A Diocese do Algarve e a Implantação da República (1910)

June 20, 2017 | Autor: L. Marques de Sousa | Categoria: História de Portugal, História da Igreja Católica
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A Diocese do Algarve e a Implantação da República, A questão religiosa e a Lei da Separação do Estado das Igrejas através do Boletim do Algarve (1911-12)

(The Diocese of Algarve and the Deployment of the Republic, the question of religion and the law of Separation of the State of the churches through the Boletim do Algarve (1911-12)) Luís Filipe Marques de Sousa1 RESUMO

Os primeiros anos do regime republicano em Portugal caracterizaram-se paulatinamente pelo seu anti-clericalismo e agnosticismo militante. Daí que a questão da Lei da Separação do Estado das Igrejas não pode ser só visto como ponto de chegada do crescente movimento republicano, mas também é ponto de partida para uma Igreja que vê definir o seu campo de acção. A identificação da Igreja com o regime político esboroa-se e cada vez mais fica confinada ao domínio do espiritual. Na diocese do Algarve, tal como em todo o país, a reacção ao novo regime político nascido a 5 de Outubro de 1910 surge associada a órgãos de informação e propaganda religiosa e política. O Boletim do Algarve, órgão de imprensa católica regional, era distribuído, quase, senão mesmo secretamente, entre a hierarquia eclesiástica e um ou outro fiel mais militante. A divulgação das “noticias” perpassavam a dimensão diocesana para a dimensão nacional. Era importante manter acesa a chama do combate espiritual dos fiéis da Diocese algarvia contra as afrontas mentais, ideológicas e espirituais do republicanismo. Era necessário alertar as consciências católicas das inconsiderações e agravos que se acometiam, nas paróquias da diocese, e no país, à Igreja e à Fé Católica. O Boletim do Algarve tornava-se o arauto, o defensor do catolicismo, mais integrista, na diocese contra os avanços do laicismo e do anticlericalismo, protagonizado por republicanos mais radicais. Com a publicação da Lei da Separação do Estado das Igrejas, aos poucos a Igreja Católica, diocesana e nacional, acomodava-se, encontrando, mais ou menos conformadamente, um modus vivendi de coexistência pacifica com o novo regime e com os novos agentes do poder.

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Mestre em História e Cultura do Brasil (FLUL)

- UM PROBLEMA DE MENTALIDADES

A 5 de Outubro de 1910 iniciava-se na sociedade portuguesa um processo de laicização crescente, que pretendia desde já uma ruptura com a mentalidade até agora vigente. Era por isso necessário fazer apelo a um novo ideário ideológico e político, digamos, uma mentalidade a que muitos apelidariam de contemporânea. Uma mentalidade contemporânea cujas suas influências e idiossincrasias vêm sendo apostoladas e manifestadas desde o iluminismo francês e por uma certa elite intelectual ligada ao meio maçónico. Um novo olhar sobre a vida, o quotidiano, a sociedade, partindo do pressuposto de que o Homem faz o seu destino e nasce livre da acção e da predestinação imposta por um ser sobrenatural e transcendente a si2. Um novo olhar sobre as instituições, sobretudo sobre o Estado, começa-se a debuxar no horizonte político e institucional o princípio da supremacia do Estado sobre a Igreja. A velha aliança entre o trono e o altar era posta em causa, a sociedade passa a ser encarada de uma forma positiva e laica, procedendo-se à sua dessacralização progressiva e sucessiva laicização. Incutese na sociedade a noção de consciência do progresso. Perante o avanço de tais forças e propósitos a Igreja, arauto e garante da tradição e da estabilidade social opõe-se com veemência intensificando uma contra-revolução e dando guarida a um movimento de restauração. A Igreja respondia aos ataques ao princípio divino da sua origem e do poder. O catolicismo algarvio não fora marginal nem espectador desta contenda. O laicismo e o catolicismo digladiam-se no aparato dos documentos legais e na propaganda feita através da imprensa católica e dos periódicos republicanos. A elite católica e eclesiástica algarvia iria (subterraneamente) responder a este confronto e dar eco da sua vitimização perante os arremedos da jovem República.

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Armando B. Malheiro da Silva, “Os Católicos e a “República Nova” (1917-1918)”, Lusitania Sacra, t.VIII/IX, 2ª ser. , Lisboa, CEHR/UCP, 1996/1997, p.391.

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- LAICISMO VERSUS CATOLICISMO (consequências da publicação da Lei da Separação do Estado das Igrejas, 20/IV/ 1911) “Artigo 4º A República não reconhece, não sustenta, nem subsidia culto algum; (…)” “Principais disposições da Lei da Separação do Estado das Igrejas, Lei de 20 de Abril de 1911”, in História de Portugal Contemporâneo – República Portuguesa, vol.I, Dir. João Medina, Lisboa, Amigos do Livro, 1985, p.220.

“Sim, Sr. Presidente da República qual é o meu crime? – Já sei sou Bispo Católico, e cumpri o meu dever; ou antes, como disse um venerando colega meu; sou condenado, porque sou português!” “O Senhor Bispo do Algarve ao Presidente da República”, Boletim do Algarve, Ano III, nº1, Faro, 15/01/1912.

A promulgação da Lei da Separação a 20 de Abril de 1911 e a sua entrada em vigor a 1 de Julho do mesmo ano era o culminar da radicalização que certos sectores ligados à maçonaria vinham fazendo desde os fins do séc. XIX. A influência do laicismo republicano e socialista nos clubes e agremiações maçónicas portuguesas, dos fins do séc. XIX, tornou-se tão evidente que proliferou junto das camadas mais jovens ligadas ao meio estudantil e dos simples homens do povo. Estes foram a expressão de uma radicalização que conseguia influenciar as tomadas de posição de algumas lojas. Esta radicalização teve expressão antes e depois de 5 de Outubro, sendo ela responsável por reivindicar a maioria das medidas implementadas pelo governo provisório, 19101911,salientemos entre elas a expulsão dos jesuítas, a abolição das formas confessionais do juramento público, a extinção dos colégios religiosos e do ensino ligado à Igreja e a abolição dos feriados religiosos. Entre outras medidas, a Lei da Família, o Código do Registo Civil e a Lei da Separação, faziam parte do projecto de transformação da sociedade portuguesa e de dessacralização da comunidade, na sua maioria analfabeta.3

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Luís Aguiar Santos, “A transformação do campo religioso português”, in História Religiosa de Portugal, vol.3, Dir. Carlos Moreira Azevedo, Lisboa, Circulo dos Leitores, 2002, p.431. Sobre este assunto fala-nos Douglas Wheeler que o analfabetismo rondava os 78 a 79%. E que a sociedade era substancialmente constituída por camponeses e por um operariado que vivia nas cidades. A República herdava as contradições sociais e a contestação operária que vinham do fim da monarquia. Douglas Wheeler, História Política de Portugal, Lisboa, Europa-América, 1978, p.78.

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Com a progressiva laicização da sociedade levada a cabo pelo sector anti-clerical do movimento republicano reabria-se o diferendo entre o poder temporal e a Igreja. Esta era entendida como contra poder e como elemento bloqueador e restauracionista do antigo regime na sociedade portuguesa. A questão legal entre a Igreja e o novo regime político não poderá apenas ser vista sob o aspecto legislativo e das respostas dadas pelo clero. É por demais um confronto de ideias e de mentalidades, chegando-se a antever um confronto entre crentes e agnósticos.4 A implantação da República consumava a aspiração da criação e da imposição de uma sociedade laica, pondo fim à aliança centenária entre o trono e o altar. O anti-clericalismo acabaria por vingar em Portugal, entre Novembro e Dezembro de 1910 seria reposta a legislação anticlerical produzida por Pombal, no séc.XVIII.5 A República não se explanou pelo país de modo igual. A adesão foi mais um fenómeno urbano. A presença do Partido Republicano era mais evidente nas grandes cidades, no geral este não possuía nem estava representado na maioria dos concelhos do País. Os poucos republicanos que viviam no interior concentravam-se nas cidades e ocupavam-se de profissões liberais (empregados de escritório e ou lojistas). A sua representação na vida politica local era incipiente, poucos foram os que tinham experiência da vida administrativa do concelho municipal. Daí que em 5 de Outubro de 1910 as Comissões Municipais continuariam a ser ocupadas pelas antigas elites monárquicas locais, agora convertidas ao republicanismo. A adesivagem ao novo regime foi por isso uma constante no distante interior. A República nunca conseguirá resolver o problema do caciquismo local, acabando-o por integrar na sua actuação.6 A 5 de Outubro de 1910 é instaurado o Governo Provisório, que estaria em vigor até 1 de Setembro de 1911. O Governo Provisório seria constituído por republicanos mais ligados ao radicalismo anti-clerical. Sairá dele a Constituição da República, mostrando as marcas do ambiente altamente politizado e dominado pelo Partido Republicano Português. No entanto entre 1911/12 a agitação política conheceria novos desenvolvimentos, o Partido Republicano Português cindia-se em moderados e radicais. António José de Almeida e Brito Camacho lideravam a facção moderada enquanto que Afonso Costa encabeçava os radicais. António José de Almeida propunha a moderação e pacificação social procurando amenizar as relações com a Igreja. Por seu turno os radicais, apelidados de jacobinos, extremavam as suas posições em relação à presença e coexistência do clero nacional. A Lei da Separação do Estado das Igrejas tivera a autoria de Afonso Costa, então Ministro da Justiça.7 4

“O Episcopado Português ao Presidente da República”, Boletim do Algarve, Ano III, nº23, Faro, 15/XII/1911, p.270. 5 Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal, vol. XI, Lisboa, Verbo, 1989, p.77. 6 Vasco Pulido Valente, O Poder e o Povo (a Revolução de 1910), 2ª ed., Lisboa, Ed. Moraes, 1982, p.128. 7 Douglas Wheeler, ibidem, p.101;

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Lei da Separação do Estado das Igrejas (1911), caricatura da época

O Presidente da República optava por governos de coalização moderada, onde os democráticos (facção radical) eram em menor representação. Tentava desta forma realizar a unificação e a reconciliação nacional. Em Janeiro de 1913, o presidente Manuel de Arriaga, defrontado com a demissão de Duarte Leite, foi obrigado a chamar Afonso Costa para organizar o Governo. Foi o primeiro governo constituído integralmente por adeptos democráticos. A jovem República entrava numa nova fase da sua ainda curta vida.8 A sociedade portuguesa, nesta altura, era constantemente assombrada pela psicose e receio de uma contra-revolução. A maioria da população vivia no campo ocupando-se das tarefas do amanho da terra, o trabalhador rural, na figura exagerada do buçal Zé-povinho de Rafael Bordalo Pinheiro, era menosprezado pelas elites políticas, republicanas e citadinas que o considerava, devido ao seu analfabetismo, como um estrato facilmente manobrável pelas forças conservadoras e opositoras do regime, entre elas os sectores monárquicos e clericais. Afirma-nos Vasco Pulido Valente:9 “A libertação do “povo” dos padres e dos caciques dependia da sua conversão ao republicanismo.”

Como já referimos implantada a República, os sectores mais comprometidos promoveriam uma intensa propaganda a favor da laicização da sociedade que permitisse a libertação imediata da nação da pesada influência e intromissão da Igreja Católica no Estado e na vida dos 8 9

Idem, ibidem, p.109. Vasco Pulido Valente, ibidem, p.130.

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cidadãos. A publicação da diversa legislação contra os valores proclamados pela Igreja suscitaria no clero e nos fiéis o vivo repúdio, ao qual se associaram os sectores mais conservadores e monárquicos que veriam uma oportunidade de fomentar a contra-revolução.10 A Igreja entendia como uma grave intromissão no seu foro e perante tal ela teve que se curvar. O facto atingiu maior expressão com a aprovação e publicação da Lei do Divórcio e com o fim do predomínio da Igreja na assistência e no ensino, onde tradicionalmente ela havia adquirido prestígio e privilégios. A legislação produzida por e sob influência do Ministro da Justiça, Afonso Costa, ameaçava o equilíbrio e a coexistência da instituição eclesiástica. A resposta não se fez esperar o episcopado português faz sair a Carta Pastoral de 24 de Dezembro de 1910, onde pretende esclarecer a população, em geral, e os católicos, em particular, dos perigos da grave ruptura iniciada pelo novo regime. Afirmava o episcopado: “ (…), dignaste-vos honrar com vossa elogiosa aprovação e sã doutrina francamente exposta na nossa carta pastoral de 24 de Dezembro de 1910, respeitando às leis absolutamente contrarias aos direitos da Igreja, ao bem da religião, à fé católica de Portugal inteiro, leis publicamente emanadas dos dirigentes da republica portuguesa.”11

A Carta Pastoral atacava as leis da República, o clero nacional tornava-a conhecida até que Afonso Costa proibiu a sua leitura pública, impondo aos altos dignitários diocesanos (bispos), a pena estabelecida no Código Penal, caso não se observasse a sua ordem. Estes incorriam em pena de demissão, fixação de residência e até prisão. Aberto o conflito extremavam-se as posições, o clímax era atingido em 20 de Abril de 1911, com a publicação da Lei da Separação, que prontamente suscitou as mais vivas reacções do clero (Carta do Episcopado ao Papa Pio X de 6 de Maio de 1911, secundada pela Encíclica de Pio X Jamdudum in Lusitânia, de 24 de Maio12), que considerou tratar-se de um atentado às crenças e convicções religiosas do povo português e à liberdade de consciência.13 Dizia-se no Boletim do Algarve:

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David Ferreira, “Lei da Separação do Estado das Igrejas (1911)”, in Dicionário de História de Portugal, vol.V, Dir. Joel Serrão, Porto, Figueirinhas, 1985, p.532. 11 “Carta do Episcopado Português a SS Pio X”, Boletim do Algarve, Ano II, nº17, Faro, 15/XI/1911, p.214. 12 Manuel António Dias Santos, Antiliberalismo e contra-revolução na I República, Coimbra, Fac. Letras da Univ.Coimbra, 2009, p.67 (tese de doutoramento). Pio X considerava que a Lei da Separação ofendia os interesses espirituais e materiais da Igreja. 13 David Ferreira, ibidem, p. 533.

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“A Lei da Separação é espoliadora, opressiva, afrontosa e quasi pode chamar-se extintiva da Religião Católica.”14

A Lei da Separação prestava-se à discussão e a conflitos, sabendo o Governo Provisório que ia atingir usos, costumes e hábitos duma grande parte da população. E seria à volta desta Lei que se travariam acessos conflitos, acabando por internamente dividir o próprio Partido Republicano. O ódio extremava-se, por influência da maçonaria, era preciso abater a grande hidra que se mostrava como força conservadora. Aos poucos o laicismo e a intolerância religiosa minariam a vida política do país.15 Sobre este assunto afirmava o bispo do Algarve, D. António Barbosa do Leão: “Nos comícios de propaganda republicana n’esta Diocese16 parece que nada mais se tem em vista senão ofender e vilipendiar a Igreja e os seus ministros, (…), chegando-se a dizer: “é preciso estrangular os padres, esperai-os nas pontas dos punhais”, e outras coisas mais.”17

Enquanto isso Afonso Costa aumentava o radicalismo e fazia da questão religiosa um problema capital para o futuro da República. Era necessário fiscalizar a acção da Igreja. O anticlericalismo, mais básico, era implacável nas suas considerações culpabilizando a instituição eclesial pelo atraso da nação. Temporariamente a influência da Igreja enfraqueceu, esta considerava-se vilipendiada e perseguida. A Lei da Separação punha fim à aliança entre o trono e o altar, alienando o poder espiritual do poder político, facto que acabou por polarizar uma porção significativa da sociedade. Esta polarização era mais evidente nas cidades, enquanto que nos campos a população, iletrada, e agarrada às suas tradições se encontrava mais arreigada à figura do padre. O que se encontrava em causa era o princípio da supremacia do Estado sobre a Igreja.18 A Lei da Separação de 20 de Abril de 1911 punha fim à consideração do catolicismo como religião oficial do Estado, reconhecendo a liberdade de consciência e de culto aos portugueses. Esta atacava e retirava, sobretudo, os bens da Igreja, fomentava a secularização do clero através das pensões e considerava a Igreja como uma corporação civil onde o poder laico superintendia. A Lei surge como necessidade fundamentada na mentalidade positiva da religião e na 14

“Lei da Separação”, Boletim do Algarve, Ano II, nº 14, Faro, 1/VIII/1911, p.157. Joaquim Veríssimo Serrão, ibidem, p.79. 16 Sobre a difusão do republicanismo e do anticlericalismo no Algarve pouco se tem escrito. No entanto a principal figura era Bernardo Passos (1876-1930), poeta, fervoroso divulgador das ideias republicanas que viria a ser Administrador do Concelho de Faro, após a instauração da República. Deve-se a ele o pequeno panfleto anticlerical A Reacção no Algarve (Tavira, 1908). 17 “Circular enviada aos Párocos da Diocese do Algarve”, Boletim do Algarve, Ano II, nº15, Faro, 15/VIII/1911, p.177. 18 Douglas Wheeler, ibidem, pp.84-85. 15

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consideração de que a Igreja era uma instituição conspiradora, reaccionária e que se opunha ao regime republicano. Aqui confrontavam-se duas concepções divergentes, a lógica da laicização da vida social e da supremacia da vida civil, que se opunha à concepção doutrinária e teológica da missão da Igreja junto da sociedade.19 “Mais perversa ainda por tocar mais perto no poder sagrado da Igreja – deve ser considerada uma lei que tira à Igreja o direito de se governar e de se administrar a si própria segundo a constituição recebida do próprio Cristo.”20

O laicismo radical marcava ideologicamente a Lei da Separação, a Igreja Católica era tida por força ultramontana, que era combatida através do livre-pensamento e do anticlericalismo. A dessacralização da sociedade, da Igreja e do Padre tinha como fim liquidar a adesão popular ao simbolismo e sincretismo religioso. O regime republicano era o defensor e a de salvaguarda da privitacidade da família, exercia a vigilância sobre a Igreja e pugnava pelo ensino obrigatório, gratuito e laico, mantendo a ideologia religiosa afastada e garantindo a neutralidade das instituições civis. No campo religioso o laicismo republicano combatia, mostrava-se contrário a certas práticas e rituais religiosos, sobretudo, a confissão auricular e o celibato. O primeiro era considerado como uma intromissão na vida privada do individuo, o celibato, por sua vez era considerado como um entrave à laicização, propunha-se aos sacerdotes católicos o fim desta instituição e que casassem. Advogavam eles que o casamento dos sacerdotes traria a laicização do clero e que este uma vez liberto desta imposição se tornaria num clero nacional. O laicismo apresentava uma nova interpretação do fenómeno religioso, sobretudo da dogmática católica e do Direito Canónico, e com isso procurava-se garantir a sobrevivência da Igreja na sociedade que se queria moderna. Iniciou-se um processo descristianizador totalizante (até mesmo totalitário) que atingiria o seu ponto nodal com as relações jurídicas e políticas.21 A Igreja não esperaria por dar resposta a este forte ataque às suas convicções e posições na sociedade portuguesa do início do século22:

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António Matos Ferreira, “Aspectos da Acção da Igreja no contexto da I República” , in História de Portugal Contemporâneo – República Portuguesa, vol.I, ibidem, p.208. 20 “Carta do Episcopado Português a SS. Pio X”, Boletim do Algarve, Ano II, nº17, Faro, 15/X/1911, p.214. 21 Fernando Catroga, “O laicismo e a questão religiosa em Portugal (1865-1911)”, Análise Social, vol. XXIV (100), Lisboa, ICS, 1988, pp. 217 e ss. 22 Fala-nos Manuel A. Dias Santos que a questão religiosa atingia o seu apogeu com a publicação da Lei da Separação e que esta atingiu plenamente os seus objectivos de atingir o conservadorismo católico e português. Manuel António Dias Santos, Antiliberalismo e contra-revolução na I República, Coimbra, Fac. Letras da Univ.Coimbra, 2009, p.67 (tese de doutoramento).

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“- A Igreja Católica – solenemente o afirmamos perante o governo e perante o país – pode ser oprimida, pode ser perseguida, pode ser calcada pela força material: mas jamais abdicará da sua divina missão, jamais pode prescindir dos seus sagrados e inauferíveis direitos espirituais: é uma sociedade perfeita, independente, fundada pelo Filho de Deus feito Homem; e enquanto houver homens no mundo, a Igreja reivindicará para si o direito de ensinar, de os reger, de os santificar, de os guiar à pátria celeste, cumprindo o mandato, que seu Divino Mestre Fundador lhe confiou.”23

A acção social, a missão da Igreja na comunidade era-lhe necessária, quer por definição quer por dogma, não lhe bastava, a proposta da propaganda republicana, de encontrar pacificamente o seu modus vivendi, como definia a estrutura do novo poder. Deste modo a Lei da Separação surgiu como ruptura e como nova maneira de encarar a missão e a mensagem cristã no seio de uma sociedade laica e secularizada. A Igreja perderia quantitativamente importância, mas por sua vez ganhava substância, qualidade, era capaz de se adaptar aos novos tempos definindo-se cada vez melhor no campo espiritual.24 “Os bens e os rendimentos da Igreja ficam sacrilagamente confiscados: foi-lhe radicalmente tirada a faculdade de para o futuro adquirir novos bens e chegou-se ao ponto da Igreja não poder angariar nada do que é necessário para provar à decência da casa de Deus, ao sustento dos seus ministros, ao cumprimento dos seus múltiplos deveres de caridade e piedade, (…).”25

O laicismo preconizava expurgar da sociedade todo e qualquer resquício do clericalismo propondo resocializar a sociedade em moldes positivos e científicos. Recordemos que o republicanismo português bebera no final do século XIX as influências do cientismo positivista de A. Comte e do socialismo de Proudhon. Era correntemente defendido pelos republicanos o princípio categórico de que o Homem é dono do seu destino. Daqui resultaria a concepção e a clivagem ideológica entre a religião e a sociedade.26 Esta cisão seria mais notória a nível das mentalidades. A Igreja reagiu sempre com oposição e desconfiança apelando à perseverança e coerência dos fiéis, mesmo que para isso os ameaçasse as almas mais tíbias com a excomunhão e com a predestinação ao Inferno. Afirmava assim D. António Barbosa do Leão: 23

“O Episcopado Português ao Presidente da República”, Boletim do Algarve, Ano II, nº23, Faro, 15/XII/1911, p. 269. 24 António Matos Ferreira, ibidem,p. 208. 25 “Carta do Episcopado Português a SS. Pio X”, ibidem, p.214. 26 Fernando Catroga, ibidem, p. 255.

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“-À católicos (…) que perante essa campanha, verdadeiramente satânica e evidentemente falha de escrúpulos, que por aí se move contra o clero, não é capaz de tomar a defesa dos ministros da sua religião, por vezes tão injusta e caluniosamente tratados.”27

Os campos extremavam-se e de cada lado procurava-se saber quem eram os apoiantes e os opositores, os seguidores de cada um dos grupos. Continua D. António Barbosa do Leão: “ – Se todos os católicos em Portugal, conscios da sua força e alívios de sua fé, assim o entendessem e praticassem, poderíamos estar certos de que os nossos adeversários – minoria insignificante, só animada pela nossa cobardia e pela sua audácia – nem se atreveriam a afrontar-nos compreendendo perfeitamente a sua impotência (…). Feito isto (…) teremos dado indubitavelmente um grande passo para a recristianização da sociedade portuguesa, desorientada pela propaganda satânica de tantas doutrinas de perdição.”28

O Estado, ao invés da consideração da Igreja que o diabolizava, aparecia ao português comum e à elite republicana como o grande socializador. Ao Estado competia educar, formar e modelar as consciências vivas da nação. A partir de 5 de Outubro de 1910 construiu-se uma nova religião do Estado e da Nação, uma religião positiva expugnada de todo o sincretismo e superstição. Nunca se pretendeu eliminar a Igreja Católica, apenas se propunha substituir a sua influência pela ética republicana. A dogmática cristã era reduzida apenas ao que se julgava ser bom, a essência ética dos seus ensinamentos.29 Por sua vez as respostas dos ministros católicos, sobretudo a do Bispo do Algarve, D. António Barbosa do Leão, eram cada vez mais cáusticas, afirmava:

“- O Estado não tem religião, não nos conhece ou reconhece, não subsidia o culto, e apenas nos deixará só o que lhe aprouver do pouco que ainda usufruímos ou administramos, porque nos não deixa em paz e liberdade em nossas igrejas e com a organização que é essencial ao catolicismo?”30

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“Aos Catholicos – III”, Boletim do Algarve, Ano III, nº11, Faro, 15/VI/1912, p.174. “Aos Catholicos – V”, Boletim do Algarve, Ano III, nº17, Faro, 15/IX/1912, p.207. 29 Fernando Catroga, ibidem, p.235. 30 “O Senhor Bispo do Algarve ao Presidente da República (cont.)”, Boletim do Algarve, Ano III, nº2, Faro, 1/II/1912, p.15. 28

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D. António Barbosa do Leão, Bispo do Algarve (1907-1919)

O Estado reagia deste modo, a partir de 5 de Outubro de 1910, fomentando a indiferença religiosa, uma vez que chegados os republicanos ao poder se viam confrontados com a dominância cultural da Igreja católica na sociedade, proporcionada ao longo de décadas pela velha aliança entre o trono e o altar. Os republicanos, moderados e radicais, procuravam a intensificação do esforço de laicização da sociedade e dos indivíduos. O republicanismo, enquanto doutrina política e proposta social, apresentava o modelo laico de sociedade e propunha-se libertar o individuo de tudo o que existia na comunidade que pudesse remeter, consciente ou inconscientemente, para o sincretismo religioso e dogmática teológica e metafísica, que segundo eles, tais ideologias procuravam controlar ideias, atitudes e comportamentos individuais e colectivos.31 A estes arremessos à existência da Igreja, o clero responderia com palestras imbuídas da mais tradicional apologética, onde se instigavam os fiéis à preserverança e à constância na fé e nas obras, tomando como óbice a critica à sociedade. Em carta aos fieis do Algarve D. António referia: “- Trevas nas inteligências, inconstância nas vontades, raiva e corrupção nos corações, eis o espectáculo lamentoso, que se nos depara (…). A mim não me resta dúvida nenhuma que a actual perseguição religiosa em Portugal há-de preparar à Igreja dias melhores, (…).”32

O republicanismo português seria pródigo em considerações sobre o fim e a crença de que o catolicismo caminhava para o abismo do esquecimento. Para tal contribuía em muito a

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Fernando Catroga, ibidem, p.241. “Aos Catholicos – I”, Boletim do Algarve, Ano III, nº9, Faro, 1/IV/1912, p.136.

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criação e ascensão de uma nova espiritualidade baseada na religião da solidariedade dos cidadãos, onde a moral e a ética social e republicana substituiriam a moral revelada do cristianismo. A questão religiosa levantada com a Implantação da República foi mais um combate ideológico e mental, e aos poucos se tornará uma questão legal, apoiada na produção de leis. A assumpção legal da questão religiosa se ia consubstanciar numa questão material e aparente do conflito entre laicismo e catolicismo. A Lei da Separação do Estados das Igrejas tornou-se um marco do regime republicano nos seus primeiros anos de vida, essencialmente no que de mais fundamental estabelecia, a criação de uma religião e de um clero nacional controlado e sancionado, na sua missão e intervenção social, pelo poder civil e político.33 Comentava-se sobre esta Lei no Boletim do Algarve o seguinte: “ Mas num sistema de separação, pretender o Estado chamar a si, melhor, usurpar todos os direitos que à Igreja pertencem, que em toda a parte lhe são reconhecidos, e de que ela de modo algum pode prescindir, é o que há de mais fantástico.”34

Primeira página do artigo sobre a Lei da Separação do Estado das Igrejas (Boletim do Algarve, Ano II, nº 14, Faro, 1/VIII/1911, p. 157.)35 33 34

António Matos Ferreira, ibidem, p.209. “Lei da Separação”, Boletim do Algarve, Ano II, nº 14, Faro, 1/VIII/1911, p.157.

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O que estava em causa era sobretudo um princípio ideológico, a concepção do poder e do direito, a Lei da Separação, punha em causa a supremacia do Direito Divino e da origem divina do poder, em vez disso substituía-o pelo Direito Laico do Estado. Perante esta concepção o episcopado português, a 6 de Maio de 191136, elabora uma carta pastoral em que condena a Lei da Separação denunciando os aspectos que mais directamente afrontava a Igreja, apontemos os casos da expropriação dos bens do clero, a formação do clero nos seminários, a proibição das cultuais religiosas (confrarias e irmandades), a proibição do uso do hábito religioso, e sobretudo, a subordinação do clero ao Estado e às novas cultais laicas (juntas e comissões paroquiais37).38 “Só por este motivo se pode dizer que a Lei da Separação antes deveria chamar-se Lei da Extinção da Religião Católica no nosso país. Num sistema de relações entre a Igreja e o Estado compreende-se, embora nem sempre se justifique, uma tal ou qual interferência do Estado, relativa a determinados assuntos, (…).”39

Com a publicação da Lei da Separação a Igreja temia que através da introdução do ensino laico nos seminários aos poucos os fosse extinguindo. Que a apropriação e posse de bens fosse limitada e que aos que os possuíam fosse retirados, passando os padres e bispos a serem meros serviçais. Assim consideravam eles que nessas condições humilhantes o clero não poderia existir, nem sequer tinham a dignidade necessária para tomarem as igrejas e aí executarem os ofícios religiosos. A Lei da Separação atacava a instituição do celibato, segundo eles, com o estabelecimento de pensões aos pais, filhos e viúvas dos clérigos. Estas pensões eram indecentes, um convite à imoralidade e à insubordinação do clero.40 Afirmava-se:

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O Boletim do Algarve foi publicado entre 1911 e 1912, foi seu director o cónego Marcelino António Maria Franco, que veio a ser Bispo do Algarve (1920-1955), após D. António Barbosa do Leão. Segundo sabemos este quinzenário circulou de modo restrito entre o círculo católico da diocese. A maioria da colecção consultada encontra-se na biblioteca do antigo Liceu Nacional João de Deus, actual Escola Secundária com o mesmo nome, em Faro. 36 Manuel António Dias Santos, Antiliberalismo e contra-revolução na I República, Coimbra, Fac. Letras da Univ.Coimbra, 2009, p.67 (tese de doutoramento). 37 Manuel Clemente refere-nos que estas Comissões Paroquiais, “associações cultuais” foi um modo único de organizar o catolicismo comunitário excluindo da direcção destas os eclesiásticos. Manuel Clemente, Igreja e Sociedade Portuguesa, do Liberalismo à República, Lisboa, Grifo, 2002, p.484. 38 António Matos Ferreira, ibidem, p.210. 39 “Lei da Separação”, ibidem, p.157. 40 António Matos Ferreira, ibidem, p.210.

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“Repugna-me falar das disposições da lei em que o clero é convidado à apostasia e ao desregramento da vida.”41

O clero português estava quase na miséria e o Estado impôs e estabeleceu um regime de subsistência (a atribuição de pensões aos padres). A lei criava um Fundo do Culto nas paróquias, e nas dioceses e no episcopado, que iria organizar as finanças eclesiásticas criando conselhos, presididos cada um pelos seus mais dignos representantes, respeitando a ascendência hierárquica (padre e bispo). Mas tal fundo era escasso e insuficiente em matéria de subsistência, a título de exemplo as paróquias só contribuíam com 5% para o fundo diocesano. Por sua vez as finanças das paróquias, vigararias e dioceses eram entregues a vogais leigos que faziam a administração e repartição das verbas e receitas pelos diferentes encargos, com a manutenção do clérigo, das alfaias de culto e a manutenção do edifício, a igreja. Este conselho “económico” substituía a Fábrica da Igreja. As principais fontes de financiamento do clero continuava a vir de modo tradicional, das côngruas, das ofertas, quermesses e festas ao orago local. A excepção que se abria era para as receitas apuradas a partir da propaganda feita nos conselhos diocesanos e episcopal.42 Com a criação do Fundo do Culto procurou-se prover ao clero o necessário à sua manutenção. Por outro lado também se pretendia contornar os efeitos da Lei da Separação. Entretanto estas determinações ditadas pela Igreja e da sua publicitação, quer na imprensa religiosa quer a partir do púlpito, e as insurgências dos bispos contra a Lei da Separação fez com que o Estado começasse a impor o degredo aos bispos, abandonando estes involuntariamente as suas dioceses.43 De Novembro de 1911 a Março de 1912 todos os bispos são exilados das suas dioceses pelo período de 2 anos, estando desta forma afastados do ministério diocesano. Porém apesar de desterrados, fora das suas dioceses, continuaram a exercer o seu munus apostólico à distância através da correspondência que mantinham com o vigário geral da diocese, responsável pela diocese na ausência do bispo. No Algarve, tal iria suceder com D. António Barbosa do Leão, a 6 de Janeiro de 1912, o Ministro da Justiça, António Caetano Macieira Júnior, enviava uma circular a interditar o bispo de residir na sua diocese por 2 anos. Segundo a circular D. Barbosa do Leão havia violado o artigo 379º do Código Penal, isto queria dizer, que o bispo teria constrangido alguém a praticar uma acção sancionada pela lei. Acusava-se o bispo de ter persuadido e obriga-

41

“Lei da Separação”, ibidem, p. 164. “Fundo do Culto”, Boletim do Algarve, Ano II, nº19, Faro, 15/X/1911, pp. 217-223. 43 António Matos Ferreira, ibidem, p.210. 42

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do o clero algarvio a não publicar nem publicitar de voz durante o exercício do culto da referida circular do governo. O Ministro da Justiça dava-lhe 5 dias para deixar a diocese. Conhecida a circular o clero algarvio e fiéis organizam uma romaria ao paço episcopal em solidariedade ao seu bispo. D. Barbosa do Leão aceitaria resignado esta decisão fazendo o que lhe se ordenava, pois segundo ele tal reverteria a favor da fé e da religião. A 11 de Janeiro de 1912, era forçado a partir para exílio em Lisboa, indo fixar residência no sítio da Parada.44 O exílio forçado seria motivo para o Bispo do Algarve escrever uma extensa carta de repúdio da Lei da Separação e do seu exílio, e dos demais bispos portugueses. Nesta carta atacava com veemência os artigos sobre as cultuais e as pensões do clero, que o regime republicano pretendia modificar e suprimir. “ Nós, os Bispos Portugueses, temos sido tratados com soberano desprezo. É preciso reduzirmos ao seu justo valor ao menos os documentos que nos acusam e condenam, sem sermos ouvidos, nem por ser reconhecido o direito de defesa, o que não se faz aos maiores criminosos.”45

Os bispos não tinham recurso, era-lhes instaurado o processo, sem serem presentes ao juiz e de imediato eram condenados por um tribunal arbitrário. Todos estes processos e condenações caíram mal na sociedade portuguesa. O C.A.D.C. (Centro Académico de Democracia Cristã), em Coimbra, onde militava António de Oliveira Salazar, protestava e declarava o seu apoio ao Bispo do Algarve: “- Pelo C.A.D.C. de Coimbra também foi enviada a Sua Excelentíssima Reverendíssima o seguinte telegrama, que a censura não deixou passar: “Estudantes católicos de Coimbra saúdam e felicitam pela nobre atitude – Luís Teixeira Neves.”46

No fervor do momento D. Barbosa do Leão afirmava no final de sua carta de repúdio: “- Sr. Presidente da República Portuguesa: o Estado entrou na Igreja, tomou conta do que legitimamente lhe pertencia, lançou algemas a todos os seus membros, e, bradando liberdade

44

“Expulsão do Senhor Bispo do Algarve da sua Diocese”, Boletim do Algarve, Ano III, nº1, Faro, 15/I/1912, pp.2 a

4; 45 46

“O Senhor Bispo do Algarve ao Presidente da República”, ibidem, p.5; “Expulsão do Senhor Bispo do Algarve da sua Diocese”, ibidem, p.4;

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de consciência, liberdade de culto, diz com soberano desprezo, à Igreja Católica, já espoliada e escravizada: ajoelha diante de mim, que sou teu Senhor, e, (…), sê livre.”47

Acalmados os azedumes e os conflitos entre as elites dos crentes católicos e dos agnósticos republicanos, tudo se iria recompondo, ocupando os seus lugares na sociedade, no final de 1912 o director do Boletim do Algarve e futuro Bispo do Algarve, o cónego Marcelino A. Maria Franco afirmava: “(…), nenhuma razão há para considerar em vigor um preceito em que o principal elemento em vigor é já caduco (…).”48

A Lei da Separação mostrava a sua fraqueza, não era possível manter acesa a luta do anti-clericalismo sem criar antagonismos e cisões na sociedade portuguesa. Os governos moderados que se sucederão até 9 de Janeiro de 1913, altura em que Afonso Costa assume o governo da nação, tentariam sempre apaziguar esta contestação e contra-revolução latente49, procurando um modus vivendi conciliatório e de coexistência pacifica com a Igreja portuguesa.50 Mesmo com o apaziguamento do clima mais crispado, por parte do poder instituído, o clero continuou a ser vexado, insultado e maltratado. O que levaria a que o Bispo do Algarve afirmar-se: “ – Desde a implantação da República, que me conste, houve n’esta Diocese sete prisões de padres.”51

No entanto este clero preso e vilipendiado pela impetuosidade de um: “ (…) povo, na maioria ignorante e alucinado por esta propaganda irreflectida e contraproducente, feita quasi sempre por indivíduos de elevada categoria literária e social, (…).”52

Era um clero: 47

“O Senhor Bispo do Algarve ao Presidente da República”, ibidem, p.30; “Um accordão importante”, Boletim do Algarve, Ano III, nº 18, Faro, 1/X/1912, p.227. 49 Os principais líderes republicanos temeram sempre a contra-revolução do clero e dos sectores mais conservadores e tradicionalistas da sociedade ligados ao realismo. O movimento de restauração da monarquia espreitava uma oportunidade para fazer a revolução. Manuel António Dias Santos, Antiliberalismo e contra-revolução na I República, Coimbra, Fac. Letras da Univ.Coimbra, 2009, pp.67-68. (tese de doutoramento). 50 António Matos Ferreira, ibidem, p. 211. 51 “Circular enviada aos Párocos da Diocese do Algarve”, Boletim do Algarve, p.177; 52 ibidem, p. 177; 48

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“ – E digo com grande sacrifício, porque tenho párocos n’esta Diocese muito pobres, tão pobres (não sei como de vergonha e tristeza o diga) que até chegam a passar fome!”53

O clero português, em geral, e o algarvio, em particular, entre 1911-1912, vivia numa situação pouco favorável, primeiro sentia-se mentalmente vilipendiado, espoliado materialmente e bode expiatório dum povo, que na sua maioria era ignorante e vivia ao sabor do vento. Em 1911-12 surgia como consequência uma ferida aberta entre o Portugal Católico e o Portugal Laico, que agora deixava a sua marginalidade, do século XIX, tornando-se autónomo e até independente do poder espiritual da Igreja. Por sua vez o Portugal moderado, católico e laico, procurou a reconciliação nacional e um modus vivendi apaziguador dos conflitos políticos e religiosos que fizesse progredir a nação. O Boletim do Algarve, órgão oficial da diocese, foi durante os anos de 1911-12 o arauto e a voz de um clero ameaçado, pela luta a si movida pelo laicismo republicano. Competia a este órgão de imprensa cotólica denunciar os avanços do laicismo agnóstico e os aviltamentosfeitos pelos mais radicais republicanos à Igreja Católica (clero e fieis).

53

ibidem, p. 177.

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