estaria introduzindo a competição no mercado, e por isso “incomodava” as congêneres. Em entrevista ao Jornal do Brasil, Canhedo faz a seguinte avaliação, ao ser perguntado se haveria um cartel das empresas de aviação:

“Não chego a dizer isso (que havia um cartel), mas a verdade é que a Varig era dona do mercado. Ela sempre teve um certo privilégio, por ser uma das maiores empresas do setor e por ter uma atuação grande na área internacional. Ela naturalmente se acertava com a Transbrasil, que se contentava com uma pequena fatia do mercado, por ser uma empresa pequena e com poucas chances de crescimento. Tanto a Varig quanto a Transbrasil se habituaram a esse tipo de acordo e não mobilizaram suas estruturas e suas equipes para enfrentar a concorrência. Nós já deixamos claro, desde que compramos a VASP, que chegamos para agredir o mercado.”144 A respeito das queixas apresentadas pela Transbrasil e pela Vasp, interpretadas como acusações de que a Vasp estaria lançando mão do recurso ao dumping, Canhedo afirma:

“Isso não tem o menor fundamento. Nós estamos aguardando o DAC se pronunciar sobre isto, mas não tivemos nem sequer a intenção de praticar dumping. Se os dirigentes da Varig e da Transbrasil estão achando que concorrência é dumping, é apenas o começo, porque a VASP vai ampliar ainda mais sua participação no mercado. Já estamos solicitando novas linhas e novos horários ao DAC. Imagine daqui a seis meses, quando nós tivermos atingido o percentual que queremos do mercado, o que é que eles vão dizer de nós? Desde outubro passado, quando a VASP foi privatizada, nossa participação passou de 23% para 34% do mercado doméstico.”145 144

“Planos de Canhedo vão além da Vasp” (Entrevista com Wagner Canhedo), Jornal do Brasil, 2/6/1991. Na mesma entrevista, no entanto, Canhedo menciona um ponto em que sua visão sobre a abertura do mercado não é absoluta: o pool da Ponte Aérea. O interesse da Vasp, neste particular, não era enfrentar as demais empresas, mas apenas operar aeronaves próprias, o que dependia da homologação da operação de jatos no aeroporto Santos Dumont, até então restrito aos turbo-hélices Electra II pertencentes à Varig. Canhedo afirma: “Nós achamos que deve ser mantido um pool operacional, porque isso favorece o passageiro, mas nós queremos operar diretamente nossa fatia que, no caso da ponte Rio-São Paulo é 33% das passagens vendidas. O pool serviria apenas para facilitar o embarque de passageiros, que pode apanhar o primeiro vôo que tiver.” 145 Id..

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A posição do DAC, neste episódio, foi de perfil eminentemente liberalizante, ou pelo menos não-intervencionista, tendo prevalecido uma postura favorável às estratégias da Vasp. Segundo o Jornal do Brasil, esta teria sido a opinião expressa pelo DiretorGeral do DAC, Sérgio Luiz Bürguer: “‘Em casa que tem pouca comida, todo mundo briga’. Com essa frase, o diretor geral do DAC, tenente-brigadeiro Sérgio Bürger, definiu a briga entre Vasp e Transbrasil. Segundo ele, o dumping não passa de um ajuste de mercado, como prefere chamar, e a disputa só vai durar até a alta temporada. ‘Aí aumenta a oferta, todo mundo ganha dinheiro e fica tudo tranqüilo’, diz o brigadeiro.” 146 A resposta oficial do DAC, por sua vez, foi relatada na seguinte matéria do jornal O Globo: “No seu relatório, o DAC não considera que a proximidade de horários de vôos configure concorrência predatória. Segundo dados do Departamento, é reconhecido que cerca de 70% dos passageiros são pessoas jurídicas em viagem de negócios, o que justifica a oferta de vôos em horários chamados executivos. “Em relação à não redução da oferta de assentos pela Vasp na baixa estação – que era garantida tradicionalmente por um acordo informal entre as companhias – o DAC não vai interferir. Segundo o Brigadeiro César, o DAC apenas estabelece os parâmetros e cabe às empresas ajustar oferta e demanda.”147

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“DAC considera disputa aérea mero ajuste”, Jornal do Brasil, 30/5/1991. Não obstante, dias antes o Jornal do Commercio havia publicado uma matéria sobre a queixa apresentada pela Transbrasil contra a Vasp, em que é citada uma “fonte do DAC” que teria afirmado: “Só não entendemos a posição da Vasp de estar aumentando freqüências em época de baixa estação. O Canhedo diz que isso é para acostumar o público a voar Vasp. Mas eles estão tendo muitos prejuízos e isso é estranho” (“Autoridades aeronáuticas estranham ofensiva da Vasp”, Jornal do Commercio, 17/5/1991). 147 “DAC considera em parecer que a Vasp não pratica ‘dumping’”, O Globo, 7/6/1991. Ao comentar a decisão, ainda segundo a reportagem, o vice-presidente da Vasp Ulisses Canhedo reforçaria o argumento de que a Vasp estava tentando ampliar o acesso ao mercado, criticando a Varig por adotar uma estratégia conservadora neste sentido: “É inadmissível que a Varig aceite que só 2% da população se beneficie do transporte aéreo. A Vasp pretende baratear seus custos e tornar possível a substituição do transporte rodoviário pelo aéreo.”

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Se a postura do DAC foi liberalizante em relação às queixas da Varig e da Transbrasil, o mesmo não aconteceu diante da tentativa da Vasp de entrar no segmento até então exclusivo da aviação regional. Novamente suscitando a reação dos grupos estabelecidos no mercado, a Vasp solicitou ao DAC operar rotas ligando o aeroporto de Congonhas, em São Paulo, a Curitiba, Belo Horizonte e Brasília. Nesta oportunidade, foi o presidente da empresa regional Tam que manifestou indignação em relação à iniciativa de Canhedo, conforme relatou a Folha de São Paulo: “O mercado aéreo brasileiro – hoje o mais agitado segmento da economia do país – entrou de vez em combustão. O comandante Rolim Amaro, dono da maior empresa regional de aviação do país, a Tam, está acusando o novo dono da Vasp, o empresário Wagner Canhedo, de terrorismo econômico nos céus do país. ‘Ele quer destruir a TAM, e tenta fazer o mesmo com a Transbrasil’, disse Rolim à Folha, na sextafeira. ‘A ação deste homem se baseia em duas coisas: terrorismo e bravatas’. “‘Canhedo já me disse algumas vezes que não tem espaço para tantas companhias aéreas no Brasil, e que no final dessa guerra só vai sobrar a Vasp e a Varig’, acusou ainda o dono da Tam. ‘O que ele faz é retaliação: tentou comprar a Transbrasil e a Tam em novembro passado e foi rejeitado.’ “A fúria de Rolim tem razões mercadológicas. Há dez dias, a direção da Vasp entrou junto ao Departamento de Aviação Civil, DAC, do Ministério da Aeronáutica, com um pedido de novas linhas aéreas partindo do Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, para Belo Horizonte, Curitiba e Brasília. É a Tam que opera nessas linhas. Todos os vôos pedidos pela Vasp são, em média, 30 minutos antes de cada um dos vôos da Tam.”148

Em relação a este episódio, que levaria a Transbrasil a tomar iniciativa semelhante à da Vasp, a postura do DAC foi de preservar o mercado regional, negando a solicitação de ambas as empresas. A resposta viria do próprio Ministro da Aeronáutica, Sócrates Monteiro, como relatou novamente a Folha de São Paulo: “‘Nem a Vasp nem a Transbrasil vão ser autorizadas a operar com Boeings em Congonhas’, afirmou (o ministro). Segundo Sócrates, Congonhas é para empresas regionais, e a Vasp e Transbrasil são consideradas nacionais.”149

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“‘Vasp quer destruir concorrentes’, diz Tam”, Folha de São Paulo, 17/6/1991. “Governo rejeita mesmos horários para vôos de linha aérea regional”, Folha de São Paulo, 19/6/1991.

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Por fim, em um artigo publicado na Folha de São Paulo, Canhedo faz uma leitura mais ampla do que estaria acontecendo no mercado. Tal como se encontrava, a aviação comercial estava organizada em torno da oferta, por um lado não atendendo aos interesses do público usuário, e por outro restringindo o próprio universo de usuários do serviço.

“O que a Vasp está fazendo é simplesmente competir. Para isso inova, cria, moderniza-se, recusa acordos que não estejam voltados exclusivamente para a satisfação dos usuários – razão de ser de uma empresa prestadora de serviços. Ao ampliar a oferta, instituindo novos horários e servindo a novos destinos, a Vasp rompe velhas convenções que mantinham a oferta rígida para otimizar a demanda. Era uma política autofágica. O passageiro não encontrava no transporte aéreo opções adequadas ao seu interesse e, em conseqüência, o mercado se mantinha restrito. É através da oferta que se amplia a demanda. Esta é uma regra sagrada das economias de mercado. “É importante a opinião pública saber que o crescimento da oferta da Vasp pós-privatização foi menor do que o crescimento de sua demanda (passageiros embarcados), significando esse fato que havia demanda reprimida. E ainda há, e muita. Por isso, a Vasp não participará de qualquer acordo destinado a reduzir ou controlar a oferta. Até porque esse procedimento caracteriza cartelização. O Brasil precisa crescer. O transporte aéreo pode e deve crescer com o Brasil. Por qualquer indicador de capacidade de consumo que avaliemos a população brasileira, saltará à vista que o transporte aéreo do país é menor do que poderia ser.”150 Ao aumentar a oferta e explorar as oportunidades de redução de tarifas, Canhedo pretendia mudar uma característica fundamental do mercado: seu perfil elitista, voltado para os segmentos de mais alto poder aquisitivo. Este movimento eventualmente foi acompanhado pelas demais empresas151. A Varig, por exemplo, lançou estratégias de barateamento das passagens e sustentou um discurso a favor do aumento do universo de usuários do serviço. “Estão surgindo novas oportunidades, em muito boa hora, exatamente num momento em que nossa economia está saindo do fundo do poço (...). 150

Canhedo, Wagner. “Cortina de fumaça”, Folha de São Paulo, 7/6/1991. Neste período, as empresas chegaram a uma redução que tornou algumas tarifas aéreas competitivas com as das empresas de ônibus. A empresa rodoviária Itapemirim, por exemplo, chegou a cancelar os serviços de ônibus-leito entre São Paulo e Fortaleza e São Paulo e Recife, uma vez que a diferença entre as tarifas aéreas e rodoviárias ficou em torno de 10% (Gazeta Mercantil, 24/7/1991 apud CASTRO e LAMY 1993: 45). 151

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Então, me parece que o momento é propício e nós estamos plenamente de acordo que a massa que usa avião no Brasil ainda é muito pequena. Por isso temos justamente que ser criativos, no sentido de aumentar essa massa.”152 De forma a dar conta destas novas oportunidades, a estratégia da empresa gaúcha foi assim definida: “Todas as nossas tarifas promocionais valerão para a alta estação – quer dizer, durante o ano todo. Queremos estimular um aumento do ‘bolo’ na alta estação. Entendemos que é momento de motivar o uso do avião. Além disso, vamos criar novas tarifas ainda no decorrer deste mês, até com mais descontos, e explorar novos nichos de mercado que estão aparecendo.”153 O estilo ousado e agressivo que marcou a entrada de Wagner Canhedo no mercado de aviação comercial, não obstante, teve curta duração. Na virada do primeiro para o segundo semestre de 1991, a imprensa começaria a publicar uma seqüência de reportagens revelando que a empresa paulista se encontrava inadimplente junto a uma série de prestadores de serviço, inclusive a Infraero, estatal responsável pela gestão dos aeroportos154. Uma destas dívidas, relativas à utilização dos aviões Electra II pertencentes à Varig nas operações da ponte aérea Rio-São Paulo, seria paga após intervenção do Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias, mais uma vez reforçando a tensão entre Canhedo e os demais empresários do setor.155 A situação mais crítica, do ponto de vista político, diria respeito ao não pagamento das parcelas da dívida externa da companhia, assumida pelo grupo comprador da Vasp e avalizada pelo Governo Federal156. A partir de então, além de uma conjuntura de crise vivida pelo conjunto do mercado, a Vasp se veria politicamente pressionada pelo governo e pela Assembléia Legislativa de São Paulo, pelo Congresso

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“Contra a concorrência, serviços melhores” (Entrevista com Rubel Thomas), O Globo, 9/6/1991. Id.. 154 “Infraero ameaça ir à Justiça contra Vasp”, O Estado de São Paulo, 28/6/1991. 155 “Vasp paga dívida pressionada pelo sindicato”, Jornal do Brasil, 2/7/1991. A matéria menciona ainda dívidas pendentes com a empresa prestadora de serviços aeroportuários SATA. 156 “Vasp: Canhedo não paga dívidas e já aflige credores”, O Globo, 30/6/1991. Segundo a matéria: “O Grupo Canhedo, que adquiriu a Vasp no ano passado, através de contestado processo de financiamento com recursos públicos, começa afligir seus credores. Vencida a primeira parcela dos juros da dívida externa, relativa ao período 1989-1990, o grupo não honrou o débito, que passa a ser de responsabilidade do Tesouro Nacional, avalista da operação.” 153

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Nacional e pelos sindicatos de trabalhadores. Apesar de estarem formalmente associados ao consórcio comprador da Vasp, os trabalhadores manifestariam crescentemente sua insatisfação com as políticas adotadas por Canhedo.157 Frente a este quadro, Canhedo poria fim à agressividade com que entrou no mercado na primeira metade de 1991 com um pedido de trégua 158, que se desdobraria numa tentativa de entendimento com a Transbrasil com vistas à implementação de um acordo operacional. Este acordo visaria num primeiro momento reduzir a ociosidade das aeronaves de ambas as empresas através da eliminação de horários e rotas sobrepostos, revertendo a estratégia tentada por Canhedo no primeiro semestre de 1991.159 Cogitouse a criação de uma holding para controlar as operações das duas empresas, batizada de SP Air, e embora a união não tenha se concretizado160 – a não ser temporariamente, limitada a um acordo operacional nos mesmos moldes de vários outros que seriam estabelecidos ao longo dos anos seguintes – o próprio pedido de trégua e as negociações em torno do acordo demarcariam o fracasso do estilo agressivo com que o empresário tentara se impor no mercado. Em crise financeira, pressionada por dívidas e por denúncias de que não estaria cumprindo os cronogramas e as exigências de manutenção das aeronaves, a situação da Vasp seria assim descrita pela Revista Veja:

“O empresário Wagner Canhedo, que no ano passado agitou a aviação comercial brasileira ao chamar os concorrentes para a briga, está pedindo água. Sua empresa, a Vasp, deve fechar o balanço de 1991 com um prejuízo de 60 milhões de dólares. O rombo é menor do que os 87 157

“Pilotos criticam planos da Vasp”, Jornal do Brasil, 4/7/1991. “Canhedo quer fim da ‘guerra da aviação’”, Folha de São Paulo, 23/7/1991. Segundo a matéria: “A guerra na aviação comercial brasileira pode estar chegando ao fim. Wagner Canhedo, presidente da Vasp, começou ontem a tentar um armistício com a Varig e a Transbrasil. Numa iniciativa paralela, Omar Fontana, presidente da Transbrasil, também tenta promover um encontro para negociar um acordo de paz entre as empresas.” 159 “Transbrasil e Vasp fazem acordo contra a ociosidade”, Folha de São Paulo, 6/9/1991; “DAC receberá projeto da união Vasp-Transbrasil até o dia 4”, O Globo, 12/9/1991. 160 Já em outubro de 1991, o Estado de São Paulo publicou uma matéria falando sobre o adiamento da criação da holding para o ano seguinte, apesar do sucesso inicial do acordo operacional: “O presidente da Vasp, Wagner Canhedo, disse ontem que não há condições de se formalizar ainda este ano a SP Air, holding que reunirá a Vasp e a Transbrasil. ‘Mas há esperanças de que isso ocorra em 1992’, afirmou. As dificuldades em conciliar os interesses e as filosofias empresariais das companhias, explicou, já foram superadas na parte operacional. ‘Não há nem será possível um acordo na área comercial’, avaliou. ‘Mas com o acerto operacional, já atingimos 50% do objetivo, economizando US$ 2,5 milhões por mês’” (“SP Air deverá ser criada só em 1992”, O Estado de São Paulo, 29/10/1991). 158

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milhões de dólares de 1990 e poderia até significar o início de uma recuperação financeira. Mas não é isso que os números em vermelho no balanço indicam. Eles indicam mesmo uma nuvem carregada bem à proa. A Vasp está em dificuldades e Canhedo não esconde isso. ´Precisamos de 20 milhões de dólares pra saldar dívidas de curto prazo’, diz. No fechadíssimo clube dos diretores de empresas aéreas do país há quem diga que a borrasca financeira é maior. Premido pela dificuldade, Canhedo chegou a dizer que venderia a Vasp, se lhe dessem o que quer. “Os sinais de que o empresário está com a língua seca são cada vez mais claros. Para começar, ele perdeu a retórica de conquistador dos ares que ostentava nas primeiras semanas à frente da Vasp. Dizia então que sua empresa estaria entre as dez companhias aéreas do mundo que sobreviveriam até o ano 2000. ‘Gostaria de ser maior que a American Airlines’, afirmava. Hoje, ele trabalha duro para manter seu negócio em bom estado, num sistema em que tem 42% das suas despesas em dólar e apenas 2,5% da receita em moeda americana. O ímpeto empresarial também aterrissou de barriga na realidade. A Vasp esperava abocanhar pelo menos a metade da fatia do mercado brasileiro, e o máximo que conseguiu foi ficar com 33% contra os 29% que possuía quando era uma estatal deficitária e tinha apenas 32 aviões contra os 58 que agora voam com sua marca. De 7000 empregados ela passou a ter 11000. A Vasp cresceu e o mercado encolheu, prensado pela recessão.”161 Canhedo, no entanto, não abriria mão da retórica de defensor da livre competição, defendendo este modelo em um artigo publicado no Estado de São Paulo com as seguintes palavras: “É exatamente por acreditar na economia de mercado, na redução do papel do Governo, na livre concorrência, que a Vasp sofre hoje uma das mais selvagens campanhas de agressão de que uma empresa já foi vítima neste país. Parece, de repente, que investir é mau, que ampliar em 50% o número de empregados (e isso num ano de crise) é nocivo, que oferecer opções aos passageiros é crime. (...) Na verdade, o crime pelo qual nos condenam é atacar o protecionismo. Aquilo que em todos os setores é bom – guerra aos cartéis, competição, busca de maior produtividade que possa se traduzir em preços mais baixos – na aviação passa a ser considerado mau. A luta de cada empresa para crescer, que em todos os setores é fato positivo, passa a ser considerada negativa quando a empresa é de aviação.”162 161

“Canhedo baixa a crista”, Revista Veja, 15/1/1992. Canhedo, Wagner. “A competição vai continuar”, O Estado de São Paulo, 14/2/1992. Revelando o caráter muitas vezes contraditório da política do setor, em uma matéria publicada no Jornal do Brasil, caberia à Varig acusar a Vasp de agir contra a competitividade do setor, diante de uma proposta de Canhedo de formar um pool semelhante ao da ponte aérea para todas as rotas nacionais. “Ontem, o presidente do Sindicato Nacional das Empresas Aéreas, Rubel Thomas, deixou de lado a neutralidade que o cargo exige para ‘francamente falar como presidente da Varig’. Tomou a atitude para reagir a Wagner Canhedo, presidente da Vasp, que afirmou ter pedido a intervenção do Governo Federal para

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Apesar da trégua, a situação da Vasp e de Canhedo se tornariam ainda mais críticas ao longo de 1992, quando a falência da empresa chegou a ser “dada como certa”163, enquanto Canhedo seria investigado pela Polícia Federal por se beneficiar de financiamentos públicos de forma irregular.164 Naquele momento, qualquer saída para a empresa passaria, de acordo com alguns dos principais atores envolvidos, pela saída de Canhedo da direção da empresa. O DAC, no entanto, não assumiria a prerrogativa da intervenção, sustentando que o problema era de natureza empresarial, não sendo tema da alçada do órgão. Sobre o assunto, a Gazeta Mercantil fez o seguinte relato:

“O governador do Estado de São Paulo, Luiz Antônio Fleury Filho, decidiu ontem que aceitará negociar com o presidente da empresa, Wagner Canhedo, o alongamento dos prazos para pagamento de dívidas fiscais e com o Banespa, que somam US$ 31,4 milhões. Em troca ele exige a substituição de Canhedo por uma administração profissional. Fleury quer na presidência da Vasp um executivo de alto nível que conheça o setor da aviação. ‘O problema não é a Vasp e sim a administração de Canhedo’, afirmou ontem.” “A mesma proposta foi defendida pelo presidente da Federação dos Trabalhadores em Empresas de Transporte Aéreo, José Caetano Lavorato, ontem no Palácio Bandeirantes. Fleury e Lavorato se reúnem obrigar a Varig a entrar em um pool nacional – semelhante ao que funciona na ponte aérea Rio-São Paulo – onde os lucros seriam divididos pelas empresas. ‘A idéia do Sr. Canhedo seriam um prêmio à ineficiência. O passageiro precisa ter liberdade de escolha e esta não seria uma atitude inteligente. O que ele quer é sair do buraco em que se meteu ao comprar uma empresa aérea sem conhecer o setor’, disse Thomas. (...) O Sr. Canhedo está pregando o pânico, mas nós pregamos a competitividade. A posição dele é tão controvertida a ponto de ter vindo ao meu escritório pedir ajuda pelo menos dez vezes. Agora ele está partindo para outros métodos.’ Thomas lembrou que em sete anos a indústria de aviação sofreu um prejuízo que não conseguiu repassar para o valor das tarifas. ‘Este fato o Sr. Canhedo não levou em consideração quando decidiu investir na Vasp’” (“Thomas critica presidente da Vasp”, Jornal do Brasil, 31/3/1992). 163 “Governo e empresas criam plano para enfrentar a falência”, Folha da Tarde, 10/11/1992. De acordo com a reportagem: “Governo e as empresas aéreas montaram um plano de emergência para enfrentar a falência da Vasp, dada como certa. O objetivo é entregar provisoriamente a outras empresas as linhas que forem desativadas pela quebra da Vasp, até que se faça uma redistribuição definitiva. O plano prevê ainda a absorção por outras empresas de parte do pessoal demitido.” As autoridades do Poder Executivo, no entanto, não foram unânimes a respeito da melhor postura a ser adotada: “O ministro da Indústria e Comércio, José Eduardo Andrade Vieira, defende a falência da Vasp. As outras duas opções – venda para outro controlador ou reestatização – são consideradas inviáveis por Vieira. O ministro do Trabalho, Walter Barelli, defendeu a intervenção do Governo para salvar mais uma vez a Vasp. Essa intervenção poderia vir na forma de refinanciamento das dívidas da empresa para facilitar sua revenda. Até agora, foi voto vencido”. 164 “Canhedo indiciado pela PF em inquérito”, O Estado de São Paulo, 11/11/1992. Segundo a matéria: “O empresário Wagner Canhedo, dono da Vasp, foi indiciado criminalmente ontem na Polícia Federal acusado de ‘obter financiamento mediante fraude’. Para a PF, o refinanciamento da dívida da empresa com o Banco do Brasil – US$ 276 milhões –, violou a lei federal 7.976/89, que autoriza operações do gênero apenas para estatais e Tesouros Públicos. Canhedo já havia comprado a Vasp, transformando-a em grupo privado, quando renegociou a dívida”.

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hoje para discutir a saída de Canhedo. Segundo o governador, não haverá intervenção do Ministério da Aeronáutica ou do Departamento de Aviação Civil (DAC) na companhia aérea. ‘O Brigadeiro Mauro Gandra, diretor-geral do DAC, não cogita fazer uma intervenção no momento’, disse Fleury. (...) “A saída de Canhedo depende exclusivamente de sua vontade. Apesar de pressionado entre dívidas e aviões arrestados, caberá a ele, como acionista majoritário da empresa, aceitar deixar o cargo. Mas se Canhedo ficar o Governo pretende executar outros bens dados em garantia nas negociações de compra da empresa. ‘Já passamos da época de socorrer empresas no vermelho’, sentenciou Fleury.”165 O envolvimento com Paulo César Farias, as denúncias sobre o favorecimento de Canhedo na privatização da empresa e na obtenção de recursos pós-privatização levaram à criação de uma CPI na Câmara de Deputados. Além dos atores diretamente envolvidos com o processo de privatização, durante o governo de Orestes Quércia, os trabalhos da CPI levantaram suspeitas sobre figuras-chave dentro do governo Collor, como Paulo César Farias e a ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello166. Em parte por pressão dos envolvidos, em parte por ter sido ofuscada pela CPI de Paulo César Farias, que levaria ao impeachment de Fernando Collor, a CPI da Vasp não teve conseqüências mais sérias, tendo seu relatório final inocentado os envolvidos.167

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“Fleury aceita negociar alongamento da dívida só com a saída de Canhedo”, Gazeta Mercantil, 11/11/1992. 166 Em depoimento sobre as irregularidades no refinanciamento de uma dívida da Vasp junto ao Tesouro Federal, o ex-Secretário da Fazenda Geraldo Gardenalli afirmou que a própria ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello, se envolveu na operação. Segundo matéria do Jornal do Brasil: “O ex-secretário da Fazenda Nacional Geraldo Gardenalli afirmou ontem à CPI da Vasp que a ex-ministra da Economia Zélia Cardoso de Mello pediu ‘atenção especial’ à negociação da dívida da empresa com o Tesouro Nacional porque tinha interesse no sucesso da privatização da companhia aérea. A afirmação desmente o depoimento da ex-ministra, que negou participação no processo de renegociação da dívida de US$ 276 milhões, autorizada pelo ministro interino Eduardo Teixeira durante viagem de Zélia ao exterior, em setembro de 1990. ‘No dia da rolagem, o Eduardo Teixeira disse que havia a determinação da ministra de fazer a privatização dar certo’, denunciou Gardenalli.” (“Gardenalli acusa Zélia”, Jornal do Brasil, 12/11/1992). 167 Sobre a CPI da Vasp, um de seus integrantes, o deputado federal Luiz Salomão (PDT-RJ), organizou um livro em que relata as inúmeras inconsistências, fraudes e omissões que teriam sido praticadas no âmbito do governo paulista, do governo federal e durante o próprio trabalho da CPI, onde teria sido organizada uma “tropa de choque” que aprovou um relatório final inocentando os principais envolvidos. Salomão e outros deputados, no entanto, produziram um “relatório paralelo” revelando as manobras para beneficiar Canhedo, que envolveram a sobrevalorização dos bens oferecidos pelo empresário como garantia para obter empréstimos para arrematar a Vasp, a exclusão de outros interessados na empresa, além da intervenção da própria ministra Zélia Cardoso de Mello e de Paulo César Farias a favor de Canhedo (Cf. SALOMÃO 1993).

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4.2. A dinâmica do setor após o primeiro ciclo da abertura

Um dos fóruns em que se negociou a primeira fase da abertura do mercado de aviação comercial foi a V CONAC, realizada em novembro de 1991. No livro comemorativo dos setenta anos do DAC, a avaliação do encontro reforça mais uma vez o alcance limitado que deveria ter a abertura do ponto de vista dos militares da aeronáutica. Na CONAC teria se consolidado uma posição favorável à abertura, sem abandonar a preocupação com a estabilidade da oferta, dentro dos marcos da “competição controlada”: “Passou-se a uma postura de flexibilidade dos regulamentos, com o estímulo à exploração de mercados, linhas e horários novos, sempre preservando o equilíbrio competitivo entre as empresas, sob um regime de preços menos rígido. A política prescreve a liberação tarifária como objetivo a ser atingido, porém lembra a experiência de desregulamentação ocorrida em outros países num passado recente, recomendando o cuidado que se deve ter para sua adoção.” (RIBEIRO 2001: 140) A V CONAC mais uma vez reuniu empresários dos diferentes setores da aviação comercial – nacional, regional, táxi aéreo e serviços especializados –, representantes do poder público e, demarcando uma das principais novidades da dinâmica política dos anos 1990, contou com a participação, com direito a voto, dos sindicatos de trabalhadores. Dentre as medidas tomadas neste primeiro ciclo de flexibilização, estava o fim da exclusividade das quatro empresas (Varig, Cruzeiro, Vasp e Transbrasil) operando no mercado nacional. Iniciou-se um longo processo, que se estenderia até 2001, de flexibilização tarifária. As empresas regionais passariam a utilizar jatos, tais como o Fokker 100 (Tam) e o Boeing 737-500 (Rio-Sul), e foram criados os “Vôos Direto ao Centro” (VDC), que possibilitaram às regionais voar entre Brasília e as três principais capitais brasileiras – Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte – através de seus aeroportos centrais. Visando ampliar as ofertas para o público executivo nas rotas mais densas do país, com esta medida as autoridades aeronáuticas promoveram uma das

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principais mudanças no mercado de aviação comercial, criando um nicho que viria a ser acirradamente disputado pelas empresas.168 Um outro evento que demarcou uma mudança nas relações entre autoridades, empresas e sindicatos foi a substituição dos turbo-hélice Electra II pelos jatos Boeing 737 na ponte aérea Santos Dumont-Congonhas no início de 1992. Tal mudança demandou meses de estudo, principalmente devido às condições críticas de operação de jatos no aeroporto carioca, cuja pista é bastante curta e limitada ao norte pela Ponte RioNiterói e ao sul pelo Pão de Açúcar. Com a medida, Vasp e Transbrasil puderam operar o pool da ponte aérea com aeronaves próprias, retirando uma parcela do controle da Varig sobre a principal rota do país. Vale destacar ainda a participação do Sindicato Nacional dos Aeronautas nos trabalhos técnicos que levaram à homologação das operações, em um processo que envolveu a participação de representantes de instituições internacionais, como técnicos da norte-americana Boeing Co. (fabricante dos aviões) e da Organização Internacional de Aviação Civil.169 Ao mesmo tempo destas mudanças, o mercado de aviação comercial começou a experimentar algumas conjunturas de crise mais agudas, tal como no início de 1991. Neste momento, o DAC começaria a ser procurado pelos trabalhadores, uma vez que as empresas vinham promovendo freqüentes demissões de funcionários. Várias reuniões foram marcadas pelo DAC objetivando discutir não só as demissões, como também atrasos no pagamento de salários e denúncias de irregularidades operacionais por parte de empresas.170 A partir de abril de 1992, o DAC começou a participar de reuniões em Brasília que culminariam na criação de uma Câmara Setorial da Aviação Comercial. Numa primeira reunião realizada na Comissão de Transportes da Câmara Federal em 168

Em 1983, havia sido emitida uma Portaria Ministerial restringindo a operação nos aeroportos centrais – Santos Dumont-RJ, Congonhas-SP e Pampulha-MG – às empresas regionais com rotas para aquelas capitais. Os vôos das empresas nacionais foram redirecionados para os aeroportos internacionais do Galeão-RJ, Guarulhos-SP e Confins-MG (estes dois últimos, recém inaugurados). O que se assistiu a partir da criação dos VDC e de medidas posteriores foi uma migração de vôos domésticos de todas as empresas para os aeroportos centrais, e o conseqüente esvaziamento dos aeroportos internacionais. Os aeroportos do Galeão e de Confins, que receberam pesados investimentos, passaram a operar com menos da metade de sua capacidade. 169 Tal postura foi assinalada como extremamente positiva pelo sindicato, denotando uma atitude mais transparente por parte do DAC para com a comunidade aeronáutica (Cf.Dia a Dia, n. 36, 27/9/1991, p. 3). 170 No início de 1992, o Diretor-Geral do DAC, Brigadeiro Sergio Bürger e o Chefe do Sub-Departamento de Operações Renato Pereira receberam o SNA, a Federação Nacional dos Trabalhadores em Transporte Aéreo e o Sindicato dos Aeroviários para tratar de vários destes temas, tendo ao fim se comprometido em marcar uma nova reunião entre o DAC, representantes dos empresários e dos trabalhadores para abordar o assunto. Naquele momento, discutia-se a possibilidade da redução na oferta de assentos e projetos de capitalização a ser apresentados pelas empresas ao Governo – Cf. Dia a Dia, n. 56, 14/2/1992.

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9/4/1992, o DAC foi duramente criticado tanto pelos representantes dos trabalhadores como por congressistas pela inércia em coordenar ações que evitassem a crise.171 Inicialmente foram constituídos Grupos de Trabalho visando fazer um diagnóstico do setor, enfocando os seguintes aspectos: adequação da oferta e da demanda; adequação dos custos (inclusive carga tributária e preço do combustível); relacionamento com os trabalhadores (Convenção Coletiva, nível de emprego e salários); e linhas de financiamento. Apesar da preocupação com os rumos do mercado, e da criação de um fórum para buscar soluções para a crise, o representante do DAC numa das reuniões da Câmara Setorial, Brigadeiro Renato Pereira, argumentou em certo momento que a Câmara não era fórum de discussão de política para o setor, uma vez que já existia uma política formulada pelo Ministério da Aeronáutica “com o acúmulo de muitos anos à frente da aviação.”172 Efetivamente, em junho de 1992 o informativo Dia a Dia fez sua última menção à Câmara Setorial, criticando a postura do Ministério da Aeronáutica – assim como dos empresários – de não aceitar um diagnóstico amplo e independente do setor.173 Apesar do título da matéria sugerir um “retrocesso” na Câmara Setorial, parecia tratar-se de fato do fim da experiência, uma vez que o assunto não aparece mais no informativo.

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Reconhecendo o momento crítico, próprio Diretor Geral do DAC, Sérgio Bürger, emitiu um ofício manifestando sua preocupação com a segurança das operações face ao aumento da concorrência, esperando que no novo cenário as empresas não descuidassem da manutenção – Citado em Dia a Dia, n. 64, 10/4/92. 172

Dia a Dia, n. 68, 8/5/92. A este respeito, merece destaque o comentário feito pelo presidente do SNA, José Caetano Lavorato, em um editorial a respeito do que lhe parecia ser falta de iniciativa do DAC frente à crise da Vasp num momento em que o SNA cobrava do órgão a intervenção na empresa: “Pelo seu caráter fechado e corporativista e pela necessidade de uma cultura hierárquica interna extremamente rígida para modernos padrões da sociedade civil, (o DAC) acaba propiciando distorções próprias do regime militar e não consegue dar soluções às crises. Aí, os problemas que são nossos, e que deveriam ser tratados publicamente, dentro do Congresso Nacional ou solidariamente com os outros setores do Governo, viram questão interna. (…) Os militares não admitem que outros discutam e deliberem com eles as questões da aviação. Parece coisa de propriedade dos oficiais, que muitas vezes, como acontece com o atual ministro e o diretor geral do DAC, nunca foram antes do Sistema de Aviação Civil e que provavelmente aqui não ficarão muito tempo” (Dia a Dia. n. 132, 30/7/1993, p. 6). 173

Uma das principais idealizadoras das Câmaras Setoriais, a então Secretária Nacional de Economia Dorothéa Werneck, ao participar de uma das primeiras reuniões da Câmara da Aviação Comercial propôs a contratação de uma consultoria independente para participar dos trabalhos (Dia a Dia, n. 65, 16/4/1992).

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A conjuntura dos anos 1991-1992 foi analisada pelos economistas Newton de Castro e Phillipe Lamy (1993), que realizaram um minucioso levantamento das mudanças introduzidas na legislação referente à aviação comercial. A maior parte das mudanças disse respeito à flexibilização do sistema tarifário, até então fixo para todas as empresas (isto é, a competição através das tarifas não era permitida). As mudanças começariam com a Portaria n. 196/DGAC de 27/6/1991174, que introduziu uma banda tarifária permitindo que as empresas estipulassem tarifas com acréscimo de até 20% sobre uma tarifa base (a tarifa “cheia”) para os serviços de primeira classe e descontos de até 30%, para passagens pagas à vista e com reserva confirmada 15 dias antes do início da viagem. Por outro lado, uma importante mudanças em relação ao governo anterior foi o retorno do controle sobre os reajustes tarifários para o DAC. Segundo os autores, entre junho e setembro de 1991, as tarifas básicas seriam reajustadas em 100%, contra uma inflação de pouco mais de 60%. Do ponto de vista das rotas, foi mantido um sistema de controle que envolvia aprovação, pelo DAC, de um “plano básico de linhas”, a ser submetido a uma “Comissão de Linha Aérea”, integrada pelas autoridades do DAC, representantes das empresas, da Infraero e do Departamento de Eletrônica e Proteção ao Vôo (DEPV)175. Os já mencionados “Vôos Direto ao Centro” abriram espaço para as empresas regionais (principalmente a Tam e a Rio-Sul) operarem vôos entre capitais, visando atender o público de executivos, mas a rota específica entre os aeroportos Santos Dumont e Congonhas continuariam sendo operadas, em sistema de pool, pelas empresas nacionais (Varig, Vasp e Transbrasil). Com base na análise das mudanças na regulação, Castro e Lamy fazem a seguinte consideração: “A estrutura regulatória atual gerou uma situação ambígua para as empresas. De um lado, dispõem de relativa flexibilidade tarifária, de outro, permanecem engessadas em um rígido esquema de concessão que limita e inibe fortemente adequações na capacidade ofertada, em 174

Um dia antes, o Ministério da Fazenda devolvera ao Ministério da Aeronáutica a responsabilidade pelo controle das tarifas, tendo as autoridades aeronáuticas aplicado um reajuste para as tarifas básicas da ordem de 100% ante uma inflação acumulada de 63%, “o que demonstra a firme intenção em recuperar os níveis de tarifas e reverter as perdas financeiras que as transportadoras haviam incorrido desde 1989” (CASTRO e LAMY 1993: 29). 175 Trata-se do órgão responsável pelo controle do espaço aéreo, integrado à hierarquia do Ministério da Aeronáutica, assim como o DAC.

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qualquer uma de suas dimensões. O resultado é que a estrutura de linhas permanece praticamente inalterada há décadas, não obstante a radical mudança de tecnologia do setor (...).” (CASTRO e LAMY 1993: 43) Os autores concluem seu trabalho chamando atenção para as diretrizes estabelecidas no documento “Política para os Serviços de Transporte Aéreo Comercial”, produzido pelo Ministério da Aeronáutica, onde era dada ênfase à abertura, livre competição, com a retirada da regulamentação do setor. Tais diretrizes não encontrariam contrapartida na prática, reforçando a percepção da idéia de resistência e adesão que viemos defendendo a respeito dos atores ligados à aviação comercial. Para os autores, a “distância, se não a contradição, entre o anunciado e a realidade regulamentar das portarias, vem comprovar, mais uma vez, a incompatibilidade existente entre a cultura do órgão regulamentador e a livre concorrência” (CASTRO e LAMY 1993: 55). Para os autores, além da retirada do DAC do âmbito do Ministério da Aeronáutica, caberia uma agenda de aprofundamento da abertura, com eliminação progressiva das restrições existentes na regulamentação que, de fato, permaneceu ativa e bastante abrangente após este primeiro ciclo de reformas no mercado de aviação comercial no Brasil. Durante o Governo Itamar Franco, a situação do setor ficaria inalterada do ponto de vista da abertura. Por outro lado, do ponto de vista das empresas, uma situação de crise estrutural ganharia contornos cada vez mais evidentes. O fracasso das tentativas de controlar a inflação e a retração na economia como um todo, em meio à incerteza política que caracterizou o período, geraram um quadro extremamente negativo para as empresas aéreas, o qual veio a atingir pela primeira vez de forma direta a principal empresa do setor. No início de 1994, pressionada pelos custos com leasing de aeronaves, entre outros, a Varig deixou de honrar os pagamentos relativos a mais da metade dos aviões de sua frota, registrando prejuízo ante uma redução global na demanda que teria impactos negativos sobre o conjunto das empresas de âmbito nacional.176 176

“Caso Varig revela a crise de outras empresas”, O Estado de São Paulo, 2/4/1994. Segundo a matéria: “A decisão da Varig de suspender o pagamento dos contratos de leasing de 50 dos 80 aviões de sua frota, em 14 de março, não só deu o tom dramático das dificuldades financeiras da maior empresa aérea do Brasil, mas escancarou os problemas das companhias brasileiras de aviação. Se a Varig acumulou, nos últimos seis anos, dívidas acima de US$ 1,2 bilhão, a crise crucificou visivelmente toda a indústria (de transporte aéreo) que, entre 1991 e 1993, teve o número de passageiros reduzido em 22%. Como a Varig, Transbrasil e Vasp, as outras grandes empresas aéreas nacionais, também registram prejuízo que,

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No caso da Varig, também pela primeira vez se daria uma demissão em larga escala de funcionários, levando os trabalhadores a organizar um movimento de resistência177 que, por sua vez, conduziria a uma nova tentativa de organização de uma Câmara Setorial.178 Nesta conjuntura, os trabalhadores pressionariam a empresa e as autoridades governamentais no sentido de interromper as demissões diante da possibilidade de ajuda do governo federal à companhia gaúcha. A não concretização das demissões seria uma “contrapartida social” à ajuda financeira do governo, ao mesmo tempo em que possíveis saídas para a crise deveriam ser discutidas no âmbito de uma Câmara Setorial, englobando todo o setor.179 A importância da Câmara Setorial, do ponto de vista dos trabalhadores, seria delineada na entrevista do consultor econômico dos sindicatos de trabalhadores, Cláudio Toledo, que expressou a seguinte posição: “A Câmara Setorial surge como uma resposta natural ao processo de globalização da economia, a nível mundial, com reflexos na evolução da somados atingem cerca de US$ 1 bilhão, a maior parte acumulada desde o Plano Cruzado. As únicas empresas com perfil de crescimento e lucro no País são algumas das regionais, como Tam e Rio-Sul.” 177 Analisando a situação da empresa gaúcha em editorial, os aeronautas compararam a situação da Varig à da Vasp, acusando ambas de “falta de previsão”, levando a “enormes custos, tanto do ponto de vista econômico quanto social”. E acrescentam: “Na Vasp ocorreu exatamente isso. Dobraram a frota da noite para o dia e, em seguida, demitiram 50% dos funcionários em função da devolução de aeronaves. Na Transbrasil o fenômeno foi similar (...). No momento, o fato repete-se na Varig. (...) Somos contra qualquer medida que venha a ser adotada pelas empresas em prejuízo dos trabalhadores, como é o exemplo apontado pela Varig, da demissão em massa dos seus funcionários” (Dia a Dia, n. 169, 6/5/1994, p. 1). 178 O Dia a Dia informou sobre uma reunião da entidade com o Diretor-Geral do DAC, Mauro Gandra, na qual este “se comprometeu em envidar todos os esforços possíveis junto ao Ministro da Aeronáutica Lélio Lobo, no sentido de instalar a Câmara Setorial de Aviação Civil. Este foi um dos principais resultados da reunião (...) entre o DAC, a Federação (Nacional dos Trabalhadores em Transporte Aéreo), os sindicatos de aeronautas, aeroviários e as associações de tripulantes” (Dia a Dia, n. 173, 27/5/1994, p. 3). Os trabalhadores organizaram ainda uma manifestação pública convocada sob o mote “Varig: a mãe que abandonou os seus filhos” (Cf. Dia a Dia, n. 174, 3/6/1994, p. 1). 179 Segundo o informativo dos aeronautas, as demissões faziam parte de um plano acertado com os credores da empresa, não podendo ser negociadas. No entanto, “os representantes dos trabalhadores reafirmaram que não aceitam as demissões e querem discutir a crise não só com a Varig, mas com todas as empresas que integram o grupo.” A intenção do SNA era cobrar das autoridades governamentais e do próprio BNDES uma posição a respeito da falta de disposição da Varig em dialogar com os trabalhadores, uma vez que “na opinião dos sindicalistas, é impensável que o Estado injete dinheiro na empresa sem que os trabalhadores conheçam o plano de reestruturação, sem que a companhia aceite sugestões e sem que o processo demissionário seja suspenso” (Dia a Dia, n. 178, 1/7/1994, p. 1). No mesmo número, comenta-se sobre um plano de “Poupança de Apoio à Recapitalização”, implementado pela Transbrasil, onde os trabalhadores tiveram parte de seus salários reduzidos para a formação de um fundo visando capitalizar a empresa, enquanto a Vasp seria assunto do número seguinte, onde os aeronautas relatam uma reunião com o Ministro do Trabalho, dirigentes da empresa, sindicatos e a associações de tripulantes a respeito de denúncias sobre descumprimento da regulamentação profissional, afastamento irregular de dirigentes sindicais e outras medidas consideradas arbitrárias por parte da empresa (Dia a Dia, n. 179, 8/7/1994, p. 2).

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produtividade, qualidade e tecnologia, deixando o Brasil para trás. Mas, independente da razão da instalação da Câmara, ela acaba se transformando em um fórum onde metas de manutenção, em um primeiro momento, e ampliação, a médio prazo, do nível de emprego, da produção, da qualidade do produto gerado, além de melhoria das conquistas sociais são estabelecidas. (...) “A aviação atravessa uma séria crise nesse momento, não só no Brasil, mas no mundo. As empresas internacionais, concorrentes das brasileiras, já estão fazendo os ajustes necessários para se modernizarem, tornando esse momento excepcional para a retomada da Câmara Setorial, que chegou a ser instalada em 1992, mas que por falta de interesse das empresas e do DAC, na época, não foi à frente. (...) “As empresas já estão buscando sua reestruturação e só há duas formas de fazê-la: unilateralmente, com as empresas impondo um projeto, o que implica diminuição do nível de emprego, flexibilização do processo de trabalho, de conquistas socais, salários, etc.. A segunda via para se fazer uma reestruturação passa pela negociação entre trabalhadores e empresários, tendo como objetivo enfrentar o cenário da globalização, otimizando a qualidade e a produtividade e garantindo a ampliação do emprego e das conquistas sociais. Essa última via tem se mostrado a mais eficiente, se observarmos os resultados em termos mundiais, não só na aviação, mas nos diversos outros setores da economia. Assim sendo, a Câmara Setorial é estratégica para o futuro dos trabalhadores da aviação.”180 Em maio de 1994, o então diretor-geral do DAC, Brigadeiro Mauro Gandra, recebeu representantes sindicais que lhe cobraram ações no sentido de superar os problemas vividos pelo setor. O Brigadeiro comprometeu-se especificamente com a retomada da Câmara Setorial.181 Assim, em junho de 1994, houve uma reunião entre o Ministério da Aeronáutica, do Trabalho e da Indústria e Comércio visando a (re)instalação da Câmara Setorial da Aviação.182 O próprio Mauro Gandra, no entanto, faria uma apreciação bastante negativa da experiência das Câmaras Setoriais. Além de relatar um baixo grau de envolvimento da parte do DAC, ele questionaria a eficácia da estratégia diante do aparente da pouca capacidade de negociação entre trabalhadores e empresários, como segue: “Essas câmaras setoriais, elas têm um viés muito voltado para administração da esquerda. E, naquela época nos estávamos em pleno governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. Quem, mais ou menos, levantou essa possibilidade da câmara foi a ministra Dorothea 180

Dia a Dia, n. 181, 22/7/1994, p. 4. Dia a Dia, n. 173, 27/5/1994, p. 3. 182 Dia a Dia, n. 176, 17/6/1994, p. 1 e n. 177, 24/6/1994, p. 2. 181

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Werneck, que estava, naquela época, no Ministério da Industria Comércio e Turismo. Mas também com um respaldo pelos sindicatos pois havia sido ministra do Trabalho. Então, o que eu percebi foi o seguinte: esta câmara setorial não levou absolutamente a nada. Pode ser que em alguns setores especificamente isso tenha sido, vamos dizer, produtivo, e que tenha alcançado objetivos. Mas, por um lado, o que acontecia? Todas as reivindicações dos sindicatos as empresas bloqueavam, e vice e versa. Então, é uma briga de ‘namorados sentados de costas’, não fala um com o outro. Quer dizer, não houve nenhuma evolução positiva nessa câmara setorial. Eu era diretor (do DAC), mas, aí o diretor não participava. Só recebia os inputs. E quando recebia os inputs via que aquilo não ia prosperar.”183 Independente do baixo grau de amadurecimento das relações entre trabalhadores e empresários, e do baixo envolvimento por parte das autoridades aeronáuticas, as câmaras setoriais seriam esvaziadas também pela mudança na conjuntura, com o advento do Plano Real, que teria um impacto bastante positivo na atividade econômica, levando a uma reversão da crise. Pesaria também a orientação política do novo governo, avessa à prática de concertação representada pelas câmaras. Esta nova conjuntura será discutida a seguir.

4.3. O primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso: a acentuação da abertura

O ano de 1994, embora tenha se iniciado com uma crise sem precedentes na Varig e nas demais empresas de âmbito nacional, foi o ano da implementação do Plano Real, que viria a criar – como nas fases iniciais de implantação de outros planos econômicos desde o Plano Cruzado (1986) – um ambiente de euforia e aumento do consumo. Tal ambiente não poderia deixar de repercutir no mercado de aviação comercial, levando as empresas a resultados positivos.184 As autoridades aeronáuticas,

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Mauro Gandra, Entrevista ao autor, 20/5/2004. “Varig começa a superar crise e obtém lucro”, O Estado de São Paulo, 14/11/1994. Além da recuperação do momento favorável da economia brasileira, vale acrescentar que apesar da resistência dos trabalhadores, a empresa efetivamente recebeu empréstimos do BNDES e do Banco do Brasil (“Governo volta a socorrer a Varig”, Jornal do Brasil, 15/11/1994). Outro fator que contribuiu para a melhora no desempenho das empresas foi a política cambial que sobrevalorizou o real frente ao dólar, aliviando o endividamento das empresas aéreas, cotado na sua maior parte em moeda estrangeira (“Efeito do câmbio nas dívidas ajuda a recolocar a Varig no azul em 94”, Gazeta Mercantil, 17/3/1995). 184

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até então pressionadas especialmente pelas entidades sindicais, se veriam numa posição mais confortável, manifestando uma postura bastante otimista em relação às perspectivas do setor. Lançado neste período, o primeiro número do informativo DAC Notícias sequer mencionou a existência de uma crise no setor e não abordou o tema da Câmara Setorial, transmitindo por outro lado um tom absolutamente otimista185. Este otimismo pode ser auferido, por exemplo, em uma matéria onde o chefe de gabinete do órgão, Coronel Jouraci T. Dantas, faz um balanço do mercado frente às mudanças macroeconômicas introduzidas pelo Plano Real: “O advento do Plano Real recolocou o país nos trilhos e deu partida para um novo caminho. Talvez fosse mais adequado dizer que o Brasil corrigiu a sua rota em direção ao seu grande destino de nação-potência. A recuperação da economia, embora ainda em números muito acanhados, propiciou razoável aumento do poder aquisitivo da população. (…) As empresas aéreas já contabilizam os lucros e colocam no mercado novos pedidos de aquisição de aeronaves, antevendo que dias melhores virão. A nossa visão também enxerga um horizonte de bons negócios para o setor trazendo de volta a rentabilidade da atividade que é de vital importância para o país. O Brasil, com dimensões de um continente, é extremamente dependente do transporte aéreo, principalmente, se considerarmos que o nosso sistema rodoferroviário encontra-se em profunda crise de infra-estrutura. Enfim, não existe integração nacional sem a aviação comercial brasileira.”186

A instauração da Câmara Setorial estava associada a uma conjuntura de crise, portanto faz sentido que a mudança desta conjuntura com o aquecimento da atividade econômica tenha contribuído para que a Câmara tenha novamente se esvaziado sem que se chegasse a nenhum resultado prático.187 Por outro lado, a total ausência do assunto no

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A omissão quanto aos problemas do mercado foi assinalada pelo informativo dos aeronautas em uma nota a qual, ao mesmo tempo em que saúda o lançamento do boletim do DAC, lamenta que “em sua primeira edição, o DAC Notícias não pautou nenhuma matéria sobre as dificuldades da aviação comercial” – Dia a Dia, n. 210, 27/1/1995, p. 2. 186 DAC Notícias, n. 1, 1994, p. 3. Da mesma forma, no segundo número, o Chefe do Subdepartamento de Planejamento Major Brigadeiro do Ar Renato Claudio Costa Pereira afirma que “nunca esteve tão otimista em relação ao futuro da Aviação Civil no Brasil”, num quadro que lhe parecia nunca ter sido tão favorável: “agora é pra valer” – DAC Notícias, n. 2, 1994?, p. 5. 187 Já em março de 1995 uma nota do Dia a Dia informa sobre uma tentativa de se retomar os trabalhos, paralisados em novembro de 1994 – Dia a Dia, n. 217, 17/3/1995, p. 1.

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informativo do DAC reforça a percepção de aversão por parte dos militares da aeronáutica em relação à Câmara, aversão esta já expressa na primeira tentativa de instalação do Fórum. Neste momento, no entanto, o abandono das Câmaras Setoriais teria como motivação um fator a mais: a postura adotada pelo Poder Executivo em relação a este tipo de arranjo político-institucional. Com efeito, a partir da eleição de Fernando Henrique Cardoso, o “estilo tecnocrático de gestão” ganhou contornos ainda mais fortes, com a ascensão ao poder de um grupo que preconizava a abolição deste tipo de relação entre os responsáveis pela gestão econômica e os agentes econômicos. Na mesma linha, o governo Fernando Henrique reforçaria o compromisso com a agenda da abertura, que no caso da aviação comercial podia ser considerada bastante incompleta. Assim, a dinâmica política voltaria a se concentrar no jogo de resistência e adesão às reformas. Do ponto de vista das autoridades aeronáuticas, pode-se dizer que ainda prevalecia uma visão bastante restritiva da abertura. O Brigadeiro do Ar Renato Cláudio C. Pereira deixa claro algumas posições conservadoras a respeito das medidas associadas à abertura, tais como redução de tarifas e aumento na oferta no seguinte trecho, em que aborda o tema dos descontos:

“O desconto só existe para viabilizar o acesso do passageiro quando o mercado está fraco. A princípio, o desconto só deveria existir nesta circunstância. Acontece que, com a implantação do Plano Real, as companhias não tiveram a rapidez necessária para eliminar a redução das tarifas.”188

E a respeito do aumento da frota de aviões em operação, que por sua vez tem impacto direto no aumento da oferta de vôos, o Brigadeiro afirma: “É possível que as pessoas deixem de viajar na alta temporada por falta de assentos no avião; por outro lado, as companhias devem aumentar suas frotas com muito cuidado. Deve haver um planejamento… o momento atual está favorecendo o usuário, mas há que se ter um equilíbrio.” 189

188 189

DAC Notícias, n. 2, 1994?, p. 5, grifos meus. Id., grifos meus.

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O substituto de Mauro Gandra na direção geral do DAC, João Felippe S. de Lacerda Jr. (28/12/94 a 18/12/96), também assumiria um discurso genericamente favorável à abertura, mas carregado de referências ao modelo mais intervencionista que vinha pautando a atuação do DAC. “Terei como meta prosseguir no programa de flexibilização da regulamentação, buscando uma competição sadia, livre e não ruinosa. Procedendo desta maneira, espero continuar promovendo, a partir de estudos criteriosos de demanda, a necessária expansão das empresas que representam a nossa bandeira no exterior. No campo doméstico incentivarei as empresas nacionais e regionais a se expandirem de acordo com seus interesses, visando sempre o melhor para os usuários.”190 As empresas, por sua vez, se veriam novamente diante do enrijecimento no controle sobre os reajustes tarifários, que voltaram à alçada do Ministério da Fazenda, de acordo com a legislação que criou o Plano Real. As autoridades econômicas demonstrariam uma certa indisposição na concessão dos reajustes, acirrando o conflito entre empresas e Governo. O primeiro contencioso se daria em fins de 1995, quando as empresas aéreas solicitaram às autoridades o primeiro reajuste depois da implantação do Plano Real. Um dos motivos de resistência em autorizar o aumento era a não concessão de descontos às passagens compradas pelo setor público, um dos principais clientes das empresas. Por outro lado, as autoridades questionavam a solicitação de reajustes quando as empresas estavam concedendo descontos, de forma que ao invés de aumento, as empresas deveriam reduzir as margens de desconto.191 O reajuste só viria a ser concedido em

190 DAC Notícias, n. 3, 1995, p. 2, grifos meus. A postura otimista já aludida aparece também na conclusão do editorial: “Enfim, aos nossos empresários, aeronautas, aeroviários e aeroportuários, com fé inquebrantável e firme esperança no futuro de nossa pátria, concito-vos a unirmos forças e buscarmos juntos atingir o nosso objetivo maior: proporcionar ao Brasil um sistema de transporte aéreo competitivo, confiável e seguro.” 191 “Fazenda nega reajuste às empresas aéreas”, Jornal de Brasília, 14/2/1995. Segundo a matéria: “O Governo dificilmente dará autorização para as companhias aéreas reajustarem os preços das passagens ainda este mês. A maior resistência é do Ministério da Fazenda, que não vê razão para o aumento, uma vez que, com vôos lotados até meados de janeiro de 1996, as empresas ainda têm concedido alguns descontos. Isso sem contar os gastos do setor público – responsável por 40% da demanda – que engordam as margens de lucros das empresas, por não se beneficiar com as promoções tarifárias. A área econômica, que estava disposta a autorizar reajustes em torno de 13% a partir do último dia 1o, recuou e decidiu avaliar a evolução dos custos do setor nos últimos 16 meses – período em que os valores estão congelados – de forma mais detalhada. Há quem defenda, na Fazenda, que o aumento seja precedido pela desequalização dos preços do querosene de aviação, cujo principal impacto seria a redução dos

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meados do ano seguinte, após gestões dos dirigentes empresariais junto ao próprio Ministro da Fazenda, Pedro Malan192. Para garantir o aumento, as empresas se comprometeram a manter a política de descontos e o DAC revogou a portaria que proibia a concessão de descontos ao setor público.193 O enfrentamento se tornaria mais acirrado entre os anos de 1996 e 1997, quando surgem sucessivas denúncias contra as empresas aéreas, acusadas de formação de cartel e prática de tarifas abusivas.194 Não só as empresas,195 como o próprio DAC,196 seriam alvos de investigações por parte das autoridades econômicas. Sob o argumento de que a concorrência era insuficiente no setor, começou a ganhar corpo proposta no sentido de abrir o mercado doméstico para empresas estrangeiras (cabotagem), na mesma linha do que havia sido feito com o transporte marítimo. A iniciativa teria eco dentro do governo

preços em viagens partindo dos aeroportos do Rio e São Paulo, em razão da proximidade das bases de distribuição.” 192 “Empresas aéreas pedem reajuste das passagens”, Jornal do Commercio, 24/5/1996. Segundo o jornal, “Malan prometeu estudar a proposta, que foi apresentada em outubro passado. Na época, o então secretário de Acompanhamento Econômico, Luiz Paulo Velloso Lucas, negou o pedido dos empresários, alegando a coincidência do aumento com o período de férias e o fato de que não se justificava a necessidade de reajuste, já que as empresas concediam descontos de até 40%. Os técnicos ainda estão resistentes à elevação dos preços porque as empresas não repassam ao Governo os descontos que concedem aos consumidores. O Governo é o maior cliente individual das companhias aéreas e nunca tem direito a descontos. (...) Os representantes das empresas na reunião foram o presidente do Sindicato Nacional das Empresas Aéreas, Ramiro Tojal, o presidente da Varig, Fernando Pinto, da Vasp, Wagner Canhedo, e da Transbrasil, Omar Fontana. Eles alegaram a necessidade de um reajuste agora para cobrir custos, não só porque os preços estão inalterados há dois anos, mas também pelo efeito da liberação do querosene de aviação.” 193 “Passagens aéreas sobem 14%”, Jornal do Brasil, 25/5/1996. “O anúncio foi feito ontem pelo Secretário de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda, Bolivar Rocha. Segundo ele, o reajuste estava pendente desde novembro do ano passado e, para consegui-lo, as companhias aéreas se comprometeram a ampliar a oferta de tarifas comerciais promocionais. Os novos preços devem se manter fixos por um ano. (...) Ao explicar a contradição aparente entre a necessidade das empresas de fazer reajustes e a manutenção de tarifas promocionais, Bolívar Rocha disse que, na verdade, o reajuste de 14% vai acabar sendo pago pelos passageiros permanentes e cativos das empresas aéreas, como funcionários do Governo e de empresas privadas. Bolívar ressaltou, no entanto, que aumentou a capacidade do setor público de negociar os preços das passagens aéreas de seus funcionários, desde que foi revogada uma portaria do Departamento de Aeronáutica Civil (DAC) que impedia a concessão de descontos promocionais ao Governo federal.” 194 Cf. “Ofensiva para derrubar o valor das passagens aéreas”, O Globo, 27/7/1996. Esta matéria menciona a campanha deflagrada pela Associação Brasileira de Consumidores, reivindicando a redução em 40% das passagens aéreas. A associação encaminhou documento solicitando auditoria na planilha de custo das empresas ao Ministério da Aeronáutica, à Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara de Deputados e ao Procon do Distrito Federal. 195 “Ponte Aérea pode ser cartel”, Jornal da Tarde, 23/9/1996. Tratando especificamente da Ponte Aérea, a matéria menciona uma solicitação de informações por parte da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça ao DAC, na qual a secretaria “contestou o fato de Varig, Vasp e Transbrasil cobrarem preços semelhantes na ponte aérea e operarem em aparente sistema de cartel. ‘Queremos saber se há uma norma que permita isso, pois, se não houver, estará caracterizado um ajuste comercial entre as companhias, o que fere a lei antitruste’, diz Paulo Cremonesi, da SDE.” 196 “DAC pode ser investigado pelo Governo”, Jornal do Brasil, 2/8/1997.

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em setores como a Embratur, em articulação com lideranças políticas da região nordeste, chegando ao Legislativo.197 A partir do segundo semestre de 1997, o tema das passagens aéreas foi colocado entre as prioridades do Poder Executivo, e a Presidência da República instituiu um grupo de trabalho visando aprofundar a abertura no setor. Comandado pelo chefe do Gabinete Civil, Clóvis Carvalho, o grupo teve também a participação das autoridades econômicas (SDE, Seae e CADE), além de setores governamentais diretamente interessados na abertura, como a Embratur. Confirmando o estilo de relacionamento entre o poder público e os interesses privados característico do Governo Fernando Henrique, as empresas não foram convidadas a participar dos trabalhos198. Neste período, por iniciativa do ministro da Fazenda, Pedro Malan, surgiu também proposta de criação de uma agência reguladora para a aviação comercial em substituição ao DAC.199 Dentro da estratégia de responder à pressão do Poder Executivo, as empresas lançariam mão da indicação do Brigadeiro Mauro Gandra, ex-diretor do DAC e ex-

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“Embratur quer aumentar a concorrência na aviação”, O Globo, 19/7/1997. A notícia fala da crítica feita pelo presidente da Embratur, Caio de Carvalho, à concessão, pelas autoridades econômicas, de um aumento de 7,35% nas passagens aéreas, que levou o Ministério da Fazenda a divulgar nota desautorizando Carvalho, que havia se articulado ao líder do PSDB no Senado, Sérgio Machado, no sentido de “aumentar a concorrência no setor da aviação.” A matéria menciona ainda a participação dos governadores da região nordeste, interessados em aumentar o fluxo de turistas para aquela região. “O reajuste das passagens domésticas, que vigora a partir de segunda-feira, deve ampliar ainda mais o movimento iniciado no Nordeste, que reivindica a política de céu aberto (abertura do mercado nacional às empresas estrangeiras). Pelo sistema, que conta com o apoio dos governadores da região, qualquer empresa – nacional ou estrangeira – seria autorizada a operar nas rotas domésticas. No dia 20 de agosto, Carvalho vai se reunir na sede da Embratur com presidentes de empresas de turismo do Nordeste, para discutir formas de incentivar o turismo na região, e a política de céu aberto estará na pauta. Os ministérios da Fazenda e da Aeronáutica resistem a esta alternativa, usando como argumento o risco de a abertura quebrar as empresas nacionais, deixando sem atendimento rotas deficitárias.” Por outro lado, a Fazenda tentou justificar o aumento lembrando que havia um processo de desregulamentação em curso, que deveria aumentar a concorrência entre as empresas. E se a redução das tarifas era desejável, esta não eliminaria a necessidade de manter o equilíbrio econômico-financeiro das empresas. 198 “Céu de brigadeiro para todos”, O Globo, 7/8/1997. “De olho nos preços das passagens aéreas no país, que estão entre as mais caras do mundo, o Governo quer aumentar a concorrência no setor e se preparar para acabar com o atual sistema de concessão dos serviços. (...) Os trabalhos em torno da desregulamentação e da nova diretriz a ser tomada deverão ser desenvolvidos em duas etapas. A primeira envolverá, exclusivamente, os órgãos públicos responsáveis pelo monitoramento do setor. As empresas serão chamadas a dar opiniões só depois de concluído o esboço das futuras regras. Ramiro Tojal, presidente do Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias, afirmou que não recebeu qualquer comunicação sobre a formação do grupo de trabalho, apesar de saber da iniciativa há um mês. ‘Soube que os técnicos da Fazenda e da Casa Civil estão discutindo isso há um mês. Espero que sejamos chamados para mostrar o nosso lado da discussão’.” 199 “Malan propõe agência reguladora para transporte aéreo: meta é baixar tarifas”, O Globo, 8/8/1997.

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ministro da Aeronáutica, para a presidência do SNEA. O jornal O Globo fez as seguintes considerações sobre o assunto: “Sem que o presidente Fernando Henrique Cardoso perceba, uma contra-ofensiva ao projeto de desmilitarização do Departamento de Aviação Civil (DAC) está sendo montada dentro do Ministério da Aeronáutica. O ministro Lélio Lobo, que é contra o projeto do presidente de transformar o DAC em uma Agência Nacional de Aviação Civil, já recebeu o apoio formal das maiores empresas aéreas do país, unidas por um medo comum: a entrada de empresas estrangeiras no emergente mercado brasileiro. “No início de dezembro, o lobby contrário à reforma do DAC ganha o reforço do brigadeiro Mauro Gandra, ex-ministro da Aeronáutica, que irá assumir a presidência do Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias (SNEA). (...) “Um representante das empresas aéreas argumenta que, se sair da esfera da responsabilidade da Aeronáutica, o DAC vai ficar muito vulnerável a atos de corrupção e, pior ainda, poderá desestruturar o modelo de controle montado há 56 anos pelos militares, que, entre outras coisas, protege as companhias nacionais. A Aeronáutica voa em formação com as empresas aéreas, mas há outros interesses em jogo: dos 70 oficiais-generais da Aeronáutica, cinco estão lotados no DAC, um dos postos de maior status entre os brigadeiros. Antes de ser ministro, por exemplo, Mauro Gandra passou dois anos e meio como diretor do órgão. ‘As empresas estão no meio da ponte do desenvolvimento. Se o DAC for extinto, elas vão ter que dar meia-volta’, analisa o futuro presidente do SNEA.”200 Em depoimento, Mauro Gandra salienta que as autoridades econômicas teriam tomado como base para a implementação da agenda de abertura do setor as orientações de um documento do Banco Mundial. “Aliás, começou-se a perder quando houve uma intromissão indevida do Ministério da Fazenda – eu era presidente do SNEA –, através da Secretaria de Acompanhamento Econômico, na época era o Dr. Bolívar Moura. Ele pegou um ‘site survey’ do Banco Mundial, que tinha sido feito a pedido da Infraero, porque a Infraero – isso nos anos aí, talvez 87... –, ela tinha pedido a possibilidade de um empréstimo grande ao BM, com respaldo de sua receita. E, para fazer isso, o Banco Mundial faz um ‘site survey’, faz uma pesquisa e tal – que demorou, você vê, eu em 91, início de 92, eu estava na SEFA, e eles passaram lá. Eles voltaram, mas eu era DAC. E quando foi mais ou menos em 95, ou 96, esse relatório bateu aqui. O relatório bateu e tinha uma série de coisas. Inclusive, uma das coisas que o relatório dizia era o seguinte: o 200

“Ex-ministro da Aeronáutica comandará pressão de empresas contra fim do DAC”, O Globo, 22/10/1997.

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Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias devia ser desmantelado, ‘dismantled’, porque era o órgão que fazia a combinação das tarifas. O que é uma inverdade, porque o Dr. Bolivar pegou a comissão de tarifas do SNEA, que era encarregada de, juntamente com o DAC., estudar planilhas de custo, porque aí, novamente eu digo: a planilha de custo é muito parecida para todas as empresas, porque os insumos são os mesmos, inclusive – claro, eu estou falando de empresas de mesmo porte. Ele fez um ‘perguntório’ em cima daquele relatório. E muito baseado na deregulation norte-americana. Ele pegou o que estava ali e encaminhou o questionário, assinado pelo ministro Malan, para o chefe do Gabinete Civil, que fez daquilo uma espécie de vade mecum. E, aí, começou através daquelas perguntas a cobrar coisas do DAC.”201 Os trabalhadores, por sua vez, participariam da dinâmica desta conjuntura posicionando-se de forma crítica a algumas das estratégias das empresas no contexto da abertura. Um dos aspectos suscitados foi a dificuldade em conciliar as novas exigências de competitividade e a segurança das operações aeronáuticas. O assunto foi abordado em um editorial do informativo dos aeronautas, quando o então presidente da entidade, Luiz Fernando Collares, manifestou “estranheza” frente ao que lhe parecia ser um excessivo número de acidentes e incidentes ocorridos “nos últimos anos”, ao mesmo tempo em que o sindicato vinha encaminhando várias denúncias ao DAC sobre desrespeito à legislação por parte das empresas. Segundo Collares,

“A filosofia hoje em dia predominante no setor, lamentavelmente, não é a da segurança, segurança e mais segurança. O desenvolvimento do aspecto comercial das companhias e de novas práticas administrativas não podem nem devem secundarizar a essência da atividade no que se refere ao exercício da profissão de aeronauta. “Companhias tentam incutir em seus aeronautas uma mentalidade de competitividade que, a nosso ver, não deve encabeçar o universo de atribuições do profissional. Paralelamente a esse quadro, por economia, talvez, houve uma redução de investimentos per capta em treinamento na relação tripulante/equipamento. Tripulantes devem estar absolutamente concentrados na especialidade para a qual são pagos. Subverter essa lógica não soma em nada.”202

201 202

Mauro Gandra. Entrevista ao autor, 20/5/2004. Dia a Dia, n. 331, 28 a 31/7/1997, p. 2.

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Os aeronautas se empenhariam em gestões junto às autoridades econômicas, propondo a ampliação do debate sobre as políticas do governo para o setor, defendendo a “preservação das empresas nacionais e do mercado de trabalho dos aeronautas”, assim como chamando atenção para os efeitos negativos da abertura sobre a segurança de vôo203. Participaram também de iniciativas do Congresso Nacional para discutir o assunto, como uma audiência realizada pela Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias, onde Collares demonstrou-se favorável à redução de tarifas, lembrando no entanto que seria preciso discutir os fatores que determinavam os custos das empresas (combustível, taxas de juros nos financiamentos, entre outros), além da alegada falta de competição no mercado. Por outro lado, Collares defendeu uma maior democratização do sistema de transporte aéreo, com maior transparência nas informações sobre o setor, “oportunidade desperdiçada nas Câmaras Setoriais instaladas na primeira metade da década, em parte pela própria resistência das companhias em debater de forma clara as questões do setor.”204 A despeito da resistência dos atores ligados ao setor, a iniciativa do Poder Executivo alcançaria resultados concretos a partir do final de 1997, na medida em que autoridades aeronáuticas e empresários perceberam que os riscos de abertura do mercado às empresas estrangeiras, somado à eventual retirada do controle da Aeronáutica sobre o setor, eram crescentes. A resposta do DAC foi um incremento na flexibilização das regras tarifárias, acompanhada pelas empresas pela instauração da mais acirrada “guerra tarifária” vivida pelo mercado ao longo dos anos 1990.205 Desta 203

Dia a Dia, n. 336, 29/8 a 4/9/1997, p. 1. Os aeronautas estiveram com dois representantes do Ministério da Fazenda: o secretário-executivo, Pedro Parente, e o Secretário de Acompanhamento Econômico, Bolívar Moura Rocha. Segundo o informativo, este havia se comprometido a “abrir espaço para aeronautas e aeroviários apresentarem seus pontos de vista”. 204 “SNA na Câmara dos Deputados”, Dia a Dia, n. 342, 10 a 16/10/1997. Também participaram da audiência o ministro da Aeronáutica, Lélio Lobo, o presidente da Associação Brasileira das Agências de Viagem, Ronaldo do Monte Rosa e o presidente do SNEA, Ramiro Tojal, além de representantes de familiares de vítimas de acidentes aéreos, associações de consumidores e outras entidades sindicais do setor. 205 Desde meados do segundo semestre de 1997, as empresas deram início a promoções. O caráter político destas iniciativas pode ser auferido no lançamento da campanha da Varig, na qual a empresa passaria a oferecer descontos de 40% em todos os vôos. Segundo o jornal O Globo: “A Varig lançará hoje seu programa, em grande estilo. Numa audiência com o ministro da Indústria, Comércio e Turismo, Francisco Dornelles, e o presidente da Embratur, Caio de Carvalho, a empresa anunciará um desconto de 40% para todos os trechos do país servidos pela Varig e a Rio-Sul.” A Tam, por sua vez, adotaria uma campanha ainda mais ousada, com a oferta de descontos de até 50% (limite permitido pelo DAC) – “Varig dará desconto de 40% em vôos no país”, O Globo, 24/9/1997. Em fins de 1997, a Varig lançaria o programa “Voa Brasil”, oferecendo tarifas com 50% de descontos em vôos noturnos para algumas das principais capitais brasileiras. Vasp e Transbrasil acompanhariam a onda de descontos. O jornal O Globo fez o seguinte comentário: “As companhias aéreas estão se antecipando à iniciativa do Governo de

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forma, o DAC ampliou a oferta de descontos para o limite de 65%, foram eliminadas as restrições relativas à operação nos aeroportos centrais206 e as empresas especializadas em vôos charter foram autorizadas a vender passagens aéreas desvinculadas dos pacotes terrestres. Com as medidas do DAC, as empresas ofereceriam descontos ainda maiores, numa disputa que levaria a um aumento superior a 20% no número de passageiros transportados.207 Mesmo com o incremento na atividade do setor, com aumento no número de passageiros transportados, aeronaves em operação e empregos, o relato da jornalista econômica Dora Kramer, no Jornal do Brasil, revela algumas das tensões enfrentadas pelos atores do mercado neste contexto: “O Departamento de Aviação Civil do Ministério da Aeronáutica (DAC), que estava condenado à extinção pela política de privatização e liberação de mercado em vigor há pelo menos seis anos – com forte resistência às mudanças em preparação no Governo para a área de transporte aéreo –, acaba de ganhar uma sobrevida. “Para não ser substituído por uma dessas agências reguladoras adotadas para toda a área de infra-estrutura, o DAC resolveu se antecipar e editar algumas medidas que o Governo tomaria mesmo, à sua revelia, brevemente. A liberação dos vôos charter, feita por intermédio de portaria divulgada ontem, é a última dessas medidas. Há

incentivar a maior concorrência no setor. Ainda neste verão deverão ser anunciadas medidas para estimular o turismo interno e, ao mesmo tempo, dar os primeiros passos em direção à desregulamentação dos serviços de transporte aéreo. Algumas ações deverão ser anunciadas pelo Governo já nos próximos dias, como a liberação dos vôos charter, o fim da barreira tarifária que impede descontos superiores a 50% no valor da passagem e o aumento da oferta de vôos promocionais. (...) As empresas estão preocupadas com a iniciativa do Governo de liberalizar os serviços de transporte aéreo. Recentemente, o presidente do sindicato que representa as companhias, brigadeiro Mauro Gandra (ex-ministro da Aeronáutica), advertiu que a desregulamentação programada pelo Governo deve ser feita com cuidado, para não prejudicar as companhias já instaladas no país. Isto porque está nos planos da Câmara de Infra-estrutura da Presidência da República a maior abertura a empresas estrangeiras da exploração de serviços no espaço aéreo brasileiro” – “Tarifa aérea a preço de ônibus”, O Globo, 15/12/1997. 206 “Vasp e Transbrasil farão vôos Congonhas-Brasília”, Jornal de Brasília, 13/1/1998. Com o incremento no tráfego aéreo destes aeroportos, no entanto, as autoridades aeronáuticas foram obrigadas a criar novas restrições, em função da capacidade física e operacional dos aeroportos (por exemplo, a disponibilidade de posições de estacionamento e a organização do tráfego aéreo nas operações de pouso e decolagem). Assim, foi adotado o sistema de slots, que consiste na definição de um espaço de tempo em que a aeronave deve pousar e decolar do aeroporto visando garantir que o aeroporto tenha um número de pousos e decolagens que não coloque em risco a segurança das operações. 207 “Concorrência com o ônibus” (Dossiê Aviação Brasileira), Gazeta Mercantil, 20/7/1998. Apenas para o mês de julho de 1997, estimava-se que 16% dos usuários seriam pessoas que viajariam de avião pela primeira vez. Segundo o jornal: “Trata-se de um número inédito de renovação de público, que reforça a tendência de popularização da aviação no País. ‘O processo de desregulamentação do setor deverá trazer para o mercado cerca de 15 milhões de consumidores em potencial’, afirma o consultor José Ernesto Marino.”

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duas semanas o departamento já havia tomado outras, como a que permite o aumento do percentual de desconto nas tarifas, de 65%.”208

Dora Kramer cita alguns episódios que demarcaram a pressão no sentido da abertura, dentre eles destacando-se uma exposição do Diretor-Geral do DAC, Massao Kawanami, junto à Câmara.

“O diretor defendeu com insistência a idéia de que estava tudo bem com a política de transporte aéreo e que não havia necessidade de mudanças. ‘O senhor está aqui para defender as companhias aéreas ou para resolver o problema do consumidor brasileiro?’, teria lhe perguntado, segundo testemunhas, o ministro Clóvis Carvalho. A partir daquele momento, o ministro da Aeronáutica, que vinha se manifestando publicamente contra a criação de uma agência reguladora para esta área, passou a reagir de forma mais discreta. Lélio Lobo teria percebido, segundo um de seus interlocutores nestas reuniões, que se não avançasse seria atropelado pela Casa Civil, tendo em vista, inclusive, o apoio da opinião pública aos adversários do DAC.”209 A coluna cita ainda uma reunião cuja pauta incluía a criação da agência. Neste caso, “Surpreendentemente, o Departamento de Aviação Civil compareceu ao encontro seguinte já com a minuta da portaria que libera as empresas aéreas para darem desconto maior nas passagens, medida definida como de alargamento da banda tarifária. Em seguida, uma dessas companhias recriou seu corujão, com preços mais baixos. E agora, para atingir a meta que tinha sido fixada para este verão, a liberação dos vôos charter. Com isto, as mesmas autoridades que, até novembro, estavam vislumbrando uma transformação radical neste setor já não vêm motivo para pressa. Sendo este um ano eleitoral, estando atendida parte da demanda por vôos mais baratos, e havendo ainda estudos para mudar também este ano o Código Brasileiro do Ar, com o objetivo de expandir de 20% para 40% a participação de empresas estrangeiras, o presidente Fernando Henrique Cardoso deverá também recuar e suspender planos de extinção do DAC.”210

208

Kramer, Dora. “Recuar para sobreviver”, Jornal do Brasil, 3/1/1998. Kramer, id.. 210 Kramer, id.. 209

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A postura dos militares da aeronáutica, então, passou da resistência à reivindicação da responsabilidade pelo aprofundamento da abertura. Um editorial escrito pelo então Diretor Geral do DAC, Masao Kawanami, traria o seguinte título: “DAC investe na sua política de flexibilização, faz aumentar a competitividade entre empresas e beneficia passageiros”. Neste, Kawanami substitui o conceito de “competição controlada” que havia caracterizado o período entre as décadas de 1960 e, a rigor, boa parte da década de 1990, por uma “competição saudável”, afirmando:

“Acredito que a política de flexibilização vai permitir que as empresas ofereçam melhores serviços, maior número de assentos e, acima de tudo, preços mais atraentes. O resultado já está sendo uma concorrência saudável, com o benefício direto dos que pretendem se utilizar deste meio de transporte.” 211 Com o incremento na competição entre as empresas e a redução nas tarifas, a proposta de abertura do mercado brasileiro às empresas estrangeiras perderia espaço na dinâmica política do setor.212 No entanto, o sucesso da ação do grupo liderado por Clóvis Carvalho estimularia as autoridades econômicas a avançar no sentido da abertura do mercado por outro caminho, através do aumento da participação do capital estrangeiro nas empresas brasileiras, dos 20% estabelecidos no Código Brasileiro do Ar em vigência para um limite de 49%213. Neste sentido, em entrevista ao jornal O Dia, o 211

DAC Notícias, n. 4, 1998, p. 1. Em publicação posterior, as autoridades do DAC fariam ainda a seguinte interpretação sobre o período: “As empresas aéreas acolheram as medidas adotadas pelo DAC e reduziram as tarifas. Como resultado, de fevereiro a agosto houve um aumento de vinte e cinco por cento no número de passageiros embarcados em vôos domésticos, tanto no segmento nacional quanto no regional. Somente no mês de julho, 250 mil novas pessoas viajaram de avião, passageiros que nunca haviam entrado em uma aeronave” (Ribeiro 2002: 146). 212 Segundo o informativo do sindicato dos aeronautas, um projeto de lei propondo alteração no Código Brasileiro do Ar de forma a permitir este tipo de operação chegou a ser apresentado pelo deputado Jorge Wilson (PPB-RJ), mas foi retirado de votação em novembro de 1997 após ter recebido parecer contrário do relator, deputado Aroldo Cedraz (PFL-BA) – Cf. Dia a Dia, n. 348, 21 a 27/11/1997. 213 “Comissão discute hoje novos passos da desregulamentação”, O Estado de São Paulo, 29/4/1998. Segundo a matéria: “A comissão interministerial que estuda a desregulamentação do transporte aéreo no País volta a se reunir hoje para discutir os próximos passos para aumentar o grau de competição no setor. O aumento da participação do capital estrangeiro nas empresas de aviação, medida que provoca forte polêmica dentro do Governo, não foi incluído na pauta da reunião. (...) O Ministério da Fazenda e a Casa Civil da Presidência da República desejam elevar o atual limite de 20% para 49% do capital das empresas, mas enfrentam forte resistência do Ministério da Aeronáutica, que teme a desnacionalização das companhias aéreas. A mudança teria de ser feita por um projeto de lei, já que o teto para a participação do capital estrangeiro foi estabelecido pelo Código Brasileiro de Aviação, instituído por lei, aprovada em 1986 pelo Congresso.”

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secretário de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda, Bolívar Moura Rocha, defendeu a ampliação da participação do capital externo nas empresas do setor, tendo se posicionado, no entanto, contrariamente à abertura do mercado às empresas estrangeiras, sob o argumento de que se tratava de um setor estratégico, assim como se dava em outros países: “Alguns grupos de atividades são considerados estratégicos. Por exemplo, a indústria de transporte aéreo. A União Européia, que promove liberações de transporte aéreo, tem restrições. A Lufthansa pode fazer vôos entre Paris e Lyon e a Air France pode levar passageiros de Milão a Roma. Mas a Varig não pode fazer isso, tampouco a American Airlines. Há um grau de proteção à indústria regional, caso da União Européia. Isso justifica a restrição ao capital estrangeiro e existe aqui entre nós. (...) O Governo não pensa em abrir a cabotagem, ou seja, a possibilidade de uma empresa estrangeira vir e levar passageiro de uma cidade brasileira para outra. Não conheço nenhum país com mercado interno relevante que faça isso. Mas o Governo estuda aumentar o teto de participação do capital estrangeiro nas empresas nacionais, que hoje é de 20%, com o pressuposto de que o aporte de capital estrangeiro poderá levar a uma maior solidez dessas empresas, maior qualidade e preços inferiores aos que estão sendo cobrados. Mas ainda não há prazo nem o novo teto.”214 O impacto da proposta parece ter sido diferenciado nas empresas brasileiras. Tam e Varig se posicionaram contrariamente ao aumento para um limite de 49%215, enquanto a Vasp e a Transbrasil chegaram a realizar consultas junto às autoridades econômicas a respeito de possíveis associações com empresas estrangeiras. Com a aproximação das eleições presidenciais de 1998, no entanto, a agenda da abertura perderia força.216 Com efeito, ainda em agosto de 1998, a Gazeta Mercantil publicaria 214

“Próximo alvo são empresas aéreas” (entrevista com Bolívar M. Rocha), O Dia, 1/2/1998. A continuação da matéria citada na nota 91 diz: “O aumento da participação do capital externo no setor de 20% para 49% é considerado muito próximo do controle pelo vice-presidente da Tam, Luiz Eduardo Falco. ‘Acho que podia aumentar um pouco, mas 49% é muito’, afirma. ‘Fica muito fácil fazer um contratinho de gaveta e conseguir o controle’. Falco diz que outros países que permitiram esse tipo de participação do capital externo voltaram atrás depois de algum tempo. ‘O País precisa analisar se vale a pena mudar a lei para salvar uma ou duas empresas e comprometer o mercado no futuro’, diz.” O presidente da Varig, Fernando Pinto, se manifestaria por ocasião da apresentação de duas aeronaves que serviriam à equipe brasileira que participaria da Copa do Mundo da França: “‘Se o Governo autorizar isso, vai estar na contramão das normas vigentes em outros países. Nos Estados Unidos, por exemplo, o máximo de participação de capital das empresas de outros países é de 20%. Eles são muito claros neste sentido, não há flexibilidade’, argumentou” – “Varig é contra maior presença estrangeira”, Jornal do Commercio, 8/5/1998. 216 “Abertura depende das eleições”, Gazeta Mercantil, 20/7/1998. Segundo a matéria: “Duas empresas aéreas nacionais já fizeram consultas à Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça 215

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reportagem sobre o assunto, afirmando que a ampliação do capital estrangeiro estaria adiada por tempo indeterminado.217 4.4. Conclusões A análise do período compreendido entre a eleição de Fernando Collor e o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso parece confirmar a tese da resistência e adesão para explicar o comportamento dos atores ligados à aviação comercial em relação à abertura do mercado. Especialmente no caso das autoridades aeronáuticas e das empresas, aliou-se um discurso genericamente favorável à abertura e ao aumento da competição no mercado, enquanto na prática, postergou-se pelo maior tempo possível a eliminação dos controles que visavam evitar uma competição direta entre as empresas. Foi apenas sob a ameaça de abertura do mercado doméstico para empresas estrangeiras e da transferência do controle do setor para um órgão civil que o DAC, até 1997 defensor de uma liberalização bastante cautelosa, passou a reivindicar a iniciativa pela abertura do setor. No caso dos trabalhadores, prevaleceu também um discurso que não era, por princípio, contrário ao aumento da competição218, ao mesmo tempo em que estes atores pressionaram o DAC e as empresas, certamente sem atingir sucesso absoluto, no sentido de não permitir que o aumento da competição levasse à precarização das condições de trabalho, aí incluída a questão da segurança das operações. Na primeira fase da abertura, relativa ao governo Collor, pode-se dizer que prevaleceu uma retórica da competição por parte do grupo que adquiriu o controle acionário da Vasp, tendo à frente Wagner Canhedo. Num primeiro momento, a posição de Canhedo na defesa de uma liberalização radical do mercado parecia fazê-lo uma interessadas em se associar com companhias estrangeiras. A Vasp sinalizou a possibilidade de um casamento com a americana Continental e a Transbrasil com a Delta Airlines, também dos Estados Unidos. Na SDE, no entanto, ninguém sabe ao certo quando será dado o sinal verde para que as operações sejam concretizadas. (...) O ministro da Casa Civil, Clóvis Carvalho, admitiu a interferência das eleições no assunto.” 217 Segundo a reportagem, o secretário de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda negou mais uma vez a possibilidade de abertura do mercado doméstico às empresas estrangeiras. Quanto à participação do capital externo, “Bolívar Moura lembrou que o Código Brasileiro de Aeronáutica já permite que as empresas tenham até 20% do capital votante nas mãos de estrangeiros, ‘e, pelo que se sabe, isso ainda não ocorre’. Assim, não há motivos, neste momento, para se elevar a participação acionária dos estrangeiros até 49% das ações.” 218 Vale lembrar os argumentos do então presidente do SNA, José Caetano Lavorato, na campanha do “Pássaro Civil” durante a Constituinte (ver pp. 98-100).

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espécie de “tipo ideal” do novo empresário brasileiro, simbolizando um estilo empreendedor, ousado e, principalmente, descompromissado com os vícios do modelo dito “cartorial” de capitalismo prevalecente até então. Com menos de um ano à frente da Vasp, no entanto, Canhedo revelou estar ancorado em vínculos diretos com os mesmos personagens que protagonizariam os escândalos que levariam ao impeachment de Fernando Collor, em 1992. Embora tenha sido prejudicada com a perda da exclusividade no segmento internacional patrocinada pelas autoridades, a própria Varig continuaria perseguindo estratégias de aproximação com o núcleo do poder político. E apesar da conjuntura de crise, a empresa manteve-se presa ao imaginário de “Varig grande” que havia construído no contexto dos governos militares. No sentido oposto da imagem que tentou projetar antes de ser eleito, de ruptura com as práticas tradicionais da política brasileira (corrupção, clientelismo, capitalismo “cartorial”), o governo Collor parece ter se caracterizado muito mais por uma linha de continuidade nas relações entre Estado e agentes privados, com a reprodução, senão o reforço, das referidas práticas tradicionais. O meio caminho entre o discurso de teor neoliberal, preconizando o afastamento do Estado da dinâmica econômica, e as práticas políticas tradicionais, conferiria a esta primeira experiência das reformas para o mercado um caráter ambíguo, inconsistente, limitado a um jogo de tentativa e erro, de que o maior emblema seria a reviravolta provocada pela Vasp privatizada, que se lançaria em uma estratégia de competição agressiva para logo em seguida se retrair, incapaz de honrar seus compromissos financeiros. A pressão no sentido da liberalização do mercado foi, desta forma, insuficiente para fazer frente à resistência das autoridades aeronáuticas e das próprias empresas. Neste sentido, a primeira fase da abertura do setor, embora tenha levado a algumas mudanças concretas, especialmente na concessão das rotas internacionais, se caracterizou mais pela difusão do discurso liberalizante do que pela liberalização propriamente dita do mercado. O retorno do controle sobre os reajustes tarifários para o DAC e o almejado acesso às rotas internacionais para a Vasp e a Transbrasil, ao contrário das expectativas, não resolveram a situação financeira precária das empresas, o grupo Varig/Cruzeiro incluído. Assim, as principais empresas do mercado passariam nos anos seguintes por uma crise aguda. A crise levou os sindicatos de trabalhadores a pressionar as

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autoridades governamentais a implementar, em dois momentos, a Câmara Setorial da Aviação Comercial. Nas duas vezes em que se tentou criar as Câmaras, no entanto, não se chegou a nenhum resultado concreto, esbarrando-se na resistência das autoridades aeronáuticas e empresas em relação à iniciativa. Na segunda oportunidade, especificamente, pesou a chegada ao poder de autoridades econômicas orientadas por uma política avessa à existência de fóruns de interlocução entre agentes estatais e agentes privados, retirando as Câmaras da cena política. O mercado de aviação comercial encontraria uma fase de recuperação com a introdução do Plano Real, mas dentro da própria filosofia de ajuste de que o plano fazia parte, a agenda da abertura voltaria à tona. Motivado por uma sucessão de iniciativas políticas de entidades dos consumidores, lideranças políticas e pelas próprias autoridades econômicas, o Poder Executivo daria início a um embate político com as autoridades aeronáuticas e empresas visando reduzir as tarifas aéreas. Pressupondo que o caminho para fazê-lo seria o aumento da competição no setor, atores internos e externos ao governo chegaram a colocar em discussão a abertura do mercado doméstico às empresas estrangeiras. E de forma a minar a resistência dos militares da aeronáutica, introduziram na pauta do setor a criação de uma agência reguladora civil em substituição ao DAC. Ao contrário do sugerido pela teoria econômica convencional, portanto, o incremento na oferta de descontos não foi conseqüência da eliminação dos dispositivos regulatórios, mas da pressão política do Poder Executivo. Neste sentido, a “guerra tarifária” de 1998, mais do que uma tendência natural da abertura, foi resultado de um embate em que empresas e autoridades aeronáuticas tiveram que ceder para preservar, no caso das primeiras, o próprio mercado, e no caso das segundas, o controle sobre o setor. Pode-se dizer que as medidas de abertura forçaram mudanças na estrutura do mercado, com a entrada de novos atores – com destaque para a Tam – e o aumento na concorrência. A redução no valor das passagens e a conseqüente introdução de um grande número de usuários que passaram a viajar de avião, a maior oferta de vôos e o conseqüente incremento nas frotas e no número de empregos podem ser considerados, isoladamente, um resultado positivo da ação do núcleo do Poder Executivo e das autoridades econômicas sobre o setor. No entanto, os próprios analistas do mercado colocaram em questão a sustentabilidade do tipo de concorrência que prevaleceu ao

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longo de 1998219. A questão era se a “guerra de tarifas” não levaria a uma redução na receita, apesar do aumento no volume de passageiros transportados. Assim, apesar dos ganhos para os consumidores, e da eventual vitória do núcleo do Executivo sobre os atores do setor, a questão que se colocava era se a situação do mercado não levaria a uma perda de rentabilidade generalizada, prejudicando as empresas. Independente do resultado financeiro das empresas, o saldo político deste período aponta para uma crescente polarização entre os atores ligados à aviação comercial e o núcleo do Poder Executivo, eventualmente respaldado por parte da comunidade política, consumidores e outros grupos. O estilo tecnocrático de gestão levou à adoção de medidas gestadas sem a participação dos atores por elas afetados, como no caso dos trabalhos liderados por Clóvis Carvalho. A adoção do referido estilo, no entanto, não aboliu por completo os contato entre grupos de interesse e autoridades220. Assim, pode-se dizer que, ao contrário da experiência do governo Collor, o governo Fernando Henrique foi capaz de avançar um projeto muito mais articulado e coerente de reformas. O apoio da opinião pública, motivado pela percepção de que as tarifas aéreas eram excessivamente caras no Brasil, contribuiria para conferir ao governo legitimidade suficiente para impor às autoridades aeronáuticas e às próprias empresas a agenda da abertura. As empresas, que vinham de um processo de recuperação desde a introdução do Plano Real, puderam suportar as condições impostas pela “guerra tarifária” de 1998. Com a reeleição de Fernando Henrique, e a mudança na política cambial em janeiro de 1999, as perdas relativas à “guerra tarifária” se multiplicaram na proporção da desvalorização do real frente ao dólar. A partir de então, o foco da dinâmica política sairia do movimento de resistência e adesão à abertura, e passaria a girar em torno do diagnóstico e das soluções para a crise que se instalaria no setor, desta vez abarcando a totalidade das empresas. Eventualmente, a questão da substituição do DAC por uma agência civil voltaria à baila, tornando as tensões entre o núcleo do Executivo e as autoridades econômicas de um lado, e os atores ligados ao mercado do outro, ainda mais

219

“Guerra de preços preocupa mercado”, Gazeta Mercantil, 15/5/1998. As empresas, individual ou coletivamente, assim como os trabalhadores, não deixaram de ter acesso às autoridades. Estes contatos foram marcados, no entanto, por um caráter pontual, visando atender questões mais imediatas. Um debate de natureza mais ampla, sobre os rumos do setor, seria sistematicamente vetado. 220

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fortes. A tendência, então, seria uma reorganização das posições relativas, num movimento que será discutido nos dois próximos capítulos.

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5. Novamente o debate sobre a crise: as arenas, os atores e suas posições (1999-2002) A crise que acometeu as principais empresas do mercado a partir da desvalorização cambial de janeiro de 1999 foi um dos temas principais da dinâmica política no setor de aviação comercial no final da década de 1990.221 Neste contexto, é possível perceber importantes mudanças nas orientações dos atores, que travam novas alianças, assumem novas bandeiras e redirecionam o foco de sua atuação para novos espaços. O poder público revelou-se cada vez menos homogêneo, evidenciando muitas vezes posições antagônicas: Executivo e Legislativo; área econômica (“monetaristas”) e setores ligados à produção (“desenvolvimentistas”); militares e civis. Os empresários, por sua vez, ora lançaram mão de antigas estratégias em sua intervenção política, ora buscaram formas de atuação mais modernas e condizentes com o amadurecimento democrático. E os trabalhadores, consolidando sua participação na arena política institucional, não só seriam reconhecidos como interlocutores, como conseguiram avançar algumas de suas posições, a despeito do quadro de desemprego e retração salarial.

5.1. O Poder Executivo: “Monetaristas” x “Desenvolvimentistas”, “Militares x Civis” Ao contrário do primeiro mandato de Fernando Henrique, sustentado por um amplo consenso em torno da política econômica de estabilização, o segundo mandato viria a abrir espaço para opiniões dissidentes no interior do governo e em sua base de sustentação. As dissidências eventualmente se transformaram em polêmicas, como a que opôs grupos favoráveis à criação de políticas “desenvolvimentistas” e aqueles favoráveis à manutenção do foco nas políticas de estabilização – “monetaristas”. Grosso modo, esta polêmica colocava de um lado as autoridades ligadas à área econômica – Ministério da Fazenda, Banco Central e Ministério do Planejamento – e de outro, ministérios ligados à produção, como o Ministério do Desenvolvimento, Transportes e Turismo. 221

O outro, que diz respeito à transferência do controle do setor do DAC para uma agência civil será discutido no próximo capítulo.

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Como lembra Eli Diniz, o surgimento desta cisão foi favorecido pela crescente instabilidade econômica e pelo alto grau de incerteza, derivados da vulnerabilidade do país frente às recorrentes crises internacionais vividas desde a implementação do Plano Real. Neste sentido, grupos ligados ao empresariado que pertenciam à base do governo no Congresso, assim como membros da direção do PSDB, partido de Fernando Henrique, viriam a manifestar-se publicamente a favor de políticas de fomento ao desenvolvimento (DINIZ 2000: 96-100).222 O debate extravasaria os limites do governo e alcançaria ampla repercussão na imprensa, consolidando a existência de duas vertentes claras que disputariam a orientação do governo vis-à-vis os setores da economia. Ainda que a seqüência de artigos e pronunciamentos que alimentaram a polêmica tenham se concentrado num período relativamente curto, no primeiro semestre de 1999, a cisão permaneceria latente, definindo o eixo em torno do qual se desenrolaria a dinâmica política do Poder Executivo. No que diz respeito ao setor aéreo, uma prova de que uma postura menos ligada à visão da área econômica poderia ganhar espaço no governo foi o surgimento, em abril de 1999, da discussão em torno de um programa de ajuda financeira para as empresas. Sob coordenação do Ministro da Casa Civil, o programa envolveria ainda o Ministério da Fazenda, o Ministério da Defesa e o Comando da Aeronáutica, tendo em vista a criação de um fundo para auxiliar as empresas ante o endividamento de boa parte delas.223 O programa de ajuda, no entanto, não se concretizou, e uma ação mais consistente no sentido da implementação de medidas que poderiam ser consideradas destoantes da visão “monetarista”, como a esperada ajuda do governo através de um pacote de incentivos, isenção fiscal ou aporte de recursos não se concretizaria naquele

222 Com base em jornais do período, Eli Diniz apresenta os principais atores desta polêmica: de um lado, a área econômica (Pedro Malan, Amínio Fraga, Pedro Parente e Gustavo Franco), e de outro, deputados pertencentes à base de apoio ao Executivo oriundos do empresariado (Carlos Eduardo Moreira Ferreira, do PFL-SP e Emerson Kapaz do PSDB-SP, entre outros), e lideranças do PSDB como Luiz Carlos Mendonça de Barros e Luiz Carlos Bresser Pereira, que não participariam do governo no período 19992002. 223 Dia a Dia, n. 399, 16 a 30/4/1999, p. 4. Na mesma nota, no entanto, é citado o líder do governo no Congresso, deputado Arnaldo Madeira (PSDB-SP), que disse nunca ter ouvido falar no assunto.

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contexto. Uma estratégia com algum teor “desenvolvimentista” se limitaria à criação de um “grupo de elite” que trataria da crise do setor dentro do Ministério da Defesa.224 A opção pelo mercado como mecanismo de resolução dos problemas do setor permaneceria sendo a orientação predominante nas políticas governamentais. Esta tendência se confirmou quando a Vasp, em mais uma de suas sucessivas crises desde a privatização, esteve ameaçada de encerrar suas atividades. Pressionando o poder público para que realizasse algum tipo de intervenção na empresa paulista, um editorial do informativo do SNA fez a seguinte apreciação relativa à postura do governo:

“Tudo indica que, se depender do governo, a empresa quebra. Setores do próprio governo declaram que cabe aos empresários a responsabilidade de apresentar saídas para o setor – uma sugestão clara de fusão. Ou seja: o Governo acha que o ‘mercado’ resolverá o problema como se ele ‘Governo’ não fosse uma variável decisiva do próprio mercado, na medida que regulamenta preços, determina políticas, tarifas etc..”225 Nesta conjuntura, duas propostas ganharam visibilidade dentro e fora do governo: a fusão entre as empresas, conforme relatado acima, e a abertura do mercado interno para empresas estrangeiras. A fusão seria justificada pela incapacidade do mercado brasileiro de acomodar as quatro grandes empresas em operação (Varig, Vasp, Transbrasil e Tam), e pela necessidade das empresas brasileiras ganhar competitividade frente às concorrentes estrangeiras, especialmente as norte-americanas.226 A segunda proposta vinha ganhando adeptos sob o argumento de que as tarifas domésticas eram extremamente elevadas em comparação com as tarifas internacionais. Assim como em outros setores da economia, esperava-se que a entrada de empresas internacionais

224

Conforme relatou o Secretário de Organização Institucional do Ministério da Defesa, José Augusto Varanda, em reunião com a direção do SNA – Cf. Dia a Dia, n. 431, 17 a 30/3/2000, p. 5. 225 Dia a Dia, n. 434, 28/4 a 4/5/2000, p. 1. Esta também foi a posição adotada pelo Secretário de Organização Institucional do Ministério da Defesa, José Augusto Varanda, na reunião citada na nota n. 4. 226 Posicionamento neste sentido foi expresso por membros de setores-chave do governo, como o presidente do BNDES, Andrea Calabi (“Calabi: empresas aéreas vão ter que se unir”, O Globo, 10/8/1999, p. 22), pelo titular da Secretaria de Direito Econômico, Rui Coutinho (“Governo propõe dois grupos aéreos”, Folha de São Paulo, 7/8/1999, p. 8) e o Diretor-Geral do DAC, Marcos Antônio de Oliveira (“Lei não restringe fusão no ar, diz DAC”, Folha de São Paulo, 17/8/1999, p. 2-11).

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aumentasse a competição no mercado, e eventualmente levasse à redução nas tarifas.227 Do ponto de vista dos militares, a opção parecia ser clara no sentido de um apoio ostensivo às empresas brasileiras, havendo espaço inclusive para um discurso nacionalista, e eventualmente anti-globalização. O Diretor-Geral do DAC, Marco Antônio de Oliveira (15/12/1998 a 22/02/2000), por exemplo, manifestou-se neste sentido ao afirmar:

“O DAC tem recomendado que o Governo promova todas as modificações estruturais necessárias ao fortalecimento das nossas empresas aéreas. As empresas são instituições da sociedade e o transporte aéreo é segmento estratégico da nação.”228 O chefe do Comando da Aeronáutica, Brigadeiro Walter Bräuer, foi além. Em discurso numa cerimônia anual realizada pelas empresas aéreas, o oficial defendeu que seria preciso tornar a aviação brasileira “sólida bastante para resistir às intempéries que nos chegam com os ventos da globalização, versão moderna de colonialismo habilmente travestido de modernismo.” O informativo do sindicato das empresas aéreas, onde foi relatado o discurso, registrou:

“Braüer foi enfático ao classificar de incautos aqueles países emergentes que acreditarem nos mercados sem barreiras e no fim da história do Estado-Nação. ‘De nossa competência dependerá o espaço de autonomia que nos reserva o futuro’, disse.”229 Naquele momento, os militares apostaram numa estratégia que envolvia a aproximação e o debate com os atores do setor, na mesma linha das antigas CONACs,

227

A proposta é mencionada por dois membros do governo em encontros com sindicalistas. O presidente do BNDES, Andrea Calabi, recebeu a direção do SNA em fins de 1999, e declarou que não era intenção do governo abrir os céus brasileiros às “megatransportadoras” internacionais (Dia a Dia, n. 419, 3 a 9/12/1999, p. 3). Por outro lado, o presidente da Embratur, Caio Carvalho, afirmou em entrevista que embora não fosse pessoalmente a favor da abertura, havia setores do governo que não descartavam essa possibilidade (Dia a Dia, n. 487, 26/5 a 8/6/2000, p. 2). A abertura do mercado doméstico às empresas estrangeiras chegou a ser objeto de um projeto de lei do deputado Jorge Wilson (antigo PPB-RJ). O projeto, no entanto, recebeu parecer contrário do deputado Aroldo Cedraz (PFL-BA) na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara, conforme relatou o informativo Dia a Dia (n. 348, 21 a 27/11/1997, p. 3). 228 Informativo SNEA, n. 11, agosto 1999, p. 3. 229 “Crise une empresários e autoridades”, Informativo SNEA, n. 14, novembro 1999, p. 2.

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para orientar as políticas governamentais. Neste sentido, o DAC anunciou o lançamento da “Reunião Nacional de Aviação Civil”, RENACI 2000, fórum em que os militares propunham dar início a uma profunda transformação no setor aéreo. Considerado “o evento que vai modernizar a aviação civil brasileira”, este momento se diferenciaria das antigas CONACs por abranger toda a aviação civil, e não apenas a aviação comercial. O novo fórum incluiria, além das empresas, sindicatos de trabalhadores e associações de funcionários, entidades ligadas à formação dos profissionais (como aeroclubes) e segmentos de apoio à atividade.

“É neste encontro que o DAC vai poder ouvir a comunidade aeronáutica, estabelecer diálogos na busca de soluções. A idéia é criar condições para a revisão da política de transporte aéreo, para o aprimoramento do aparelho do Estado na gestão da aviação civil e, principalmente, para a garantia da segurança aérea. A reunião vai acontecer da forma mais democrática e aberta possível. O DAC ouvirá todos os segmentos do setor – empresas aéreas, sindicatos, associações, escolas, aeroclubes, entidades, entre outros –, que deverão ter participação ativa no evento.”230 No início de 2000, no entanto, foi anunciado o adiamento da RENACI. O adiamento foi justificado pelo DAC por um pedido das empresas para que tivessem mais tempo para preparar os “working papers”231. Com o passar do tempo, no entanto, o evento deixou de ser citado nos informativos do DAC. Embora não tenha existido um pronunciamento oficial para o cancelamento, é possível sugerir que a razão pela qual ele não aconteceu passa por algumas circunstâncias referentes ao contexto em que foi proposto. A realização de encontros entre o DAC e os agentes do mercado para discutir a política do setor era uma prática consagrada desde os anos 1960 através das CONACs,

230

DAC Notícias, n. 16, 1999, p. 5. Um informativo do SNEA citou o Diretor-Geral do DAC Marco Antonio de Oliveira, que explicou a proposta e a metodologia a ser empregada no encontro: “A proposta, segundo ele (Marco Antonio Oliveira), é rever procedimentos, espelhar os anseios da comunidade aeronáutica, discutir pontos conflitantes e registrar resultados. O objetivo final é modernizar atividades, aprimorar a gestão da aviação civil, ajustar normas e promover uma reformulação da aviação civil brasileira. Os integrantes do fórum serão reunidos em grupos pré-selecionados, que trabalharão com base em ‘working papers’ oriundos do DAC e dos demais segmentos. Cada reunião terá um diretor e um relator. Ao final de cada trabalho será elaborado um Relatório Preliminar, contendo recomendações para serem encaminhadas ao presidente da Renaci” (“A palavra do presidente”, Informativo SNEA, n. 11, agosto 1999, p. 1). 231 DAC Notícias, n. 17, 2000, p. 8.

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cuja última versão ocorrera em 1991. Como já vimos, porém, este tipo de instância de interlocução entre Estado e agentes econômicos fora abolida no governo Fernando Henrique em prol de um “estilo tecnocrático de gestão”. A não realização da RENACI, neste sentido, se explicaria pela sua incompatibilidade com o padrão de relacionamento do próprio núcleo do Poder Executivo vis-à-vis agentes econômicos, revelando a predominância do estilo tecnocrático. Outro fator que deve ter contribuído para o esquecimento a que foi relegado o encontro pode ser um certo reaquecimento vivido pelo mercado durante o ano 2000, que pode ser medido em dois editoriais do então Diretor-Geral do DAC Venâncio Grossi:

“Os dados estatísticos relativos às quatro principais companhias aéreas, em 2000, apontam um crescimento da demanda da ordem de 13% no segmento doméstico e 5% no internacional, comparado com 1999. E isto não é tudo. O mês de dezembro de 2000 superou todas as expectativas, com taxas de crescimento de demanda de 17% e 7%, para os segmentos domésticos e internacional, respectivamente. “Estes números representam, sem dúvida alguma, os principais motivadores para a realização de investimentos no transporte aéreo nacional, notadamente da ordem privada, destinados à aquisição de novos equipamentos, à renovação da frota e até mesmo à criação de novas empresas aéreas. O aumento da competitividade é o resultado direto, o que implica serviços mais eficientes e baratos para o público usuário, foco central da política de desenvolvimento do transporte aéreo comercial brasileiro, sem perder de vista a imprescindível segurança de vôo.”232 “Atualmente, o que se vê é um panorama de segurança e prosperidade. Novas empresas aéreas surgem. Uma grande malha aeronáutica integra o país de norte a sul e de leste a oeste, atendendo às exigências de uma economia em expansão; vastas camadas da população estão adotando o avião como meio de transporte; as aviações desportiva e especializada estão em pleno desenvolvimento; os segmentos de carga aérea doméstico e internacional vêm crescendo a cada dia.”233 O mesmo Venâncio Grossi, no entanto, exporia em outra oportunidade os pontos que viriam a fazer parte do debate sobre a “crise na aviação”, dando espaço para uma avaliação dos problemas de natureza estrutural do setor. Grossi começa falando dos efeitos negativos da “Política de Flexibilização”:

232 233

DAC Notícias, n. 19, março de 2001, p. 2. DAC Notícias, n. 20, junho de 2001, p. 2.

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“Naturalmente, num momento inicial desta livre competição as empresas procuraram garantir a sua fatia de mercado (market share). Infelizmente, a evolução da demanda de passageiros declinou rapidamente com a desvalorização cambial ocorrida no primeiro semestre de 1999, quando alguns ajustes já estavam sendo implementados para a recuperação da indústria de transporte aéreo. A continuada perda de rentabilidade, que tem raízes no desempenho da economia nacional vem trazendo impactos negativos para a recuperação do setor”.234 A utilização intensa de insumos cotados em dólar, num cenário de desvalorização cambial, e a carga tributária seriam dois entraves significativos ao desenvolvimento do mercado. Por outro lado, Grossi chama atenção para um ponto da “desregulamentação” de interesse das empresas que não havia avançado: o fim do controle sobre os reajustes nas tarifas. “Além dos fatores conjunturais já mencionados, as empresas são penalizadas pela dolarização dos seus insumos básicos e pelos elevados encargos fiscais, tributários e financeiros. (…) “Há esforços, no âmbito do Governo Federal, de forma a solucionar estes problemas estruturais com a aprovação da reforma tributária e de apoio à indústria no alongamento do perfil da dívida pelo REFIS e outros instrumentos. Afinal, caberá às nossas empresas parcela fundamental ao equacionamento das dificuldades atuais na adoção, com discernimento e prudência, de ações com caráter estratégico e mercadológico no redirecionamento de seu próprio futuro como entidades privadas. “No espectro da desregulamentação tarifária, a indústria ainda aguarda a sua total liberalização, com a retirada da última restrição decorrente do limite superior da tarifa. (…) “A experiência internacional tem mostrado que os caminhos ditados pelas leis do mercado e pela livre competição trazem avanços de caráter permanente. Às empresas cabem as decisões estratégicas e de mercado. As iniciativas de fusões, acordos, aquisições, ou saída de empresas devem ser originadas nessas entidades privadas. Cabe ao Governo, através de sua Agência Reguladora, o papel de auxiliar e confirmar as iniciativas que tragam benefícios para o setor, à economia nacional e à sociedade como um todo. (…) “Portanto, apesar das dificuldades momentâneas, existem claros sinais de recuperação da economia nacional, que conjugados aos ajustes setoriais, ora em andamento, nos permitem antever, para o segundo

234

Publicado na seção “Opinião”, Informativo SNEA, n. 21, junho 2000, p. 4.

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semestre do corrente ano, possibilidades de novamente as empresas aéreas brasileiras voltarem a voar em céus azuis.”235 O reaquecimento da aviação comercial ao longo do ano 2000, como seria de se esperar, acompanhou o reaquecimento da economia brasileira até o ponto em que esta, contagiada por crises externas (notadamente a da Argentina) e o episódio do “apagão”, já em 2001, levaram a um novo quadro de retração econômica. O setor de aviação comercial, mais uma vez, se viu em crise, situação que viria a ser agravada pelos atentados terroristas nos Estados Unidos, no segundo semestre de 2001. Com o aprofundamento da crise, que levaria à paralisação das atividades de uma das “quatro grandes” empresas brasileiras, a Transbrasil, o governo abriu espaço para a criação do Fórum de Competitividade da Aviação.236 A cerimônia de abertura do fórum ocorreu

em

23/1/2002,

com

a presença de Sérgio Amaral (ministro

do

Desenvolvimento), Pedro Malan (ministro da Fazenda), José Augusto Varanda (representante do Ministério da Defesa), dirigentes das empresas, sindicatos de trabalhadores e o Diretor-Geral do DAC, Venâncio Grossi. A criação deste fórum, depois de anos de predomínio da orientação “monetarista”, revela a perda de força da ortodoxia representada pela área econômica. A mudança no sentido de uma abordagem mais “desenvolvimentista”, no entanto, revela também um aprendizado no sentido do afastamento em relação a práticas que foram consideradas nocivas ao conjunto da sociedade no passado. Neste sentido, vale mencionar a apreciação feita no informativo do SNA, segundo o qual teria ficado claro que “o objetivo do Fórum não é salvar as empresas falidas, nem distribuir dinheiro às empresas, mas sim torná-las competitivas.”237 Ao contrário das Câmaras Setoriais do início da década, o Fórum trouxe resultados concretos para o setor. O informativo do SNA relatou uma reunião entre a

235

Id., p. 4. Segundo relato no informativo do SNA, em reunião com o Secretário Executivo do ministério, o Coordenador de Competitividade Sistêmica e técnicos, um grupo de trabalho do Ministério do Desenvolvimento havia convocado aeronautas e aeroviários para participarem da metodologia do Fórum. “A comissão deixou bem claro que este fórum não tem objetivo de liberação de verbas para as empresas aéreas. Este fórum não é para salvar a Transbrasil, ou outras empresas que estão em situação financeira crítica, e sim para discutir problemas estruturais do setor” (Dia a Dia, n. 479, 23/1/2002, p. 3). 237 Dia a Dia, n. 480, fevereiro de 2002, p. 7. 236

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presidente da entidade, Graziella Baggio, e o coordenador do Fórum de Competitividade da Aviação, Carlos Macedo. Neste relato, são delineadas as principais medidas que o fórum viria a viabilizar, sem deixar de mencionar as resistências internas ao próprio governo.

“O Governo vem adiando desde o início do mês de julho o anúncio de um conjunto de medidas tributárias e aduaneiras que podem aliviar a crise do setor aéreo. A razão para a demora seria a resistência da Secretaria da Receita Federal em abrir mão de R$ 140 milhões de arrecadação de impostos por ano. (…) O pacote de socorro às empresas aéreas é resultado das discussões do Fórum de Competitividade da Aviação Civil que, desde janeiro deste ano, vem formulando propostas para tirar o setor aéreo do buraco.”238 Apesar da resistência da área econômica, o pacote foi lançado no início de setembro de 2002, através da Medida Provisória n. 67, contendo as seguintes medidas: perdão da dívida do PIS e da Cofins relativas ao período 1988-1999; assunção pelo governo do seguro anti-terrorismo; extinção do pagamento de Imposto de Renda retido na fonte (até dezembro de 2003); redução de 7,05% para zero da alíquota do IOF sobre o seguro de responsabilidade civil; ampliação dos casos de isenção do imposto de importação de peças de reposição de aeronaves; diminuição do prazo de desembarque de peças importadas e abertura de crédito pelo BNDES.239 Reportagem da revista Isto É Dinheiro fez o seguinte registro por ocasião do anúncio da medida:

“Em todo o mundo, as companhias de aviação mergulharam na maior crise de sua história, desde 11 de setembro. A começar pelos Estados Unidos, que injetaram há um ano US$ 15 bilhões, os países europeus também se preocuparam em ajudar suas companhias. O governo brasileiro relutou em aderir a esse movimento, mas, finalmente, na semana passada, anunciou um pacote de medidas para o estratégico setor aéreo, que deve resgatar a competitividade das companhias brasileiras. Entre perdões de dívidas antigas e isenções fiscais, a ajuda deve ultrapassar R$ 800 milhões. (…) ‘As companhias vão ficar numa situação muito melhor’, disse à DINHEIRO o ministro Sérgio Amaral, do

238 239

Dia a Dia, n. 483, julho e agosto 2002, p. 5. As medidas são analisadas, de uma perspectiva econômica, por Rego Fiho (2002).

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Desenvolvimento. ‘O governo já fez a sua parte, fez aquilo que é justificável fazer.’”240 O pacote, no entanto, não resolveria todos os problemas do setor.241 Ainda assim, revelaria uma nova postura, ainda que já no final do governo, em relação aos agentes econômicos. Esta tendência é reforçada pelo evento que encerra o período em análise, com a ameaça de paralisação das atividades da maior empresa do setor, a Varig. Em fins de 2002, a empresa gaúcha se veria em situação semelhante à da Transbrasil, e neste momento, evidenciou-se novamente a relativa perda de espaço da área econômica, mostrando como a postura contrária ao envolvimento do poder público no mercado perdeu força. Como revela a leitura de alguns artigos publicados na imprensa durante os dois últimos meses de 2002, a paralisação ou não das atividades da Varig dependeu de intensas negociações políticas, que se tornaram inevitáveis num contexto de transição para um novo governo, em se tratando de uma empresa com um importante capital político, a despeito de sua situação financeira debilitada. Endividada e sem perspectivas de honrar seus compromissos, discutia-se um plano de recapitalização da Varig com a participação do BNDES, dos credores e outros grupos que assumiriam a maior parte do controle acionário da empresa242. A finalização do acordo, no entanto, dependeria de uma sinalização positiva por parte do acionista majoritário, a Fundação Ruben Berta. Os representantes da fundação, no entanto, se recusaram a assinar o “memorando de entendimento” que definiria o acordo, rompendo as negociações com os credores. O impasse criado pela Fundação Ruben Berta foi justificado por um de seus dirigentes como uma resposta à “intervenção branca” que estaria em curso na empresa, uma vez que seu comando estava desde agosto nas mãos de um comitê formado por credores, dentre os quais se destacavam Banco do Brasil, BR Distribuidora, Infraero, Unibanco, GE e Boeing. Conselheiros representantes dos credores, como Clóvis Carvalho e José Roberto Mendonça de Barros, além do presidente da empresa, Armin Lore, se demitiram após a recusa da fundação em assinar o memorando. Os credores,

240

“Proar salva a aviação”, Isto É Dinheiro, n. 263, 11/9/2002. Segundo a reportagem, as empresas teriam recebido friamente a medida. Um dirigente empresarial havia comparado o pacote com a oferta “de uma aspirina para um paciente com câncer”. 242 “Credores querem o controle da Varig”, Valor Econômico, n. 641, 20/11/2002. 241

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então, começaram a pressionar a Varig através da execução de dívidas, retomada de aviões e cobrança diária por serviços prestados.243 Diante deste cenário, chegou a ser noticiado um “plano de contingência” preparado pelo DAC para o caso da empresa paralisar suas atividades. A posição do governo, neste contexto, parecia seguir a linha adotada ao longo da década, de não intervenção no mercado, como se depreende do relato publicado no Valor Econômico:

“O BNDES envia ainda hoje à Varig em uma carta a resposta a seu pedido de ajuda ao banco na tentativa de se recuperar. E a resposta será não. (…) A direção do banco comunica à direção da Varig que não há condições de analisar o pedido, após a recusa, por parte do Conselho de Administração da holding FRBpar, do memorando de entendimento que vinha sendo discutido entre a Varig e seus credores. “O governo já começa a analisar informalmente um plano de contingência, para enfrentar uma paralisação da maior empresa de aviação do país. Autoridades que acompanham o assunto reconhecem que uma eventual paralisação da Varig criaria uma forte turbulência no setor por estar se iniciando o período de férias. Mas garantem que, após um período de adaptação, seria possível transferir linhas hoje servidas pela Varig a outras empresas e a grupos interessados em entrar no mercado. (…) “Autoridades do governo afirmam que, em caso de paralisação de vôos da Varig, seria possível ocupar parte das linhas com aeronaves da Tam e da Gol. A Tam, segundo informações não-oficiais do Departamento de Aviação Civil, não confirmadas pela empresa, teria recebido ofertas de leasing de mais 30 aviões da Boeing. Outros grupos privados, segundo garantem integrantes do governo, estariam dispostos a seguir o exemplo de Nenê Constantino, da Gol, e começar a atuar no setor.”244 Se por um lado o BNDES manteve-se fiel à postura adotada a partir da eleição de Fernando Henrique Cardoso, de não-intervenção a favor da empresa gaúcha, repetindo a mesma postura tomada nos casos da Vasp e da Transbrasil, outros setores do

243

“Pressão dos credores agrava a crise da Varig” e “Rompimento de acordo acentua a crise da Varig”, Valor Econômico, n. 645, 26/11/2002. De acordo com a segunda matéria: “A principal companhia aérea do país fica, agora, sob forte pressão de seus credores nacionais, como a BR Distribuidora, e de Boeing e GE, que juntas têm contrato de leasing de 20 aviões com a Varig. Ambas ameaçam pegar suas aeronaves de volta se nos próximos dias a FRB não apresentar uma nova proposta. (…) A BR, que deflagrou a paralisação da Transbrasil em dezembro, afirmou que só irá abastecer os avioes da Varig mediante pagamento.” 244 “Em caso de paralisação da companhia, autoridades analisam ocupar parte das linhas com aviões da Tam e Gol”, Valor Econômico, n. 648, 29/11/2002.

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governo agiram de forma mais ostensiva no sentido de evitar o agravamento da crise. Neste momento, o ministro do Desenvolvimento, Sérgio Amaral, agiu dentro do governo para que as estatais credoras da Varig não tomassem medidas que levassem à paralisação da empresa. Como relatou o Valor Econômico,

“O governo está dando fôlego à Varig, adiando a cobrança de débitos, e, a pedido do ministro do Desenvolvimento, Sérgio Amaral, os órgãos públicos vão evitar qualquer ato de execução de dívida que possa provocar a paralisação da empresa. (…) “Os credores da Varig detém recebíveis, direitos de receber pagamentos de cartões de crédito e de agências de viagem devidos à companhia, segundo acordo firmado anteriormente. Segundo Gentil (Eduardo Gentil, diretor do BNDES), as empresas públicas tem até devolvido algumas dessas receitas à aérea, para garantir seu funcionamento. “Ontem, Amaral passou o dia discutindo a crise da Varig em reuniões com o Banco do Brasil, Tesouro Nacional, Advocacia Geral da União, BNDES, Infraero, Departamento de Aviação Civil (DAC), Ministério da Defesa e BR. Depois esteve com o coordenador da equipe de transição, Antônio Palocci. (…) Segundo decisão dos órgãos oficiais, a BR passará a exigir pagamento diário do combustível fornecido à Varig (medida já adotada anteriormente com a Vasp); mas há uma orientação de evitar qualquer atitude que possa levar o Governo a receber a culpa pela paralisação das atividades da empresa aérea.”245 A atuação do ministro do Desenvolvimento seria decisiva para a continuação das atividades da empresa, ao contrário do que ocorrera com a Transbrasil um ano antes. Este último episódio, em que se ressalta a preocupação em evitar que o governo fosse responsabilizado pela paralisação das operações da Varig, revela a permanência da lógica política na dinâmica do mercado. Este desenlace reforça o argumento de que as reformas não assumiram um sentido único, nem tampouco se orientaram exclusivamente pela lógica econômica. Os embates entre atores estatais e não-estatais, e dentro do Estado, entre suas diferentes esferas, continuaram sendo uma variável decisiva para a organização do mercado.

245

“Governo dá fôlego à Varig para não precipitar falência”, Valor Econômico, n. 646, 27/11/2002, versão eletrônica.

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5.2. Os empresários e seu órgão de representação

O ano de 1999 foi o segundo ano de mandato de Mauro Gandra à frente do Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias, e a atuação do órgão permaneceria voltada para a renovação da imagem das empresas do setor frente à sociedade. Uma das maiores preocupações do SNEA no período pareceu estar ligada à busca de legitimidade para os pleitos das empresas. Elas eram recorrentemente criticadas pelas tarifas consideradas elevadas, por problemas de atraso dos vôos, extravio de bagagens, além da preocupação com os acidentes. Muitas destas queixas, levadas à Justiça ou a órgãos de defesa do consumidor, contribuíam para a formação de uma imagem negativa das empresas junto à opinião pública. Neste sentido, o SNEA continuou investindo na construção de canais de interlocução próprios – como sua homepage e seu informativo mensal – e na presença em outros meios de comunicação, como a televisão e a imprensa escrita. Da mesma forma, o SNEA incrementou sua participação em fóruns oficiais e alternativos, ligados ou não à aviação. Do ponto de vista da intervenção política propriamente dita, a adesão quase automática às políticas governamentais daria lugar a um discurso crescentemente crítico em relação ao governo. O discurso liberalizante, por sua vez, não desapareceria, mas ao seu lado ressurgiriam valores como a “soberania nacional” e o “significado estratégico da aviação”, lastreando as demandas empresariais por melhores condições de competitividade. O primeiro editorial do ano de 1999 revelou esta estratégia, ao destacar algumas ações por parte da nova diretoria:

“a inauguração da nova sede, em outubro de 1997, e a eleição de um Diretor-Presidente (Mauro Gandra) com disponibilidade integral de seu tempo dedicado ao Órgão têm proporcionado maior projeção do Sindicato, seja através do uso das modernas instalações por parte das empresas associadas, seja por maior exposição na mídia. Este segundo fato deve-se à adoção pela Diretoria de duas medidas de caráter relevante – a criação da Comissão de Segurança de Vôo e de uma Assessoria de Comunicação. “As duas áreas têm o objetivo de melhor informar e esclarecer a opinião pública sobre os fatos da Aviação Civil, alvo de atenções, incompreensões e de cerrado bombardeio de órgãos governamentais,

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associações de vítimas, Ministério Público, Procons, e principalmente, meios de comunicação.”246 No que diz respeito à segurança de vôo, além da Comissão interna, o SNEA se envolveu com uma série de eventos e iniciativas. Merece destaque a inserção no cenário internacional, com a realização do 52o. Seminário Internacional da Flight Safety Foundation, no Rio de Janeiro, com patrocínio de várias empresas brasileiras247. Houve também a participação como representante da indústria de aviação brasileira no 7o. Encontro do Comitê de Segurança de Vôo da IATA, destacado como o “primeiro compromisso internacional após o convite para que o SNEA tivesse assento fixo no Regional Coordinating Group, órgão consultivo da IATA”248. Após gestões do sindicato, a IATA e a OACI ainda realizariam no Rio de Janeiro o Seminário Regional para o Caribe e América do Sul sobre “Segurança de Vôo e Fatores Humanos”.249 Buscou-se da mesma forma abordar o tema da segurança junto às autoridades governamentais. Houve eventos como a palestra proferida pelo coordenador da Comissão de Segurança de Vôo do SNEA, Ronaldo Jenkins, em seminário promovido pelo 7o. Serviço Regional de Aviação Civil, sediado em Manaus,250 e também houve ações mais concretas. Dentre elas, destacam-se campanhas contra o excesso de bagagem de mão nos aviões251 e o apoio ao “Plano de Assistência às Famílias”,252 ambos em parceria com o DAC. Um aspecto que recebeu especial atenção por parte do SNEA foi a prática, utilizada pelas empresas, de aceitar um número de reservas superior ao número de assentos disponíveis nos aviões. Conhecida como overbooking, era motivo para constantes reclamações de passageiros, eventualmente levadas ao Procon e à Justiça, tendo sido criadas inclusive associações de passageiros “vítimas” e de ocorrências como atraso e o próprio overbooking. A atuação do SNEA neste tema passou pela publicação de vários artigos em seu informativo, demonstrando que o overbooking era prática

246

Mauro Gandra, “A palavra do presidente”, Informativo SNEA, n. 4, janeiro 1999, p. 1. Informativo SNEA, n. 4, janeiro 1999, p. 3. 248 Informativo SNEA, n. 5, fevereiro 1999, p. 3. 249 Informativo SNEA, n. 16, janeiro 2000, p. 3. 250 Informativo SNEA, n. 7, abril 1999, p. 3. 251 Informativo SNEA, n. 10, julho 1999, p. 3. 252 Informativo SNEA, n. 19, abril 2000, p. 3. O Plano consistia no fornecimento de nomes e telefones de contato, por parte de todos os passageiros, para o caso de acidentes aéreos. 247

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corrente nas empresas do mundo todo, visando desta forma enfrentar o argumento de que a abertura do mercado brasileiro para empresas estrangeiras poderia garantir o fim de práticas como esta.253 Na mesma linha, um artigo aborda outro tema sensível, o atraso nos vôos. Neste artigo, procurou-se demonstrar que se tratava de uma “decisão difícil”, porque por um lado traria efeitos negativos para a imagem da empresa, e por outro, em determinadas situações, seria a única garantia de um vôo seguro. O artigo, no entanto, termina chamando atenção para a incidência relativamente pequena deste tipo de ocorrência:

“o problema não é uma rotina no dia-a-dia das empresas aéreas e dos usuários. Uma consulta às estatísticas do Departamento de Aviação Civil comprova que o nível de pontualidade e de regularidade das empresas aéreas nacionais está dentro de padrões internacionais de excelência.”254 Ainda visando esclarecer os setores envolvidos, o SNEA publicou e distribuiu um estudo sobre overbooking, atraso de vôo e extravio de bagagem. O estudo foi assinado por um consultor da área, consistindo numa análise da legislação pertinente e de comentários sobre a experiência de outros países.255 Também fez parte da estratégia

253

Em um de seus editoriais, Mauro Gandra procurou demonstrar que o overbooking era um instrumento a favor dos passageiros, ao permitir que a empresa atendesse um número adequado de solicitação de reservas. Isso porque ao aceitar um número de reservas maior do que o número de assentos disponíveis, as empresas estariam se precavendo em relação ao no show. Este seria a contrapartida do overbooking, consistindo no passageiro que faz reserva e não aparece para o embarque. Segundo Gandra, muitos passageiros e agências de viagens fariam reservas em diversas empresas, optando por uma delas sem cancelar as demais. O overbooking seria, portanto, uma forma de garantir que a empresa tivesse uma ocupação adequada, considerando que uma parte das reservas previstas não se confirmaria na hora do embarque. “Assim, é importante que os órgãos de defesa do consumidor e as atuais associações de vítimas de atrasos em vôos (e outras eventuais ocorrências do transporte aéreo), entidades estas que invariavelmente têm como presidente um advogado, compreendam que o overbooking, antes de ser simplesmente um inadimplente da cláusula contratual configurada pelo bilhete de viagem, é também uma ferramenta de proteção do consumidor para defender-se da irresponsabilidade de quem fez uma reserva para um vôo e não se deu sequer ao trabalho de cancelá-la” (Mauro Gandra, “A palavra do presidente”, Informativo SNEA, n. 5, fevereiro 1999, p. 1). A preocupação com o tema se revelaria ainda na participação do SNEA em discussões a respeito do tema, como no caso da palestra proferida no almoço bimestral da Associação de Executivos da Aviação Comercial – ASSEAC, onde além de executivos de empresas nacionais e internacionais (a associação era presidida por uma dirigente da Tap Air Portugal), estiveram presentes membros da alta direção do DAC e jornalistas (Informativo SNEA, n. 6, abril 1999, p. 3). 254 “Atrasos: quando a pressa pode ser inimiga da perfeição”, Informativo SNEA, n. 13, outubro 1999, p. 1. 255 “O estudo de 69 páginas ganhou tiragem de 500 exemplares. Uma parte foi distribuída entre os participantes do II Seminário de Direito Aeronáutico, no Rio de Janeiro, e o restante será enviado a

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da construção de uma visão mais positiva das empresas aéreas junto à opinião pública a publicação de diversas notas e artigos sobre pesquisas e levantamentos que demonstrariam um alto grau de satisfação dos usuários do transporte aéreo. É citada, por exemplo, uma pesquisa realizada pela Embratur por encomenda do SNEA, em que a maioria dos entrevistados teriam avaliado melhor as empresas nacionais do que as estrangeiras.256 Também é mencionado um levantamento feito SNEA no DAC e nos Procons do Rio de Janeiro e São Paulo, indicando uma diminuição no número de reclamações.257 Além de ações em conjunto com o DAC, o SNEA procurou se articular a outros setores do governo, como a área de turismo, fonte constante de atritos por considerar as tarifas aéreas no Brasil um desestímulo à atividade. O SNEA se tornou membro do Conselho Consultivo do Turismo Nacional, instituído pela Embratur visando articular o setor público e o privado em torno de uma política nacional para o setor.258 Da mesma forma, foi durante a gestão de Gandra que o SNEA participou pela primeira vez da Feira Anual da Associação Brasileira de Agentes de Viagens (ABAV). Na inauguração do stand do SNEA, estiveram presentes autoridades governamentais, representantes das empresas e o presidente da ABAV, que em discurso manifestou sua solidariedade às empresas.259 O SNEA participaria ainda do III Fórum Internacional de Parlamentares e Autoridades Locais Protagonistas de Políticas de Turismo no Século XXI.260 Espaços específicos do setor também fizeram parte da estratégia de ação do sindicato patronal, dentre eles o tradicional “Coquetel-Jantar Comemorativo da Semana da Asa”, reunindo empresários e autoridades governamentais, especialmente as

magistrados, órgãos de defesa do consumidor e formadores de opinião” (Informativo SNEA, n. 10, julho 1999, p. 3). 256 Informativo SNEA, n. 16, janeiro 2000. No ano seguinte, o informativo publicaria ainda a seguinte nota: “O que era bom ficou ainda melhor. Dados estatísticos do Departamento de Aviação Civil mostram que as empresas aéreas nacionais continuam investindo na qualidade dos serviços. As estatísticas do ano 2000 revelam índices de excelência comparáveis ao que há de melhor no mundo nos quesitos pontualidade, regularidade e eficiência operacional” (Informativo SNEA, n. 21, julho 2001, p. 3). 257 “DAC e Procon registram queda no número de reclamações de passageiros”, Informativo SNEA, n. 19, abril 2000, p. 2. Segundo o artigo: “Em 1999 o total de queixas no órgão regulador e fiscalizador da aviação civil foi 27% inferior ao ano anterior. Nos Procons de São Paulo e do Rio de Janeiro, regiões que respondem por 53% da movimentação no setor, a queda foi de 36%.” 258 Informativo SNEA, n. 5, fevereiro 1999, p. 3. 259 Informativo SNEA, n. 12, setembro 1999, p. 3 e n. 13, outubro 1999, p. 3. 260 Informativo SNEA, n. 21, junho 2000, p. 1.

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autoridades aeronáuticas.261 Havia ainda outros espaços ligados à aviação, que permitiram a interlocução entre o SNEA, autoridades e outros setores da sociedade, como o Conselho Superior do Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica – INCAER262 e feiras aeronáuticas, como a 4a. Feira Internacional de Aviação de Sorocaba.263 Como já foi assinalado, todas estas estratégias seriam importantes para a atuação da entidade no que diz respeito ao principal tema do período em análise: a crise na aviação comercial brasileira. Primeiramente, seria preciso demonstrar que a má situação das empresas não era resultado de má gestão, mas de um conjunto de fatores de natureza estrutural que prejudicavam todo o setor. Em segundo lugar, seria preciso convencer as autoridades de que as empresas brasileiras mereceriam um tratamento diferenciado, que se traduziria na reavaliação de uma série de medidas – a maior parte delas, de natureza tributária – que permitiriam que as empresas se tornassem competitivas. Segundo o argumento dos empresários, a má situação financeira das empresas teria como uma de suas causas imediatas o desequilíbrio entre o aumento dos custos ocorrido com as sucessivas desvalorizações do Real a partir de janeiro de 1999, e rígido controle sobre os reajustes tarifários, conforme definido pelas autoridades aeronáuticas e econômicas. De modo que uma das principais demandas do empresariado naquele contexto diria respeito à liberalização plena das tarifas. Além da liberação quanto aos preços mínimos, vigente desde 1998, os empresários cobraram do governo a liberação

261

“O jantar para cerca de duzentos convidados contou com a presença dos presidentes da Vasp, Wagner Canhedo; da Transbrasil, Paulo Enrique Coco; da Tam, Rolim Adolfo Amaro, e da Passaredo, José Luiz Felício, além do Diretor-Geral do DAC, Brigadeiro Marcos Antônio de Oliveira; do Chefe do Estado-Maior da Defesa, Brigadeiro Nelson Souza Taveira (representando o Ministro da Defesa, Élcio Álvares) e dos chefes dos sub-departamentos do DAC. (…) O evento, realizado em 18 de outubro, foi prestigiado por grande número de dirigentes e executivos de empresas aéreas nacionais, regionais e internacionais, além de representantes do Poder Público. O cenário escolhido foi o restaurante Sol e Mar, no Rio de Janeiro, tendo ao fundo o Pão de Açúcar e a Baía da Guanabara” (Informativo SNEA, n. 14, novembro 1999, p. 1). 262 Informativo SNEA, n. 19, abril 2000, p. 3. A referida nota menciona a posse de Rolim Amaro para uma das cadeiras do conselho, do qual faziam parte também dirigentes de outras empresas como Omar Fontana (Transbrasil), Ozires Silva (Varig) e o próprio presidente do SNEA, Mauro Gandra. 263 A feira “atraiu boa parte das principais lideranças da aviação no Brasil, como o Ministro da Defesa, Geraldo Magela Quintão; o Comandante da Aeronáutica, Carlos de Almeida Baptista; o Diretor-Geral do DAC, Brig. Venâncio Grossi; o Presidente da Infraero, Francisco Perrone; o Presidente da Tam, Rolim Amaro, e o Presidente do SNEA, Brigadeiro Mauro Gandra” (Informativo SNEA, n. 22, julho 2000, p. 3).

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nos tetos, o que segundo eles eventualmente permitiria a oferta de descontos maiores, graças à utilização dos sistemas de gerenciamento de preços (yield management).264 Estes argumentos seriam expostos por Mauro Gandra em um editorial publicado em abril de 1999:

“Os custos das empresas de aviação têm incidências em dólares americanos que variam de 25 a 40%. Com a desvalorização do real em 13 de janeiro deste ano surgiu, portanto, a necessidade imperativa de que as empresas solicitassem ao órgão governamental controlador, o DAC, reajustes em suas tarifas referenciais. O pedido foi feito pelas quatro empresas de maior porte e os índices variaram de 16% a 28%, consideradas as diferenças de incidência do item câmbio em cada empresa e a taxa de câmbio utilizada (uma das empresas apresentou quatro cenários para a taxa de câmbio). “Tais solicitações foram feitas com base na Portaria n. 701/DGAC, de 30/12/98. Entretanto, embora tal portaria tenha características eminentemente liberalizantes em termos de controle de preços, o órgão competente julgou por bem recomendar à área econômica governamental um reajuste de 10,8% sobre a tarifa referencial ou tarifa cheia.”265 Por fim, Gandra argumentaria que as empresas deveriam ter liberdade para definir suas tarifas – mínimas e máximas – como parte de sua estratégia comercial.

“Dever-se-ia, isto sim, considerar que o valor da tarifa cheia é assunto de natureza comercial de cada empresa, assim como as promoções tarifárias, que sendo recurso da disputa mercadológica, não podem ser

264

Com estes sistemas, os empresários alegavam ser capazes de oferecer um mix de tarifas mais amplo, com descontos maiores. 265 Mauro Gandra, “A palavra do presidente”, Informativo SNEA, n. 7, abril de 1999, p. 1. A Portaria n. 701/DGAC, de 30/12/1998, vinha dar prosseguimento ao processo de liberalização tarifária iniciado com a Portaria 075/GM5 (6/2/1992). De acordo com a medida, “os valores das tarifas aéreas domésticas serão estabelecidas (sic) livremente pelas empresas de transporte aéreo regular, em função da classe dos serviços por ela prestados e de conformidade com seus Índices Tarifários Líquidos registrados no DAC.” Os Índices Tarifários Líquidos, por sua vez, deveriam ser apresentados ao DAC até 4 dias antes de sua aplicação, “para fins de aprovação e registro”. Para efeito de controle, o DAC deveria estabelecer “Índices Tarifários Líquidos de Referência, calculados com base nos custos operacionais médios incidentes sobre a indústria brasileira de transporte aéreo regular, para fins de acompanhamento da evolução das tarifas aéreas praticadas no transporte doméstico.” O DAC poderia, ainda, intervir na concessão dos serviços aéreos para “coibir atos contra a ordem econômica, bem como assegurar o interesse dos usuários” – Cf. www.dac.gov.br/legislacao/Port701.htm, consultado em 7/2/2004.

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confundidas com a base tarifária dos custos, fundamental para determinar a tarifa cheia.”266 Ainda em torno do assunto, Gandra aproveitaria outro de seus editoriais para questionar o argumento segundo o qual as tarifas aéreas no Brasil eram muito elevadas. Ele procurou demonstrar que a oferta de grandes descontos pelas empresas norteamericanas (termo de comparação para muitos dos argumentos contra as empresas brasileiras) era possibilitada precisamente pela livre-fixação das “tarifas cheias”, como segue:

“Há anos que os brasileiros vêm ‘batendo na tecla’ que as tarifas aéreas de nosso País são as mais caras do mundo, geralmente em um processo de ‘arrolamento imperfeito’, no qual, invariavelmente, as ‘tarifas aéreas cheias’ são comparadas com tarifas promocionais de outros países, em especial, com as tarifas promocionais americanas. “Em artigo publicado no jornal The New York Times, de 15 de janeiro de 1998, o jornalista Laurence Zuckerman assim se pronunciava: ‘Passageiros executivos continuam a pagar tarifas aéreas cada vez mais altas (…). A extensão destes aumentos pode ser verificada na rota de Boston para Los Angeles, onde uma passagem de ida e volta sem nenhum condicionamento, comprada no dia da viagem custa US$ 2.004 em qualquer uma das oito maiores empresas aéreas – mesmo que um turista no banco ao lado, que fez a sua reserva antecipadamente, tenha pago apenas US$ 238 por uma passagem não-reembolsável’. Portanto, um desconto de 88%. “Ora, no Brasil, aonde uma desregulamentação cabocla vem sendo preconizada, insistentemente, nos últimos anos, com base na ‘deregulation’ norte-americana de 1978, a apropriação da medida pecou ao limitar-se o teto das tarifas cheias, cumprindo preceito estabelecido na lei que instituiu o Real e que condiciona o aumento das tarifas públicas à autorização da Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda. “Assim agindo, o Governo limita a margem de manobra das empresas aéreas para o estabelecimento do leque de tarifas promocionais, pedra de toque em seus programas de gerencialmente de resultados (Yield Management). São esses programas que proporcionam uma combinação tarifária para cada vôo que, na média, esteja acima do ponto de 266 Mauro Gandra, “A palavra do presidente”, Informativo SNEA, n. 7, p. 1. As autoridades autorizariam o reajuste em junho, ocasião em que o SNEA se pronunciou da seguinte forma: “O Ministério da Fazenda finalmente autorizou, em 4 de junho, o reajuste das tarifas aéreas. O índice, de 10,9%, ficou abaixo das necessidades das empresas aéreas, que pleiteavam percentuais variando entre 16% e 28%. Somente a desvalorização do real trouxe perdas diárias de R$ 1 milhão para as empresas. A portaria n. 117, de 02/06/1999, do Ministério da Fazenda, determina que um próximo reajuste só poderá ser concedido após um ano. A correção anterior, de 13,5%, foi autorizada pelo governo em julho de 1997” (Informativo SNEA, n. 9, junho 1999, p. 3).

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equilíbrio custo/receita, além de possibilitar aos passageiros que planejam suas viagens com antecedência a obtenção de preços mais palatáveis.”267 O controle sobre as tarifas não era, todavia, um problema surgido com a desvalorização do real, em 1999. Como frisaram os empresários em diferentes oportunidades, as dificuldades teriam começado ainda nos anos 1980, com a decisão do Governo Federal de transferir o controle sobre as tarifas do DAC para o Ministério da Fazenda, em medida que perdurou até 1992.

“Nesse período, no qual a economia conviveu com as tentativas de estabilização da moeda através de mais de meia dúzia de ‘planos econômicos’, as tarifas aéreas foram achatadas de tal forma que levaram à quebra do equilíbrio econômico dos contratos de concessão das empresas com o Governo.”268 Esta posição viria a ser reforçada em uma cerimônia269 na qual o então presidente da Varig, Fernando Pinto, falou em nome das empresas. Segundo o dirigente,

“o setor doméstico vinha sendo penalizado desde 1985 por uma política tarifária rígida, totalmente inadequada, sobretudo para períodos de inflação acelerada. Vem daí a profunda descapitalização que afetou a indústria, e para a qual hoje as empresas buscam compensação frente à Justiça (…).”270 O tema também seria abordado por ocasião dos debates no Congresso a respeito da nova agência reguladora do setor, quando o presidente do SNEA, George Ermakoff, falou sobre a mudança na sistemática de reajustes das tarifas:

“A questão do endividamento é uma longa história que começou com o Plano Real. Naquela ocasião, o aumento de 30% da passagem aérea foi 267

Mauro Gandra. “A palavra do presidente”, Informativo SNEA, n. 10, julho 1999, p. 1. Mauro Gandra. “A palavra do presidente”, Informativo SNEA, n. 6, março 1999, p. 1, também publicado em O Globo, 9/3/1999, sob o título “Céu nublado na aviação comercial”. Gandra lembra que uma empresa já havia obtido ganho de causa junto ao Supremo Tribunal Federal em ação movida contra o governo federal por conta das referidas perdas, estando as outras empresas com ações em andamento no Judiciário. 269 Ver notas 9 e 37. 270 “Crise une empresários e autoridades”, Informativo SNEA, n. 14, novembro 1999, p. 1. 268

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autorizado em função da inflação dos trinta dias anteriores. Foi aprovado e seria publicado no Diário Oficial do dia seguinte. Mas no dia seguinte foi publicado o Plano Cruzado, que congelou a tarifa aérea 30% abaixo do nível reconhecido pela própria autoridade do Ministério da Fazenda na ocasião. Desde aí fez-se, constantemente, política econômica com a tarifa aérea. Infelizmente, sou obrigado a dizer isso. Para segurar a inflação, sempre se fixa a tarifa das empresas aéreas. E nós fomos nos endividando.”271 O quadro de incerteza caracterizado pelo desequilíbrio entre os custos crescentes e tarifas rigidamente controladas pelas autoridades econômicas se tornaria ainda mais dramático para as empresas brasileiras com o fortalecimento, dentro e fora do governo, da proposta de abertura do mercado brasileiro às empresas estrangeiras.272 A possibilidade de uma abertura mais radical do setor daria ensejo ao resgate de valores como a “soberania nacional” e o caráter “estratégico” da aviação no discurso dos empresários, eventualmente levando à percepção da globalização como uma ameaça ao país. Sob esta ótica, os dirigentes empresariais defenderiam a legitimidade do apoio às empresas brasileiras e ressaltariam o risco de perda de controle sobre a atividade na falta de medidas capazes de sanar a crise. Alguns trechos retirados do informativo da entidade patronal revelam esta postura.

“A recuperação plena desta ‘aeronave’ (aviação nacional) dependerá, sobretudo, da habilidade de seus Comandantes (Direção das empresas) e também das imprescindíveis medidas governamentais para o setor, tanto de ordem conjuntural como de ordem estrutural. “Se nada mudar, o que teremos será a inevitável substituição de nossa querida ‘aeronave’ por uma vistosa ‘aeronave’ estrangeira (absorção de nossas empresas aéreas por empresas internacionais) com as indesejáveis conseqüências da perda de soberania sobre mais um setor estratégico nacional.”273 “Se copiamos tantas coisas da Europa e dos Estados Unidos, porque não copiamos os norte-americanos e mantemos a nacionalidade das nossas

271

Ermakoff, George. Depoimento à Comissão Especial – Projeto de Lei n. 3846/00. Brasília: Câmara dos Deputados/Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação, 23/5/2001, p. 62. Como se depreende da leitura do trecho inteiro, o depoente menciona na primeira linha o Plano Real, quando na verdade fazia referência ao Plano Cruzado. 272 Ver nota 227. 273 Gandra, Mauro. “A palavra do presidente”, Informativo SNEA, n. 6, março de 1999, p. 1.

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empresas?’, questionou logo no início o dirigente do SNEA. Segundo ele, a tese da proteção das empresas aéreas brasileiras encontra respaldo na Jurisprudência Internacional, que se baseia, sobretudo, no princípio dos Direitos de Tráfego Aéreo Internacional de cada país, estabelecidos por acordos bilaterais. “‘No Brasil, país de dimensões continentais e massa populacional significativa, tais Direitos constituem-se em patrimônio de valor incalculável, em razão do aumento da população e de sua renda per capta’, sublinhou. “Mauro Gandra defendeu o estabelecimento de uma política de apoio às empresas nacionais, respaldada por medidas que lhes dêem capacidade real de competir com as congêneres estrangeiras, não somente na arena internacional, mas dando-lhes também condições de rentabilidade no tráfego doméstico, segmento importante de movimentação da economia interna e indiscutível suporte operacional e econômico para as atividades internacionais de cada empresa.”274 “Nunca é demais lembrar que a Aviação Comercial, em sua atividade direta, tem um impacto superior a US$ 6 bilhões anuais na economia brasileira. A soma atinge a casa dos US$ 18 bilhões se considerarmos seu efeito indireto. Mas acima de tudo isso, não podemos desprezar nunca seu papel estratégico para a soberania da nação.”275 A “soberania nacional” estaria também no centro das discussões em um encontro promovido pelo Institut du Transport Aérièn do Brasil. Um dos debatedores, o consultor Antônio Henrique Browne, concluiu que “por trás dos disfarces da globalização liberalizante há uma clara intenção de protecionismo nacional e de facilitação do domínio do transporte dos mais fortes sobre os mais fracos”.276 Um segundo conferencista, Michal Gartenkraut, criticou a proposta de abertura do mercado interno às empresas estrangeiras. Segundo ele, haveria uma “desisonomia em detrimento dos transportadores domésticos, que sofrem incidência de externalidades negativas em seus custos; para não falar das conhecidas vantagens de escala das operações mundiais, notadamente as norte-americanas”.277 A consideração de que a sobrevivência das empresas aéreas nacionais estaria atrelada à manutenção de um domínio estratégico da soberania nacional abriria espaço

274

“Falta de mercado interno enfraquece as empresas nacionais”, Informativo SNEA, n. 16, jan. 2000, p.

1.

275

Gandra, Mauro. “A palavra do presidente”, Informativo SNEA, n. 15, dezembro 1999, p. 1. “Preocupação com perda de soberania domina o debate”, Informativo SNEA, n. 16, janeiro 2000, p. 2. 277 Id., p. 2. 276

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para as demandas por medidas concretas de apoio às empresas. Estas demandas se concentrariam, sobretudo, na diminuição das taxas e impostos incidentes sobre a aviação comercial.278 Os empresários argumentavam que a falta de competitividade da indústria seria resultado do ambiente inibidor em que operavam, e que apenas uma redução nos custos – via redução na carga tributária – geraria os ganhos de competitividade necessários. Estes argumentos apareceram, por exemplo, nos seguintes trechos:

“O fator que mais onera as empresas nacionais de transporte aéreo chama-se custo Brasil, cujos principais componentes são a estrutura tributária de impostos cumulativos, impostos em cascata, excesso de taxações, de burocracia, de ingerência governamental. Anacrônicos em qualquer lugar do mundo que se pretenda competitivo e globalizado, tais problemas têm sido altamente nocivos às finanças das empresas e à imagem pública do setor. “Apesar de as empresas se esforçarem para oferecer preços mais acessíveis e competitivos, a opinião pública é sempre levada a acreditar que tarifas eventualmente menos palatáveis são resultado de má administração, de falta de concorrência ou mesmo de ganância empresarial’, desabafa o Presidente do SNEA, Brigadeiro Mauro Gandra. “Enquanto outros países procuram criar um ambiente que propicie vantagens competitivas às suas empresas, o Brasil, pelo contrário, faz as empresas nacionais colecionarem desvantagens competitivas. ‘Não tenho dúvida nenhuma que, do ponto de vista da produção nacional, é absolutamente impossível ser competitivo com a estrutura tributária que aí está’, afirma.”279 “A carga tributária das empresas aéreas brasileiras, por exemplo, é da ordem de 34,8% contra 7,5% das norte-americanas e 16% das européias. Aqui mesmo na América do Sul, por exemplo, a carga tributária é de 18% no Chile e chega a 21% na Argentina, valores bem menores do que os praticados no Brasil.”280

278

Esta discussão se inseria em parte no debate mais amplo a respeito da reforma tributária, em amadurecimento desde o início do segundo mandato de Fernando Henrique. Neste sentido, era um tema que extrapolava o setor de aviação comercial, sendo considerado um dos grandes entraves ao fortalecimento de toda a economia brasileira. 279 Informativo SNEA, n. 23, agosto 2000, p. 1. 280 Aeromagazine, n. 70, março de 2000, p. 45.

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A “desvantagem competitiva”281 em relação às empresas estrangeiras, notadamente as norte-americanas, já teria causado considerável prejuízo ao setor, de acordo com dados apresentados pelos dirigentes empresariais. Em 1999, as quatro grandes empresas brasileiras – Varig, Tam, Vasp e Transbrasil – operavam rotas para os Estados Unidos, que representava um importante mercado para cada uma delas. Ao mesmo tempo, quatro grandes empresas norte-americanas – United Airlines, American Airlines, Delta e Continental – estavam autorizadas a voar para o Brasil. A diferença de escala entre as quatro grandes brasileiras e as quatro norte-americanas, somada à menor carga tributária incidente sobre as companhias estrangeiras, foi destacada pelos empresários em várias oportunidades, dando-se ênfase também ao fato das empresas brasileiras terem perdido sistematicamente participação no mercado entre Brasil e Estados Unidos.

“Perdemos mercado em razão de imensa limitações comparativas, tanto em termos de escala quanto de estrutura de custos, favoráveis às empresas norte-americanas. Para elas, o mercado brasileiro representa apenas 3% do seu mercado internacional. Em nosso caso, entretanto, o mercado para os EUA equivale a quase 50%. Quanto à estrutura de custos, as vantagens para as americanas não são menores. “O Brasil precisa assegurar a isonomia tributária e financeira às empresas aéreas nacionais, o que não significa, de forma alguma, defesa de subsídios. Basta removermos os obstáculos daquilo que se convencionou chamar de custo Brasil. Somente assim teremos competição justa (…)”282. Os empresários do setor também destacaram que as empresas aéreas sofriam, além dos impostos comuns às demais atividades econômicas (Imposto de Renda, ISS, 281

Além da incidência de impostos, custos diretos como o financiamento e o seguro das aeronaves também foram citados como extremamente desfavoráveis às empresas nacionais. No Brasil, as taxas são mais altas e os prazos, mais curtos. “O preço de um Boeing 737, por exemplo, custa às empresas nacionais cerca de US$ 32 milhões. O prazo de financiamento é de 12 anos, com taxa de juros Libor mais 3,5%. O valor para as empresas norte-americanas cai para US$ 27 milhões, com o prazo de financiamento de 20 anos e taxa Libor mais 0,19%” – Informativo SNEA, n. 23, p. 2. 282 Informativo SNEA, n. 23, p. 2. Gandra mencionaria em entrevista a proposta de fusão das empresas brasileiras de modo a ganhar escala nas operações internacionais, buscando recuperar a competitividade em relação às norte-americanas. A medida, segundo o presidente do SNEA, seria pouco eficaz dada a enorme diferença entre os mercados norte-americano e brasileiro. “Se as empresas de grande e médio porte (no Brasil) se fundissem (…), nasceria uma empresa com 185 aeronaves. Mas só a American Airlines opera uma frota de 648 aviões, e as quatro maiores empresas norte-americanas somam mais de 2100 aeronaves. Ou seja, em termos de ganho de escala, a fusão de todas as brasileiras não mudaria muita coisa. (…) O Congresso deve nos ajudar, reduzindo os impostos, para que as companhias possam ampliar a malha aérea doméstica, o número de passageiros embarcados e a receita interna” (Aeromagazine, n. 70, p. 47).

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Cofins, CPMF e os custos trabalhistas) um conjunto de tributações específicas que consideravam indevidas, como o ICMS sobre a venda de passagens, as alíquotas deste imposto sobre o combustível, a taxação sobre o pagamento de leasing e os adicionais sobre as tarifas aeroportuárias. A cobrança de ICMS sobre as passagens não caberia, segundo os empresários, uma vez que se tratava de um imposto estadual cobrado sobre uma atividade que não utilizaria nenhum serviço deste ente federativo. Ao contrário, seriam os estados os beneficiários da atividade aeronáutica, dado o seu impacto positivo sobre a atividade econômica do estado. O então presidente da Tam, Rolim Amaro, mencionou o tema em depoimento à Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional na Câmara dos Deputados, afirmando:

“A aviação comercial brasileira, a partir de 1988, época em que as empresas atravessavam uma fase gloriosa, começou a sofrer certa dificuldade operacional em razão da migração de recursos da empresa para Estados e Municípios. A Constituição de 1988 permitiu que Estados e Municípios pudessem taxar concessões federais. Essa é uma das razões por que a aviação comercial brasileira passa por grandes dificuldades econômicas atualmente. Suponho que a migração de recursos esteja entre 800 milhões e 1 bilhão de dólares, dadas as facilidades com que os Estados passaram a taxar as concessões públicas federais. “Os Estados passaram a usar o ICMS e o IVV, o que foi, evidentemente, um grande fator inibidor do desenvolvimento das empresas. Essa fragilização do sistema acabou coincidindo com a abertura feita pelo Brasil. À época da abertura, as empresas estavam depauperadas economicamente, porque as empresas enfrentavam grande dificuldade com a fixação e o congelamento das tarifas em 1995 e 1996, com o Plano Real.”283 Mauro Gandra também mencionou o assunto em entrevista a Aeromagazine: “Antes da aprovação da Constituição de 1988, a aviação ficava isenta de muitos impostos. Não havia, por exemplo, a incidência do ICMS. Até porque é um imposto que é pago por um serviço realizado dentro de uma área do Estado, onde ele, naturalmente, tem uma série de obrigações com aquelas empresas. Mas na aviação, de um modo geral, o Estado não tem nenhuma obrigação com as empresas. Os aeroportos são federais. Quando estão sob a administração dos Estados, é por 283

Amaro, Rolim. Depoimento à Comissão de Relaçõs Exteriores e Defesa Nacional. Brasília: Câmara dos Deputados/Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação, 15/9/1999, p. 2.

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convênio. O espaço aéreo é federal, o Registro Aeronáutico Brasileiro (uma espécie de Detran do ar) também é federal. Por isso, costumo dizer que a única intervenção que não é federal no transporte aéreo, e também não é estadual, mas sim do município, é a via de acesso que leva o usuário ao aeroporto. Infelizmente, a Constituição de 1988 deu margem para que esse tipo de cobrança acontecesse.” Ainda em relação ao ICMS, as alíquotas deste imposto sobre o combustível também foram consideradas inadequadas pelos empresários. Rolim Amaro mencionaria o assunto em seu depoimento à Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional na Câmara de Deputados, em 1999:

“Falava há pouco do fato de os Estados, com a Constituição de 1988, taxarem as empresas aéreas. O que aconteceu nos diversos Estados? Todos os Estados brasileiros taxaram 25% sobre os combustíveis. O avião e as empresas aéreas são setores de energia intensiva. Quando se abastece um 747, um 767 ou um Airbus, consome-se 100 ou 200 mil litros de combustível, o que significa dizer que, a cada vez que abastecemos, pagamos para o Estado 60, 70 mil livros de combustível, todas as noites, por avião. “Houve Estados brasileiros que aumentaram a taxa de 25 para 30% – 38% no Estado do Rio. Com isso, ninguém mais abastecia no Rio de Janeiro, mas em outros aeroportos, como em São Paulo ou Brasília. Todos sabem que um avião carregado de combustível consome mais. Apesar disso, a empresa economiza pagando uma taxa menor, mas o Brasil paga a conta.”284 Rio de Janeiro e São Paulo, os estados que concentram a maior parte dos vôos internacionais partindo e chegando no Brasil, assim como uma parcela expressiva do tráfego doméstico, foram tomados por Mauro Gandra como exemplo em duas oportunidades:

“O ICMS cobrado na tarifa do combustível aqui no Rio de Janeiro chegou a 37%. Conseguimos baixar para 30% durante o governo do Marcello Alencar e, agora, com o governador Anthony Garotinho, que ficou muito sensibilizado com nossas reivindicações, o imposto baixou para 20%. Até pouco tempo atrás, as companhias aéreas estavam preferindo abastecer os aviões no Aeroporto Internacional de São Paulo – Guarulhos em vez de usar o Galeão, no Rio de Janeiro. São Paulo já estava tendo problemas operacionais com estoques baixos de querosene. 284

Rolim Amaro. Depoimento à Comissão de Relações Exteriores…, 15/9/1999, p. 2.

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O ICMS sobre o combustível ainda é aceitável, mas, não posso entender que se cobre este imposto da aviação. O que se pretende na reforma tributária é que a aviação, como aliás acontece nos outros países, tenha um tratamento diferenciado.”285 “A alíquota de combustível em São Paulo está no mesmo patamar de produtos supérfluos como peles e bebidas importadas. Os estados não fazem nada pela aviação. Só beneficiam-se da movimentação de pessoas, seja a negócios ou turismo, além do transporte de carga. Ou seja, estão cobrando sobre um indutor de desenvolvimento. Convém lembrar que a aviação é federal. O registro é federal, as pistas são federais. Só as estradas que levam até o aeroporto são estaduais ou municipais. Se quisessem cobrar pedágio de quem usa estas vias, eu até acharia válido. No entanto, o que o estado está cobrando é Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços. Até 1988, a aviação estava isenta desse imposto esdrúxulo (…).”286 Uma segunda taxação mencionada foi Impostos de Renda sobre os pagamentos de leasing das aeronaves, considerado indevido uma vez que se trataria de um imposto sobre uma despesa, e não receita. O assunto seria exposto pelo então presidente da Varig, Ozires Silva, já por ocasião dos debates em torno da criação da ANAC:

“O Dr. Marco Bologna (representante da Tam) apresentou a questão, por exemplo, dos 15% de Imposto de Renda sobre o fechamento do câmbio para o pagamento de leasing das aeronaves. Em outras palavras, isso nos coloca numa posição muito estranha no mundo, pois pagamos Imposto de Renda sobre despesas operacionais. Do ponto de vista tributário, isso causa estranheza, em particular das companhias de ‘leasing’ internacionais. Esses também são tributos que pesam. “Então, quando nós falamos em produtividade de 2% ou 3%, vêm tributos da ordem de 15%. Os senhores podem imaginar que todo aquele dever de casa que se cobra das companhias no sentido de serem eficientes é aniquilado por diferenças dessa natureza.”287 285

Entrevista, Aeromagazine, n. 70, março de 2000, p. 45. Informativo SNEA, n. 23, p. 2. O mesmo artigo cita ainda a taxação sobre outros insumos, como as próprias aeronaves e as peças de reposição: “A maioria dos insumos necessários às atividades do setor, tais como aeronaves, material de apoio e reparáveis, sofre pesada taxação ao ingressar no País.” 287 Ozires Silva. Depoimento à Comissão Especial – Projeto de Lei n. 3846/00. Brasília: Câmara dos Deputados/Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação, 29/8/2001, p. 30. O Secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, foi convocado a depor nesta comissão, tendo sido interpelado pelos deputados a respeito desta cobrança. Segundo Maciel, tratava-se de uma medida visando controlar a remessa de divisas para paraísos fiscais, tendo sido discutida com o Congresso, não sendo passível de revisão: “Essa tributação ocorre com qualquer tipo de arrendamento. É de fato muito difícil para todos nós imaginar que concedamos isenção de impostos para remessas para paraísos fiscais. Isso significa a proteção de pessoas estabelecidas em paraísos fiscais e colide com tudo que pensamos sobre matéria tributária. Essa tributação decorreu de um projeto discutido neste Congresso Nacional, a partir de uma exposição que fiz 286

181

Por fim, os empresários destacaram os adicionais pelo governo visando financiar segmentos específicos. O principal destes adicionais seria o ATAERO,288 consistindo num acréscimo de 50% sobre o valor de todas as taxas normalmente cobradas das empresas nas suas operações (pouso, permanência e comunicações aeronáuticas, por exemplo). O adicional foi criado em 1989, com base num adicional similar criado para financiar a modernização dos portos (o ATP). Ao contrário do adicional dos portos, que foi gradativamente reduzido, o adicional dos aeroportos manteve-se ao longo dos anos, como relatou o novo presidente do SNEA, George Ermakoff:

“Em 1993, a Lei de Modernização dos Portos reduziu o ATP, que era o semelhante dos portos, para 40%. Nós continuamos com 50%. Em 1994, reduziu para 30%. Nós continuamos com 50%. Em 1995, reduziu para 20%. Continuamos com 50%. Em 1996 o ATP foi extinto, e nós continuamos pagando o ATAERO. E, só para que os senhores saibam, até hoje já pagamos algo em torno de 4 bilhões de reais de ATAERO.”289 A demanda das empresas, em termos de medidas concretas para redução do “custo Brasil”, seria expressa por Mauro Gandra, em uma nota publicada no informativo do SNEA, no qual é abordada a reforma tributária em discussão no Executivo e

no Senado Federal. Fui cobrado a fazer todas essas alterações pelo Congresso, trouxe a título de medida provisória, imediatamente aprovada pelo Congresso, por representar exatamente o que nós pensávamos — quando digo nós, refiro-me ao Poder Executivo —, coincidindo com o que pensava o Congresso Nacional sobre o tratamento tributário que deve ser dispensado à remessa para paraísos fiscais” – Everardo Maciel. Depoimento à Comissão Especial – Projeto de Lei n. 3846/00. Brasília: Câmara dos Deputados/Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação, 27/6/2001, p. 8. 288 Um outro adicional seria a suplementação tarifária para os vôos regionais ligando localidades de baixo volume de tráfego, porém de interesse estratégico. Esta suplementação, que existiu durante a vigência do SITAR (ver capítulo 3), esteve em discussão no projeto de criação da ANAC. O tema, portanto, será abordado mais detidamente no próximo capítulo. 289 George Ermakoff. Depoimento à Comissão Especial – Projeto de Lei n. 3846/00. Brasília: Câmara dos Deputados/Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação, 23/5/2001, p. 18. Ermakoff criticaria adiante a falta de transparência na aplicação dos recursos, assim como a indefinição nos critérios de aplicação ao afirmar que o adicional “se destina à INFRAERO para expansão e construção de aeroportos e proteção de vôo. Entretanto, até hoje nunca recebemos nenhum relatório do emprego do ATAERO. Não conhecemos seu emprego, não sabemos o custo. Como o sistema de controle de tráfego aéreo no Brasil é compartilhado (pela aviação civil e militar), não sabemos se estamos pagando pelo sistema de controle de tráfego aéreo ou se eventualmente estamos pagando parte do sistema de defesa. Então, há uma série de coisas que ainda precisariam ser estudadas com relação ao ATAERO” (Id., p. 53).

182

Legislativo. Basicamente, os empresários pediam a simplificação dos encargos, através da extinção de vários deles e a unificação num único imposto. Vale destacar que, para os empresários, tais medidas não representariam incentivos ou subsídios para a indústria, mas a garantia de igualdade de condições na competição com as empresas estrangeiras.

“O anúncio de que o Governo Federal estaria movendo-se para que a reforma tributária entre finalmente na pauta de votação do Congresso reacendeu as esperanças do setor de aviação comercial. A expectativa é de que seja acolhida a emenda n. 53, do Deputado Federal Ney Lopes, que prevê a não incidência de qualquer imposto sobre custos e receitas da navegação aérea, à exceção do Imposto de Renda, ou que seja criado um imposto seletivo federal para a navegação aérea, com a não incidência de qualquer outro imposto, à exceção do Imposto de Renda. ‘O equacionamento das dificuldades do setor passa necessariamente pela redução da carga tributária, além da liberação das tarifas e da redução do custo Brasil. É fundamental que haja isonomia com as empresas aéreas estrangeiras’, concluiu o dirigente do SNEA.”290 Ao contrário do que esperavam os empresários, no entanto, a reforma tributária não aconteceria, e um pacote específico para o setor viria apenas no final do governo Fernando Henrique, como já foi apresentado anteriormente. Antes disso, as empresas teriam de se defrontar com outra medida desfavorável por parte do governo federal, que em janeiro de 2001 revogaria a política adotada desde janeiro de 1999 no sentido de manter o preço do combustível cotado em reais para os vôos domésticos. A medida, que aumentaria o impacto dos aumentos do dólar sobre os custos operacionais das empresas, receberia a seguinte menção do Informativo SNEA:

“A Portaria Interministerial MF/MME n. 1, de 4 de janeiro, que promove a equalização do preço do QAV (querosene de aviação) nos vôos domésticos e internacionais traz aumento de 15% a 30% para os custos das empresas aéreas. A conclusão é de um estudo encomendado pelo Presidente do SNEA, George Ermakoff, aos departamentos técnicos das empresas aéreas. “‘Fomos todos surpreendidos pela portaria, que era aguardada para o final do ano e onera ainda mais o setor. É importante salientar que o preço doméstico do combustível é agravado pelo ICMS em 25%, o que

290

Informativo SNEA, n. 21, junho 2000, p. 2.

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significa que o preço doméstico em junho será cerca de 30% superior ao preço internacional’, analisa Ermakoff. “O Presidente do SNEA julga inapropriado que se refira à equalização como uma retirada de subsídio. ‘Isso não existe. A maxidesvalorização do real, em 1999, fez o Governo adotar uma política que consistia na manutenção do preço do combustível no mercado doméstico em moeda nacional, e não em dólar. Foi uma decisão de política econômica’, explica.”291 Em outubro de 2000, quando George Ermakoff substitui Mauro Gandra na presidência do SNEA, a entidade reorientaria sua estratégia no sentido de atuar mais diretamente sobre o centro do poder. Tal reorientação seria consistente com o perfil do novo dirigente, que durante a gestão de Gandra fora Secretário de Relações Governamentais e, trabalhando no grupo Varig, havia atuado como Diretor Regional em Brasília. A aproximação com os representantes do poder público do Executivo e Legislativo se confirmariam desde a sua cerimônia de posse, realizada em Brasília e não no Rio de Janeiro, onde a entidade tem sua sede. A presença de importantes deputados, senadores e membros do judiciário e do Executivo – fato destacado através de várias fotos, em três das quatro páginas do informativo do SNEA dedicado à cerimônia de posse – demonstram o sentido que ganharia a direção do sindicato patronal neste novo período.292 A nova estratégia do SNEA indica, por um lado, a migração do foco da dinâmica política do setor do Rio de Janeiro para Brasília. Esta mudança revelaria a perda relativa de importância das relações com o DAC, sediado no Rio de Janeiro, e o maior peso dado às instâncias mais altas do Poder Executivo e ao próprio Congresso, para onde se canalizariam parte das iniciativas dos empresários. A cerimônia de posse de Ermakoff,

291

Informativo SNEA, N. 28, janeiro-fevereiro 2001, p. 3. A mudança de foco em relação à gestão de Gandra se explicitaria também na descontinuidade da publicação do informativo, cujo último número é lançado em fevereiro de 2001. Daí em diante, são lançados apenas alguns informativos avulsos, sem periodicidade definida, dedicados quase exclusivamente ao registro do falecimento de algumas personalidades ligadas ao setor, como Rolim Amaro (presidente da Tam). A nova estratégia, contudo, não implicaria o abandono completo de ações voltadas para o fortalecimento da imagem pública das empresas aéreas. Em janeiro de 2001, por exemplo, Ermakoff, acompanhado dos presidentes das principais empresas, assinaria junto com o então Ministro da Saúde, José Serra, um Termo de Cooperação garantido transporte aéreo gratuito para órgãos e tecidos destinados a transplantes humanos (Informativo SNEA, N. 28, jan-fev 2001, p. 1). 292

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realizada na Câmara de Deputados em Brasília e não no Rio de Janeiro, onde fica a sede do SNEA, parece confirmar a aludida mudança.293 A orientação de Ermakoff no sentido de se aproximar das autoridades se revelaria, por exemplo, nos relatos dando conta de seus encontros com o Ministro da Fazenda, Pedro Malan. Um destes encontros foi relatado no Informativo SNEA de janeiro e fevereiro de 2001:

“O Presidente do SNEA foi recebido pelo Ministro da Fazenda, Pedro Malan, na sede regional do Ministério, no Rio de Janeiro, em 19 de janeiro. O principal assunto em pauta foi a competitividade das empresas aéreas brasileiras. “O ministro sugeriu a criação de um fórum de competitividade para o setor, no âmbito do Ministério do Desenvolvimento. O fórum funcionaria nos moldes do que já ocorre com outros segmentos da economia, como telecomunicações e eletroeletrônicos.”294 Um outro relato, já por ocasião das discussões em torno da nova agência reguladora do setor295, mais uma vez sinalizaria para o perfil de Ermakoff. Após a aprovação a Lei Kandir296, o Ministério da Fazenda propôs algumas medidas visando compensar a redução na arrecadação, e dentre elas, estava a cobrança de IPVA de aeronaves. Ermakoff contou ter sido alertado sobre a medida pelo Ministro da Defesa, e imediatamente procurou o Ministro da Fazenda Pedro Malan para tentar revertê-la. Segundo Ermakoff, Malan não tinha conhecimento da medida, que tinha sido idealizada pelo secretário da Receita Federal Everardo Maciel. A medida, por fim, foi cancelada.

293

Neste sentido, vale mencionar o registro da cerimônia de posse da nova diretoria, para a qual foi dedicado um número inteiro do informativo da entidade: “A solenidade de posse da nova Diretoria do SNEA lotou o Auditório Nereu Ramos, da Câmara dos Deputados, em Brasília, na noite de 7 de novembro, com centenas de autoridades, parlamentares, empresários, executivos, sindicalistas e jornalistas. (…) Após o discurso do Presidente George Ermakoff e a despedida do ex-Presidente, Brigadeiro Mauro Gandra, os convidados dirigiram-se ao Restaurante Panorâmico da Câmara de Deputados, onde aconteceu o jantar festivo” – “Aviação tem noite de gala em Brasília”, Informativo SNEA, N. 26, novembro 2000, p. 2. 294 Informativo SNEA, n. 28, janeiro e fevereiro 2001, p. 3. 295 Relato feito por Ermakoff durante a seção “O SNEA e a ANAC: uma visão empresarial”, no seminário Os aeronautas e a Agência Nacional de Aviação Civil, Rio de Janeiro, 6 de fevereiro de 2001. 296 A Lei Complementar n. 87, de 13 de setembro de 1996, também conhecida como Lei Kandir, veio atender à necessidade de regulamentação da cobrança de ICMS pelos estados, conforme determinado pela Constituição de 1988. Seu principal objetivo foi incentivar as exportações de forma a equilibrar a balança comercial, e entre outras medidas, procedeu-se à eliminação do tributo sobre produtos primários e semielaborados voltados para exportação. A lei teve um impacto negativo considerável na receita de diversos estados, os quais eventualmente vieram cobrar compensações do governo federal.

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Diante do conjunto de questões que oporiam o núcleo do Executivo e empresários, a aproximação que havia marcado estes dois atores no passado daria espaço a uma percepção cada vez mais negativa, por parte dos empresários, em relação ao governo. Esta percepção aparece no seguinte trecho, onde o presidente do SNEA, George Ermakoff, fala sobre a situação das empresas. “Das empresas aéreas falam em má administração, falam em um monte de asneiras, as pessoas de fora que não conhecem o setor. Eu credito única e exclusivamente ao governo, ao governo brasileiro a situação das empresas aéreas. Não existe essa questão de má administração, nessa escala. Então, a não ser que fosse aqui um bando de loucos rasgando dinheiro. Mas nessa escala não existe. Então, todos os problemas que as empresas aéreas viveram, viveram em função dos desmandos do próprio governo federal. (...) “Modéstia à parte, nós entendemos muito mais do setor do que eles. E os caras acham que... vem uns caras lá de ‘nariz em pé’, que estuda lá não sei em que faculdade. Acha que não pode ter proteção aqui, não pode ter proteção ali. São todos com a cabeça de outro lugar. Quer dizer, eles não estão enxergando a realidade brasileira.”297 Em que pese a menor ênfase na publicização das ações da entidade, o próprio desenrolar da dinâmica política se encarregaria de manter o SNEA presente nos meios de comunicação e nos espaços institucionais públicos, como o Congresso. Como veremos no próximo capítulo, Ermakoff e os empresários do setor teriam papel importante nos debates em torno da nova agência reguladora do setor. Ao mesmo tempo, o reconhecimento político dos sindicatos de trabalhadores, simbolicamente expresso pela presença de seus representantes na posse da nova diretoria, indica a ampliação dos atores envolvidos nesta dinâmica política, apontando para sua maior democratização. A próxima seção, dedicada à participação dos trabalhadores na conjuntura em análise, pode confirmar esta percepção.

297

George Ermakoff, Entrevista ao autor, 11/5/2004. Em outro trecho da entrevista, Ermakoff reforça a percepção negativa em relação ao governo, mais especificamente em relação às autoridades econômicas, apesar das boas relações com o ministro da Economia, Pedro Malan: “Eu sempre me dei muito bem como Malan. O problema do Malan é que a equipe econômica... o ministro, logicamente, tem que se basear no que dizem seus assessores. A equipe econômica era completamente liberalizada ou neoliberal, o que você quiser chamar. E é aquilo que eu te digo: o tal do Dr. Considera, por exemplo, que era uma ‘pedrinha no sapato’. O Considera foi um dos mentores desta liberalização. Quer dizer, eu sou a favor da liberalização, eu não sou contra a liberalização. Eu acho que a economia de mercado é boa. Desde que você coloque todo mundo do mesmo jeito. É a mesma coisa que você fazer uma corrida, deixar um cara dez dias sem comer, e outros saírem ‘zero quilômetro’. Não tem condição, entendeu? Então tem que resolver as mazelas do próprio governo antes, para depois permitir que as empresas concorram livremente.”

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5.3. Os sindicatos de trabalhadores A atuação dos trabalhadores dentro da dinâmica política do setor de aviação comercial continuaria, no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, voltada para a tentativa de ampliação do debate público sobre o setor. Neste sentido, a postura de negociação continuaria prevalecendo sobre o estilo confrontacionista dos anos 1980, ante um cenário de retração da indústria, sob a constante ameaça de demissões e eventualmente, o encerramento das atividades de algumas das principais empresas.298 Ao contrário do que foi constantemente sugerido ao longo da década, no entanto, a crise econômica não representaria um momento de retração da ação sindical como um todo, senão que de enfraquecimento dos movimentos grevistas, e fortalecimento da atuação institucional. Orientados para a criação de canais de interlocução junto ao poder público, às empresas e à opinião pública, os sindicatos eventualmente ganhariam maior visibilidade e capacidade de ação. O Sindicato Nacional dos Aeronautas continuaria se destacando dentre os trabalhadores. Além de seu informativo, o SNA investiria na presença em outros meios de comunicação, especialmente a imprensa escrita, e na maior presença em fóruns e espaços institucionais direta ou indiretamente ligados à aviação, o que revelaria o aumento de visibilidade do SNA e dos trabalhadores na dinâmica do setor. Dentre estes espaços, o Congresso Nacional se destacaria como foco cada vez mais importante de atuação sindical, atuação que eventualmente encontraria reciprocidade por parte dos parlamentares. Os artigos publicados na imprensa (principalmente O Globo e Folha de São Paulo) são citados ao longo desta seção, enquanto a atuação junto ao poder público será objeto de uma análise específica. Alguns dos fóruns alternativos de que o sindicato

298

Em artigo publicado no jornal O Globo, reproduzido no informativo do SNA, Graziella Baggio lembrou que o setor havia passado por uma profunda reestruturação, que havia cortado em torno de 15 mil postos de trabalho desde o início dos anos 1990. A produtividade do setor havia subido de US$ 31 mil em 1989 para US$ 170 mil por funcionário em 1999, e o custo com pessoal havia caído de 35% para 18% no mesmo período, segundo dados do DAC (“Fusão e competição nos céus”, Dia a Dia, n. 435, 12 a 25/5/2000, p. 6, também publicado em O Globo, 6/5/2000).

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participou foram o Conselho Consultivo do curso de Ciências Aeronáuticas da PUC-RS, em conjunto com a Aeronáutica, o SNEA e a ICAO,299 e reuniões como a promovida pela Organização Internacional do Trabalho para discutir a situação dos trabalhadores do setor após os atentados de 11 de setembro.300 A estratégia de perfil mais institucional, no entanto, não eliminaria de todo a adoção de posturas mais agressivas sob determinadas conjunturas. Nas negociações de natureza trabalhista, envolvendo reajustes salariais, convenções coletivas e as recorrentes medidas “emergenciais” tomadas pelas empresas, os trabalhadores não descartaram a realização de greves, manifestações públicas e, na maior parte dos casos, recorreram ao dissídio coletivo como forma de garantir direitos. Ainda que se tratando de uma medida de natureza eminentemente institucional, a abertura de processos judiciais e as denúncias ao DAC contra as empresas, visando reparar medidas em desacordo com a regulamentação profissional e outros abusos por parte dos empregadores, também revelariam espaços onde o estilo confrontacionista se sobreporia à negociação e ao diálogo. Uma visão geral sobre o estilo de atuação do sindicato é revelada, por exemplo, num artigo publicado na Folha de São Paulo, escrito pela presidente do Sindicato Nacional dos Aeronautas, Graziella Baggio e o então presidente da CUT, Vicentinho. Nele, os autores reconhecem a imperiosidade da mudança de estratégia sindical, ao mesmo tempo em que cobram dos demais atores – especialmente as empresas – um movimento no mesmo sentido.

“As mudanças na estrutura produtiva pelas quais a economia brasileira está passando obrigam os sindicatos a reformularem suas práticas políticas, com ênfase na negociação entre patrões e trabalhadores. Esta nova realidade é expressa na queda do número de greves. Obviamente, esta nova postura não deve ser cobrada apenas dos sindicatos de trabalhadores. Por se tratar de uma negociação, é necessário que a ‘outra parte’, isto é, os sindicatos patronais, também tenham uma nova 299

Cf. Dia a Dia, n. 400, 30/4 a 13/5/1999, p. 3. Os aeronautas participaram desta reunião sob a coordenação da ITF, enquanto os representantes do governo brasileiro foram técnicos do Ministério do Trabalho. As empresas brasileiras, por sua vez, não mandaram representantes. Segundo o informativo, apesar do objetivo inicial ter sido uma avaliação dos atentados, o encontro “acabou tendo importância maior, concluindo que (…) não se trata de uma crise conjuntural. A crise é estrutural, principalmente em países em desenvolvimento, como o Brasil”. Por fim, a ênfase do encontro teria recaído sobre a proposição de fóruns para discutir os rumos da atividade em nível internacional, regional e nacional (Cf. Dia a Dia, n. 480, fevereiro 2002, p. 8). 300

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postura, mais aberta ao diálogo e calcada em discussões técnicas e políticas condizentes com a realidade da economia e das empresas. “Infelizmente, no setor de transporte aéreo, a transição para este sindicalismo de diálogo está sendo obstruída pelo comportamento autoritário do sindicato patronal. Após empurrar a negociação salarial do ano de 1997 para o TST, o SNEA vem trabalhando desde o início das negociações de 1998 para repetir o feito e encerrar mais um acordo nos salões do tribunal. “Para evitar radicalizações, é necessário que a reformulação das estratégias de negociação aconteça em ambos os lados, sem que a parte mais forte tente impor seu ponto de vista aos demais parceiros.”301 Embora não tenham realizado nenhuma greve de fato, os líderes sindicais continuariam reconhecendo o recurso à greve como um instrumento legítimo de ação. Em 2000, por exemplo, os aeronautas decretariam “Estado de greve”, justificando a medida da seguinte forma: “Diante da radicalização das empresas, que decidiram excluir na íntegra 22 itens e alterar vários outros em prejuízo dos trabalhadores, os aeronautas se viram obrigados a tomar uma postura mais firme.”302 No ano seguinte, o editorial do informativo do SNA defenderia novamente a greve, com os seguintes argumentos:

“Movimentos reivindicatórios, com paralisações sempre que necessárias, ocorrem no mundo todo, de forma natural. No Brasil é que ficou incutida a idéia de que greve é um instrumento de pressão superado. É urgente a mudança de mentalidade sob pena dos direitos dos trabalhadores escorrerem ‘ralo’ abaixo, dentro de pouco tempo.”303

301

“O teatro da aviação”, Dia a Dia, n. 394, 5 aq 18/2/1999, p. 2. Também publicado na Folha de São Paulo em 29/1/1999. Collares apresentaria as principais reivindicações dos aeronautas em entrevista à Aeromagazine, ao ser questionado sobre a possibilidade das empresas reduzirem custos via redução nos gastos com tripulantes. “Estão querendo acabar com direitos adquiridos pela categoria como a diária remunerada de bordo e a diária de alimentação, além da remuneração extra aos domingos. Tudo isso está na convenção coletiva. Para alguns, significa cerca de 15% dos seus ganhos. Estamos sem reajuste há dois anos. Por isso, pedimos um reajuste baseado no INPC, de dezembro de 97 a novembro de 98, de cerca de 2,3% mais uma produtividade de 11,3%. Queremos ainda, estabelecer um piso normativo para a categoria, coisa que ainda não existe no Brasil. (…) Estamos tentando de todas as maneiras renovar a convenção coletiva, que expirou em fevereiro e vale por dois anos, através da Justiça. Mas, se não chegarmos a uma solução comum, a possibilidade de greve não está descartada” – Aeromagazine, n. 58, março de 1999, p. 42-43. 302 Dia a Dia, n. 450, 25/11 a 8/12/2000, p. 1. 303 “Editorial”, Dia a Dia, 458, 24/3 a 6/4/2001, p. 2. Em diferentes oportunidades, o informativo do SNA destacaria a realização de greves e paralisações em empresas na Europa, na América do Norte e na América do Sul, noticiadas na seção “Aviação no mundo” (Cf. Dia a Dia, n. 458, 24/3 a 6/4/2001, p. 7 e n. 460, 21/4 a 4/5/2001, p. 5).

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Na mesma linha da crítica à postura dos empresários em relação às questões salariais e trabalhistas, os trabalhadores abordariam negativamente o comportamento do empresariado nas situações de crise. Em artigo também publicado na Folha de São Paulo, Vicentinho e Graziella Baggio argumentam que as empresas não estariam preparadas para enfrentar os desafios da concorrência, recorrendo a demandas individualizadas por socorro, sem passar por canais públicos de diálogo com as autoridades, com prejuízo para os trabalhadores e a sociedade.

“Para responder a um quadro sistemático de crises, a prática das empresas aéreas tem sido recorrer aos gabinetes de Brasília, onde, a portas fechadas, negociam, entre outros pontos, aportes de capital e refinanciamento de dívidas e avais governamentais, em troca de reestruturações, programas de qualidade total das empresas, reengenharias e principalmente demissões (foram quase vinte mil somente na última década).”304 Os líderes sindicais delineiam, neste artigo, os principais pontos em torno dos quais seria possível, do ponto de vista dos trabalhadores, encontrar uma solução para a crise. Primeiramente, seria preciso reafirmar a “importância estratégica” da aviação comercial para o país. Vicentinho e Graziella mencionam as recomendações da comissão criada nos Estados Unidos, no início da década de 1990, envolvendo membros de diferentes setores do governo e da indústria visando encontrar soluções para aumentar a competitividade das empresas aéreas norte-americanas. Aquela experiência, que viria a ser citada em diferentes oportunidades, apontava para a importância estratégica da aviação comercial, e para a necessidade de apoio governamental à indústria como forma de garantir que a atividade cumprisse seu papel. Neste sentido, os autores afirmam:

“Se os Estados Unidos, campeões mundiais do liberalismo, consideram que sua aviação não é assunto somente para o mercado, mas um instrumento estratégico de governabilidade e desenvolvimento, o que dizer do Brasil? Em um mundo globalizado, no qual a disputa por

304

“Transporte Aéreo, sinônimo de soberania”, Dia a Dia, n. 407, 6 a 19/8/1999, p. 2. Também publicado em Folha de São Paulo, 1/8/1999.

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mercados é cada vez mais acirrada, como enfrentar a concorrência internacional sem a existência de uma aviação nacional forte e saneada?” 305 Em segundo lugar, e este vinha sendo o ponto fundamental de toda a estratégia do sindicato em relação ao setor, seria necessário ampliar o espaço público de debate sobre a aviação, incluindo os diferentes segmentos envolvidos com o setor. Destarte, os autores apresentam o que viria a ser a principal bandeira dos trabalhadores neste período: a criação de um “Fórum Nacional de Aviação Comercial”.

“E quanto ao mercado interno, como garantir que a aviação brasileira cumpra, com segurança, eficiência e baixos custos, o papel estratégico de integração nacional? (…) Consideramos ser esse um assunto de interesse geral, não restrito ao setor e muito menos aos gabinetes fechados do governo federal. E, diante da realidade pré-falimentar das empresas aéreas nacionais, propomos ao Congresso Nacional a criação de um Fórum Nacional de Aviação Civil. Os objetivos principais seriam a garantia ao Brasil do controle estratégico do transporte aéreo nacional, a garantia de igualdade de condições de competitividade com as principais concorrentes estrangeiras no que se refere aos juros, financiamento de aeronaves e peças, leasing (…).”306 Como revela a parte final do trecho supracitado, a perspectiva de confronto e os interesses radicalmente opostos no campo das relações de trabalho, assim como a crítica às formas tradicionais de ação da classe patronal, não impediriam que os trabalhadores se aproximassem dos empresários quanto à visão geral sobre a crise no setor.307 Com efeito, a percepção de que a manutenção dos empregos dependeria da sobrevivência das empresas levaria os trabalhadores a se posicionar em muitas oportunidades ao lado dos empresários, especialmente em relação à percepção de que cumpria ao governo oferecer condições de competitividade para as empresas. A garantia de competitividade para o setor passaria, para empresários e também para os trabalhadores, pela redução nos encargos das empresas com tributos e pela

305

“Transporte Aéreo, sinônimo de soberania”, id.. Id.. 307 Um importante indício desta aproximação seria a publicação, no Informativo SNEA, de um artigo de capa onde o então presidente do SNA, Luís Fernando Collares, defenderia a criação do Fórum – “Criação de um Fórum Nacional”, Informativo SNEA, n. 8, maio 1999, p. 1. O artigo foi seguido de uma nota em que o então presidente do SNEA, Mauro Gandra, manifestou seu apoio à proposta de Collares. 306

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revisão da política governamental para os itens relativos à operação das aeronaves, como combustível e a importação de peças de reposição. O depoimento da Diretora de Secretaria Política do Sindicato Nacional dos Aeroviários, Selma Balbino, em audiência promovida pela Comissão de Fiscalização e Controle da Câmara dos Deputados, é um exemplo desta aproximação de interesses, quando ela afirma:

“Estamos vivendo uma grande crise, e o custo do combustível faz parte de uma série de reivindicações das empresas aéreas, que não querem subsídio, mas um tratamento diferenciado. Basicamente, 99% de todo o custo do setor advém de importação, de mão-de-obra especializada e de impostos absurdos que são pagos hoje. Isso faz com que a indústria nacional não seja competitiva em relação às empresas européias e americanas. (…) Aproveitando a oportunidade, é preciso dizer que o Custo Brasil para as empresas nacionais – e não estou incluindo os encargos trabalhistas; só ICMS, taxas de importação de peça, câmbio, o próprio custo do combustível – gira em torno de 35%. As empresas americanas, com o mesmo padrão de qualidade que as nossas – e o nosso é muito bom – têm em torno de 7,5%. Essa diferença é muito grande, astronômica. Dessa forma, não pode haver e é desleal essa competitividade.”308 “Seria o fim da concorrência no transporte aéreo brasileiro, com todas as conseqüências funestas provocadas por uma situação de monopólio. (…) Portanto, a rota que está sendo estimulada pelo Governo para a aviação precisa ser alterada. O desejo de todos é um transporte aéreo barato, seguro e eficiente. Para tanto, concorrência é fundamental. Ao invés da redução, o que precisamos é o estímulo à entrada de novas e grandes empresas no mercado. E aí, algumas barreiras, de caráter econômico (…), precisam ser derrubadas.”309 As referidas barreiras estariam na esfera da ação governamental, especificamente na carga tributária do setor, que se configuraria como entrave decisivo para o

308

Selma Balbino. Depoimento à Comissão de Fiscalização Financeira e Controle. Brasília: Câmara dos Deputados, 15/6/2000, p. 2. A depoente viria a qualificar sua defesa das empresas aéreas, lembrando que ao fazê-lo, defendia a redução de custos de forma a baratear as tarifas aéreas e ampliar o público consumidor deste meio de transporte: “Gostaria também de deixar registrada a grande preocupação que temos com a população brasileira, preocupação essa dos dirigentes e dos trabalhadores altamente qualificados que estão aqui. Nossa discussão sobre o custo das empresas nacionais é muito em função de que achamos não poder o transporte aéreo nacional continuar sendo um transporte apenas das elites. A população brasileira, num país de dimensões continentais como o nosso, deve ter direito ao transporte aéreo” (p. 3). 309 Graziella Baggio, “Fusão e competição nos céus”, Dia a Dia, n. 435, 12 a 25/5/2000, p. 6, também publicado em O Globo, 6/5/2000.

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crescimento do mercado de aviação comercial. Se as empresas já haviam feito várias reestruturações, e os trabalhadores já haviam perdido empregos e aumentado a sua produtividade,

“Falta o governo fazer a sua parte. Não faz sentido onerar as empresas aéreas brasileiras com uma carga tributária de 35% quando as empresas americanas pagam apenas 7,5%; é preciso criar linhas de financiamento (capital de giro renovação de frota, importação de peças) adequadas às necessidades do setor. (…) Portanto, existe uma série de fatores pressionando os custos do setor sobre os quais as empresas não possuem nenhum controle e que precisam ser enfrentados pela sociedade e pelo governo brasileiro, sob pena de continuarmos assistindo a quebradeira generalizada, a redução da concorrência e a elitização do transporte aéreo, com os preços cada vez mais altos.”310 A partir deste diagnóstico, a atuação do SNA envolveria uma crescente pressão sobre as autoridades do Executivo e o recurso ao Congresso Nacional de modo a canalizar suas demandas. Entre 1999 e 2000, os representantes dos aeronautas se reuniram com diversas autoridades para discutir a crise no setor e apresentar a proposta de criação do fórum. O primeiro encontro, com o vice-presidente Marco Maciel311, seria seguido de reuniões com diversas autoridades: o Secretário Executivo da Câmara de Comércio Exterior, José Botafogo Gonçalves; o Ministro do Desenvolvimento, Alcides Tápias; o presidente do BNDES, Andrea Calabi; o Ministro da Defesa, Geraldo Quintão; o Secretário de Organização Institucional do Ministério da Defesa, José Augusto Varanda; o Ministro da Casa Civil, Pedro Parente; o Secretário-Geral da Presidência, Aluísio Nunes Ferreira;312 o presidente da Embratur, Caio Carvalho; além de várias reuniões no DAC.313 A situação da Vasp, que esteve ameaçada de paralisar suas atividades no período, levaria o SNA a pedir intervenção governamental diretamente ao Presidente da

310

Id.. Dia a Dia, n. 400, 30/4 a 13/5/1999, p. 2. Neste encontro, os líderes sindicais Luiz Fernando Collares e Graziella Baggio estiveram acompanhados do deputado Jair Meneguelli (PT-SP). 312 Desta reunião, participaram também Alcides Tápias e o Secretário Executivo do Ministério do Desenvolvimento, Milton Seligman. 313 Os encontros foram relatados, respectivamente, em: Dia a Dia, n. 401, 14 a 27/5/1999, p. 5; n. 415, 5/11/1999, p. 2; n. 419, 3 a 9/12/1999, p. 3; n. 430, 25/2 a 16/3/2000, p. 1; n. 431, 17 a 30/3/2000, p. 5; n. 432, 31/3 a 13/4/2000, p. 1; n. 433, 14 a 27/4/2000, p. 9 e n. 437, 26/5 a 8/6/2000, p. 2. 311

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República,314 atitude que também seria tomada conjuntamente pela CUT e pela Força Sindical.315 Os sindicalistas procurariam inclusive o governador de São Paulo, Mário Covas, uma vez que o governo do estado detinha uma participação acionária na empresa.316 Embora a empresa tenha conseguido recuperar-se no segundo semestre de 2000, beneficiada por uma recuperação de todo o setor, ela paralisaria todas as suas rotas internacionais e, conseqüentemente, eliminaria centenas de postos de trabalho. Uma nova rodada de encontros com autoridades demarcaria a concretização da proposta do almejado Fórum do setor. Já na conjuntura do pós-11 de setembro, o secretário de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda, Claudio Considera, recebeu o SNA e propôs uma reunião em que os representantes dos trabalhadores se manifestassem perante o recém-criado Conselho Nacional de Aviação Civil (CONAC).317 Posteriormente, os sindicalistas seriam convidados para participar do Fórum de Competitividade criado pelo Ministério do Desenvolvimento, cujos trabalhos levariam à edição da medida provisória de auxílio ao setor, já em setembro de 2002318. Revelando o espaço conquistado pelos trabalhadores na dinâmica política do período, dois dirigentes sindicais, Pedro Azambuja (presidente da Federação Nacional dos Aeronautas e Aeroviários) e João Felício (presidente da CUT), seriam recebidos por Pedro Parente um dia antes da edição da medida provisória.319 Como já foi discutido na seção referente ao Poder Executivo, a edição da medida provisória de auxílio às empresas aéreas se deu num ambiente de enfraquecimento do governo como um todo, e da área econômica em particular. Mesmo considerando a dinâmica política mais ampla do país, que passava por um processo eleitoral onde o candidato governista se encontrava em posição desfavorável, é preciso reconhecer que uma proposta dos trabalhadores – ainda que adaptada à concepção de um “fórum de competitividade” – havia finalmente se tornado realidade, e talvez pela primeira vez desde o início das reformas para o mercado, havia chegado a algum tipo de resultado. O 314

Dia a Dia, n. 441, 21/7 a 3/8/2000, p. 2. Dia a Dia, n. 442, 4 a 17/8/2000, p. 3. 316 Na oportunidade, Covas argumentou estar aguardando uma decisão judicial sobre o percentual relativo ao estado, uma vez que o grupo Canhedo havia realizado uma manobra financeira para reduzir de 40% para 4% este percentual. “Segundo o Governo do estado, esta iniciativa não tem amparo legal e ainda lhe cabem 40%. Enquanto isso, Covas prometeu formar uma comissão para examinar o que pode ser feito. Delegou a tarefa ao Secretário Estadual de Trabalho, Walter Barelli” (Dia a Dia, n. 443, 18 a 31/8/2000, p. 1). 317 Dia a Dia, n. 470, 6 a 20/9/2001, p. 2. 318 Dia a Dia, n. 479, 23/1/2002, p. 3. 319 Dia a Dia, n. 484, setembro 2002, p. 4. 315

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aprendizado democrático aqui revelado ganharia ainda um outro componente, com o fortalecimento do Poder Legislativo, analisado na próxima seção.

5.4. O Legislativo De modo a finalizar o retrato dos principais atores ligados ao setor de aviação comercial, seus principais interesses e suas estratégias de ação, é preciso destacar a crescente importância assumida pelo Congresso como arena da dinâmica política do setor, e ao mesmo tempo ator relevante para sua compreensão. A importância do Congresso se revela, em primeiro lugar, pelo número de audiências públicas realizadas em suas diversas comissões, muitas das quais destacadas através dos depoimentos já citados ao longo deste capítulo. Foram realizadas audiências públicas abordando a crise do setor e assuntos afins, como segurança e as condições de trabalho dos profissionais, em diferentes comissões na Câmara (Defesa do Consumidor, Minorias e Meio Ambiente, Comissão de Viação e Transporte, Fiscalização Financeira e Controle, Relações Exteriores e Defesa Nacional) e no Senado (Comissão de Assuntos Econômicos).320 A já assinalada presença dos presidentes da Câmara de Deputados e do Senado na posse de George Ermakoff na presidência do SNEA, além de importantes parlamentares de diferentes partidos, como os deputados Delfim Neto (PPB-SP), Ronaldo Caiado (PPB-GO) e Paulo Delgado (PT-MG), mostra o reconhecimento recíproco entre congressistas e a entidade. A atuação do SNEA no Congresso se faria sentir de forma mais intensa, porém, durante a tramitação do projeto de criação da ANAC, que será discutido no próximo capítulo. Em relação aos trabalhadores, em diferentes oportunidades os parlamentares intermediaram seus encontros com autoridades do Executivo, reforçando o peso político das propostas dos sindicalistas.321 Dentro da estratégia de criação de um fórum de discussão sobre o setor, o SNA proporia ao Congresso a criação de uma Comissão Especial para abordar a crise na aviação comercial. O informativo do SNA destacou a

320

As audiências na Câmara de Deputados estão transcritas e disponíveis no website da Câmara de Deputados (www.camara.gov.br). 321 Ver, por exemplo, nota 311.

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iniciativa em um de seus números, relatando o encontro informal de Graziella Baggio, acompanhada dos deputados Jair Meneguelli (PT-SP) e Marcelo Barbieri (PMDB-SP), com o presidente da Câmara, Michel Temer, onde a líder sindical fez um apelo para que Temer deferisse o pedido de criação da comissão especial.322 Apesar dos esforços neste sentido, a comissão especial para tratar da crise do setor e realizar a ampla discussão pedida pelos trabalhadores não foi criada em 2000, e uma relativa recuperação do setor ao longo daquele ano viria a diminuir a pressão dos atores por ações do poder público. Seria preciso aguardar até o ano seguinte, em 2001, para que o Congresso assumisse um papel decisivo para os rumos do setor. Após o envio pelo Executivo do projeto de lei criando a Agência Nacional de Aviação Civil, a ANAC, o Congresso criaria finalmente uma comissão especial destinada à atividade. A criação da nova agência configuraria o segundo eixo da dinâmica política da aviação comercial no período 1999-2002.

5.5. Conclusões Neste capítulo, procurei mostrar que a conjuntura de crise aguda vivida na virada do milênio consolidou importantes mudanças na dinâmica política do setor de aviação comercial. Por parte do Poder Executivo, a cisão entre “monetaristas” e “desenvolvimentistas” se tornou explícita, ao mesmo tempo em que a hegemonia do primeiro grupo sobre o segundo tendeu a perder força. Medidas que vinham sendo vetadas pela área econômica ao longo da maior parte do governo Fernando Henrique, como redução da carga fiscal, perdão de dívidas e aporte de recursos, acabaram sendo adotadas ao final do mandato. A forma como estas medidas foram concebidas e implementadas, no entanto, sugere uma mudança no padrão de relacionamento entre Estado e interesses privados. Ao invés do padrão tradicional de acesso individualizado e muitas vezes informal que marcou a história do capitalismo brasileiro em geral e do setor em particular, nesta oportunidade as medidas foram discutidas dentro de um fórum 322

“Caravana a Brasília é um sucesso”, Dia a Dia, n. 437, 26/5 a 8/6/2000, p. 6. A “caravana” envolveu ainda a distribuição de manifestos aos parlamentares no aeroporto, uma manifestação com faixas em frente ao Congresso e encontro com outros parlamentares, como o presidente da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, Ney Suassuna (PMDB-PB) e o presidente da Comissão de Economia, Indústria e Comércio, Ênio Bacci (PDT-RS). Outros parlamentares, como o Senador Eduardo Suplicy (PT-SP) e Régis Cavalcanti (PPS-AL) ganharam destaque no informativo por ter contribuído para a atuação do sindicato.

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institucional de caráter público, com a participação dos trabalhadores e tendo como principal objetivo não oferecer “socorro” às empresas em dificuldade, mas garantir condições de competitividade para o setor. Como foi visto, do ponto de vista das autoridades econômicas, os laços estreitos entre atores estatais e agentes econômicos seria fonte de ineficiências e vícios que prejudicariam o desempenho do setor. No entanto, como sustentam os empresários, o mau desempenho do setor estaria atrelado justamente aos problemas de gestão do governo. Um dos focos da crítica dos empresários ao poder público foi o contraste entre o discurso liberalizante das autoridades econômicas e o controle sobre o reajuste das tarifas. Do ponto de vista do empresariado, o referido controle feria a própria concepção defendida pela área econômica de que o mercado, e não o Estado, deveria ser o mecanismo regulador dos assuntos de natureza comercial, onde, para os empresários, as tarifas estariam incluídas. Este seria um caso em que o governo, a despeito de sua orientação no sentido do retraimento do Estado, estaria regulamentando de forma excessiva o setor, usando as empresas de aviação comercial para “fazer política econômica”, como afirmou o presidente do SNEA, George Ermakoff. Os empresários também chamaram atenção para o excesso de encargos sobre as empresas, envolvendo os tributos cobrados de todos os setores econômicos, e também aqueles específicos da aviação comercial, dentre eles alguns com a finalidade de financiar empresas estatais (caso do ATAERO, para o financiamento da modernização da rede da Infraero). Sob o argumento de que o setor teria a peculiaridade de ser intensivo em diversos insumos ao mesmo tempo – tecnologia, mão-de-obra qualificada, consumo de energia, capital – ou seja, um setor de custos elevadíssimos e pequenas margens de lucro, os empresários argumentaram que estes encargos, por menores que fossem, punham em xeque os ganhos de produtividade alcançados. Até o ponto em que o argumento dos empresários seja válido, trata-se de uma evidência de que, ao contrário do preconizado pela ortodoxia neoliberal, o fato das autoridades econômicas se orientarem por um “estilo tecnocrático de gestão”, pretensamente isolados das pressões de grupos de interesse, não faz do Estado um agente neutro em relação à dinâmica política e à própria dinâmica econômica. Ao contrário, na experiência brasileira das reformas para o mercado, o Estado acabou se revelando um agente dotado de interesses, muitos dos quais conflitantes em relação aos agentes econômicos.

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A atuação dos empresários, por sua vez, revela uma importante inflexão com a eleição de Mauro Gandra para a presidência do sindicato patronal. Sob sua liderança, o SNEA assumiu uma postura mais aberta, procurando explorar canais públicos de interlocução com outros atores sociais. Com isto, o SNEA procurou melhorar a sua imagem perante a opinião pública, que tendia a ver as empresas aéreas de forma muito negativa: serviços de má qualidade, desrespeito ao usuário, “as tarifas mais caras do mundo”. Esta estratégia seria importante para garantir mais legitimidade aos pleitos das empresas num contexto de crise.

Com a eleição de George Ermakoff, o SNEA

continuaria atuando nos diferentes espaços de natureza pública que vieram a fazer parte da dinâmica política do setor, com destaque para o Congresso. Com efeito, a indicação de Ermakoff refletiria o reconhecimento do Congresso como importante arena política. Uma tendência que se consolidou no contexto analisado é a aproximação entre empresários e trabalhadores, com a identificação de diversos interesses comuns. Esta tendência reforça o argumento do parágrafo anterior, de que os empresários estariam ampliando seus canais de interlocução e apostando na publicização de sua atuação política. Por outro lado, mostra que os trabalhadores consolidaram a estratégia de privilegiar uma atuação de natureza mais institucional. Como foi observado, esta mudança rendeu não só o reconhecimento dos sindicatos como atores com legitimidade para atuar dentro da dinâmica política do setor, como também fez com que os trabalhadores avançassem algumas de suas propostas. A mais importante delas foi a implementação bem-sucedida de um fórum institucional com a participação de atores estatais e não-estatais ligados ao setor, para discutir e propor soluções para a crise da aviação comercial. Por fim, o fortalecimento do Congresso como espaço para onde se canalizou parte considerável da dinâmica política do setor, e como ator relevante neste jogo. Até a consolidação da abertura do setor, pode-se dizer que a dinâmica política estava concentrada no próprio DAC, sediado no Rio de Janeiro, e no interior do Executivo. A posse de Ermakoff, as audiências públicas e as mobilizações dos sindicatos dos trabalhadores indicam uma importante mudança no que diz respeito ao espaço da dinâmica política, que migraria para Brasília e, especificamente, para o Congresso Nacional. Esta tendência sugere o fortalecimento da dimensão pública da referida dinâmica, o que por sua vez mostra haver algum grau de aprendizado democrático por

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parte dos atores. Este aprendizado seria colocado à prova com o envio ao Congresso, pelo Poder Executivo, do projeto de criação da Agência Nacional de Aviação Civil, tema do último capítulo desta tese.

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6. As negociações em torno da ANAC

Dentre as realizações do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, pode-se apontar o aprofundamento da abertura em vários setores da economia brasileira. Desde atividades de menor visibilidade, como a navegação de cabotagem, até símbolos da fase de substituição de importações, como o monopólio da Petrobrás sobre a exploração do petróleo, foram abertos à concorrência interna e externa através de mudanças na legislação. O programa de privatizações se estendeu às telecomunicações e à distribuição de energia, ao mesmo tempo em que um amplo programa de reforma do Estado foi iniciado, visando promover uma transformação na capacidade gerencial de seus quadros e uma nova abordagem no que diz respeito às finanças públicas. Uma vez realizada a agenda da abertura econômica, e dentro da agenda da reforma do Estado, seria preciso reorganizar o aparato governamental de forma a adequá-lo a novos padrões na sua relação com os agentes econômicos. Estando o novo projeto de desenvolvimento baseado na participação da iniciativa privada em diversas atividades anteriormente ocupadas pelo Estado, o governo Fernando Henrique lançou mão do modelo norte-americano das agências reguladoras para realizar a mediação entre o poder público e os agentes econômicos323. Subjacente à sua criação estava a necessidade de garantir autonomia ao poder regulador, tanto em relação aos interesses privados quanto em relação às intempéries do jogo político. Neste sentido, as agências viriam possibilitar uma clara distinção entre as tarefas do governo (que seriam próprias dos ministérios) das tarefas do Estado, conferindo estabilidade na relação entre poder público e agentes econômicos privados, o que por sua vez criaria um ambiente seguro para que os empresários tivessem confiança para fazer investimentos324. No caso da aviação comercial, a reforma do aparato regulatório não envolvia um processo de privatização, como no caso das telecomunicações e da energia elétrica, ou 323

Uma vasta literatura veio a ser produzida em torno deste novo modelo, sempre partindo da premissa de que na mão de agentes privados, o setor de infra-estrutura ganharia mais eficiência e qualidade, gerando maior bem-estar para a população. Esta literatura foi produzida dentro e fora de instituições diretamente ligadas à gestação deste novo modelo, como por exemplo, o BNDES. Ver, a respeito, SOUZA e MOREIRA (1995), PRADO (1996), NASCIMENTO (1996), RIGOLON (1997) e PIRES e GOLDSTEIN (2001). 324 Para uma perspectiva crítica, ver a discussão baseada em BOSCHI e LIMA (2001), no capítulo 1.

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de quebra de monopólio, como no caso do petróleo. O setor aéreo brasileiro sempre se caracterizou pela participação predominante do capital privado, e já funcionava sob o controle de um órgão regulador, o Departamento de Aviação Civil. Os desafios representados pela criação da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), neste sentido, se não eram de todo distintos de outros setores de infra-estrutura, eram também marcados por especificidades importantes. A primeira delas diria respeito à transição do controle militar para o controle civil, representando a extinção da “Doutrina do Poder Aéreo Unificado” tão cara aos militares da aeronáutica. O fim do controle militar sobre a aviação comercial representaria uma mudança de monta, com implicações simbólicas e práticas para o funcionamento do setor. Em segundo lugar, é preciso destacar que a criação da ANAC se daria numa conjuntura de crise acentuada, tornando mais dramático o jogo de pressões entre Executivo e interesses privados. Por fim, cabe salientar que a tramitação do projeto na Câmara dos Deputados, atendendo a regras regimentais orientadas para a democratização do processo, se revelaria incompatível com a postura do Poder Executivo. Neste caso, contingências ligadas a interesses divergentes acabariam conduzindo a um impasse, que impediu a criação da agência até o final do período analisado. Neste caso, a qualidade das relações entre os atores envolvidos – Executivo, Legislativo, empresas, sindicatos de trabalhadores – pesou negativamente para a reorganização do setor. Quanto ao projeto em si, em seus princípios fundamentais, ele se caracterizou por uma orientação liberalizante, a despeito de manter alguns princípios como a preservação do “interesse nacional” e a contribuição “para o desenvolvimento econômico e a integração nacional”. Destacam-se, por outro lado, a ênfase na promoção da competição e a preocupação com a satisfação dos usuários, dentro do modelo geral que orientou a criação das demais agências reguladoras.325 O projeto se estendeu no detalhamento da estrutura administrativa da nova agência, definindo competências, mandatos para os diretores, fontes de custeio e cargos. Outra inovação importante foi a

325

O parágrafo VI do Art. 1o. menciona a promoção da “competição e a diversidade dos serviços, a adequação de sua oferta e proporcionar padrões de qualidade compatíveis com as exigências dos usuários” enquanto o Art. 3o., de forma mais genérica, reza: “No disciplinamento das relações econômicas no setor de aviação observar-se-ão os princípios constitucionais da soberania nacional, liberdade de iniciativa, livre concorrência, defesa do consumidor, repressão ao abuso do poder econômico e continuidade da prestação do serviço em regime público.”

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inclusão da infra-estrutura aeroportuária como objeto de regulação, neste caso prevendo-se a possibilidade de concessão dos aeroportos brasileiros à iniciativa privada A autonomia da agência estaria garantida através de uma série de mecanismos, dentre os quais a composição de uma diretoria colegiada com mandatos fixos não coincidentes326 e a previsão de fontes próprias de receita. A preocupação com a transparência e a publicização das ações da ANAC se expressaria através da criação de uma Ouvidoria e da exigência de audiências públicas para tratar de projetos de lei ou alteração de normas administrativas implicando “afetação de direitos de agentes econômicos ou de usuários de serviços aéreos comerciais”, conforme rezava o artigo 29. Para além dos aspectos comuns ao novo modelo das agências reguladoras, no entanto, o projeto da ANAC se estendeu sobre alguns itens importantes da agenda política do setor. Questões como concessão, tarifas e suplementação tarifária foram incluídas no projeto, relativizando o caráter meramente administrativo que o Executivo pretendia lhe dar327. A partir do momento em que o projeto chegou ao Congresso, atendendo às exigências regimentais para sua tramitação, deu-se início a uma série de audiências públicas onde foram chamados a participar representantes das empresas, dos trabalhadores, associações de usuários do transporte aéreo e outros segmentos da aviação civil, como táxi aéreo, aviação geral e representantes de empresas estrangeiras. O trabalho dos parlamentares se estendeu ao longo de mais de seis meses, resultando num substitutivo bastante diverso em relação à proposta original do governo. Na próxima seção, será apresentada a posição do Poder Executivo sobre o projeto. Em seguida, serão apresentadas as principais questões colocadas por representantes das empresas e dos trabalhadores em relação à proposta elaborada pelo Poder Executivo, com destaque para os depoimentos apresentados na Comissão Especial criada para apreciar o projeto da ANAC. Na terceira seção, serão apresentadas as principais mudanças feitas pela Comissão Especial, culminando na retirada do projeto pelo Poder Executivo. Por fim, será apresentada uma breve conclusão sobre as idéias expostas neste capítulo. 326

Os membros da diretoria seriam indicados pelo Ministro da Defesa e o Presidente da República, sujeitos a aprovação no Senado. 327 A própria ementa do projeto, no entanto, explicitava que a intenção do PL 3846 não se limitava à criação da ANAC, dispondo também sobre a ordenação da Aviação Civil.

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6.1. O discurso do Poder Executivo A criação da Agência Nacional de Aviação Civil fez parte das negociações em torno da reunião das pastas militares sob o Ministério da Defesa. Inicialmente, por reivindicação da Aeronáutica, o projeto do novo Ministério foi enviado para o Congresso mantendo a aeronáutica civil sob controle militar. No entanto, os congressistas não aceitaram este item, e para que fosse criado o novo ministério, foi preciso fazer uma emenda ao projeto original determinando a criação do órgão civil328. A partir do momento em que a desmilitarização entrou na agenda do Executivo, a posição do DAC parece ter sido de aceitar a criação da nova agência. A estratégia dos militares, neste momento, passaria da resistência à identificação de espaços onde pudesse manter algum tipo de controle sobre a atividade. É o que expressa o Diretor Geral do DAC Tenente Brigadeiro do Ar Marcos Antônio Oliveira (15/12/1998 a 22/02/2000), ao afirmar num primeiro momento:

“Apenas trocar o nome da entidade não muda nada. O que a gente quer é realmente aprimorar a gestão da aviação civil. Assim, é preciso mudar, e muito. (…) A transição não será fácil. Para que ela ocorra tranqüilamente, entre outras medidas, há que se criar o máximo de facilidades para se ter uma boa condição estrutural até a tramitação do projeto da agência. “Já estamos trabalhando neste sentido. Está em curso atualmente a análise de toda essa estrutura de regulamentos, normas e leis que nós temos hoje e que, de certa forma, colocam o Estado em uma posição apenas de vigia fiscal e não de promotor da atividade de aviação civil. Já iniciamos conversações com a FGV, para que ela estude tudo isso. Precisamos saber o quanto o Estado deve intervir para assegurar o máximo de segurança e conforto ao usuário, sem que haja abuso econômico.”329 Paralelamente à preocupação em garantir uma boa transição para a nova agência, estava a preocupação quanto ao que não deveria ser transferido para a ANAC. Oliveira cita uma série de atividades ligadas ao DAC que vão além do controle das empresas

328

O presidente Fernando Henrique teria pessoalmente apoiado a inclusão desta emenda. Estas informações foram relatadas pelo presidente do SNEA, George Ermakoff, no Seminário Os aeronautas e a Agência Nacional de Aviação Civil, promovido pelo SNA e realizado no Rio de Janeiro entre os dias 6 e 7/2/2001. 329 DAC Notícias, n. 16, 1999, p. 6.

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aéreas regulares, como, o Centro Tecnológico Aeronáutico, o trabalho de homologação de aeronaves, a capacitação dos profissionais (inclusive os exames de saúde), entre outros.

“Como passar estas atividades diretamente para a Agência? É necessário cautela na transição. Não é possível tirar um pedaço do CTA, da Diretoria de Saúde da Aeronáutica, ou da Diretoria de Engenharia. Esta última, só para informação geral, é quem faz as normas dos aeroportos, das pistas etc.. Outro exemplo é a Diretoria de Eletrônica e Proteção ao Vôo, que é responsável por todo o controle do espaço aéreo para civis e militares. “Não podemos duplicar esforços, o país não tem recursos para isso, muito menos para se ter dois órgãos executando o mesmo trabalho. Temos é que integrar toda a administração pública, fazer o máximo de uso da capacidade já existente. A idéia é somar. Desta forma o que temos que fazer é potencializar o que já existe e não acabar com o que está funcionando.”330 Da mesma forma que foram capazes de negociar a abertura do mercado de aviação comercial, os militares da aeronáutica demonstraram flexibilidade o suficiente para aceitar o debate sobre a desmilitarização do controle do mercado. Ao invés de uma postura radical contra o processo, sua estratégia parece ter se orientado por tentar garantir seu espaço de poder no interior do modelo em gestação.331 Com efeito, a criação da ANAC foi coordenada pelo próprio Ministério da Defesa, ao qual a agência seria vinculada, e não pelo núcleo do Executivo, que em outras oportunidades havia liderado as mudanças no setor. O principal articulador dos trabalhos de criação da ANAC dentro do Executivo foi o Secretário de Organização Institucional do Ministério da Defesa, José Augusto Varanda332. Ele concedeu uma entrevista à revista Aeromagazine em fevereiro de 2000, praticamente um ano antes do envio do PL 3846 à Câmara de Deputados. Nela, Varanda 330

Id., p. 6. A proposta da RENACI 2000, discutida no capítulo anterior, pode ter sido parte desta estratégia, representando uma tentativa de aproximação, ou reforço nos vínculos existentes, entre os militares e os principais atores do setor. A orientação do Poder Executivo, no entanto, avessa às articulações com os interesses privados, pode ter neutralizado a estratégia dos militares. A melhor estratégia não passaria por uma aproximação com empresários e trabalhadores, mas antes por uma aproximação com o próprio núcleo do Poder Executivo. 332 De acordo com uma pequena biografia apresentada pela revisa Aeromagazine na entrevista analisada a seguir, Varanda é funcionário de carreira do Banco Central, tendo passagens pelos ministérios da Fazenda, Planejamento e Casa Civil, onde trabalhou diretamente com Clóvis Carvalho, que conduziu a abertura do setor no primeiro mandato de Fernando Henrique. 331

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salienta quais seriam as principais inovações representadas pela futura ANAC em relação ao DAC, do ponto de vista institucional. A agência teria uma estrutura similar às agências já criadas, com uma diretoria com mandato fixo e dotada de autonomia de gestão, inclusive financeira, o que permitiria à ANAC “trabalhar com mais liberdade e agilidade”333. Ele salienta que o texto do projeto não deveria entrar em muitos detalhes, limitando-se às regras básicas e gerais. Deveria haver também espaço para o atendimento aos interesses dos usuários, tanto no que diz respeito ao perfil dos usuários atendidos pelos serviços aéreos quanto à redução de preços334. Naquele momento, a proposta do governo era que mudanças na regulação do setor deveriam se dar a partir do funcionamento da agência, e não o contrário, como ocorrera, por exemplo, com o setor de Telecomunicações335. A justificativa apresentada pelo Secretário foram os “prazos que o governo tem para gerir esse processo, como a tramitação no Congresso Nacional”336. Quanto às mudanças na regulamentação,

“A Agência precisará de algum tempo para elaborar os modelos, propor, discutir com o governo esses modelos e aí implantar uma série de pequenas normas que poderão ser modernizadas e melhoradas ao longo desses estudos, que já irão produzir reflexos. Há uma regulamentação hoje, por parte do DAC que a ANAC poderá rever, dentro de uma nova filosofia, talvez mais da desregulamentação, de liberar uma série de procedimentos. Mas vamos precisar de mais tempo para a consolidação de grandes mudanças.”337

333

José Augusto Varanda. “Entrevista: A primeira voz clara”, Aeromagazine, n. 69, fevereiro 2000, p. 44. “Também haverá a preocupação de atender ao interesse dos usuários, buscando identificar quem são os mais beneficiados pela oferta de vôos e tentando promover recursos para baratear o preço das passagens, que seria o ideal de todo órgão regulador” – Varanda, “Entrevista...”, p. 44. 335 No caso deste setor, como recorda Varanda, “houve estudos durante alguns anos, consultores externos, enfim, uma série de fatos se juntou a este processo, com capacidade técnica muito grande. Isso demora algum tempo e, quando se implanta a agência, rapidamente se criam condições para o processo de concessão” – “Entrevista..”, p. 45. 336 Id., pp. 44-45. 337 Id., p. 45. Em seu depoimento à Comissão na Câmara de Deputados, Varanda reforçaria esta idéia, ao afirmar: “A nova regulamentação virá com o novo código (CBA) e com os estudos que serão elaborados por consultores independentes. O processo de contratação desses consultores já está em andamento. Ele será feito pelo BNDES. A regulação virá com a própria regulamentação que a agência desenvolverá ao longo do tempo. Será normal que seu detalhamento influencie principalmente o comportamento do dia-adia do setor, normalmente a parte mais sensível para o usuário do transporte aéreo” (José Augusto Varanda. Depoimento à Comissão Especial – Projeto de Lei n. 3846/00. Brasília: Câmara dos Deputados/Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação, 19/6/2001, p. 2). 334

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Varanda aborda também a sistemática adotada na formulação do projeto, a qual viria a ser objeto de críticas por parte de trabalhadores e empresários, os quais não tiveram espaço para intervir. Perguntado sobre as pessoas que haviam influenciado o projeto, ele responde: “O grupo era interno, do Ministério da Defesa. Tivemos a colaboração de especialistas do DAC, pessoas com vasto conhecimento de aviação civil e até da história do mercado, das empresas, enfim. Também participaram pessoas da Infraero, para cobrir essa parte aeroportuária, e pessoas ligadas ao Comando da Aeronáutica, aqui em Brasília, que é o Estado-Maior da Aeronáutica, além da colaboração de juristas especializados, tanto do DAC como do Comando da Aeronáutica, e gente do Ministério da Defesa, da minha Secretaria, e a assessoria especial do ministro Élcio Álvares.”338 Apesar da sistemática adotada inicialmente, a postura do Poder Executivo parecia num primeiro momento apontar para uma disposição em negociá-lo, conforme relatou o Informativo SNEA em sua primeira edição de 2001 (o PL 3846 foi enviado ao Congresso em dezembro de 2000). Em matéria intitulada “Governo diz que o projeto da ANAC não é imutável”, o informativo dá espaço para algumas idéias apresentadas por José Augusto Varanda sobre a sua tramitação:

“O Congresso Nacional tem toda a liberdade para aprimorar o projetode-lei de criação da Agência Nacional de Aviação Civil, que sucederá o Departamento de Aviação Civil na tarefa de regular e fiscalizar a aviação comercial no Brasil. De acordo como Secretário de Organização Institucional do Ministério da Defesa (Seori), José Augusto Varanda, ‘o Governo está inteiramente aberto ao diálogo.’ “‘Não temos a veleidade de achar que o projeto seja perfeito e que não possa ser aperfeiçoado. Acredito que este seja o pensamento de todos os ministérios envolvidos. É lógico que temos limites. Precisamos criar uma 338

Id., p. 45. O Informativo SNEA publicaria, após o envio do projeto à Câmara dos Deputados, uma matéria na qual, entre outros assuntos, é abordada toda a trajetória do projeto. “Ao recapitular a trajetória do projeto da ANAC até o envio da proposta ao Congresso, José Augusto Varanda recorda que a revisão do Código Brasileiro de Aeronáutica e o primeiro anteprojeto da Agência foram concluídos no final de 1999. A tarefa foi executada no âmbito interno do Ministério da Defesa, através do Comando da Aeronáutica, do DAC, do Estado-Maior da Aeronáutica, da Infraero e da própria Seori (Secretaria de Organização Institucional). No início de 2000 as propostas seguiram para exames na Casa Civil da Presidência da República, onde foram analisadas conjuntamente com os Ministérios da Fazenda e do Planejamento. Quando considerado tecnicamente maduro, o projeto foi enviado ao então recém-criado Conselho de Aviação Civil. Foi quando o Ministro do Desenvolvimento Alcides Tápias, membro do Conselho, solicitou exame da proposta, dando início a intensas reuniões entre equipes da Defesa e do Desenvolvimento” (Informativo SNEA, N. 28, janeiro-fevereiro 2001, p. 2).

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agência que atenda aos interesses dos usuários e ao mesmo tempo mantenha o mercado sadio’, disse em entrevista ao INFORMATIVO SNEA.”339 Não obstante, o fator tempo novamente seria mencionado como preocupação de Varanda, na seqüência do trecho acima:

“Eu pessoalmente gostaria de vê-la criada até o final deste ano, para que o trabalho tivesse uma seqüência. Desta forma, teríamos ainda o ano de 2002 para que a ANAC fosse consolidada dentro ainda do Governo Fernando Henrique’, afirmou, assinalando, entretanto, que é muito difícil fazer previsões quando não se tem o controle do processo.” A primeira audiência pública realizada na Comissão Especial criada na Câmara de Deputados para analisar o PL 3846 teve como depoentes os principais responsáveis pela sua formulação: o próprio Ministro da Defesa, Geraldo Quintão; o Comandante da Aeronáutica, Carlos de Almeida Baptista; e o Diretor-Geral do DAC, Venâncio Grossi. Geraldo Quintão se encarregaria de explicar à Comissão a razão para a sistemática adotada na formulação do projeto, argumentando que a criação da ANAC teria uma natureza eminentemente administrativa, não comportando um debate amplo.

“Durante o processo de elaboração das propostas do Código Brasileiro de Aeronáutica e do projeto da ANAC, fomos indagados por diferentes segmentos da comunidade aeronáutica. A todos informei, até em público, que o projeto da ANAC era administrativo e, como tal, seria encaminhado ao Congresso Nacional sem exposição ao amplo debate externo. Já o Código Brasileiro de Aeronáutica, este sim, seria submetido, previamente, à consulta pública.”340

339

Informativo SNEA, n. 28, janeiro-fevereiro 2001, p. 2. Geraldo Quintão. Depoimento à Comissão Especial – Projeto de Lei n. 3846/00. Câmara dos Deputados/Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação, 15/5/2001, p. 11. Em exposição numa reunião de trabalho organizada pela Sociedade Brasileira de Direito Aeroespacial (Rio de Janeiro, 29/4/2001), Alex Cataldi, representante do Ministério da Defesa, afirmou que “oito pessoas foram trancadas numa sala” (ele inclusive) para originalmente realizar uma reformulação do Código Brasileiro de Aeronáutica, não podendo “interagir” com interesses externos. A interação, no entanto, teria sido feita através do DAC, que subsidiou os trabalhos do grupo e realizou consultas. Cataldi, no entanto, reconheceu que num determinado momento, o governo decidiu criar a ANAC antes de alterar o Código Brasileiro da Aeronáutica, ao contrário da proposta original. 340

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Varanda também abordaria o assunto em seu depoimento, novamente enfatizando o fator tempo para justificar a metodologia de trabalho:

“A princípio, não pretendemos ouvir os usuários, os sindicatos, as empresas de aviação em geral e até mesmo os proprietários de avião particular. Se tentarmos trazer todas essas opiniões para o projeto, certamente vamos retardá-lo ou paralisá-lo.”341 Como já foi destacado, a desmilitarização do controle sobre a aviação civil se constituiria numa das mudanças mais importantes representadas pela criação da ANAC. Os depoimentos de Carlos Baptista e Geraldo Quintão, por exemplo, salientaram o importante papel cumprido pela Aeronáutica na organização da aviação civil brasileira342. Baptista, no entanto, ressaltou que as questões ligadas à aviação civil – aí incluída a Infraero – acabaram deixando em segundo plano as atividades militares, que perderam recursos para a ordenação da aviação civil343, justificando então uma nova divisão do trabalho que permitisse à Aeronáutica se dedicar à defesa do espaço aéreo. Esta divisão do trabalho incluiria ainda o Conselho Nacional de Aviação Civil (CONAC), criado em 2001, o qual se responsabilizaria pela formulação das políticas para o setor (enquanto caberia à ANAC implementá-las). O novo sistema de aviação civil estaria, portanto, baseado num tripé formado pelo Comando da Aeronáutica, pelo CONAC e pela nova agência.344

341

José Augusto Varanda. Depoimento à Comissão Especial..., p. 4. Este aspecto foi ressaltado, em tom emotivo, pelo ministro Geraldo Quintão: “É oportuno lembrar que quando os senhores se dirigem às suas cidades no interior do Brasil, podem fazê-lo graças ao empenho e à coragem patriótica de pessoas que, muitas vezes, não viram seus esforços concretizados, tampouco foram recompensados em termos de láureas, reconhecimento público. Esses militares da Aeronáutica desempenharam as tarefas por amor à Pátria e dedicação ao trabalho” (Geraldo Quintão. Depoimento à Comissão Especial..., p. 4). 343 O Comandante da Aeronáutica salienta este aspecto no seguinte trecho: “A INFRAERO, junto com a aviação civil, tomava perto de 70% do tempo do Ministro e depois do Comandante da Aeronáutica. E era verdade, isso, aliado à falta de recursos a tempo e a hora para a Força Aérea Brasileira, fez com que a capacidade operacional da nossa Força fosse debilitada, como está hoje” (Carlos Baptista. Depoimento à Comissão Especial – Projeto de Lei n. 3846/00. Câmara dos Deputados/Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação, 15/5/2001, pp. 27-28). 344 A Aeronáutica permaneceria com o controle do espaço aéreo e outras atividades, confirmando a visão expressa pelo ex-Diretor Geral do DAC, Marco Antônio Oliveira (ver trecho referente à nota 330). 342

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A criação da agência, por fim, foi entendida como um passo decisivo na modernização da aviação comercial brasileira345, representando o fim do modelo intervencionista do qual o DAC seria principal símbolo. Quanto a este ponto, todos os atores estiveram de acordo. A base comum, no entanto, encontraria seus limites na resistência dos empresários e trabalhadores não só em relação à sistemática adotada na feição do projeto, como em itens importantes como o regime de concessão e questões de natureza tarifária. A posição de empresários, trabalhadores e outros segmentos convidados a participar das audiências públicas será apresentada a seguir.

6.2. A visão dos empresários e dos trabalhadores sobre o projeto Como salientado pelo próprio representante do Ministério da Defesa, José Augusto Varanda, empresários e trabalhadores não participaram das discussões que levaram à apresentação da primeira versão do projeto, enviada ao Congresso em fins de 2000346. Em um de seus depoimentos à Comissão Especial da Câmara de Deputados, a presidente do Sindicato Nacional dos Aeronautas, Graziella Baggio, chamou atenção para este fato, criticando a postura do governo:

“parece-me que projeto que foi apresentado sobre a Agência Nacional de Aviação, o Projeto nº 3.846, lamentavelmente não contou com a participação de alguns setores, ou os setores que envolvem a aviação brasileira. Os trabalhadores não foram consultados. Nem os empresários, pelo que me parece, pelas declarações que pude acompanhar nos jornais, foram consultados; portanto, além dos trabalhadores, deixaram de ouvir os empresários e demais segmentos afins do setor.”347

345

Em que pese, num determinado momento, José Augusto Varanda ter afirmado: “Para o Governo (...) não há problema em manter a estrutura atual, embora reconheçamos que ela não é adequada. O DAC poderia ser vinculado diretamente ao Ministério da Defesa. Dessa forma, a Aeronáutica iria dedicar-se apenas aos assuntos da Força Aérea.” Por outro lado, conclui: “Se isso acontecer, teremos perdido grande oportunidade de avançar no sentido de ter uma aviação comercial mais moderna e mais competitiva” (José Augusto Varanda. Depoimento..., pp. 4-5). 346 Não obstante, George Ermakoff relatou que na preparação do projeto, o governo se baseou num documento preparado pelo advogado do SNEA, especialista em concessões públicas. 347 Graziella Baggio. Depoimento à Comissão Especial – Projeto de Lei n. 3846/00. Câmara dos Deputados/Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação, 23/5/2001, p. 21.

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Além da crítica à exclusão dos envolvidos com o setor, os depoimentos de representantes do empresariado e dos trabalhadores da aviação comercial enfatizaram uma série de pontos de discordância com o projeto do governo. O que mais se destacou foi o modelo de concessão proposto pelo Executivo, que previa a realização de licitação, com a possibilidade da mesma ser onerosa para as empresas. Não só a “concessão onerosa”, mas também a definição do objeto da licitação (por linha, conjunto de linhas, região ou sub-região) e o prazo estipulado de concessão – 10 anos renováveis por igual período – desagradaram a todos os envolvidos,348 seja por implicar uma maior burocratização de todo o sistema, engessando a atividade empresarial, devido ao aumento dos custos causado pela própria concessão onerosa e pelo impacto nos financiamentos. No caso do objeto de concessão, os presidentes das empresas e representantes sindicais argumentaram que um modelo de concessão por linhas ou conjunto de linhas349 esbarrava numa dificuldade técnica. Os dirigentes procuraram demonstrar que as empresas não montam sua malha em função de trechos individuais, mas através de uma complexa de rede de rotas que se alimentam mutuamente350. O então presidente da Varig, Ozires Silva, enfatizou a complexidade operacional do setor, e a dificuldade que a mesma introduziria para se montar um mecanismo de licitação.

348

A concessão de linhas, horários e rotas, desde a abertura, estava liberada para todas as empresas homologadas para atuar no mercado de aviação comercial brasileiro, ficando sujeita apenas às restrições de natureza técnica, que existiam basicamente em aeroportos de grande movimento, como Congonhas e Santos Dumont. 349 O Art. 31 do PL 3846 rezava: “A exploração dos serviços aéreos comerciais, domésticos ou internacionais, por empresas aéreas nacionais, dependerá de outorga pela ANAC, representando a União como poder concedente, mediante concessão ou permissão, quando se tratar de serviço de transporte aéreo regular, e, mediante autorização, quando se tratar de serviço de transporte aéreo nãoregular ou de serviços aéreos especializados, conforme disposto nesta Lei e na regulamentação complementar.” 350 Na audiência em que foi depoente, Ermakoff deu o exemplo de um vôo entre São Paulo e Salvador, cuja ocupação inclui passageiros embarcados no sul do Brasil que fazem conexão na capital paulista, e depois, há passageiros que fazem conexão em Salvador para outras capitais do nordeste. O presidente da Gol, Constantino Jr., também abordou o tema: “Com relação à concessão por linha, também imagino a dificuldade muito grande de conseguir economicidade ao criar, dessa forma, um limitador da produção. Vou citar um exemplo para ilustrar. Um eventual vôo de uma linha determinada, Porto Alegre/São Paulo, em que há determinados passageiros que têm interesse de ir a Brasília. De repente, a concessão da linha de São Paulo a Brasília é de outra empresa. Então, são duas empresas operando em condições diferentes, com a baixa produtividade de seus aviões, visto que o avião da linha de Porto Alegre a São Paulo quando chega a São Paulo tem que voltar a Porto Alegre. Isso dificulta muito a condição de produtividade dos aviões” – Constantino de Oliveira Jr.. Depoimento à Comissão Especial – Projeto de Lei n. 3846/00. Câmara dos Deputados/Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação, 29/8/2001, p. 33.

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“Sei claramente que a Constituição brasileira, nas concessões públicas, obriga a licitação. Mas a licitação não ocorre em nenhum país do mundo. Numa indústria internacionalizada como essa, não há licitação. Por outro lado, se houver, temos que começar a pensar como gerenciar uma licitação que tenha vários ganhadores, em que as tarifas são estabelecidas de uma forma extremamente complexa. Pergunto: qual é o critério básico para se fazer uma licitação? Como se pode garantir uma licitação sobretudo em um tipo de transporte que envolve fundamentalmente critérios técnicos da mais alta sofisticação, como é o caso da segurança de vôo? Parece-me que esse gerenciamento seria muito difícil. “Se os Srs. Deputados desejarem, colocaremos especialistas à disposição para analisar como isso poderia ser gerenciado. Tenho a impressão de que seria a melhor maneira de convencer os Srs. Deputados de que o gerenciamento disso não é factível, como isso pode ocorrer.”351 O prazo de concessão de dez anos foi considerado extremamente curto, considerando os prazos de financiamento das aeronaves e os altos custos que envolvem a operação de linhas aéreas. O presidente da Varig lembrou o depoimento do dirigente de uma empresa européia como termo de comparação, e enfatizou a dificuldade que este prazo representaria em relação às operações de leasing, utilizadas pelas empresas para adquirir aeronaves:

”Nós ouvimos aqui Sr. S. Hauss representando a Lufthansa. Trouxe a esta Comissão a informação de que, na Alemanha, o prazo é ilimitado. Não há limite de tempo. Na maioria dos países constavam 35 anos. Nos Estados Unidos, 35 anos, com renovação automática. A sociedade brasileira não tem idéia do montante de investimento para uma linha. Por exemplo, nós lançamos uma linha para Munique, e o investimento direto para essa linha foi de 30 milhões de dólares. Imaginem V.Exas se tivéssemos que amortizar essa conta em somente dez anos, sem falar na grande dificuldade de gerenciar contratos de leasing em períodos relativamente curtos. Não teríamos condição de garantir a linha. Se nós 351

Silva, Ozires. Depoimento à Comissão Especial – Projeto de Lei n. 3846/00. Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação/Câmara dos Deputados, 6/6/2001, p. 56. Defendendo o projeto, José Augusto Varanda fez o seguinte comentário sobre este assunto: “Já me disseram que concessão de linhas aéreas não existe em lugar algum do mundo. Ora, esse é o processo utilizado hoje no Brasil. Aqui a outorga do serviço é por linha aérea. Contudo, o projeto de lei avançou em relação à situação presente e estabeleceu-se essa regra mais aberta para que possa ser feito um sistema mais adequado, o híbrido. Esse modelo levará em consideração as diferentes situações do país. Pode haver casos em que se faça essa concessão por linha aérea. A ponte aérea é caracterizada por uma linha aérea, o avião vai e volta ali o dia inteiro, não sai daquele trecho. Isso caracteriza bem uma linha aérea. Em outras regiões, não. Certamente esse modelo será híbrido. Um modelo inteligente terá de levar em consideração todas as diferentes situações existentes no país” – José Augusto Varanda. Depoimento à Comissão Especial..., pp. 6-7.

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tivermos a concessão com esse prazo, vamos ter dificuldades até com as companhias de leasing. De modo que o prazo de 10 anos é absolutamente irreal e não é encontrado em nenhuma legislação do mundo. Eu gostaria até que as pessoas que defendem a idéia dos 10 anos buscassem na legislação mundial se existe algo paralelo nesse campo de concessão de serviço público e transporte aéreo.”352 Já o presidente da Gol, Constantino Jr., lembrou que este prazo poderia levar a um aumento nos custos das empresas, e conseqüentemente, aumento nas passagens:

“com relação à condição cíclica da economia e ao comportamento de determinadas linhas, que oscilam de acordo com algumas circunstâncias, a inflexibilidade, no caso, só prejudicaria a questão operacional. Em função de o capital investido ser enorme e da necessidade de se conseguir um retorno sobre esse capital no prazo de 10 anos, implicaria invariavelmente num custo muito alto das passagens, o que estaria na contramão de tudo o que foi dito nessa mesa ou tudo o que vem sendo discutido com relação à criação da ANAC e à situação das empresas do transporte aéreo comercial.”353 O representante da Federação Nacional de Aeroviários e Aeronautas (FNAA), Pedro Azambuja, abordou este tema, avançando proposta alternativa prevendo prazos mais longos:

“Outro comentário que gostaria de fazer diz respeito ao prazo de concessão desse serviço público, das concessões a serem autorizadas pela Agência. Discordamos do prazo do Governo, que, se não me engano, é de dez anos. (...) Nenhuma empresa aérea, pelo que temos conhecimento, pode planejar-se para cinco, seis ou até dez anos. A empresa tem de ter, no mínimo, planejamento de 20 ou 25 anos. Portanto, esta é a nossa observação quanto a tal prazo.”354

352

Ozires Silva. Depoimento à Comissão Especial…, 29/8/2001, p. 32. Constantino de Oliveira Jr.. Depoimento à Comissão Especial…, 29/8/2001, p. 33. Este argumento foi questionado por José Augusto Varanda em sua exposição: “Algumas pessoas têm dito que esse prazo é incompatível com o do leasing de uma aeronave, o qual poderia atingir mais de 20 anos. Isso também não é verdade. O mercado brasileiro, não somente na área aeronáutica, não conseguiu operações de financiamento externo com esse prazo de 20 a 25 anos. Nesse caso do leasing de aeronaves, esse prazo tem sido em torno de 8 anos. Não alcança 20 e 25 anos. Além disso, diferentemente do que alega o setor, o avião não está amarrado àquele serviço específico, podendo ser deslocado para atendimento de outro mercado” – José Augusto Varanda. Depoimento à Comissão Especial..., p. 7. 354 Pedro Azambuja. Depoimento à Comissão Especial – Projeto de Lei n. 3846/00. Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação/Câmara dos Deputados, pp. 4-5. 353

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Com efeito, as propostas formuladas pelos empresários apontaram para diferentes números, todos bem acima dos dez anos propostos no PL 3846. Os prazos mais longos permitiriam, segundo os depoimentos, bases mais favoráveis de negociação nos contratos e um melhor planejamento empresarial.

“Estamos solicitando prazo de 50 anos até porque não se concebe que uma empresa aérea, de um dia para o outro, se não conseguir, eventualmente, renovar sua concessão, tenha de demitir todos os seus funcionários, tenha que desarticular todo o seu ativo.” 355 “Em relação ao prazo de concessão, como disse, defendemos por mais de 35 anos, se fosse possível. Logicamente seria melhor, mas o prazo mínimo necessários seria de 35 anos, exatamente para que pudéssemos exigir do mercado internacional igualdade de condições no prazo de financiamento das empresas americanas. Com certeza, se tivéssemos condições de solicitar isso e conseguir o prazo de financiamento de 25 anos, a exemplo do que existe nos Estados Unidos, com toda a facilidade, também teríamos taxas menores e viabilizaríamos os nossos financiamentos, com maiores condições de competição.”356 “Mas eu devo dizer que nem linha de ônibus tem período de concessão de dez anos. Parece-me que a concessão é por 15 anos, se não me falha a memória. Nós entendemos, Sr. Presidente, que não há como esse prazo ser inferior a 25 anos. Inicialmente, coloquei o prazo de 50 anos. Acho até justo esse prazo pelos investimentos que hão de ser feitos com as empresas aéreas. Depois, o deputado fez até ponderações com relação ao meu entendimento de que 35 anos era possível. Continuo achando que 35 anos seria o ideal e que em menos de 25 anos é impossível, é impraticável, fazer investimentos e montar toda uma estrutura.”357 Por fim, a figura da concessão onerosa foi criticada por empresários e trabalhadores, ao representar a possibilidade de um custo adicional numa indústria sufocada por uma carga tributária elevada, novamente gerando impacto nos custos para os usuários. Destacou-se, por outro lado, o ineditismo da proposta em relação à aviação comercial no resto do mundo. Alguns depoimentos ilustram esta posição:

355

George Ermakoff. Depoimento à Comissão Especial..., 23/5/2001, p. 14. Wagner Canhedo. Depoimento à Comissão Especial..., 6/6/2001, p. 31. 357 George Ermakoff. Depoimento à Comissão Especial..., 29/8/2001, pp. 31-32. 356

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“Quanto à concessão onerosa por linha ou conjunto de linhas, que implicam custos operacionais mais elevados, rupturas na malha aérea, queda da rentabilidade do setor e burocratização do sistema, as empresas aéreas brasileiras opõem-se a esse tipo de concessão por encarecerem o preço da passagem e reduzirem ainda mais a competitividade dessas empresas.”358 “O art. 31, § 1°, que trata da concessão onerosa, no nosso ponto de vista, deve ser revisto, porque impõe às empresas novos custos, que certamente oneraria as passagens, cujos custos seriam repassados aos passageiros. E o transporte aéreo continuará dessa forma inacessível à maioria dos brasileiros.”359 “Quanto ao art. 31, § 1°, que trata da onerosidade das concessões, não tenho conhecimento de experiência no mundo de onerosidade na concessão de transporte aéreo. Vejo essa possibilidade como mais um custo para o setor, que tem problemas estruturais, com reflexos obviamente negativos sobre as tarifas aéreas, que subiriam, e, conseqüentemente, também sobre a demanda, que gostaríamos de ver crescer.”360 No caso das linhas internacionais, a situação se tornaria ainda mais dramática, segundo o argumento de George Ermakoff:

“Então, é necessário fortalecer financeiramente as empresas aéreas para que possam competir de igual para igual com as empresas estrangeiras. Como uma empresa nacional pode competir com uma estrangeira se já sai com um handicap enquanto a concorrente estrangeira não precisa pagar nada?”361

358

George Ermakoff. Depoimento à Comissão Especial..., 23/5/2001, p. 13. Constantino de Oliveira Jr.. Depoimento à Comissão Especial..., 12/6/2001, p. 12. 360 Cláudio Toledo. Depoimento à Comissão Especial – Projeto de Lei n. 3846/00. Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação/Câmara dos Deputados, 5/6/2001, p. 27. Aqui também cabe mencionar o contra-argumento apresentado pelo Secretário de Organização Institucional do Ministério da Defesa: “Quando falamos em concessão onerosa de linhas aéreas – e ela está prevista no projeto –, temos duas mentiras, dois equívocos. Primeiro: o projeto prevê que a concessão não será necessariamente onerosa, pode vir a sê-lo. Toda concessão é onerosa – isso é regra geral de concessão. Contudo, ela pode custar 1 real e no edital pode até ser estipulado que o valor é zero. Outros parâmetros, tal como o custo operacional, poderão ser mais indicados para a outorga do serviço do que o custo da concessão. Isso tem isso demonstrado em outros campos. A concessão de rodovias começou com um valor muito alto, o que levou a taxas de pedágio muito caras. Hoje estão procurando mudar esse modelo. Não mais querem que o valor da concessão seja a principal questão” – José Carlos Varanda. Depoimento à Comissão Especial..., p. 6. 361 George Ermakoff. Depoimento à Comissão Especial..., 23/5/2001, p. 26. 359

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As propostas, neste caso, apontaram para a realização de um tipo de licitação baseado no atendimento de critérios técnicos, tendo como referência todo o mercado doméstico, ou seja, liberdade de oferta (linha, freqüência e horário) para todas as empresas qualificadas, conforme um “plano geral de outorgas” que deveria ser definido pelo governo federal. Conforme expôs Ermakoff em seu depoimento, as empresas defendiam

“novas concessões por licitação, utilizando-se a qualificação técnica, econômica e financeira como critério de seleção (nós entendemos que a agência deverá preparar um plano de outorgas, submeter ao Presidente da República e depois licitar a quantas empresas forem necessárias).”362 Wagner Canhedo, presidente da Vasp, detalhou um pouco mais a proposta: “Defendemos um modelo nacional de concessões. Somente assim poderemos operar com integração total não só da nossa malha, mas também da malha de outras empresas, podendo fazer transferência de passageiros em todos os aeroportos onde houver necessidade de conexão. “É indispensável que a concessão seja nacional e não linha por linha ou ponto a ponto, porque nem sempre uma rota ponto a ponto, um vôo nonstop barateia o custo da passagem. É necessário que haja a integração da malha como um todo, não só da empresa operadora, como também das outras empresas, para que o passageiro possa fazer conexões com mudança de empresa, de itinerário, de equipamento.”363 Ainda em relação à concessão, é preciso mencionar o problema das linhas internacionais, cuja abertura para todas as empresas brasileiras ao longo dos anos 1990 provocou um quadro de competição acirrada entre as próprias empresas brasileiras, que eventualmente se viram fragilizadas financeiramente e incapazes de competir com as empresas estrangeiras, especialmente as norte-americanas, que também receberam autorização para voar para o Brasil. A proposta, neste caso, seria a revisão dos acordos bilaterais, de forma a reequilibrar a divisão do mercado entre empresas brasileiras e estrangeiras. Essa proposta foi formulada de forma mais explícita pelos representantes dos trabalhadores. A presidente do SNA, Graziella Baggio, abordou o tema:

362 363

George Ermakoff. Depoimento à Comissão Especial..., 23/5/2001, p. 13. Wagner Canhedo. Depoimento à Comissão Especial..., 6/6/2001, p. 19.

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“Há dois anos os trabalhadores estiveram nesta Casa – e tive a oportunidade de trazer essa questão – muito preocupados com o setor de transporte aéreo. (...) Naquele momento, vínhamos discutindo a necessidade imperiosa de a aviação brasileira ter condições de competitividade com relação às empresas estrangeiras. Isso, a nosso ver, continua sendo fundamental, independentemente da discussão paralela da Agência Nacional de Aviação Civil. Na oportunidade, discutimos a possibilidade de revermos os acordos bilaterais, levando em consideração a situação em que as nossas empresas se encontravam naquele momento. Esse ainda é um dos pontos que consideramos estruturais para ser discutido sobre o setor (...).”364 Outro item do projeto objeto de resistência, especificamente dos empresários, foi a proposta de suplementação tarifária de forma a financiar vôos sem viabilidade comercial, mas considerados de interesse nacional, especialmente na região amazônica. Segundo o presidente do SNEA, esta suplementação representaria mais um encargo no preço dos bilhetes, encarecendo os serviços aéreos. Embora não discordem da existência de um subsídio para vôos desta natureza, os empresários argumentaram que se tratava de recursos que deveriam ser garantidos pelo Poder Público.

“Se vamos dar apoio à aviação regional, indispensável para o País, especialmente no que diz respeito aos vôos de integração nacional, esse subsídio deveria ser bancado em primeiro lugar pelos Municípios, em segundo lugar pelos Estados, em terceiro lugar pelo Tesouro Nacional. Fazer o usuário do transporte aéreo pagar essa tarifa significa tornar cada dia mais inviável o valor das tarifas aéreas.”365 “Defendemos que tem que haver previsão no orçamento. Se for interesse da Prefeitura de determinada cidade que haja avião no seu aeroporto, essa Prefeitura arcaria com o ônus de complementar a operação da empresa. Se o Estado deseja desenvolver determinada região através de transporte aéreo, caberia ao Estado suplementar. Em última análise, isso caberia à União, quando não houvesse interesse nem da Prefeitura nem do Estado, e fosse uma necessidade de desenvolvimento e de integração nacional.”366 364

Graziella Baggio. Depoimento à Comissão Especial..., 6/6/2001, p. 20. Wagner Canhedo. Depoimento à Comissão Especial..., 6/6/2001, p. 4. 366 Percy Rodrigues. Depoimento à Comissão Especial – Projeto de Lei n. 3846/00. Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação/Câmara dos Deputados, 12/6/2001, p. 20. O único empresário que se mostrou contrário a qualquer tipo de suplementação, inclusive financiada pelo Poder Público, foi curiosamente Rolim Amaro, cuja empresa, como ele próprio reconheceu, recebeu suplementação tarifária 365

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A resistência a novos encargos sobre a atividade das empresas aéreas se somaria à pressão pela redução de encargos antigos, dentro os quais o adicional tarifário sobre os serviços de utilização da infra-estrutura aeroportuária, o ATAERO. A inclusão dos aeroportos no âmbito de atuação da ANAC abriu espaço para queixas dos empresários em relação ao aumento de custos representado pelo adicional. Outro ponto polêmico relativo à infra-estrutura aeroportuária foi o “Direito Real de Uso”, não previsto no PL 3846. De acordo com a legislação vigente, os imóveis construídos em terreno da união (desde as instalações dentro dos aeroportos até os hangares) se tornam patrimônio da união. A reivindicação das empresas aéreas, neste caso, era que tais instalações pudessem ser utilizados como garantia nos financiamentos, aumentando a capacidade de negociação das empresas.

“A legislação brasileira prevê mecanismos para que a propriedade de qualquer obra executada em terreno da União seja transferida à mesma. Portanto, as empresas não têm direito sobre o patrimônio que elas mesmas constroem. A conseqüência disso é que as companhias ficam vulneráveis em termos de ativos e, nessas condições, no momento de assegurar garantias para a operação financeira, para assegurar investimentos não só na própria instalação que vai utilizar, falece à companhia o direito ou a possibilidade de usar esses imóveis que construíram como garantia. A proposta que fazemos, evidentemente de acordo com as condições legais, é transferir a propriedade à União, como está previsto na legislação, mas que no período em que isso ocorrer tenhamos, pelo menos, a propriedade virtual desses imóveis, de modo que possamos oferecê-lo como garantia.”367 ao longo de mais de duas décadas. Em seu depoimento, afirmou: “Acho que a suplementação tarifária teve seu tempo no Brasil. Embutir qualquer porcentagem numa tarifa que hoje precisa ser competitiva num mercado globalizado é suicídio. Temos que deixar as empresas fazerem suas políticas. Ademais, com o sistema regional, temos que adotar a seguinte filosofia: as empresas colocam o avião adequado onde encontrarem mercado e cobram por isso. O resto é criar artifícios, porque temos um fato novo no Brasil, que é o mercado globalizado. A suplementação tarifária foi extremamente importante para desenvolver as empresas brasileiras, e, no começo, a TAM se beneficiou dela. Mas quero dizer que isso é coisa de 25 anos. Não há mais condição de termos tarifas suplementadas, porque alguém está pagando por isso” – Rolim Amaro. Depoimento à Comissão Especial..., 26/6/2001, p. 52. 367 Ozires Silva. Depoimento à Comissão Especial – Projeto de Lei n. 3846/00. Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação/Câmara dos Deputados, 6/6/2001, p. 37. O tópico também foi abordado por José Augusto Varanda: “A extinção da suplementação tarifária e do ATAERO é outro ponto que tem sido recorrente. Ao mesmo tempo em que o setor solicita ao Governo tratamento diferenciado das demais áreas da economia, propõe a extinção das principais fontes de receita vinculada para a aviação comercial. A primeira suplementação é a única forma de garantir a prestação de serviços a mercados menos desenvolvidos. O ATAERO garante os investimentos em infra-estrutura aeroportuária. Deixar que o Orçamento Público resolva essas duas questões – a suplementação e a infra-estrutura – é no mínimo colocar em risco o futuro do próprio setor. É muito estranho um setor solicitar ajuda ao Governo e, ao mesmo tempo, querer matar suas fontes de receitas vinculadas jogando-as para o Orçamento Geral da União.” A possibilidade de uma redução gradual do ATAERO existiria, segundo o representante do

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Ao mesmo tempo em que acompanharam os empresários em algumas de suas principais reivindicações, os trabalhadores colocaram uma pauta própria em sua participação nas audiências públicas368. Essa pauta começava pela própria desmilitarização do controle sobre o setor, que do ponto de vista dos trabalhadores ficaria incompleta com a manutenção da aviação comercial sob o Ministério da Defesa. Para os trabalhadores, a aviação comercial deveria estar inserida na estrutura do Ministério dos Transportes. Desta forma, seria possível pensar o transporte aéreo do ponto de vista da intermodalidade, conforme as tendências mais modernas, como defendeu a presidente do SNA, Graziella Baggio:

“Gostaria de acrescentar e deixar claro que os trabalhadores, desde a década de 80 defendem a desvinculação da aviação civil do Ministério da Aeronáutica. Já esteve nesta Casa um projeto chamado Pássaro Civil. Passou no processo Constituinte, mas, lamentavelmente, não obtivemos êxito. É uma questão extremamente debatida junto aos trabalhadores para que tenhamos uma aviação moderna e ágil. Para atender às necessidades do País é necessário deslocarmos a aviação civil do Ministério da Aeronáutica, na época, e hoje Ministério da Defesa. Defendemos especificamente que a aviação esteja subordinada ao Ministério dos Transportes, inclusive com o empenho de que seja discutida a aviação civil juntamente com os demais setores fazendo o intermodal.”369 Os sindicalistas apresentaram, ainda, preocupação com itens ligados à precarização das condições de trabalho, especialmente em relação á possibilidade de terceirizações. O artigo 42, por exemplo, previa: “todo operador de serviços aéreos deverá dispor de adequadas estruturas técnicas de manutenção e operação, próprias ou contratadas, devidamente homologadas pela ANAC”. Já em seu parágrafo segundo, estipulava: “o contrato entre o outorgado e terceiros reger-se-á pelo direito privado,

Ministério da Defesa, com a concessão da infra-estrutura aeroportuária para exploração pela iniciativa privada, o que dependeria da criação da agência (José Augusto Varanda. Depoimento à Comissão Especial..., 19/6/2001, pp. 8-9). 368 A participação dos trabalhadores nos trabalhos da comissão se deu através do Sindicato Nacional dos Aeronautas, Sindicato Nacional dos Aeroviários, Sindicato Nacional dos Aeroportuários, Federação Nacional dos Trabalhadores em Transporte Aéreo e Sindicato Nacional dos Controladores de Vôo. 369 Graziella Baggio. Depoimento à Comissão Especial..., p. 63.

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não se estabelecendo qualquer relação jurídica entre os terceiros e o poder concedente.” Em relação a este artigo, Graziella pediu dos deputados uma reflexão, afirmando:

“é um ponto que vem preocupando em demasia os trabalhadores do setor: no art. 41 do projeto subentende-se que a mão-de-obra especializada, operacional, de manutenção, será toda terceirizada. Os trabalhadores em momento algum poderão concordar com esse tipo de proposta, vista e considerada a especificidade do setor. Eu acho que não valeria a pena deixarmos acontecer os mesmos problemas que aconteceram na PETROBRAS, onde está mais do que provado que a terceirização da mão-de-obra levou o País a perder a P-36 e muitas vidas. Isso em hipótese nenhuma gostaríamos que acontecesse. Gostaríamos, então, que os Deputados tivessem essa sensibilidade quanto ao setor, até por conta da mão-de-obra especializada.”370 O artigo também foi citado pelo Coordenador-Geral da Federação Nacional dos Trabalhadores em Transportes Aéreos (FNTTA), Norival da Costa:

“O art. 41 preocupa-nos muito. Refere-se à terceirização dos serviços de operação e manutenção das empresas concessionárias. Sem ser corporativista, mas pensando principalmente nos usuários e na segurança de vôo, temos experiência. Hoje, a aviação civil dispõe de grande índice de terceirização, principalmente nos serviços auxiliares de transporte aéreo. E a terceirização tem trazido enorme prejuízo tanto para a segurança de vôo quanto para os próprios trabalhadores e para o erário. Vejam V. Exas.: a maioria das empresas terceirizadas não têm tido compromisso com recolhimento de taxas – basta fazer levantamento. É comum elas deverem ao INSS, à INFRAERO, além de não cumprirem convenção coletiva e regulamentação profissional. Então, somos frontalmente contra o art. 41, porque precariza mão-de-obra e afeta usuários, bem como a segurança de vôo.”371 Um aspecto caro à atuação política dos sindicatos de trabalhadores foi a publicização do acesso às arenas de negociação e decisão sobre o setor. Esta característica da ação dos sindicatos se refletiu na visão dos mesmos sobre a nova agência. Neste sentido, os trabalhadores cobraram a criação de instrumentos que

370

Graziella Baggio. Depoimento à Comissão Especial..., p. 22. Norival da Costa. Depoimento à Comissão Especial – Projeto de Lei n. 3846/00. Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação/Câmara dos Deputados, 29/5/2001, pp. 10-11.

371

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aumentassem a transparência e democratizassem as ações da ANAC, com a possibilidade de convocação dos diretores pelo Senado, rediscutindo o papel da Ouvidoria e propondo a criação de um conselho consultivo, onde os diferentes atores se fizessem representar dentro da agência. Segundo um representante dos trabalhadores,

“Preocupa-nos sobremaneira algumas condições estabelecidas no projeto governamental, até de autonomia excessiva da direção da ANAC. Este projeto deve estabelecer que diretores da ANAC, como já ocorre com Ministros de Estado, possam ser convocados a comparecer ao Senado para darem explicações em relação a certas crises, fato que não ocorre hoje em determinadas agências. Este é um ponto de grande importância. “E até visualizamos no projeto do Governo a figura do Ouvidor. Dessa forma, o projeto dá atribuições ao ouvidor mesmo para representar a agência perante órgãos de defesa do consumidor, por exemplo, com o que não concordamos. O ouvidor não está lá para isso. Achamos, sim, que o ouvidor deva ter o mesmo status de direção na agência, porém deverá ser chancelado pelo Senado e receber pleitos da sociedade civil organizada e encaminhá-los. “Outro aspecto de fundamental importância, não previsto, é a criação, seguindo exemplo de outras agências, de conselho consultivo ou comitê de gestão, como alguns estão designando, ligado à Agência Nacional de Aviação Civil. E, nesse comitê, além dos setores interessados e do que chamamos em aviação de comunidade da aviação, empresários e trabalhadores, outros setores poderiam ser ouvidos.”372 Outro ponto criticado, especificamente pelo presidente do Sindicato Nacional dos Aeroportuários (funcionários da Infraero), foi a possibilidade de concessão à iniciativa privada da exploração dos aeroportos373. O depoente levantou algumas implicações deste modelo, como segue:

“O projeto dá liberdade à ANAC para formular, sem critério, o modelo de privatização dos aeroportos. A privatização vai transferir à União, através da ANAC, os aeroportos deficitários. Os aeroportos lucrativos como, por exemplo, o de Congonhas/São Paulo, Cumbica/Guarulhos, Viracopos/Campinas, Santos Dumont e Galeão/Rio de Janeiro, Salgado Filho/Porto Alegre e o Aeroporto de Brasília serão privatizados por grandes grupos econômicos, inclusive empresas estrangeiras.

372

Pedro Azambuja. Depoimento à Comissão Especial..., 29/5/2001, pp. 7-8. O que estava previsto no artigo 10, § 26°, que definia como atribuição da ANAC “celebrar contratos de concessão para a exploração dos serviços de infra-estrutura aeroportuária”. 373

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“Em relação à privatização de aeroportos defendida no projeto, podemos afirmar que os lucros vão ser privatizados e os prejuízos socializados por todos os contribuintes. O projeto do Executivo acaba com o modelo Infraero, que atualmente, através de subsídios cruzados, possibilita que os aeroportos lucrativos financiem os deficitários, sem onerar o contribuinte, mantendo uma boa qualidade de serviços aos usuários.”374 É preciso destacar, por fim, que os debates ao longo das audiências públicas não se limitaram a discutir o PL 3846, senão que remeteram constantemente aos problemas gerais do setor. Reforçou-se, na maior parte das falas, o caráter estratégico da aviação comercial para o país375 assim como as especificidades da atividade aeronáutica para justificar demandas por um tratamento diferenciado, que teria como principal frente a redução na carga tributária376. Por outro lado, empresários e trabalhadores deram ênfase ao aumento na capacidade de competição das empresas brasileiras, preconizando uma maior liberalização do mercado. Os empresários procuraram deixar isto claro, procurando desvincular-se da idéia de que estariam interessados apenas em obter vantagens ou facilidades de natureza individualista. Ozires Silva, presidente da Varig, abordou este ponto:

“Não estamos aqui, como muitos analistas têm noticiado nos jornais, em busca de dinheiro público. Não! Estamos pedindo condições de competição para podermos enfrentar as empresas que estão chegando do exterior, sem as desvantagens competitivas inseridas no sistema por complexa, longa e, em certos aspectos, contraditória legislação. Essa legislação faz com que hoje, na realidade, as empresas estejam em situação tal em que não é mais possível que um fiscal não saia delas sem fazer uma autuação. Esse é o ambiente complexo que enfrentamos.”377

374

José Gomes de Alencar. Depoimento à Comissão Especial – Projeto de Lei n. 3846/00. Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação/Câmara dos Deputados, 30/5/2001, p. 20. 375 O seguinte trecho do depoimento de Ozires Silva enfatiza este ponto: “O que basicamente o transporte aéreo fornece a uma nação? Fornece velocidade e dá, como retorno para a sociedade, talvez a commodity mais importante do mundo moderno: tempo. Portanto, o transporte aéreo é vital para todas as nações, ,em particular, para países com as nossas dimensões” – Ozires Silva, Depoimento à Comissão Especial..., 29/8/2001, p. 5. 376 George Ermakoff apresentou argumentos neste sentido no seguinte trecho: “A indústria de transporte aéreo é uma indústria de energia intensiva, capital intensivo, tecnologia intensiva, mão-de-obra intensiva, e, infelizmente, extremamente agravada pelo custo Brasil” (George Ermakoff. Depoimento à Comissão Especial..., 23/5/2001, p. 9. 377 Ozires Silva. Depoimento à Comissão Especial..., 29/8/2001, p. 10.

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A falta de espaço para interlocução na formulação da versão inicial do projeto no Ministério da Defesa, como se pode ver, deu ensejo a inúmeras divergências entre os atores ligados à aviação comercial e o Poder Executivo. O afastamento entre governo e empresas, já assinalado no capítulo anterior, se tornaria ainda mais evidente, tendo como contrapartida a aproximação entre empresários e trabalhadores. Este movimento seria assim apreciado pelo presidente do SNEA:

“Por incrível que pareça, pela primeira vez, nós nos unimos, entendeu? Porque o pensamento dos trabalhadores era muito semelhante ao nosso. O setor estava ‘ao Deus dará’... e nós, efetivamente, nos unimos aos trabalhadores no sentido... os trabalhadores trabalharam pela ANAC. Tanto o sindicato dos aeronautas como o dos aeroviários. Todo mundo trabalhou, e coeso, para a ANAC, em favor da ANAC. Logicamente, tinha uns pontos de divergência (...), era uma questão aqui, uma questão ali, mas muito pouco. Em geral eles concordavam que deveria se criar uma agência, e que deveria ser uma coisa especializada. Funcionário de carreira, especializado no assunto. São assuntos técnicos.”378 Os deputados, por sua vez, estiveram sensíveis às demandas colocadas pelos depoentes, e após meses de trabalho, produziram um substitutivo que procurou atender aos diferentes grupos. A próxima seção irá abordar a participação dos deputados, salientando a postura destes em relação aos aspectos suscitados pelos depoentes e finalmente, analisando as principais mudanças realizadas pela comissão no PL 3846.

6.3. O substitutivo ao PL 3846 Em uma das reuniões da comissão responsável pela análise do PL 3846, o seu presidente, deputado Nelson Marchezan (PSDB-RS), faria uma declaração otimista, apostando na possibilidade de um consenso entre governo, Congresso e demais atores, em prol do desenvolvimento da aviação comercial. Sem deixar de reconhecer a existência de interesses divergentes, Marchezan defenderia a possibilidade de um equilíbrio entre as diferentes visões.

378

George Ermakoff. Entrevista ao autor. 11/5/2004.

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“Eu quero dizer algo que parece óbvio, mas é bom acentuar. Nesse debate que estamos travando aqui não há interesses contraditórios. Estamos à procura de um interesse nacional que ao fim há de unir as empresas aeronáuticas e o Governo, trabalhando em um mesmo sentido. Hoje, seguramente, estamos abertos para discutir tudo o que foi proposto, com a maior liberdade. Cada um dos convidados tem o direito de criticar o projeto, sugerir, reivindicar, como ao Governo será dada a oportunidade de defender seus pontos de vista. Mas, se não conseguirmos conciliar tudo, teremos fracassado. Queremos construir algo de que o Brasil possa se orgulhar. Que nossa aviação prospere, que o povo se beneficie com esse nosso trabalho e que todo mundo trabalhe junto, porque nosso inimigo é outro, não está aqui dentro. Queremos uma competição. Ao estimular as empresas, que não se permita que elas se adonem e prejudiquem o consumidor. A sua destruição não nos interessa, mas também que fiquem livres para buscar o interesse.”379 O relator da Comissão, deputado Leur Lomanto (PMDB-BA), apresentou uma versão preliminar do substitutivo ao PL 3846 em 4 de setembro de 2001. Os principais pontos em que houve mudanças diziam respeito à forma de concessão, que passaria a prever a operação sem restrição de linhas ou conjunto de linhas, ou seja, atendendo ao pleito das empresas por um modelo de concessão com liberdade de atuação em todo o país (e sem a figura da “concessão onerosa”). Salientou-se, por outro lado, que em caso de limitação operacional nos aeroportos, lançar-se-ia mão do sistema de slots – horários definidos de pouso e decolagem. Lomanto destacou que houve um maior detalhamento na questão da outorga e organização dos serviços de infra-estrutura aeronáutica e aeroportuária. Neste quesito, merece destaque a criação de um “Conselho de Administração” para os aeroportos, prevendo uma maior interação entre a administração dos aeroportos e usuários, empresários e trabalhadores. No caso da suplementação tarifária, estipulou-se o financiamento via orçamento da União, e propôs-se também um cronograma de extinção da ATAERO, ao mesmo tempo em que ficou mantida a possibilidade de abertura dos aeroportos à exploração pela iniciativa privada.380 O informativo do sindicato dos aeronautas destacou a respeito desta primeira versão que ela, além de modificar de maneira profunda a proposta do governo, atendia a

379

Nelson Marchezan. Audiência pública da Comissão Especial – PL 3846/00. Câmara dos Deputados/Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação, 6/6/2001, p. 57. 380 Leur Lomanto. Reunião ordinária da Comissão Especial – PL 3846/00. Câmara dos Deputados/Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação, 4/9/2001, pp. 3-4.

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quase totalidade das reivindicações das empresas aéreas, ao contrário daquelas apresentadas pelos trabalhadores. O relator havia mantido a possibilidade de terceirização do quadro técnico e rejeitado a proposta do Conselho Consultivo da ANAC. Algumas propostas do SNA, no entanto, haviam sido incorporadas, como a proibição de recondução de diretores da ANAC e a possibilidade de convocação dos dirigentes pelo Senado381. Esta versão, por sua vez, seria alterada para dar forma a um primeiro substitutivo, apresentado em 18/9/2001. Nesta segunda versão, merece destaque a inclusão de uma série de itens visando dar maior transparência na atuação do órgão. Estipulou-se a criação do Conselho Consultivo da ANAC, com a participação dos trabalhadores. Estipulou-se também a obrigatoriedade do envio de relatórios ao Ministério da Defesa e ao Congresso Nacional, tanto pela diretoria como pela ouvidoria da agência, revelando a disposição do relator em incorporar as demandas dos trabalhadores por maior transparência na forma de atuação da agência. Em 20/11/2001, quando a Comissão se preparava para votar as últimas emendas ao substitutivo do PL 3846/00, o Poder Executivo solicitou à presidência da Câmara a retirada do projeto. Deputados de diferentes tendências, inclusive o presidente da Comissão, membro do mesmo partido de Fernando Henrique Cardoso, manifestaram sua indignação com a atitude do Executivo, e o desapontamento em ver interrompido um trabalho realizado ao longo de vários meses. Vários deputados, como se vê nos trechos a seguir, manifestaram-se neste sentido:

“Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, fui surpreendido, ainda há pouco, com a notícia de que o Presidente da República enviou expediente retirando o projeto que cria a Agência Nacional de Aviação Civil. Confesso a V. Exas., Sr. Presidente e meus caros colegas, que atitudes como essa em nada contribuem para o bom relacionamento entre os dois poderes. Estamos aqui exercitando e exercendo uma atribuição constitucional, que é a de apreciar e aperfeiçoar um projeto de lei enviado pelo Poder Executivo. Na minha avaliação pessoal, foi uma falta de consideração, um desrespeito do Poder Executivo, primeiro a esta comissão Especial e a seus integrantes e, segundo, a esta Casa, que está exercendo, como disse, atribuição constitucional. “Sr. Presidente, há um trabalho de quase seis meses. Esta Comissão e este Relator vêm-se debruçando sobre este projeto com o objetivo de 381

Cf. Dia a Dia, n. 470, 6 a 20/9/2001, p. 6.

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dotar o nosso País de uma aviação civil moderna, competitiva e de agência capaz de proporcionar essa competitividade, de regular e de fiscalizar o setor. “Ouvimos todos os segmentos, Sr. Presidente. Não é possível que agora, pelo fato de o substitutivo talvez contrariar alguns interesses de setores do Governo, o projeto seja retirado. Ora essa comissão não foi criada com o intuito de apresentar substitutivo para agradar A ou B, muito menos o Poder Executivo. Nosso objetivo era criar uma agência que fosse ao encontro da sociedade brasileira. Para isso, ouvimos todos os setores, dos quais nosso substitutivo recebeu contribuições e aprovação, inclusive de setores do Governo. Não me venha o Governo dizer que não havia unidade de pensamento no próprio Governo. Não podemos aceitar esse tipo de desculpa, Sr. Presidente. Esta comissão não foi criada para atender a interesses particulares de ninguém!”382 “O Governo brasileiro, cada vez mais, encaminha-se para posição absolutista: ‘Ou anda como eu quero, ou não se discute’. Quer dizer, qual é a nossa liberdade e o nosso direito de aqui legislar? Por que o deputado Leur Lomanto, essencialmente, fez um relatório que não agradou ao governo, como ele gostaria? O exercício da independência do Relator foi simplesmente castrado, após um processo de debate democrático nesta comissão. Ele acatou emendas nossas, emendas do Governo, emendas da sociedade e elaborou um projeto que, se não é o ideal para todos, pelo menos é mais avançado que o original, que era nebuloso até no que diz respeito à licitação e se tornou nítido e cristalino.”383 Por fim, o discurso do presidente da Comissão, membro do PSDB: “Hoje pela manhã encontrei um ilustre assessor parlamentar do Governo, que não está neste plenário (... e) cobrei dele: “Estou tendo dificuldades na comissão, porque não estou conhecendo o pensamento do Governo. Sou da base do Governo, e tenho de presidir as decisões, computar os votos. Tenho um ótimo relacionamento com o Relator e quero ver o pensamento do Governo, quais são as suas reivindicações quanto ao relatório, para negociarmos, como sempre se faz nesta Casa, e não estou sentindo isso.’ Esse assessor voltou correndo para o gabinete do Líder do Governo. Isso foi por volta das 10h da manhã. Quer dizer, não faltou desta presidência também interesse em ter como Governo melhor relacionamento, porque é meu dever, é minha obrigação fazer com que as leis saiam daqui ´costuradas’, porque, se não, são vetadas ali adiante. Não faltou desta presidência, como não 382

Leur Lomanto. Reunião ordinária da Comissão Especial – PL 3846/00. Câmara dos Deputados/Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação, 4/9/2001, pp. 3-4. 383 Jandira Feghalli. Reunião ordinária da Comissão Especial – PL 3846/00. Câmara dos Deputados/Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação, 4/9/2001, p. 8.

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faltou do relator, a vontade de fazer. Prefiro atribuir o ocorrido a essas coisas para as quais não temos explicação hoje e podem acontecer dentro do Executivo.”384 Segundo o diretor-geral do DAC, Venâncio Grossi, a retirada do projeto teria sido motivada pelo próprio lobby das empresas, o qual teria levado os congressistas a “desvirtuar” o sentido do projeto. O governo, por outro lado, estaria envolvido com a reformulação do projeto, visando reenviá-lo ao Congresso. Segundo Grossi,

“O Governo retirou o projeto de lei da ANAC do Congresso porque um lobby com uma visão estrábica da situação o desvirtuou, melhor dizendo, levou os deputados a desvirtuarem de tal maneira o projeto inicial que no fim sairia uma agência completamente desvirtuada do objetivo de qualquer agência, que é ser reguladora e controladora. Mas o Governo pretende criar a agência, e nós todos pretendemos criar a agência. Não apenas o presidente Fernando Henrique, como o Comando da Aeronáutica, o Ministério da Defesa, o DAC, todos estão integrados na criação dessa agência ainda neste Governo. No momento existe um préprojeto que está sendo reavaliado e discutido com vários segmentos da sociedade para depois ser encaminhado, acredito que no máximo até o final de abril, à Casa Civil e enviado ao Congresso. A análise da Casa Civil decidirá se a Agência será criada através de um projeto de lei ou medida provisória. Será uma decisão política da Casa Civil.”385 Já George Ermakoff, enfatizaria a “prepotência” do governo, que teria retirado o projeto de tramitação diante das mudanças introduzidas pelos congressistas, a despeito das tentativas de entendimento ao longo de dois anos. Segundo Ermakoff,

“Ali foi uma queda-de-braço. Porque o Governo queria aprovar a agência, mas dentro da sua prepotência, queriam aprovar do jeito que eles queriam. E nós não permitimos. Conseguimos convencer os parlamentares de que deveriam, de alguma forma ou de outra, contemplar algumas coisas e o Governo resolveu retirar o projeto de

384

Nelson Marchezan. Reunião ordinária da Comissão Especial – PL 3846/00. Câmara dos Deputados/Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação, 4/9/2001, p.17. 385 Venâncio Grossi. “Preparando o terreno para a ANAC” (Entrevista), Aeromagazine, n. 96, maio de 2002, p. 46.

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discussão. E na última hora nos pediu o nosso apoio para que o projeto voltasse a tramitar e fizeram concessões.”386 Desta nova rodada de negociação, surgiria um projeto mais simples, sem os itens polêmicos do projeto original do Governo, mas também sem as propostas dos empresários e trabalhadores. A Comissão voltaria a se organizar em meados de 2002, quando foi possível reapresentar um novo substitutivo prevendo apenas a criação da agência, e deixando pontos polêmicos como o regime de concessão e a parte de infraestrutura aeroportuária para a revisão do Código Brasileiro de Aeronáutica. Neste momento, para Ermakoff, teria prevalecido o “discernimento” de ambas as partes (governo e empresários) no sentido de garantir a criação da agência, que seria aprovada na Câmara de Deputados.

“Depois ele (o projeto) voltou. Mas voltou mais enxuto. Porque houve, dos dois lados, o discernimento de chegar à conclusão que a gente poderia reduzir o projeto. (...) Bom, o projeto foi aprovado lá na Câmara, e aí entraram em recesso, por causa da eleição, não tinha mais quorum para nada.”387 Depois do trauma representado pela retirada do projeto, Governo e empresários teriam sido capazes de encontrar uma base comum em benefício da criação da agência, mesmo que abandonando boa parte do trabalho feito no ano anterior. De qualquer forma, mesmo que o calendário eleitoral tenha empurrado para o Governo seguinte este passo, a experiência dos trabalhos da comissão durante o Governo Fernando Henrique talvez tenha servido como um momento de amadurecimento das relações entre os atores, fazendo parte de um aprendizado que, pela sua natureza histórica, ultrapassa os limites de um Governo.

386

George Ermakoff. Entrevista ao autor, 11/5/2004. Em outro trecho, Ermakoff retomaria o assunto, afirmando: “Aí então o Governo foi mudando (o projeto) ao seu bel prazer e aí chegou num impasse. Chegou naquele impasse que o SNEA achava que determinadas coisas deveriam ser contempladas no projeto e o Governo achava que não. Então, essa foi a razão do Governo ter retirado o projeto.” 387 George Ermakoff. Entrevista ao autor, 11/5/2004.

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6.4. Conclusões A tramitação do projeto de criação da ANAC no período analisado é reveladora do estado das relações entre poder público (Executivo e Legislativo) e os principais atores do mercado de aviação comercial, assim como das relações destes atores entre si, no contexto das reformas para o mercado. Ela confirma, em primeiro lugar, a aversão do Poder Executivo à interação com interesses privados, numa expressão do “estilo tecnocrático de gestão”. A forma como encaminhou o projeto da ANAC mostra a dificuldade do Executivo em aceitar uma lógica política, isto é, fundada no reconhecimento de interesses distintos em disputa, e mais especificamente, a dificuldade de lidar com os mecanismos democráticos de encaminhamento desta disputa. Assim, o Executivo se revelaria também incapaz de reconhecer o próprio Congresso como espaço de interlocução e deliberação, denotando uma grave incompatibilidade entre estas duas esferas estatais. Ao mesmo tempo, esta postura revela os limites da capacidade de ação do Executivo, que não foi capaz de concretizar a criação agência, a despeito da importância que ela teria (dentro dos marcos propostos pelo próprio Executivo) para a reorganização do setor. A postura dos empresários, por sua vez, parece confirmar uma tendência ao reconhecimento dos espaços públicos de interlocução, com uma participação ativa nas audiências, apostando no Legislativo como foco de atuação política. Isto não quer dizer que os empresários não tenham lançado mão de instrumentos tradicionais, como os contatos de natureza informal com as autoridades, para fazer avançar suas propostas. O que é digno de nota é o fortalecimento, em algum nível, de um tipo de participação mais publicizado, mais democrático, na dinâmica política. Trata-se de um indício importante do amadurecimento da lógica de atuação destes atores. Este amadurecimento tende a se confirmar na aproximação entre empresários e trabalhadores, orientados por uma base comum que envolve não só a sobrevivência das empresas (e a manutenção dos empregos), mas também a preocupação com os aspectos técnicos da atividade. No caso dos trabalhadores, vale assinalar também o significativo espaço de ação alcançado dentro do jogo político-institucional, permitindo-lhes obter vitórias significativas na formulação do projeto. Neste sentido, a tramitação do projeto

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no Congresso teria permitido não só a vocalização, mas também a incorporação de propostas atendendo aos interesses dos empresários e dos trabalhadores. O resultado final deste jogo, com a aprovação de um projeto “mínimo” de agência revelou que as partes foram capazes de chegar a um acordo, apesar das crescentes divergências entre governo, de um lado, e empresários e trabalhadores, de outro. A radicalização de um estilo avesso à negociação por parte do Executivo se mostraria inviável diante dos mecanismos democráticos previstos na própria seqüência de tramitação do projeto. Ao contrário da alegada “natureza administrativa” do projeto, que pressuporia uma racionalidade exclusivamente técnica em sua formulação, ao introduzir questões de natureza regulatória que envolviam, entre outras, a criação de novos encargos para as empresas, o Executivo revelaria a dimensão de “ator interessado” em sua lógica de atuação. Perdida a oportunidade para a criação da agência, após meses de trabalho dentro da Comissão Especial, com a realização de debates, o confronto de idéias e a busca de consenso – que estariam na essência da lógica de atuação do Congresso – resta a lição de que a lógica política não pode ser subtraída da construção de um novo modelo para o setor de aviação comercial, mesmo um modelo orientado pela “lógica do mercado”. Aprendida esta lição, seria o caso de apostar nos canais institucionalizados que criariam incentivos para que os atores se comprometessem com as mudanças.

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7. Conclusão

O segmento da aviação comercial brasileira dedicado ao transporte de passageiros chegou ao final de um longo ciclo de abertura em crise. Como vimos, a situação econômica precária das empresas foi um dos principais eixos da dinâmica política do setor nos quatro últimos anos do período em análise. De acordo com a abordagem econômica convencional, que predominou ao longo do governo Fernando Henrique Cardoso, esta crise estaria associada à incapacidade das próprias empresas para fazer frente aos desafios da abertura do mercado. Assim, a crise se reduziria a um problema de gestão interno às empresas, habituadas a um tratamento “paternalista” por parte do governo. A postura do Poder Executivo vis-à-vis os agentes econômicos teve como pressuposto a introdução, no setor, de um modelo em que a atividade empresarial estaria orientada exclusivamente pelo livre jogo do mercado, baseado na relação entre oferta e procura. Neste modelo, caberia às empresas oferecer a melhor combinação de preço e qualidade para manter e conquistar seus clientes. Esta dinâmica seria capaz, por fim, de aumentar a competitividade do setor, o que conduziria entre outros efeitos, à redução de preços e à ampliação do número de usuários do transporte aéreo. Se as empresas estavam em crise, isto se deveria à dificuldade em se adaptar ao próprio modelo de mercado, habituadas que estavam ao padrão intervencionista e “paternalista” vigente até a introdução das reformas. O modelo de mercado que orientou as políticas governamentais no período se baseou em dois paradigmas: o neoclássico e o neoutilitário. O primeiro definiria a relação dos agentes econômicos entre si, e o segundo, a relação destes com o poder público. Ambos tomariam como pressuposto a representação do agente orientado pela maximização de ganhos, a qual constituiria a maior virtude da dinâmica econômica – o mercado – e o principal vício da dinâmica política – a relação entre Estado e mercado. Isto porque, orientados pela maximização dos ganhos num contexto de competição, os agentes tenderiam a se esforçar por conquistar a maior fatia do mercado, reduzir custos

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e garantir o retorno dos investidores. A interferência de fatores externos à dinâmica do mercado, notadamente por parte do Estado, conduziria necessariamente ao desvirtuamento da competição, levando os agentes econômicos a buscar a maximização dos ganhos através de benefícios junto aos agentes do Estado (corrupção e práticas de rent seeking). Como procurei demonstrar baseado em uma variada literatura, a representação neoclássica e neoutilitária do agente é insuficiente para dar conta da realidade empírica, na medida em que ela reduz a complexidade das relações sociais à lógica da maximização de ganhos, isto é, a uma racionalidade formal de caráter economicista. O que esta literatura mostra, ao contrário, é que a dinâmica econômica – a interação no mercado – se faz em contextos sociais cujas dinâmicas políticas são decisivas para o próprio funcionamento do mercado. Essa dinâmica política emergiria a partir de legados históricos específicos, assumindo centralidade os valores e as idéias socialmente partilhadas, as relações entre capital, trabalho e Estado, e destes com outros atores sociais, mesmo que não diretamente ligados ao mercado. Esta trama social, definida por um conjunto de instituições formais e informais, é que constituiria o fundamento do funcionamento do mercado. A análise da trajetória da aviação comercial no Brasil, de seu surgimento na década de 1920 até os primeiros anos do século XXI mostra que o desenvolvimento do setor não pode ser reduzido ao jogo do livre-mercado tal como representado pela teoria neoclássica, senão que esteve intimamente ligado às diferentes feições que assumiu a dinâmica política envolvendo os agentes ligados ao setor, o Estado e outros atores sociais. Esta dinâmica envolveu, nos anos de formação do setor, duas tendências. De um lado, a disputa entre as grandes potências mundiais, tentando estender através da tecnologia aeronáutica o domínio sobre regiões estratégicas. A América Latina foi um importante cenário desta disputa, sendo que no Brasil ela ganhou forma através da constituição de duas empresas: o Sindicato Condor, representando os interesses alemães, e a Panair do Brasil, representando os interesses norte-americanos. Em contrapartida, houve um movimento em dois importantes estados brasileiros – Rio Grande do Sul e São Paulo – envolvendo empreendedores e o poder público local com vistas à formação de empresas nacionais dedicadas ao transporte aéreo. Assim, surgiram

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a Varig e a Vasp, que viriam a se tornar importantes protagonistas da dinâmica política do setor nas décadas seguintes. A Segunda Guerra Mundial foi um marco no desenvolvimento do setor, ao estabelecer através da Convenção de Chicago, em 1944, um conjunto de regras relativas ao transporte aéreo internacional. Estas regras envolveram aspectos técnicos, regulamentando o uso do espaço aéreo, os direitos de sobrevôo e pouso, mas do ponto de vista comercial, não se avançou além do respeito à soberania de cada país sobre o seu território. Contrariando o interesse norte-americano, que preconizava um modelo liberalizado para o transporte internacional, este ficou subordinado à realização de acordos bilaterais baseados no princípio da reciprocidade. Assim, cada país elegeu uma ou mais empresas para representa-lo como “empresa de bandeira”, tendo a maioria dos países criado estatais para se incumbir desta tarefa. Dentre as exceções, destacaram-se os Estados Unidos e o próprio Brasil. No plano interno, a Segunda Guerra teve como principal conseqüência o afastamento dos dirigentes empresariais de origem alemã. A Varig teve seu fundador, Otto Meyer, substituído por Ruben Martin Berta; o Sindicato Condor, representante direta dos interesses alemães no Brasil, foi nacionalizado, tornando-se Cruzeiro do Sul. A frota de origem alemã foi substituída por aeronaves de origem inglesa e principalmente norte-americana, especialmente os bimotores DC-3, os quais haviam sido utilizados durante o conflito e que foram vendidos a preços baixos com o seu fim. Da mesma forma, uma ampla infra-estrutura de apoio ao vôo havia sido criada no Brasil, cujo litoral servira como ponto estratégico para controle do Atlântico e acesso à África. Um momento importante deste período foi a criação do Ministério da Aeronáutica, que incorporou o Departamento de Aviação Civil, até então subordinado ao Ministério da Viação e Obras Públicas. Criou-se, assim, a “Doutrina do Poder Aéreo Unificado”, subordinando tanto a aviação militar quanto a civil a uma mesma autoridade. Esta doutrina seria defendida ao longo das décadas seguintes pelos militares por garantir um modelo altamente eficiente (vis-à-vis outros setores de transporte não ligados aos militares, como o ferroviário e o rodoviário), representando uma importante economia de para o país, que não precisaria dispender recursos na criação de uma infraestrutura civil paralela à existente.

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Nos anos que sucederam à Segunda Guerra Mundial, assistiu-se a um boom da atividade aeronáutica no Brasil, com a criação de diversas empresas num pequeno espaço de tempo. Multiplicaram-se, da mesma forma, as cidades servidas pelo transporte aéreo. Este movimento, no entanto, teria curta duração. Com o rápido incremento tecnológico do setor, aeronaves mais rápidas e capazes de transportar mais passageiros tornaram os custos mais altos, e inviabilizaram a maior parte dos negócios criados no imediato pós-guerra. Assistiu-se, desta forma, ao início de uma crise que conduziria a um longo processo de acomodação que foi gradualmente mudando as feições do mercado de aviação comercial no Brasil. Neste movimento de acomodação, a dinâmica política teve como eixo, por um lado, a proposta de criação de uma estatal da aviação comercial no Brasil: a “Aerobrás”. Esta proposta, lançada pelos trabalhadores do setor e por representantes da comunidade acadêmica e da política, visava pôr fim à crise que acometia o conjunto das empresas desde a década de 1950, crise esta que vinha consumindo grande quantidade de recursos públicos sob a forma de subsídios diretos e indiretos, os quais não foram capazes de sanar as finanças do setor. Ao contrário, a situação se agravava, chegando a colocar em risco as operações, com um crescente número de acidentes. Por outro lado, havia uma preocupação com o papel da aviação comercial na integração nacional, uma vez que as empresas sobreviventes abandonaram as rotas para o interior, concentrando-se nas rotas de maior densidade, entre as principais capitais. A articulação entre o poder público e os agentes econômicos envolveu mecanismos formais, dentre os quais se destacaram as Conferências Nacionais de Aviação Civil, e mecanismos informais, inclusive o acesso direto aos principais atores do poder público, como o próprio Presidente da República, que se utilizava dos aviões das empresas em seus deslocamentos internacionais. Demonstrando habilidade em lançar mão destes meios de acesso ao núcleo do poder, os dirigentes da Varig, com destaque para Ruben Berta, construíram vínculos diretos com governantes das mais variadas tendências, desde Getúlio Vargas, João Goulart e Leonel Brizola, até os

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generais da ditadura militar. Berta se destacou na oposição à criação da “Aerobrás”, tendo, ao fim, transformado sua empresa no que seus opositores chamariam de “Bertabrás”. A ascensão da Varig de uma pequena empresa regional para a líder do setor constituiria a principal mudança no mercado entre a década de 1950 e a década de 1960. Apoiada por Getúlio Vargas, a empresa obteve a concessão para iniciar sua primeira rota internacional de longa distância, para Nova York. Mais duas empresas nacionais atuavam neste segmento: a Real (que posteriormente formaria com a Aerovias Brasil o consórcio “Real Aerovias”) e a Panair do Brasil, que passava por um processo de nacionalização. Novamente com o envolvimento direto do núcleo do Poder Executivo, a Varig absorveria o consórcio “Real Aerovias” em 1961 e a Panair do Brasil, em 1965, tornando-se representante exclusiva do Brasil no transporte aéreo internacional de longo curso. A liderança se consolidaria em 1974, com a incorporação da Cruzeiro do Sul, que lhe garantiria a exclusividade também nas rotas internacionais para a América do Sul e Caribe, assim como o domínio de cerca de 50% do mercado doméstico. A partir de 1964, a política governamental para o segmento doméstico do transporte de passageiros se basearia em dois pilares: a “realidade tarifária” e a “competição controlada”. O primeiro implicaria a reversão da política de subsídios para rotas destinadas a pequenas localidades e de ampliação do acesso ao mercado, que vinha sendo ensaiada no início da década de 1960. De acordo com a política de “realidade tarifária”, os passageiros deveriam arcar com os custos do transporte, levando o setor a assumir um perfil altamente elitista, orientado para as camadas de mais alto poder aquisitivo. A política de “competição controlada” visava evitar a superposição de rotas e horários e só permitia a criação de um novo vôo se houvesse comprovação de uma demanda que o justificasse. Ademais, as tarifas eram estabelecidas pelo DAC, não podendo haver concorrência através de descontos. Este modelo foi bastante favorável para as empresas, que atravessaram a década de 1970 com resultados financeiros bastante satisfatórios. Uma análise deste desempenho, vale acrescentar, não pode ser desvinculada da dinâmica política que o determinou. As empresas desfrutaram de um ambiente seguro, marcado por uma relação de proximidade com as autoridades aeronáuticas. Orientadas para os segmentos de mais

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alto poder aquisitivo, elas se beneficiaram diretamente do modelo elitista de desenvolvimento que caracterizou os governos militares, que gerou taxas expressivas de crescimento com concentração de renda. Com a perseguição aos líderes sindicais, as empresas se viram livres da pressão política destes atores, que haviam representado uma importante ameaça nos anos que precederam o golpe, especialmente em função da campanha pela criação da “Aerobrás”. Já no final desta década, no entanto, surgiram os primeiros sinais de que este modelo seria desafiado. Um primeiro movimento neste sentido viria com a deregulation norte-americana, dentro de uma política mais ampla de liberalização que marcaria os anos subseqüentes. Esta reorientação levaria os Estados Unidos e a Inglaterra a travar um novo acordo de transporte aéreo internacional, flexibilizando as regras relativas aos vôos comerciais entre os dois países. Antes que o Brasil desse início a um processo que foi chamado por alguns analistas de “desregulamentação”, mas que preferi aqui chamar de reformas para o mercado ou simplesmente abertura, o transporte aéreo se veria desafiado pela crise econômica que transformaria os anos 1980 na “década perdida”. Com a redemocratização, as autoridades aeronáuticas perderam poder vis-à-vis outros setores do governo, especialmente as autoridades econômicas, cuja agenda de combate à inflação teria como resultado um rígido controle sobre as tarifas públicas, aí incluídas as tarifas aéreas. Ao longo de boa parte da década, as empresas veriam suas tarifas reajustadas abaixo da inflação, processo que explicaria, segundo as empresas, o alto grau de endividamento com que chegariam à década seguinte. O primeiro movimento no sentido da abertura do setor foi o fim da exclusividade da Varig na designação das rotas internacionais, tema introduzido na IV CONAC (1986), e que se concretizaria já no governo Collor, por ocasião da ratificação do novo Acordo de Transporte Aéreo Internacional entre Brasil e Estados Unidos. A partir deste novo acordo, a Transbrasil e a Vasp ganharam acesso às rotas para aquele país, recebendo posteriormente designações para países da Europa e da Ásia. No segmento doméstico, houve mudanças no regime tarifário que permitiram às empresas oferecer descontos sobre a tarifa padrão, embora o princípio da “competição controlada”

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tenha sido mantido como uma das diretrizes da V CONAC, realizada em 1992. Também houve mudanças na definição do segmento regional, com a extinção do SITAR e a abertura dos vôos entre Congonhas (SP), Pampulha (BH) e Brasília para as empresas regionais. A introdução de jatos nas frotas destas empresas – dentre as quais se destacaram a Tam e a Rio-Sul – permitiu que elas oferecessem um serviço capaz de competir diretamente com as empresas tradicionais (Varig/Cruzeiro, Transbrasil e Vasp), que ensaiavam as primeiras disputas por tarifas e pela ampliação de sua fatia no mercado. Um dos eventos que marcaram este primeiro ciclo da abertura foi a privatização da Vasp, em 1990, num processo que seria emblemático do sentido assumido pelas reformas no governo Collor. Os novos dirigentes da Vasp, capitaneados por Wagner Canhedo, lançariam mão de uma estratégia agressiva na disputa pelo mercado. Em artigos publicados na imprensa, Canhedo se apresentou como uma espécie de empresário-símbolo da modernização econômica pretendida por Fernando Collor para o Brasil, disposto a quebrar com o modelo “cartorial” vigente no setor, estabelecer um padrão de concorrência que seria característico de um capitalismo moderno, capaz de aumentar a competitividade das empresas e ampliar o acesso da população ao serviço. Com menos de um ano à frente da Vasp, no entanto, a postura de Canhedo se revelaria economicamente insustentável. A empresa deixou de honrar uma série de compromissos internos e externos, tendo criado um ambiente de insegurança junto a credores e ao próprio governo. Eventualmente, Canhedo abandonaria a postura agressiva, chegando a propor acordos com seus rivais. No plano político, uma CPI levantaria uma série de evidências sobre a existência de um esquema de favorecimento a Canhedo no leilão de privatização, com a participação de Zélia Cardoso de Mello e outros personagens-chave daquele governo, como o próprio Paulo César Farias. Assim, pode-se dizer que a abertura, no governo Collor, se caracterizou por um caráter ambíguo e inconsistente, tendo servido no caso da aviação comercial muito mais para difundir o ideário das reformas para o mercado do que para introduzir uma lógica competitiva de fato entre as empresas. A crise que acometeria o setor entre 1991 e 1994 as levaria a uma postura defensiva, com a devolução de aviões, extinção de rotas e demissão em massa. A principal estratégia das empresas, nesta conjuntura, estaria relacionada a pedidos de socorro junto ao Poder Público. Neste momento, ganharia

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importância a participação dos trabalhadores, liderados pelo Sindicato Nacional dos Aeronautas. Estes atores passariam a apostar (sem necessariamente abandonar as lutas tradicionais relativas a salário e condições de trabalho) em uma inserção mais ativa na dinâmica política institucionalizada, a qual teve nas Câmaras Setoriais de 1992 e 1994 dois momentos importantes. Apesar do relativo sucesso alcançado por este tipo de arranjo em outros setores, no caso da aviação comercial, a baixa disposição das autoridades aeronáuticas e das empresas para com as câmaras levou a primeira tentativa, em 1992, a um esvaziamento. Em 1994, apesar de um relativo amadurecimento de todas as partes no sentido de reconhecer a validade do fórum, a câmara seria extinta por se tornar incompatível com a política econômica do governo Fernando Henrique Cardoso. A partir daí, prevaleceu uma versão bastante ortodoxa do “estilo tecnocrático de gestão”, não havendo espaço para mecanismos políticos formais de mediação entre agentes econômicos, sindicatos e Estado. A prioridade seria conferida à mediação pelo mercado, pretendendo-se com isso eliminar da dinâmica econômica as interações de natureza política, e com elas, os vícios, privilégios e “irracionalidades” que lhe seriam inerentes. Ao mesmo tempo, o governo Fernando Henrique Cardoso revelou-se capaz de uma estratégia de combate à inflação mais duradoura do que as diversas tentativas anteriores, criando uma sensação de prosperidade que, junto à política de sobrevalorização do real frente ao dólar, garantiria às empresas um ambiente favorável, que se refletiria em quatro anos de resultados positivos no segmento doméstico (19941997). Ainda no primeiro mandato de Fernando Henrique, no entanto, o setor seria objeto de crescente pressão por parte do Executivo – notadamente as autoridades econômicas e a Embratur – em função dos valores das tarifas domésticas, consideradas “as mais altas do mundo”. Assim, deu-se início a uma crescente pressão política sobre o setor, ameaçando-o com medidas que poderiam alcançar a abertura do mercado doméstico para as empresas estrangeiras. Como resposta a esta ameaça, o DAC lançou uma seqüência de medidas visando eliminar restrições relativas a rotas e horários, tipos de aeronave, exclusividade na operação de aeroportos “centrais” e venda de passagens por empresas operadoras de vôos charter.

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As empresas, por sua vez, responderiam lançando-se na mais intensa “guerra tarifária” assistida pelo mercado em todo o período analisado. Esta guerra permitiu um aumento de mais de 20% no número de passageiros transportados, o que se revelaria a primeira vista como uma conquista da política de abertura. Com efeito, o expressivo aumento do número de passageiros transportados durante este período provou que havia espaço, no Brasil, para uma ampliação do universo de usuários do transporte aéreo, rompendo com o modelo tradicional do setor, voltado para o público de mais alto poder aquisitivo. No entanto, esta “guerra” se tornou inviável no médio prazo, especialmente a partir de 1999, quando a política cambial que vinha garantindo a paridade entre a moeda brasileira e a norte-americana se revelou insustentável. Desde então, o setor se viu envolvido na sua mais aguda crise. As três empresas tradicionais do setor – Varig, Vasp e Transbrasil – estiveram ameaçadas de paralisação das atividades. Enquanto Varig e Vasp foram capazes de, apesar das dificuldades, manter-se em operação, a Transbrasil efetivamente parou de voar em dezembro de 2001. Dentre as empresas novas, a Tam, que entrou no segmento doméstico e internacional baseada numa trajetória de sucesso no segmento regional, também se viu incapaz de lidar com as dificuldades da nova conjuntura, chegando à virada do milênio em má situação financeira. Eventualmente, a maior parte das empresas de vôo charter criadas ao longo do ciclo de abertura do setor, como a Fly, Via Brasil e Nacional, encerrariam suas atividades. Uma única empresa surgiria no mercado, já em 2001, com uma estratégia de perfil desafiador, alcançando expressivo sucesso em seus dois primeiros anos: a Gol. Inspirada nas empresas low fare, low cost (tarifas reduzidas e custos reduzidos), a Gol logo alcançaria posição de destaque no mercado, ultrapassando a Transbrasil e a Vasp. Tam e Varig, no entanto, se manteriam isoladas na liderança, com uma fatia em torno de mais de 30% do mercado cada uma. Em meio a estas transformações no mercado, entrou em pauta a reorganização político-institucional do setor, com a substituição do DAC por um órgão civil, a ANAC. Na tentativa de reorganização, no entanto, o Executivo manteve-se fiel ao “estilo tecnocrático”, excluindo do processo de formulação do projeto os atores não-estatais diretamente ligados ao setor: empresas e sindicatos. Dentro do processo democrático, o projeto de criação da ANAC foi submetido ao Congresso, onde empresas e sindicatos tiveram oportunidade de se envolver diretamente nos trabalhos. O trabalho de

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articulação junto aos parlamentares levou à criação de um projeto substitutivo que, por não contemplar algumas das principais medidas propostas pelo Governo – dentre elas, a concessão onerosa – foi retirado de tramitação pelo Executivo, levando a um impasse que só seria resolvido ao final do segundo mandato, quando não havia mais tempo para se criar a agência. No entanto, os trabalhos da Comissão Especial criada pelo Congresso para examinar o projeto de lei da agência se revelaram um importante fórum onde foi possível encontrar uma série de convergências entre os interesses das empresas, dos trabalhadores e do poder público, revelando que os atores do setor de fato passaram por um aprendizado democrático.

*

*

*

Como já foi salientado, do ponto de vista do saber econômico convencional que orientou a postura do Poder Executivo vis-à-vis os agentes econômicos no governo Fernando Henrique Cardoso, a crise do setor seria explicada pela ineficiência das empresas em se adequar ao novo ambiente de competitividade. Este trabalho toma como ponto de partida um arcabouço teórico bastante distinto daquele que orienta a visão econômica convencional. Ao contrário dos paradigmas neoclássico e neoutilitário, que fundam tanto a dinâmica econômica como a dinâmica política no indivíduo maximizador de ganhos, proponho uma perspectiva sociológica sobre o funcionamento da dinâmica econômica e da dinâmica política que põe ênfase nas relações entre os atores. Portanto, em substituição a um modelo idealizado de mercado onde a dinâmica econômica seria reduzida às relações entre oferta e demanda em abstrato, realizei uma análise histórica do desenvolvimento do segmento dedicado ao transporte de passageiros do mercado de aviação comercial do Brasil. Esta análise mostra que o surgimento,

o

desenvolvimento,

as

constantes

reorganizações

e

a

própria

implementação das reformas para o mercado se assentou numa dinâmica política particular, cujo desenlace foi decisivo para desenhar as feições que o setor assumiu ao longo de sua história. O modelo intervencionista que teve vigência a partir da década de 1960 foi capaz de recuperar um setor que se encontrava financeiramente fragilizado, com altos índices de acidentes e sob ameaça de estatização. De acordo com alguns dos trabalhos

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analisados no capítulo 2, a aproximação entre autoridades governamentais e agentes econômicos foi um fator positivo para o desempenho econômico em diversas experiências nacionais, locais ou setoriais. A aviação comercial, nesta fase, parece ter seguido esta tendência, graças à existência de diversos espaços de interlocução entre autoridades aeronáuticas e empresas. O sucesso deste modelo, em termos da rentabilidade da indústria e da recuperação da eficiência operacional, teve como contrapartida um alto índice de concentração do setor nas mãos de uma única empresa, a Varig, e no fechamento do mercado aos segmentos mais abastados da população. A solução das reformas para o mercado para a falta de competitividade do setor e para seu perfil elitista passou pela adoção de uma postura insulada por parte das autoridades econômicas e do núcleo do Executivo e pela abolição das práticas tradicionais de oferta de incentivos diretos e indiretos (subsídios, regimes cambiais especiais) às empresas. Apesar destas medidas, voltadas para a retirada do Estado da esfera do mercado, as empresas se ressentiram da manutenção de uma série de mecanismos de controle (reajuste de tarifas, entraves burocráticos na importação de equipamentos) e dos altos encargos fiscais comuns ao conjunto da economia (carga tributária crescente, impostos “em cascata”) e específicos do setor (adicionais tarifários, encargos sobre as operações de leasing). Assim, do ponto de vista dos empresários, o discurso liberalizante das reformas para o mercado encontrou seus limites numa prática ainda demasiado intervencionista e asfixiante em relação às empresas. Seguindo a pista deixada por Peter Evans em sua conclusão no livro Embedded Autonomy (EVANS 1995), quando o autor sugere que a saída para se evitar que os agentes econômicos favorecidos pelas experiências de “autonomia inserida” adotassem uma postura anti-estatal ao estilo das reformas para o mercado, estaria na inclusão de novos atores na própria trama da “autonomia inserida”. No caso da aviação comercial, o crescente espaço ocupado pelos trabalhadores na dinâmica política pode ser um indício de que estaríamos em condições de reconstruir os vínculos entre Estado e mercado em novas bases, dando-se mais atenção, por exemplo, ao problema da inclusão de uma maior parcela da população ao transporte aéreo e à questão da segurança, bandeiras defendidas pelos trabalhadores. Do lado do Estado, o fortalecimento do Congresso também pode representar a democratização da dinâmica política do setor, ampliando o espaço público de interlocução e, portanto, tornando as relações entre autoridades

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públicas e agentes econômicos mais transparentes (e menos sujeitas aos riscos enumerados pelas teorias neoutilitárias – corrupção e práticas de rent seeking). Ao contrário da abordagem econômica convencional, baseada em modelos e abstrações, esta abordagem sociológica está fundamentada no desenvolvimento histórico dos atores e das instituições que sustentam o mercado. Ao mesmo tempo, ela não pretende o mesmo teor normativo das abordagens neoclássica e neoutilitária. Estas, apesar da pretensão, mostraram-se incapazes de dar conta dos desafios da nova ordem global. Uma abordagem sociológica, ao contrário, nunca pretende oferecer fórmulas prontas e definitivas, mas apontar possíveis caminhos. Neste sentido, esta tese sugere que uma visão que leve em conta a centralidade da dinâmica política das relações entre Estado e mercado pode ser um caminho para a superação dos desafios que se colocam para o Brasil neste início de novo milênio.

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Jornal do Commercio O Dia O Estado de São Paulo O Globo SNEA Informa Tribuna da Imprensa Valor Econômico Veja Entrevistas Alice Klaus, ex-gerente de treinamento da Varig (30/6/1999) George Ermakoff, presidente do SNEA (11/5/2004) Mauro Gandra, ex-diretor geral do DAC, ex-ministro da Aeronáutica e ex-presidente do SNEA (20/5/2004) Cláudio Toledo, assessor econômico do SNA (24/6/2004)

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PRINCIPAIS MOMENTOS DA ABERTURA E REFORMA DO MERCADO DE AVIAÇÃO COMERCIAL NO BRASIL 1986. Realizada a IV CONAC, colocando em pauta a abertura do mercado internacional para a Vasp e a Transbrasil; o controle sobre os reajustes tarifários é transferido do DAC para o Ministério da Fazenda. Março de 1989. Assinatura do Novo Acordo sobre Transporte Aéreo Internacional entre Brasil e Estados Unidos. Outubro de 1990. Privatização da Vasp; Tam é autorizada a operar jatos entre Congonhas (SP), Pampulha (BH) e Brasília. Novembro de 1990. DAC mercado doméstico.

suspende a restrição à entrada de novas empresas no

Maio de 1991. O Departamento de Abastecimento e Preços do Ministério da Economia retira a restrição à oferta de descontos nas tarifas aéreas domésticas; acompanhando a estratégia de mercado agressiva da Vasp, as demais empresas do segmento doméstico deflagram a primeira “guerra tarifária”. Junho de 1991. Os reajustes tarifários voltam ao controle do DAC, que mantém a flexibilidade na oferta de descontos. Novembro de 1991. Realização da V CONAC, reafirmando o compromisso com a progressiva abertura do mercado. Dezembro de 1991. Promulgado o Novo Acordo sobre Transporte Aéreo Internacional entre Brasil e Estados Unidos, após aprovação no Congresso Nacional. Vasp e Transbrasil começam a operar rotas para os Estados Unidos. Janeiro de 1992. Substituição dos Electra II da Varig na ponte aérea Rio-São Paulo pelos Boeing 737-300. Vasp e Transbrasil passam a operar com aeronaves próprias, ainda sob o sistema de pool. Setembro de 1992. Criadas as “Linhas Aéreas Especiais”, permitindo às empresas regionais operar entre os aeroportos “centrais” (Santos Dumont-RJ, Congonhas-SP, Pampulha-BH) e Brasília, à exceção da Ponte Aérea Rio-São Paulo; extinção do SITAR. 1o semestre de 1992. Criação da primeira câmara setorial da aviação comercial, diante da crise do setor (afetando principalmente a Vasp e a Transbrasil). Julho de 1994. Início do Plano Real: política de paridade cambial; retorno do controle sobre os reajustes tarifários para o âmbito das autoridades econômicas. 2o semestre de 1994. Criação da segunda câmara setorial da aviação comercial.

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Dezembro de 1997. Liberada a oferta de descontos até 65% nas tarifas domésticas; as empresas de vôo charter são autorizadas a vende passagens aéreas desvinculadas de pacotes terrestres, competindo diretamente com as empresas regulares. Início da segunda “guerra tarifária”. Janeiro de 1998. Fim da exclusividade do pool das empresas nacionais (Varig, Transbrasil e Vasp) nas operações entre Santos Dumont e Congonhas. Fevereiro de 1998. Liberadas para as empresas nacionais (Varig, Transbrasil e Vasp) as operações entre os aeroportos “centrais” (Santos Dumont, Congonhas e Pampulha). Janeiro de 1999. Fim da política de paridade cambial; fim da “guerra tarifária” e nova conjuntura de crise no setor. Dezembro de 2000. Enviado ao Congresso o PL 3846, propondo a criação da Agência Nacional de Aviação Civil. Janeiro de 2001. Início das atividades da Gol Linhas Aéreas, primeira empresa regular brasileira a operar no sistema low cost, low fare. Abril de 2001. Reunião de instalação da Comissão Especial da Câmara de Deputados destinada a apreciar o PL 3846. Agosto de 2001. Eliminação do controle sobre os reajustes tarifários. Setembro de 2001. Atentado terrorista ao World Trade Center em Nova York, e ao Pentágono, em Washington, nos Estados Unidos. Novembro de 2001. Poder Executivo retira o PL 3846 de tramitação, no dia em que seria votado o projeto substitutivo apresentado pelo deputado Leur Lomanto (PMDBBA). Dezembro de 2001. Paralisação das atividades da Transbrasil. Janeiro de 2002. Instalação do Fórum de Competitividade da Aviação Comercial. Setembro de 2002. Editada a medida provisória com o pacote de incentivos ao setor.

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OCUPANTES DOS POSTOS-CHAVE NAS ENTIDADES DA AVIAÇÃO COMERCIAL BRASILEIRA ENTRE 1990 E 2002 Departamento de Aviação Civil Sérgio Luiz Bürger (1990-1992) Mauro José Miranda Gandra (1992-1994) João Felippe de Lacerda Jr. (1994-1996) Egon Reinisch (1996-1997) Masao Kawanami (1997-1998) Marcos Antônio de Oliveira (1998-2000) Venâncio Grossi (2000- ) Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias Walterson Fontoura Caravajal, Varig (1990-1991) Rubel Thomas, Varig (1991-1994) Ramiro Tojal, Tam (1994-1997) Mauro Gandra, Total (1997-2000) George Ermakoff, Varig (2000- ) Sindicato Nacional dos Aeronautas José Caetano Lavorato ( -1992) Nelson Cirtolli (1992-1993) José Caetano Lavorato (1993-1995) Luiz Fernando Collares (1995-1999) Graziella Baggio (1999- ) Presidentes das empresas GOL: Constantino Jr. (2001- ) TAM: Rolim Amaro ( -2001); Daniel Mandelli (2001- ) TRANSBRASIL: Omar Fontana ( -1998); Paulo Henrique Coco (1998-2001); Celso Cipriani (2001) VASP: Wagner Canhedo (1990- ) VARIG: Rubel Thomas (1990-1995); Carlos W. Engels (1995-1996); Fernando Pinto (1996-2000); Ozires Silva (2000-2002)

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