A Diocese do Funchal na História da Arte em Portugal: a pintura quinhentista.

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A Diocese do Funchal na História da Arte em Portugal: a pintura quinhentista Vítor Serrão

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às historiadoras de arte Isabel Santa Clara e Rita Rodrigues

1. História e valências artísticas da sé do FunchaI A Diocese do Funchal foi fundada em 1514 sob o epíteto de primeira “catedral do resto do mundo”, ou seja, a primeira sede episcopal instituída fora do território metropolitano português, na sequência das viagens marítimas e da grande abertura à globalização. Tratou-se, assim, de uma diocese pioneira, que se estruturou no auge da expansão. O facto de ser erigida no Arquipélago da Madeira transformou-a não só na primeira sé fora da Europa como numa das plataformas estratégicas do vasto fenómeno dos Descobrimentos a partir do Atlântico Norte. Trata-se de uma diocese que já nas primeiras décadas de existência tinha assumido jurisdição canónica sobre todos os territórios descobertos e a descobrir sob alçada do Reino português. Vendo-se a obra magnífica de marcenaria, escultura e pintura da capela-mor da sé, que ainda subsiste na sua integridade de cinco séculos, explicam-se bem os desvelos construtivos e os requintes de decoração de uma sede episcopal que nascera ungida pelo seu papel de maior diocese do mundo conhecido. É sempre de realçar a obra de investigação pioneira do padre Manuel Juvenal Pita Ferreira (19122 -1963) , autor de uma bem documentada e referencial monografia sobre a sé funchalense, editada em 1963, para quem as formas da arquitetura e do equipamento artístico desta Catedral refletem o papel estratégico da novel sede diocesana, que assumiu desde a fundação o papel de sede administrativa do processo de institucionalização da Igreja nos territórios africanos, americanos e asiático sob alçada do Padroado Português. O episcopado funchalense assumiu-se, a essa luz, com as formas artísticas com que o templo foi moldado, como pilar do cristianismo e orientador da missionação

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Centro ARTis/IHA-FLUL/Universidade de Lisboa. Agradecimentos: a António Candeias, D. António Carrilho, D. Carlos Moreira de Azevedo, Elsa Murta, Fernando António Baptista Pereira, Francisco Clode, Isabel Cruz de Almeida, Isabel Santa Clara Gomes Pestana, João Lizardo, Joaquim Oliveira Caetano, José Alberto Seabra Carvalho, José Blanco, José Eduardo Franco, José Ibérico, Luíza Clode, Manuel Morais, Marta Oliveira, Mercês Lorena, Paulo Ladeira, Pedro Flor, Rita Rodrigues, Ruí Carita, e ao Instituto de Conservação e Restauro José de Figueiredo (Direção Geral do Património Cultural), Laboratório Hércules (Universidade de Évora) e World Monuments Fund. 2 Cf. Manuel Juvenal Pita Ferreira, A sé do Funchal, Funchal, Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, 1963. 111

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cristã em todo o Ultramar português. Tal explica os cuidados desvelados com que a construção da sé foi pensada, erguida e decorada, a partir da corte de Lisboa, seguindo modelos estéticos que radicam numa “geral maneira de edificar” de espírito tardo-gótico 3 de tradição mendicante , mas que se faz moderna e de gosto renascentista na ênfase do equipamento sacro de decoração, o qual visava reforçar essa estratégia, recorrendo por 4 isso mesmo aos serviços de alguns dos melhores artistas do Reino . É ainda obscuro o que se passou nestas primícias da ereção do imóvel, por não ser abundante a documentação coeva, mas os estudos histórico-artísticos realizados, bem como as mais recentes intervenções de conservação e restauro, têm vindo devolver sentido e voz às formas construídas, lançando novas luzes sobre as primeiras campanhas da sé no primeiro quartel do século XVI.

Sé do Funchal. Exterior.

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Marta Oliveira, “A ordem de uma ‘geral maneira’ de edificar”, revista Monumentos, n.º 19, DGEMN, 2003, pp. 22-31. 4 Rui Carita, História da Madeira (1420-1566). Povoamento e Produção Açucareira, vol. I, Funchal, Secretaria Regional de Educação, 1989, pp. 375-377. 112

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Face à tutela da Coroa portuguesa, através de encargos realizados à sombra da poderosa Ordem de Cristo, a sé do Funchal cresceu segundo bases artísticas, culturais e espirituais onde o pensamento franciscano e a vocação missionária estruturam a grandiosidade do programa construído, tanto na escala como na dimensão da igreja (“magnifica e sumptuosa”, segundo o cronista Damião de Góis). Parece claro que D. Manuel quis construir uma cidade (elevada em 1508 a essa condição) que pudesse ser cabeça de bispado (criado em 1514) traçando e seguindo um plano urbanístico de novo tipo. Assim, e apesar de certas resistências, a catedral madeirense vai ganhar forma dentro desse plano estratégico, será sede do Bispado criado em 12 de junho de 1514 pela bula Pro excellenti proeminentia de Leão X, e assume-se base e exemplo para arquiteturas sequenciais. O facto de ter sido erguida em 1533, ainda que efemeramente, à condição de Arquidiocese (sendo o indigitado Arcebispo, até 1555, D. Martinho de Portugal), catapulta a importância da sé do Funchal no apoio aos missionários que participam na dinâmica da evangelização em tantos cenários extraeuropeus. O espírito de mobilidade que marca a história da Madeira revela-se nessa dimensão viageira, uma vocação que contribui para alargar os espaços da expansão portuguesa, que desde 1514 reforça uma estreita cooperação entre a Igreja e o projeto político da Corte e que tinha como objetivo maior organizar as comunidades nascidas no contexto da expansão. A igreja de Santa Maria Maior, tal como é referenciada a sé nas suas primícias em documentação desde o final do século XV e nos primeiros anos da governação manuelina, designadamente a da Alfândega, estava avançada de obras em 1508, ano em que foi benzida pelo “bispo de anel” D. João Lobo, um prelado que visitou o Funchal a mando 5 da Ordem de Cristo , e em 1512 recebia já uma verba substancial “para o retabolo da sé”, que marca o início das compras de materiais para a marcenaria, estando ainda as 6 obras pétreas da abside por concluir . A igreja, paulatinamente construída com atrasos, interrupções e mudanças de rumo desde 1493, sendo D. Manuel ainda duque de Beja, tinha em 1500 paredes erguidas, em 1508 estava a abside cerrada, em 1517 abre finalmente a culto (mas só em 1518 o coruchéu da torre estava pronto). Ainda em 7 de setembro de 1517, nas vésperas da sagração da igreja, o rei mandava ao vedor das obras 7 João Saraiva 600.000 rs para término das obras . Documentam-se intervenções dos mestres pedreiros Pero Anes, Gil Eanes e João Gonçalves, e do tesoureiro das obras Estêvão Fernandes, nas lentas obras do estaleiro, o qual só na aparência pode ser visto como construção de gosto retrógrado: se a igreja segue de facto, como bem mostrou Marta Oliveira, o “modelo natural”, o gótico-manuelino da tradição mendicante (como já sucedera em Silves, e na Guarda), ou seja, uma construção simples, grandiosa mas austera, servida pelo gosto do ornamento mudéjar, com arcos altaneiros e coberturas 8 nervadas de artesões , já o gosto com que a decoração intestina foi pensada e realizada !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 5

Jerónimo Dias Leite, Descobrimento da Ilha da Madeira. Discurso da vida e feitos dos Capitães da dita Ilha, ed. anotada de João Franco Machado, Coimbra, 1947, pp. 50-51. 6 Fernando Jasmins Pereira, Estudos sobre a História da Madeira, Funchal, CEHA, 1991, p. 328. 7 Fernando Augusto da Silva, A sé Catedral do Funchal, Funchal, s.n., 1936, p. 29. 8 Marta Oliveira, “A ordem de uma ‘geral maneira’ de edificar”, op. cit. 113

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segue repertórios renascentistas que foram pensados ao detalhe. Conclui-se então uma fase notabilíssima de produção artística que culmina a 18 de outubro de 1517, quando o conjunto excecional da capela-mor – único conjunto íntegro e in situ da arte manuelina portuguesa – está pronto e acompanha a sagração da igreja, com a presença de D. Duarte, bispo de Dume, enviado pelo primeiro bispo do Funchal e figura destacada dos crúzios, D. Diogo Pinheiro, que nunca se deslocou à sua diocese.

Interior da sé do Funchal, com as três naves manuelinas e os tectos mudéjares, 1.º quartel do século XVI.

Não é possível no âmbito de uma comunicação de síntese como esta analisar todo o historial artístico de uma sé que acumulou património, em encomendas, aquisições e ofertas, ao longo de cinco séculos. Desde 1514 e até ao século XVIII, nas fases sequen114

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ciais da sua história, a Diocese do Funchal foi um pólo de estruturação religiosa, social e cultural que com toda a naturalidade se foi enriquecendo de obras de arte: assim, guarda tesouros artísticos vultosos, desde a talha lavrada à imaginária, aos retábulos, à pintura de óleo e fresco, à ourivesaria de ouro e prata, às paramentarias litúrgicas, aos azulejos, aos órgãos, aos sinos, às inscrições sepulcrais e a outras valências, o que atesta, no seu conjunto, a importância estratégica da Ilha e o esforço despendido para qualificar a nóvel sede episcopal num espaço de exceção. É um património imenso, entre o Gótico final e o Neoclassicismo, passando pelas fases artísticas do Renascimento, do Maneirismo, do Barroco e do Rococó, num acervo de que já em 1963 dava conta Manuel 9 Juvenal Pita Ferreira na supracitada monografia da sé . Hoje, sabe-se muito mais sobre as artes na Ilha da Madeira, fruto de pesquisas consistentes realizadas, na esteira do livro do padre Manuel Juvenal Pita Ferreira, pelos estudos de António Aragão, José Pereira da Costa, Fernando Jasmins Pereira, Rui Carita, Pedro Dias, João Lizardo, Fernando António Baptista Pereira, Luíza Clode, Francisco Clode ou Nelson Veríssimo, entre outros, de que destacamos pelo grau de inovação e peso de novidade documental as duas teses doutorais de Isabel Santa Clara Gomes Pes10 11 tana e de Rita Rodrigues , ambas ancoradas num ‘corpus’ exaustivo de existências e numa preciosa análise crítica de encomendas e encomendantes, artistas e oficinas, intercâmbio de obras, circulação de fontes artísticas, vivência de conventos, confrarias e irmandades instaladas, e o peso da irradiação das artes através do Cabido da sé, na Ilha 12 Madeira, durante os séculos da Idade Moderna . Assim, a nossa opção de enfoque no texto desta comunicação teve forçosamente de recair sobre uma seleção temática precisa. Optámos, em primeiro lugar, pela esplendorosa obra de talha e pintura retabular da capela-mor manuelina, passível agora de ser analisada a outra luz, fruto do recente restauro de que o conjunto foi alvo. Mas também se analisam aqui noutras fases de campanhas artísticas, como as do final do século XVI, geralmente menos destacadas pelos historiadores de arte – caso do altar da Confraria da Ascensão, pintado por Fernão Gomes por volta de 1583 –, se esquecer algumas referências pontuais às do ciclo do Barroco, que tem na sé do Funchal testemunhos de talha, 13 escultura e pintura de primeira ordem .

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Manuel Juvenal Pita Ferreira, A sé do Funchal, op. cit. Maria Isabel Santa Clara Gomes Pestana, Das coisas visíveis às invisíveis. Contribuição para o estudo da Pintura Maneirista na Ilha da Madeira, 1540-1620, texto policopiado, tese doutoral apresentada à Universidade da Madeira, 2004, com orientação de Vitor Serrão. 11 Rita Rodrigues, A Pintura Proto-Barroca e Barroca no Arquipélago da Madeira entre 1646 e 1750. A eficácia da imagem, texto policopiado, tese doutoral apesentada à Universidade da Madeira, 2012, coorientada por Vitor Serrão e Isabel Santa Clara Gomes Pestana. 12 Sobre as importações de obras de Arte Flamenga para a Ilha da Madeira, incluindo a sé, cf. Fernando António Baptista Pereira e Luiza Clode, Museu de Arte Sacra. Arte Flamenga, Funchal, Edicarte, 1997. 13 Sobre as campanhas de entalhe epi-maneirista, barroco e tardo-barroco, cf. os vários dados revelados em Rita Rodrigues, A Pintura Protobarroca e Barroca no Arquipélago da Madeira entre 1646 e 1750. A eficácia da imagem, op. cit.. 10

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2. O retábulo ‘manuelino’ e os seus artistas (c. 1514-1517) O retábulo-mor da sé do Funchal, como produção dos melhores mestres da chamada Oficina de Lisboa, tanto na parte da pintura e dourado, como na do entalhe e escultura (extensível, esta, ao cadeiral ‘manuelino’), é o único exemplo de conjunto in situ que subsiste das grandes obras produzidas pelos estaleiros manuelinos. Encontrava-se em estado deplorável de conservação, com alterações e repinturas sofridas em vários painéis, em sucessivas fases do seu historial, sem contar com atos de iconoclastia como os que sofreu aquando da invasão da cidade em 1566 por corsários franceses (de que deixou vivo relato o escritor Gaspar Frutuoso nas Saudades da Terra), que acutilaram peças escultóricas do altar, de onde fizeram desaparecer a imagem da Virgem com o Menino, e praticaram outros vandalismos. Também se verificava a presença de repintes impostos como “correções doutrinárias”, a seguir ao Concílio de Trento, caso da figura da Virgem Maria chorosa na Descida da Cruz, que estava coberta por outra figura da Virgem, alteada e de pé, dentro dos 14 preceitos contrarreformistas da Stabat Mater . Tal repinte de fins do século XVI, que o recente restauro removeu, devia ser da responsabilidade de um pintor local de nome Diogo Gomes, que o introduziu sob efeito do espírito intolerante da “devassa” diocesana de 1591, que suscitara muitas denúncias no Arquipélago. Todos esses malefícios sofridos pelas tábuas impediam uma adequada observação do conjunto e das suas espe15 cificidades pictóricas . Após o recente processo de restauro que em boa hora sofreu, através da World Monuments Fund, o retábulo e cadeiral da capela-mor puderam ser finalmente apreciados nas suas múltiplas valências artísticas. Observa-se, em termos de composição retabular, que existem evidentes similitudes com o que sabemos ter sido a disposição compositiva do antigo retábulo da Vida e da Ordem de Santiago (atribuído ao Mestre da Lourinhã, cerca de 1515-1520) no Con16 vento de Santiago de Palmela , e com a do retábulo do Mosteiro de São Francisco de Évora (pintado por Francisco Henriques e oficina, 1509-1511). Este último foi dos primeiros retábulos-mores a adotar em Portugal uma estrutura de fiadas narrativas sobrepostas, cada uma com a sua temática, interrompidas em termos formais por um eixo central esculpido que estabelece continuidade narrativa ao nível horizontal (numa sequência de leitura de cima para baixo provavelmente inspirada no retábulo da sé de 17 Lamego) .

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Vitor Serrão, “Impactos do Concílio de Trento na arte portuguesa entre o Maneirismo e o Barroco (1563-1750)”, O Concílio de Trento em Portugal e nas suas conquistas: olhares novos, coord. José Pedro Paiva, Lisboa, ed. Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa, 2012, pp. 103-132. 15 Rita Rodrigues, op. cit., documenta vários momentos, desde o fim do século XVI ao XIX, em que o retábulo foi alvo de “repintura, “renovação”, “lavagem” e, por conseguinte, alterações, adições e outras mudanças na sua estrutura originária. 16 Cf. Flávio Gonçalves, O Mestre de Santiago, Lisboa, Realizações Artis, 1966. 17 Cf., sobre a composição retabular ‘manuelina’ e renascentista, Fernando António Baptista Pereira, Imagens e Histórias de Devoção. Espaço, Tempo e Narratividade na Pintura Portuguesa do Renascimento 116

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Retábulo-mor da sé do Funchal, após o restauro, obra da responsabilidade da Ordem de Cristo e do bispo D. Diogo Pinheiro, com marcenaria lavrada por mestre Machim Fernandes (?) e pinturas do Mestre da Lourinhã (Álvaro Pires ?) e de um artista anónimo da Oficina Régia de Jorge Afonso; cerca de 1514-1517.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! (1450-1550), texto policopiado, tese de Doutoramento apresenta à Universidade de Lisboa, 2002. Ver, também, a recente atualização de Fernando António Baptista Pereira, “O Retábulo-mor do Convento de Jesus de Setúbal no contexto dos conjuntos retabulares atribuídos à oficina de Pintor Régio Jorge Afonso” in AA. VV. Retábulo do Convento de Jesus de Setúbal, 1517/20-1530, Setúbal, CMS/RPM, 2013, pp. 15-47. 117

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No caso da sé do Funchal, as pinturas são doze e representam: na primeira fila, passos da Paixão de Cristo, a saber, Jesus no Horto, Cristo com a cruz às costas, Descida da Cruz e Ressurreição; na segunda fiada, cenas da Vida da Virgem, a saber, Anunciação, Natividade, Pentecostes e Assunção da Virgem; no inferior, cenas da Eucaristia, a saber, Abraão e Melquisedec, Última Ceia, Missa de São Gregório e Apanha do Maná. Ao nível do eixo vertical central, o retábulo sofreu grandes alterações acima do sacrário; no registo intermédio, a imagem de Nossa Senhora, destruída durante o assalto de corsários em 1566, foi substituída, já no século passado, por um grupo escultórico barroco da Assunção da Virgem, de feitura setecentista, que se manteve após o restauro por questões de ordem litúrgica. No registo superior, enfim, em lugar de uma tela seiscentista do Ecce Homo (que se retirou após o restauro, tal como as peças do antigo camarim seiscentista de Manuel Pereira que tinham sido reutilizadas no retábulo), figurava na origem um Calvário em vulto, grupo escultórico sob baldaquino, cujas marcas de assentamento são ainda visíveis, e que foram preservadas pela intervenção.

À ESQUERDA: Abraão e Melquisedeck, tábua do retábulo da Sé do Funchal, c. 1514-17. À DIREITA: Apanha do maná, tábua do retábulo da Sé do Funchal, c. 1514-17.

O retábulo, que preenche a testeira da ousia, tem planta em perspetiva côncava, afeiçoada aos “oitavos”, e distribui-se em três corpos de cinco tramos, com pilastras de rico lavor flamejante a estruturar as separações de tramos. As similitudes com a estrutura compositiva e a disposição em séries narrativas do antigo retábulo da igreja de São Francisco de Évora parecem ser por demais evidentes quando se compara esse celebrado conjunto de Francisco Henriques (infelizmente apeado) com o do Funchal, mas registam-se também acentuadas diferenças, sobretudo a nível pictórico e, também, em pormenores da ordem compositiva, o que recomenda cuidado crítico, por não se tratar aqui, ao invés do que já se propôs, de uma obra de Francisco Henriques (que andava ocupado com a grande encomenda do Tribunal da Relação de Lisboa nos anos em que o retábulo do Funchal se pintava, pelo que só podia mesmo ter tido na empresa madeirense, se é que teve, uma intervenção pontual). 118

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Na fiada de coroamento, o ciclo da Paixão de Cristo, idêntico nos quatro episódios iniciais (incluindo-se aqui o Calvário em vulto, que lá existia na origem) termina com a Ressurreição, num tom apoteótico que encontra a devida contrapartida na fiada intermédia. Com efeito, na série mariana registam-se maiores alterações narrativas, uma vez que, na narrativa de painéis, à Anunciação e à Natividade sucedem-se, não a Epifania ou a Apresentação no Templo, como vemos em São Francisco de Évora, mas o Pentecostes e a Assunção da Virgem, num alargamento do espectro temático da série que confere à narratividade do retábulo do Funchal, como diz Fernando Baptista Pereira, uma abrangência mais “eclesial” e “mariológica”. Finalmente, na série do andar inferior, que ladeia o sacrário, a disposição adotada é rigorosamente idêntica, em termos de iconografia, tanto no Funchal como em São Francisco de Évora, o que deve ter correspondido a um mesmo modelo de sequência tipológica no tratamento dos temas eucarísticos, que trai inspiração franciscana. Tal facto não escapou a um memorialista madeirense, Henrique Henriques de Noronha, que nas suas Memórias Seculares e Ecclesiasticas, escritas em 1722, nos diz o seguinte: “No ultimo repartimento em outro nicho, esta hum sacrario da mesma obra, onde estão depositadas as reliquias e santuario desta Cathedral; e nos dous lados outros quatro quadros do sacramento; o primeyro figurado nas vodas de Caná, o segundo na sua instituição e no terceyro o milagre do sacramento com S. Grigorio, e no ultimo o mesmo 18 Sacramento figurado em o maná do Dezerto” .

Tábuas da Anunciação e da Natividade do retábulo da sé do Funchal, obras da oficina régia de Lisboa, c. 1514-1517.

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Henrique Henriques de Noronha, Memórias Seculares e Ecclesiasticas (1722), Funchal, ed. CEHA, 1996, pp. 51-55. O padre Manuel Juvenal Pita Ferreira, op. cit., pp. 239-241, apresentou uma transcrição diferente desse passo, onde que corrige a errada identificação iconográfica do primeiro quadro da série: “No terceiro repartimento, fica num outro nicho um sacrário, onde se depositam as relíquias, e, nos lados, outros quatro quadros do Sacramento: no primeiro figurado no sacrifício de Melquisedec; o segundo, na sua instituição; no terceiro, se vê o milagre do Santo Sacrificio de S. Gregório e, no último, o próprio sacrifício figurado no Maná do deserto”. 119

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Pormenor dos Pentecostes do retábulo da sé do Funchal, c.1514-17.

Caminho do Calvário, pormenor. Retábulo da sé do Funchal. 120

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Tábuas Descidas da Cruz e Ressurreição de Cristo do retábulo da sé do Funchal, mostrando “mãos” distintas e concomitantes na sua execução.

Mas se existem afinidades de programa narrativo com o que sabemos ter sido o apeado retábulo de São Francisco de Évora, já em termos de estilo e de execução técnica as tábuas do Funchal atestam, grosso modo, outras mãos. O conjunto eborense, sendo, como este, obra de iniciativa régia, por responsabilidade do vedor Álvaro Velho, é maioritariamente devido ao pintor Francisco Henriques e à sua estrita oficina de cola19 boradores nórdicos, como de há muito está documentalmente apurado , enquanto que na sé do Funchal se trata do fruto colaborativo de uma “companhia” lisboeta e dela se detetam, pelo menos, duas “mãos” intervenientes, uma a do chamado Mestre da Lourinhã, e a outra de um artista saído da estrita oficina do Mestre de 1515 (Jorge Afonso). Trata-se, em suma, de uma notabilíssima obra régia, executada em Lisboa no que toca às doze pinturas que o constituem, e cujo problema autoral está em aberto, podendo

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Cf. Reynaldo dos Santos, “O pintor Francisco Henriques”, Boletim da Academia Nacional de Belas-Artes, n.º IV, Lisboa, 1938, o catálogo retrospetivo de Fernando António Baptista Pereira (coord.), Francisco Henriques, um Pintor em Évora no Tempo de D. Manuel I, Lisboa, CNCDP, 1997, e as recentes adições ao problema das obras de São Francisco, em Francisco Bilou, A Igreja de São Francisco e o Paço Real de Évora. A obra e os protagonistas 500 anos depois, Lisboa, ed. Colibri, 2014, onde se acertam com maior exatidão as circunstâncias em que decorreram as campanhas do entalhe dos altares e grades, a cargo do mestre de marcenaria Olivier de Gand (1508-1509), e as de pintura dos retábulos e vitrais, a cargo de Francisco Henriques (1509-1511). 121

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ser agora mais profundamente analisado, depois do moroso estudo laboratorial a que as tábuas foram sujeitas. Para já, lembramos que as pinturas do retábulo, ainda então muito escurecidas, mereceram ao historiador de arte Luís Reis-Santos uma atribuição ao Mestre da Lourinhã que durante muitos anos foi maioritariamente aceite pelo meio 20 historiográfico . Quando se iniciaram os trabalhos de restauro, alimentou-se a legítima esperança de que esta polémica designação para um artista anónimo fosse finalmente revista e superada, mas a verdade é que, à míngua de novas bases documentais, ela continua a persistir, por comodidade, na terminologia usada pelos historiadores da arte 21 portuguesa . Esta designação abarca, como se sabe, a obra de um grande pintor cortesão, dotado de estilo e técnica muito pessoalizados, que esteve ao serviço da Rainha D. Maria, mulher do Venturoso, e a quem se devem os dois notabilíssimos painéis do mosteiro da Berlenga (c. 1515), hoje na Misericórdia da Lourinhã, o São Jerónimo no deserto (c. 1517) do mosteiro da Penha Longa, hoje no Museu Soares dos Reis do Porto, o Pentecostes (c. 1520) do Museu Nacional de Arte Antiga, as pinturas do antigo retábulo do convento de Santiago de Palmela, as tábuas com retratos régios provenientes do Convento da Serra em Almeirim, e outras obras indubitavelmente do mesmo autor, 22 todas de excelência no contexto da encomenda régia do primeiro terço do século XVI . Já antes do restauro recente as pinturas da sé do Funchal revelavam afinidades muito aproximadas com o núcleo pictórico atrás referido, o que levou alguns historiadores de arte, como Adriano de Gusmão, e mais tarde Luís Manuel Teixeira, a manterem essa proposta autoral de Luís Reis-Santos. Todavia, sempre existiram reservas quanto a uma autoria única da totalidade dos doze painéis, dado o facto de o seu mau estado ainda impedir uma análise mais aprofundada: outros autores, como Sofia Lapa e Joaquim Oliveira Caetano, sugeriram antes o foco oficinal régio de Jorge Afonso como 23 presumida autoria de partes essenciais do retábulo . Entretanto, o historiador de arte

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Cf. Luís Reis-Santos, “Obras primas de um pintor ignorado na Misericórdia da Lourinhã”, in Estudos de Pintura Antiga, Lisboa, 1943, pp. 187-196; idem, O Mestre da Lourinhã, Lisboa, Realizações Artis, 1963. 21 Cf. Joaquim Oliveira Caetano, Jorge Afonso. Uma interrogação essencial na pintura primitiva portuguesa, texto policopiado, tese de Doutoramento apresentada à Universidade de Évora, 2014, e José Alberto Seabra Carvalho, “Dois mestre luso-flamengos: mestre da Lourinhã e Frei Carlos”, in cat. da exp. Primitivos Portugueses, 1450-1550, Lisboa, Athêna, 2010, pp. 156-161. 22 Continuamos a pensar que a identificação do Mestre da Lourinhã com o pintor-iluminador régio Álvaro Pires é proposta consistente. Não colhe a tese aventada por Rafael Moreira (“Os autores do retábulo e cadeiral”, Monumentos, n.º 19, op. cit., pp. 64-67) que se trate de João de Espinosa, pintor régio de D. Manuel, morador em Santarém, documentado de 1597 a 1519, cuja modalidade usada era a de pintor de fresco e têmpera, com atividade no paço real da Ribeira em Lisboa e, como recentemente provou Francisco Bilou, em salões do paço real de Almeirim. O facto de seu filho António de Espinosa ter sido “examinador dos pintores de têmpera” parece confirmar qual era a modalidade exercida pelo progenitor. 23 Cf., sobre o retábulo do Funchal, referências em Adriano de Gusmão, Os Primitivos e a Renascença, Lisboa, ed. Excelsior, 1951, pp. 221-223; Luís Reis-Santos, op. cit., 1963, pp. 7-10; Manuel Juvenal Pita Ferreira, op. cit., pp. 239-242 e 268-270; Pedro Dias e Vitor Serrão, “A pintura, a iluminura e a gravura dos primeiros tempos do século XVI”, in História da Arte em Portugal. O Manuelino, Lisboa, Publicações Alfa, vol. V, 1986, pp. 130-131; Vitor Serrão, “Mestre da Lourinhã”, in No Tempo das Feitorias, A Arte Portuguesa na Época dos Descobrimentos, Lisboa, Instituto Português de Museus, 1992, pp. 83-85; 122

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Manuel Batoréo , num estudo de conjunto sobre as pinturas atribuídas ao Mestre da Lourinhã, avançou com a proposta de identidade deste anónimo artista com a figura de Álvaro Pires, um pintor e iluminador de D. Manuel que foi autor de alguns frontispícios iluminados da Leitura Nova e, como pintor, esteve envolvido nas decorações das festas de casamento de D. Manuel com sua terceira esposa, D. Leonor, em 1521. Trata-se de uma hipótese de trabalho que aguarda desenvolvimento, ainda que haja, em seu reforço, afinidades evidenciadas entre as referidas iluminuras e as atmosferas dos 25 segundos planos paisagísticos pintados pelo Mestre da Lourinhã . O retábulo-mor da sé do Funchal constitui, como não é demasiado enfatizar, exemplo único de um retábulo com pinturas, da época manuelina, que subsiste íntegro e in situ e que, após o recente restauro e tratamento científico, permite saber mais sobre o processo de trabalho comum na execução de uma tão complexa máquina retabular nessa época. Eram empreitadas que envolviam diversas especialidades (desde o debuxo com a arquitetura e à escultura retabular, ao seu douramento e policromia, e à pintura dos painéis, passando pela marcenaria lavrada) e que, no caso da execução pictural de cada tábua, podiam empregar várias oficinas de uma mesma especialidade unidas em 26 regime de “parceria” ou “companhia” . Pelo estudo laboratorial das tábuas da sé do Funchal podemos perceber, também, como se processava o funcionamento do trabalho especializado ao nível (altíssimo) da encomenda régia. Com as conclusões abertas por este processo de restauro, vai com toda a certeza alargar-se a base de conhecimentos para resolver alguns dos magnos problemas da nossa História da Arte do século XVI.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Dalila Rodrigues, “Pintura: o ciclo proto-renascentista”, in História da Arte Portuguesa, dir. Paulo Pereira, vol. II, Lisboa, Círculo de Leitores, 1995, pp. 222-227; Rui Carita, “Retábulo da sé do Funchal”, in O Brilho do Norte. Esculturas e Escultores do Norte da Europa em Portugal. Época Manuelina, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997, pp. 200-203; Sofia Lapa, “O retábulo do altar-mor da sé do Funchal”, revista História, Ano XXI (Nova série), n.º 14, 1999, pp. 64-70; Fernando António Baptista Pereira, Imagens e Histórias de Devoção. Espaço, Tempo e Narratividade na Pintura Portuguesa do Renascimento (1450-1550), op. cit.; Luís Manuel Teixeira, “O retábulo-mor da Igreja Grande do Funchal”, Monumentos, n.º 19, op. cit., pp. 50-63; Rafael Moreira, op. cit., pp. 64-67; Maria Isabel Santa Clara Gomes Pestana, op. cit., p. 133 e ss.; Pedro Flor, A Arte do Retrato em Portugal nos séculos XV e XVI, Lisboa, Assírio e Alvim, 2010, pp. 240-246, 262-266 e 299; Francisco Lameira, Paulo Ladeira e Renato Freitas, Retábulos na Diocese do Funchal, n.º 8 de Promontoria Monográfica, Universidade do Algarve, Faro, 2014, pp. 36-37; Vanessa Antunes, Técnicas e Materiais de Preparação na Pintura Portuguesa dos séculos XV e XVI, texto policopiado, tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Letras de Lisboa, 2014, pp. 587-591, etc. 24 Manuel Batoréo, A Pintura do Mestre da Lourinhã. As tábuas do mosteiro da Berlenga na evolução de uma oficina, Lisboa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1995; editado com o título Pintura Portuguesa do Renascimento. O Mestre da Lourinhã, Lisboa, ed. Caleidoscópio, 2004. 25 Vitor Serrão, “Mestre da Lourinhã”, in No Tempo das Feitorias, A Arte Portuguesa na Época dos Descobrimentos, Lisboa, Instituto Português de Museus, 1992, pp. 83-85. 26 Fernando António Baptista Pereira e Vitor Serrão, “Iconografia e composição do retábulo-mor da sé do Funchal”, conferência realizada no Funchal no âmbito do Seminário Conclusões do Processo de Conservação e Restauro do Retábulo da sé do Funchal, promovido pela World Monuments Fund, Laboratório Hércules da Universidade de Évora e Laboratório de Conservação e Restauro José de Figueiredo, abril de 2014. 123

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3. Nebulosas e certezas sobre o conjunto da capela-mor manuelina Antes de avançarmos nesta discussão, convém enfatizar o facto de que todos os conjuntos retabulares desta época de brilhante criação realenga – o retábulo da sé de Viseu (c. 1502-1505, obra de colaboração luso-flamenga), o de São Francisco de Évora (1509-1511, Francisco Henriques e colaboradores), o da sé de Lamego (Vasco Fernandes, 1508-1511), o de Santiago de Palmela (c. 1515-1520, Mestre da Lourinhã), o da Madre de Deus de Xabregas (1515, Jorge Afonso e oficina), o de Nossa Senhora do Pópulo das Caldas da Rainha (c. 1515-1517, Mestre da Lourinhã?), o do mosteiro de Jesus de Setúbal (c. 1520, Jorge Afonso e colaboradores), o do Salvador no mosteiro de São Francisco de Lisboa (Gregório Lopes e Jorge Leal, 1524-1525), etc. – foram desmantelados na época barroca, ao sabor de novas orientações e gostos estéticos, tendo os respetivos painéis sobrevivido com utilizações distintas, por vezes mantidos a culto, reemoldurados com profusa talha barroca e ornando as capelas-mores, outras vezes retirados dos templos e decorando salões e galerias, ou em alguns casos vendidos ao desbarato. Ainda falta realizar, aliás, um grande estudo que analise a fundo as reutilizações sofridas pelos painéis dos apeados retábulos manuelino-joaninos, e as razões, por certo diversas, segundo as quais foram usados, mais tarde, ora em funções cultuais, ora em papéis meramente decorativos e ao sabor do maior ou menor interesse que inspiravam 27 junto das entidades proprietárias . Esse estudo ajudar-nos-á a saber se o que se passou na sé do Funchal – a manutenção do retábulo manuelino – foi ou não caso único. É certo que a qualidade do conjunto, o alto custo certamente envolvido, a responsabilidade direta da corte na fatura, o altíssimo nível dos artistas, e o facto de se tratar de obra coeva da sagração do templo, foram razões que influíram no critério seguido. No caso do retábulo do Funchal, é preciso analisar, antes de mais, a fatura do entalhe e da imaginária que o decora e, por acréscimo, a empreitada do cadeiral. Durante muitos anos, aventou-se algumas vezes como autor destas obras, mas sem base credível, o nome de Fernando Muñoz, como discípulo do entalhador-imaginário flamengo Olivier de Gand, responsável pelo destruído cadeiral do Convento de Cristo de Tomar. A obra do cadeiral funchalense é, com o do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra (por sinal !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 27

Existem casos de painéis produzidos pela oficina régia de Lisboa (chamemos-lhe assim, para facilitar) que são reutilizados nos séculos XVII ou XVIII em ilhargas de capelas-mores, outros que passam para adorno das sacristias de paróquias ou salas capitulares de conventos, outros que são totalmente repintados e reutilizados com outras iconografias, outros ainda que passam a revestir os forros das tribunas barrocas. Neste último caso se inserem três painéis de um desmantelado retábulo atribuível à Oficina de Jorge Afonso (?), do primeiro quartel do século XVI, que se encontram integrados no madeiramento do retábulo barroco-joanino de uma igreja de Alfama (Vitor Serrão, “Património de arte sacra desconhecido: três pinturas do século XVI descobertas na igreja de São Miguel de Alfama”, Invenire, n.º 6, 2013, pp. 28-30). Esta nossa proposta foi aceite por Fernando António Baptista Pereira em “O Retábulo-mor do Convento de Jesus de Setúbal no contexto dos conjuntos retabulares atribuídos à oficina de Pintor Régio Jorge Afonso”, op. cit. Também apareceram fragmentos de um Pentecostes, de cerca de 1550, na igreja da Misericórdia de Angra do Heroísmo (Terceira - Açores), detetados durante o restauro do retábulo setecentista, que pôs providencialmente a descoberto tais elementos sobreviventes do primitivo retábulo (cf. Henrique Parreira, “Pintura sobre madeira no interior do trono do altar-mor da igreja da Misericórdia de Angra do Heroísmo”, CECRA - Boletim Semestral, n.º 2, Centro de Estudo, Conservação e Restauro dos Açores, 1999, pp. 5-11). 124

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um conjunto que atesta afinidades flagrantes de estilo com o do Funchal), caso único na arte portuguesa para este período, por se encontrar in situ e terem, ambos, uma qualidade apreciável de fatura. Mas só após terem sido recém-restaurados é que, tanto a parte de entalhe do retábulo, como a obra do cadeiral, puderam ser devidamente apreciados, mostrando similitudes de execução com o conjunto crúzio e abrindo campo a novas deduções comparatistas. O cadeiral da sé do Funchal foi atribuído por Rafael Moreira, tal como a obra da marcenaria retabular, à oficina de mestre Machim Fernandes, um artista de presumida origem germânica que fora, antes, autor do famoso cadeiral do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra (c. 1507-1512) e que se deslocou expressamente ao Funchal para, durante 28 dois anos, cumprir esses trabalhos . Data assim, o cadeiral do Funchal, dos anos de 1514-1516, pelo facto de se saber documentalmente que já em início de janeiro de 1517 29 estavam as cadeiras colocadas na capela-mor . A hipótese autoral é, neste caso, convincente e tem solidez: artista andarilho, Machim passara pelos estaleiros de Toledo e daí viera, por mão do escultor flamengo Olivier de Gand, trabalhar nas obras crúzias de Coimbra e, de seguida, nas da Charola do Convento de Cristo em Tomar, associado ao português da mesma arte João do Tojal. Este percurso de Machim explicaria a escolha do mestre do cadeiral do Funchal pelo bispo D. Diogo Pinheiro, morador na vila nabantina ao serviço da poderosa Ordem de Cristo. Novos dados documentais sobre Olivier de Gand, que falece em Tomar em 1512, parecem sugerir o discipulado de Machim e o assumir de responsabilidades em empresas régias como o cadeiral e o retá30 bulo do Funchal . Temos assim, em conclusão, uma escolha criteriosa de artistas feita, em Tomar, pelos círculos da Ordem de Cristo, onde avultava a figura do indigitado primeiro bispo do Funchal D. Diogo Pinheiro. Razões ignotas levaram a que o cadeiral se mantivesse “em cru”, com policromia mas sem douramento, até data tardia. Só em 1691-1696 se cumpriu esse desiderato: naquela data, encarregou-se o funchalense António Lopes da tarefa do dourado das cadeiras dos cónegos, mandando-se vir de Lisboa, 31 para o efeito, 200 livros de ouro no valor de 171.660 rs e mais 81.500 rs de tintas azul , mas a solução foi polémica, como atesta em 1722 o cronista local Henrique Henriques de Noronha, pois se correu o risco de “lhe tirar o dourar a fineza das cores”. Não existindo contrato de obra para o conjunto artístico da capela-mor, nem descrição fidedigna coeva, e muito menos “debuxo” de encomenda, o estudo do retábulo da sé do Funchal impõe necessariamente a análise de outros casos portugueses, e peninsulares, executados em datas próximas. É bom exemplo um precioso desenho datado de 1512, ou seja, de data muito próxima à do retábulo do Funchal, que diz res-

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Rafael Moreira, “Os autores do retábulo e cadeiral (1514-1516)”, Monumentos, n.º 19, op. cit., pp. 64-67. 29 Maria Manuela Correia Braga, “Apontamentos acerca do cadeiral”, Monumentos, n.º 19, op. cit., pp. 56-63. 30 Joana Antunes, Joaquim Oliveira Caetano e Maria João Vilhena de Carvalho, “Novos dados sobre Olivier de Gand”, revista Invenire, n.º 8, 2014. 31 Rui Carita, História da Madeira (1420-1566), op. cit., vol. I, p. 381; e Rita Rodrigues, op. cit., vol. I, pp. 540-541. 125

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peito ao desenho com um projeto de retábulo para a igreja aragonesa de Villanueva del Gállego, em Zaragoza, apresentado a concurso pelo pintor Martín Garcia, que viria a 32 realizar a empreitada e que, por isso, acompanha o contrato da obra . Mesmo tratando-se de uma encomenda de um artista regional, de recursos muito menores que os mestres do retábulo do Funchal, apresenta-nos dados valiosos pelo que deixa ver (e subentender) para a parte da marcenaria envolvente dos painéis, constituindo matéria de cotejo e estudo, tal como sucede com outros desenhos de retabulística existentes em Espanha e que não devemos descurar neste cotejo alargado. A historiadora de arte Judith Berg Sobré estudou os retábulos subsistentes em Espanha no final da Idade Média e no primeiro Renascimento e assinala casos que seguem desenhos semelhantes 33 e, por vezes, mais complexos .

‘Debuxo’ para o retábulo de Villanueva del Gállego, Zaragoza, de 1512.

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Manuel Abizanda y Broto, Documentos para la Historia Artística y Literaria de Aragón procedentes del Archivo de Protocolos de Zaragoza, Siglo XVI, Zaragoza, Tip. La Editorial, 1915. 33 Judith Berg Sobré, Behind the Altar-Table. The Development of the Spanish Painted Retable, 13501500, Columbia, Univ. of Missouri Press, 1989. 126

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Os comitentes portugueses, fosse o rei, os altos membros da corte, o alto clero, as ordens religiosas e os dignitários das Ordens Militares, apreciavam certamente desenhos desse tipo, obrigatórios para a discussão e aprovação de uma dada empreitada. Em 1521, por exemplo, D. Manuel avaliou os desenhos que um pintor eborense, Afonso Lopes, lhe apresentara para a decoração do teto da igreja de São Julião de Setúbal, obra 34 custeada pelo monarca, mas que infelizmente desapareceu . Todas as empresas régias implicavam “debuxo” apresentado por um mestre, discutido nas altas instâncias de corte e só depois levado à prática por artistas designados para cumprir a empreitada. Voltando ao desenho aragonês de 1512, é visível como a margem de discussão sobre um projeto retabular dado a aprovar a um cliente envolvia a disposição, a decoração, a escala e até os temas a representar nos 'tableros', bem como a concomitante envolvência da talha lavrada e restante obra de marcenaria. Ainda que não restem para os anos portugueses do início do século XVI desenhos deste tipo (traças, rascunhos, modelos, debuxos), ainda que fossem peça obrigatória numa aprovação de retábulo, os dados que podem ser inferidos pelo estudo das encomendas retabulares feitas pelas Dioceses de Évora, Coimbra, Viseu e Lamego oferece dados interessantes de aferição nesta matéria. Esses bispados levaram a cabo, como se sabe, a obra de grandiosos retábulos para as respetivas sés, e sabemos como eles se dispunham. Também a Coroa, com D. Manuel à cabeça, as Rainhas suas esposas (D. Leonor, D. Maria), a “Rainha velha” (Dona Leonor, sua irmã e viúva de D. João II) e mais tarde os Infantes (D. João, D. Luís, D. Henrique), toma a cargo obras majestáticas de arquitetura religiosa (Jerónimos, Tomar, Santa Cruz de Coimbra, Funchal) e a proteção de vários conventos mendicantes (Setúbal, Batalha), que acabam por implicar a encomenda de imponentes polípticos com talha, imaginária e pintura. Alguns membros da alta nobreza, em natural emulação com o poder real e com os bispos, seguiram o exemplo, caso do Duque de Coimbra D. Jorge, Mestre da Ordem de Santiago, nas terras do seu Mestrado, em Palmela, Sesimbra e Setúbal. No início de Quinhentos, são as grandes oficinas de pintura a óleo sobre madeira, tanto de mestres nacionais como de pintores nórdicos aqui radicados, que produzem o maior e mais importante acervo de retábulos portugueses, que mudam radicalmente o carácter do recheio decorativo dos templos, tornando-se num dos vetores mais importantes da transformação do gosto artístico. Mas a quase totalidade dessas armações retabulares desapareceu em Portugal, mercê das mudanças de gosto ocorridas no período barroco, e é precisamente por isso que o caso do retábulo da sé do Funchal é, para além das qualidades intrínsecas, tão importante como unicum. A documentação remanescente sobre alguns dos desaparecidos retábulos de que resta documentação contratual – caso do retábulo da igreja da Conceição de Lisboa, lavrado pelo 35 entalhador Afonso Gonçalves e pintado em 1518 por Jorge Afonso – permite conjeturar !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 34

Vergílio Correia, Pintores Portugueses dos séculos XV e XVI, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1928, p. 50; e Vitor Serrão e Luís Afonso, “Os frescos da igreja de Santo Aleixo (1531), uma obra-prima do Renascimento português”, revista Al-mansor, n.º 4, 2.ª série, 2005, pp. 149-166. 35 Jorge Segurado, Da Igreja Manuelina da Misericórdia de Lisboa, Lisboa, Academia Nacional de Belas Artes, Lisboa, 1980, pp. 41-44. 127

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como era a complexa máquina retabular de talha com seus “estabelos” ou suportes, o “banco” ou predela, a divisão em “oitavos” afeiçoando a estrutura à abside, o “sacrário”, “pilares”, grupos escultóricos e os “nichos” para imagens, com os “coroamentos” e “chambranas”, assim como o “guarda-pó”. Torna-se evidente que um trabalho no âmbito dos estudos sobre a arquitetura retabular terá de ser feito – e só agora pode vir a ser feito, tomando como ponto de partida o recém-restaurado retábulo da sé do Funchal. Assumindo-se como arquitetura dentro da arquitetura e materialização de mundos possíveis ou virtuais (já não só mero speculum da doutrina, mas “janelas” para o imaginário da doutrina, como diz Fernando António Baptista Pereira), o retábulo tende a polarizar e ditar a organi36 zação de todo o espaço envolvente . Na era manuelina, os retábulos pictóricos eram realizados sobre suporte de madeira para garantir a sua durabilidade, no que vinham substituir, quando os recursos o permitiam, e nesse caso com vantagem, as decorações fresquistas. Aos frescos, em termos de obras reais, foi sendo dado papel complementar na ornamentação de coberturas e paredes, frisos, rodapés), embora em áreas regionais onde nem o poder económico dos patronos nem a disponibilidade de oficinas de óleo asseguravam as encomendas retabulares, a decoração fresquista se mantivesse na pintura de capelas-mores. Os retábulos de altar da primeira metade de Quinhentos deveriam ser feitos, de acordo com a documentação e os exemplares remanescentes, de bordos de Flandres, o carvalho do Báltico importado das cidades flamengas. Casos houve em que o carvalho se usava nos painéis e outro tipo de madeira nos suportes, e em encomendas tardias, ou em áreas regionais com menos recursos, alguns retábulos foram realizados sobre pranchas de carvalho português ou sobre outras madeiras (castanheiro ou til, por exemplo). No primeiro contrato de 1506 com Arnao de Carvalho para o retábulo da sé de Lamego diz-se taxativamente: toda a maçonaria que emtrar na dita obra fora dos pillares sera de boordo de frandes. Curiosamente, no contrato com o carpinteiro para o fornecimento da madeira da armação retabular (os pillares, estrutura da armação retabular) não se refere a origem da madeira mas só as características desejadas. Há que buscar na documentação referências ao labor das oficinas de ensambladores e carpinteiros de marcenaria, cuja função era preparar e fornecer os suportes para os painéis a pintar e, também, a construção da armação retabular com os ornamentos adicionais (pilares, guarda-pó, sobrecéu, grades, mísulas, baldaquinos, “chambranas”), embora a imaginária de vulto estivesse a cargo de escultores e o douramento e policromia do conjunto fosse dado a pintores de têmpera (douradores) ou, em alguns casos, a grandes mestres que também exerciam essa modalidade, como foi o caso de Francisco Henriques e seus colaboradores em São Francisco de Évora. Uma das situações em que se discriminam as várias tarefas realizadas é o da avaliação da marcenaria dos retábulos da igreja do Mosteiro de São Francisco de Évora, realizada pela prestigiada oficina de Olivier de Gand, com exame pericial realizado pelos mestres Garcia Leal e José Leal a 29 de maio de 1509, cujo texto foi enviado a 37 acompanhar uma carta de D. Manuel ao vedor da obra em 26 de julho de 1510 . A

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Cf. Fernando António Baptista Pereira, op. cit. Fernando António Baptista Pereira, Imagens e Histórias de Devoção. Espaço, Tempo e Narratividade na Pintura Portuguesa do Renascimento (1450-1550), op. cit. 37

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marcenaria realizada por Olivier de Gand implicou não só a execução da armação retabular para o altar-mor mas também os retábulos do cruzeiro e o conjunto dos doze suportes para os retábulos das capelas laterais do mesmo templo, grandes pale de altar. A armação do retábulo-mor, sumariamente descrita na avaliação, contemplava quatro andares ou fiadas, com lugar para quatro pinturas cada, num total de dezasseis painéis, em torno de um eixo central formado na base por uma estrutura de tipo arquitetónico (o sacrário) e sucessivamente por nichos preenchidos por grupos escultóricos, com remate de guarda-pó de grande efeito cenográfico. Pesem as diferenças já assinaladas, o retábulo da sé do Funchal, como vimos, deriva diretamente deste modelo retabular. Embora seja neste contexto já tardia (1540), merece ser aqui referenciada a petição (com rol de serviços prestados) que o pintor Garcia Fernandes dirigiu a D. João III em que solicita o cumprimento de privilégios que lhe haviam sido prometidos e recorda, entre outras coisas, que seu sogro Francisco Henriques mandara trazer da Flandres um grupo de oficiais para com ele colaborarem na obra do Tribunal da Relação de Lisboa, artistas esses que ficaram algum tempo sem serviço antes do começo da empreitada, tendo-lhes sido paga pelo mestre a respetiva soldada, porque “nom hera aynda tomado 38 assento no debuxo da ymvençom de que a hobra auya de ser” . Daqui se depreende não só a indispensabilidade de apresentação de “mostras” e “debuxos” prévias a qualquer empreitada pictórica, com os quais se materializavam a estrutura da armação retabular e o programa iconográfico, mas também a complexidade do programa (neste caso para o coruchéu do edifício do Limoeiro), que terá aguardado, durante algum tempo, a aprovação régia. Garcia Fernandes lembra também, na sua petição, que fora o autor dos painéis do retábulo destinado à capela-mor de uma das novas dioceses entretanto criadas no império português (caso concreto da sé de Goa, capital do Estado Português da Índia, para onde pintou, cerca de 1538, as tábuas retabulares).

4. O regime de “parceria” para as pinturas do retábulo e o seu mecenas O primeiro bispo da Diocese do Funchal foi D. Diogo Pinheiro, homem do Renascimento, com papel importante no aparelho da Ordem de Cristo. Nomeado em 1514 para o múnus da nova diocese da Ilha da Madeira, embora (tal como aliás também os seus dois sucessores D. Gaspar do Casal e D. Jorge de Lemos) nunca se tivesse deslocado ao Funchal, nem por isso deixou de acompanhar criteriosamente, desde Tomar e Lisboa, os trabalhos de alta especialização que lá (ou para lá) se iam realizando. A História da Arte tem descurado injustamente o papel mecenático deste epíscope, estribada no facto de ele nunca ter vivido na diocese para que fora indigitado em 1514. Mas a verdade é que a nomeação de D. Diogo Pinheiro implicava como prioridade o bom sucesso da construção da sé e, essa, ele seguia-a atentamente, como membro influente da Ordem de Cristo, integrado precisamente no centro de trabalhos em que os artistas escolhidos se moviam e em que se analisava de perto a obra nas peripé!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 38

Francisco Marques de Sousa Viterbo, Noticia de alguns pintores portuguezes…, 1.ª série, Lisboa, Academia Real das Ciências, 1903, pp. 56-64. 129

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cias, na pertinência das traças e desenhos e no controle dos aspetos financeiros da empreitada, que corria a cargo do mestre de pedraria João Gonçalves e do tesoureiro da novel diocese Estêvão Fernandes. O papel da Ordem de Cristo e o da Coroa fundiam-se num só (veja-se o que diz o testamento de 1517 de D. Manuel a esse propósito), e essa simbiose reflete-se na grande produção artística do momento, com ênfase especial na Charola do Convento de Cristo, onde a direção pictural coube seguramente a Jorge 39 Afonso . Não por acaso a corte optou por D. Diogo Pinheiro, um homem ligado à Ordem, para dirigir a diocese “do resto do mundo” que incorporava todas as terras 40 ultramarinas . Era tarefa por demais árdua: verificando-se pouco depois a impossibilidade de um único Bispado gerir áreas tão extensas, D. João III criará de seguida, em 1532, sedes episcopais nos Açores (Terceira), Índia (Goa), Cabo Verde (Cidade Velha) e São Tomé, mas sendo todas elas sufragâneas da diocese madeirense. Se ele nunca veio ao Funchal, diz Gaspar Frutuoso que tal se deveu a “ser ocupado no serviço d’el-rei como 41 desembargador do Paço e impedido em negoçio de el-rei” . O cargo de desembargador do Paço que o bispo do Funchal então ocupava, referenciado em vários documentos da Chancelaria régia, atesta o controlo que tinha dos negócios da corte e, muito em especial, o acompanhamento que fazia das obras que então se realizavam na e para a sua sé. É de considerar, entretanto, o outro círculo e relações que D. Diogo Pinheiro manteve, além do Desembargo do Paço, no âmbito dos crúzios de Tomar, cidade onde aliás está enterrado, na nave da igreja de Santa Maria do Olival, em belo túmulo renas42 centista atribuído ao conimbricense Diogo Pires, o Moço, e datado de 1525 . De facto, o prelado acompanhou empenhadamente as obras da sua diocese tal como se integrara antes no seguimento das que se realizavam na Charola do Convento de Cristo em Tomar, e tal facto deixa-nos certeza sobre o seu conhecimento do escol de artistas aí laborantes, desde o imaginário Olivier de Gand (falecido em 1512), ao seu colaborador Fernando Muñoz, ao seu protegido Machim Fernandes, ao pintor régio Jorge Afonso, diretor da empresa dos grandes painéis dos octógonos, e ainda a Francisco Henriques e seus oficiais de atelier, supostos colaboradores nessa magna obra de regime que era a igreja e a Charola templária – ou seja, trata-se dos mestres que de forma mais ou menos indireta vão ter papel de relevo na definição da obra da sé do Funchal, que serão responsáveis pela indicação dos participantes diretos e que, alguns deles, estarão mesmo envolvidos na execução. O facto de surgirem na retabulística do Renascimento português exemplos de retratos de mecenas integrando cenas historiadas – caso do retrato do bispo de Lamego D. João Camelo de Madureira na tábua da Circuncisão, do retábulo da sé de Lamego, !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 39

Joaquim Oliveira Caetano, op. cit., pp. 138-139. Cf. António Brásio, Monumenta Missionaria Africana. África Ocidental, Lisboa, I, 1952, e Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal, vol. III (1495-1580), Lisboa, ed. Verbo, 1978, p. 151. 41 Citado em Fernando Augusto da Silva, A sé Catedral do Funchal, op. cit., p. 29. Este autor refere, a propósito, que D. Manuel ainda em 7 de setembro de 1517, vésperas da sagração, entregava ao vedor as obras, João Saraiva, 600.000 rs para o término da sé. 42 Teresa Cunha Matos, O Túmulo de D. Diogo Pinheiro na igreja de Santa Maria do Olival em Tomar, texto policopiado, tese de Mestrado apresentada à Universidade de Coimbra, 1996. 40

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pintado por Vasco Fernandes em 1506-1511 , e caso do retrato do bispo de Viseu D. Miguel da Silva no painel Cristo em casa de Marta e Maria, do mesmo artista, hoje no 44 Museu Grão Vasco – leva-nos à presunção de poder ser o bispo do Funchal a figura de vigorosa expressão que está retratada, como sendo o piedoso José de Arimateia amparando o corpo morto de Jesus Cristo, na pintura da Descida da Cruz, na fiada cimeira do retábulo da sé. Se se trata ou não do primeiro epíscope do Funchal não se pode ao certo saber, por falta de descrições fisionómicas de D. Diogo Pinheiro que ajudam a avaliar o acerto da proposta, mas é seguro que se trata de um retrato, notável na captação da personalidade do modelo. Se for mesmo uma representação do bispo, estamos perante uma pista iconográfica muito interessante, que sublinha o vínculo da obra retabular com a Ordem de Cristo, e atesta a importância estatutária do prelado. Como é óbvio, afeta também a aproximação do conjunto às grandes obras da Charola de Tomar, de 1512-1514, o que mais uma vez reforça a convicção de que os pintores do retábulo da sé madeirense foram recrutados e escolhidos dentro do melhor escol da Oficina Régia de Lisboa, dirigida nominalmente por Jorge Afonso e onde trabalham nestes anos, dentro de uma espécie de regime coletivista, artistas de altíssimo nível como os vários oficiais flamengos trazidos por Francisco Henriques (entre eles provavelmente os pintores João de Bruges e Pedro de Bruges), o Mestre da Lourinhã (Álvaro Pires?), André Gonçalves, Bartolomeu Fernandes, e ainda Garcia Fernandes, Cristóvão de Figueiredo, Cristóvão de Utrecht e Gregório Lopes (os futuros “mestres de Ferreirim”). O conhecimento que temos hoje da Oficina de Jorge Afonso a São Domingos, no 45 Rossio , lança luz definitiva sobre o regime laboral que presidiu à fatura do retábulo da sé do Funchal, atestando o regime de companhia, ou de parcerias, segundo o qual foi a obra realizada. Esse regime de trabalho assente numa base anónima, coletivista e gre46 mial impunha que nos estaleiros régios do tempo do Venturoso pudesse haver recurso a dois, três ou mais artistas que, com os seus próprios adjuntos, cumpriam sob rígida tutela e em respeito pleno pelas imposições laborais vigentes, um programa artístico só aparentemente homogéneo, quando era, na realidade, executado por diversas mãos. Mesmo pintores filiados em contextos artísticos muito diferentes, como os viseenses Vasco Fernandes e Gaspar Vaz, passam pela Oficina Régia de Lisboa, o que deixa a ideia do verdadeiro hegemonismo assumido por Jorge Afonso, mais do que como executante, como programador e supervisionador das obras da Corte (e da Ordem). Tais “companhias” que se criavam para determinada obra e logo se desfaziam ou reagrupavam para dar cumprimento a outras, sob batuta de um mestre designado pela corte geralmente responsável pelo “debuxo” planificador, envolviam carpinteiros, entalhado-

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Vergílio Correia, Vasco Fernandes, mestre do retábulo da sé de Lamego, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1924. 44 Dagoberto L. Markl, “Duas gravuras de Albrecht Dürer no painel Cristo em Casa de Marta e Maria, atribuído a Vasco Fernandes”, História e Sociedade, n.º 4/5, 1980, pp.15-19. 45 Joaquim Oliveira Caetano, Jorge Afonso. Uma interrogação essencial na pintura primitiva portuguesa, op. cit. 46 Vitor Serrão, O Maneirismo e o Estatuto Social dos Pintores Portugueses, Lisboa, Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1983. 131

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res, imaginários, pintores, douradores, vitralistas, pedreiros, alvenéis e outros artistas congregados no sentido de resolver com total competência a obra comum, gerindo o tempo geralmente apertado da encomenda, diluindo a sua marca autoral no trabalho em coletivo, e desfazendo-se e refazendo-se consoante a mobilidade e as circunstâncias o exigiam. É sempre de recordar o que sucedeu com a grandiosa decoração pictórica, desaparecida, do Tribunal da Relação, no Limoeiro. Seguindo-se os documentos publicados em 1903 por Francisco Marques de Sousa Viterbo, é o rei, com o vedor de obras Bartolomeu de Paiva, quem escolhe os artistas, quem define o programa a pintar e, até, quem dirime os conflitos que surgem nos grupos de trabalho. Quando, por exemplo, o pintor André Gonçalves sai da “tercena”, o armazém onde estava instalada a “companhia”, percebe-se que por causa de conflitos havidos com Cristóvão de Figueiredo e Garcia Fernandes, disse que se achava prejudicado na distribuição das partes, e o monarca apoia o seu recurso, passando o artista a integrar uma outra tercena que estava ao mesmo tempo a funcionar: a pintura do retábulo da igreja de São Julião. D. Manuel muda André Gonçalves mas deixa a expressa recomendação de que possa escolher as “melhores partes” da pintura que aí se fazia, prova de que era um dos bons artistas da 47 Oficina Régia dirigida por Jorge Afonso . Trata-se de um indicador importante, explicando como funcionava o regime laboral de pintura na era manuelina, na qual o uniformismo estilístico de muitas obras é tão-só aparente enquanto que é normal existirem variação de estilos, dentro de um estilema mais ou menos comum, nas grandes emprei48 tadas manuelinas e joaninas . Lembremos também o que diz Garcia Fernandes, na citada petição a D. João III em 1540, quando ao recordar os tempos em que trabalhava nas obras da Relação, diz do seu “compadre e amigo” Cristóvão de Figueiredo que “eram 49 parceiros… e comiam e bebiam juntos” . Vários documentos recentemente revelados por Irune Fiz relativos à pintura do 50 Renascimento na antiga Diocese de Zamora mostram como, num contexto laboral de relativa periferia, o ambiente que regia a atividade dos pintores era marcado também por um regime idêntico, como se vê no “acuerdo” que pacificou os pintores entre Martín de Carvajal e Cristóbal Gutiérrez de Benavides numa divisão de partes em certa obra, ou nos contratos com Luís del Castillo para executar um retábulo em San Lorenzo de Toro (1528) ou com Lorenzo de Ávila para pintar parte dos “tableros” num retábulo em

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Joaquim Oliveira Caetano, Jorge Afonso. Uma interrogação essencial na pintura primitiva portuguesa, op. cit. 48 A enigmática figura do pintor André Gonçalves, artista sem obra seguramente identificada, encontra-se hoje melhor conhecida pelo facto de ter pintado o retábulo da igreja matriz de Sines (infelizmente desaparecida) e de, morando em Setúbal no fim da vida, ser o provável autor das tábuas da Confraria do Espírito Santo da vila de Sesimbra. A ser ele o autor do Pentecostes, hoje no Museu de Sesimbra, trata-se de um pintor derivado dos modelos de Francisco Henriques e que nada tem a ver com a obra do Funchal. 49 Francisco Marques de Sousa Viterbo, op. cit., pp. 56-64. 50 Irune Fiz Fuertes, Pintura sobre tabla en el siglo XVI en la antigua Diócesis de Zamora, Valladolid, Universidad de Valladolid, 2009, pp. 738-760. 132

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San Ildefonso também em Toro (1536), este com subcontratações a outros pintores, ou ainda na obrigação de Antonio de Salamanca e Lorenzo de Avila (1542) para pintarem em partes um retábulo em Villalpando, cabendo ao segundo “que dibuje las dichas piezas y haga los lejos del dicho retablo y pinte los rostros de los tableros”, dividindo-se despesas de materiais, cores. Em Zamora, como na mesma época em Portugal, criavam-se “parcerias” ou “sociedade” para levar a bom termo uma dada empreitada em que só as partes a pintar se dividiam e, também, as especializações vinham indicadas! Vemos, num caso, que cabia a Lorenzo de Ávila (um artista com reconhecimento pela História da Arte) fazer os fundos de paisagem de todas as tábuas, mesmo as que caberiam por divisão de trabalho à empreitada do “sócio”! A documentação elencada por Irune Fiz, referencia “parcerias” de pintores que eram palco de rivalidades acesas e de incumpri51 mento “de lo que a cada uno de los pintores correspondia” . Para as obras do retábulo da sé do Funchal, um regime de trabalho como o acima descrito reuniu, sob batuta da Ordem de Cristo e de D. Diogo Pinheiro, pelo menos dois mestres de primeira qualidade. O pintor régio Jorge Afonso, certamente ouvido pelo seu cargo de supervisionado, acabara a obra da Charola de Tomar (c. 1512-1514) e envolvia-se na da Madre de Deus (1515), e Francisco Henriques começara a magna obra do Tribunal da Relação (1512-1518). Assim, além do mestre marcenaria Machim Fernandes, a escolha para a obra retabular da sé do Funchal terá recaído, noutros nomes de pintores de primeiríssima plana dentro da Oficina Régia: um deles é o ainda enigmático Mestre da Lourinhã (seja ele ou não o pintor Álvaro Pires), o outro é um seguidor de Jorge Afonso, conhecedor e colaborador seu nas obras que se faziam e, acaso, seguidor de desenhos de Afonso, num conjunto geral que pode ter, ainda, pontual participação do “mestre das obras da Relação” Francisco Henriques, tal como foi sugerido durante a fase de estudo material das pinturas e parece credível face, pelo menos, a uma das tábuas. A análise laboratorial das tábuas revelou, antes de mais, um desenho subjacente firme e unitário, dando a perceber que existiu uma linha programada para todo o conjunto, que um mestre da Oficina Régia de Lisboa cumpriu com talento e saber. Depois, pela observação miúda das superfícies picturais, saltam à vista os detalhes fabulosos de paisagens de gosto naturalista, com segundos planos de refinados efeitos e matizes transparentes, aos modos brugenses utilizados nas pinturas conhecidas do Mestre da Lourinhã, que aqui se atestam na Apanha do Maná e no Abraão e Melquisedec e ainda, com pormenores mais convincentes, no Jesus no Horto. As arquiteturas, adoçadas de repertórios renascentistas, como no painel do Pentecostes, este com minuciosa descrição do compartimento onde se desenvolve a descida do Espírito Santo sobre a Virgem e os Apóstolos, recordam à evidência os modelos utilizados no retábulo da Madre de Deus de Xabregas (1515) e reforçam a nossa presunção de se tratar, no grosso da fiada intermédia, de uma parte do retábulo dada a pintar a artista da Oficina de Jorge Afonso. Também a tábua da Natividade apresenta, para além do encantador grupo de anjos

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Idem, ibidem, pp. 769-776. 133

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músicos que num gesto de atento realismo seguram uma pauta e cantam uma GLORIA 52 IN EXCELSIS DEO , trechos arquitetónicos clássicos em rovine, derivados de modelos renascentistas transalpinos. A grande qualidade com que são pintados em todos os painéis, de uma maneira geral, as peças de armaria, os trajes de gala, os adereços das figuras e os acessórios, seja um tapete que cobre um pavimento (no Pentecostes), seja o mobiliário litúrgico complementar (na Anunciação), sejam as pratas que enriquecem uma decoração de segundo-plano, sejam os rostos de vincado sentido psicológico (no Abraão e Melquisedec e no Caminho do Calvário), sejam os micro-pormenores, plenos de transcendência, no fundo da Assunção da Virgem, sejam as referências e aberturas ao exotismo, adequado a um retábulo para a “diocese do resto do mundo”, ou a vibrância tonal adaptada ao conjunto, tornam o retábulo da sé do Funchal, sem dúvida, um dos melhores exemplares de toda a pintura portuguesa do século XVI.

5. Dados conhecidos sobre o retábulo da sé do Funchal Em síntese, após cumprimento do estudo laboratorial e da intervenção de limpeza, conservação e restauro da obra de marcenaria retabular e das doze tábuas componentes, com investigações sistemáticas, confrontos estilísticos, análises de técnicas utilizadas, estudos de desenho subjacente e de superfície, podem ser avançadas algumas 53 constatações, a saber : 1) Confirma-se a excelência da obra de entalhe gótico-flamejante do retábulo da sé, a qual é tributável, assim como o cadeiral da capela-mor, à oficina do mestre de marcenaria Machim Fernandes, que já fora autor do cadeiral de Santa Cruz de Coimbra; 2) As doze pinturas retabulares datam de cerca de 1514-1517 e devem-se a uma encomenda régia pensada e executada no seio da Ordem de Cristo, com especial protagonismo do bispo indigitado do Funchal, D. Diogo Pinheiro; 3) Trata-se de tábuas executadas no quadro da chamada Oficina Régia de Lisboa e dentro de um regime de “companhias”, congregando diversos mestres de primeira importância num espírito anónimo, coletivista e gremial, o que explica a só aparente unicidade estilística do conjunto;

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Segundo Sónia Duarte, em O contributo da iconografia musical na pintura quinhentista portuguesa, luso-flamenga e flamenga em Portugal, para o reconhecimento das práticas musicais da época: fontes e modelos utilizados nas oficinas de pintura, texto policopiado, tese de Mestrado apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, orientada por Adriana Latino e David Cranmer, 2012), não são muitas as pinturas portuguesas do século XVI que ostentem pautas musicais fidelizadas e como tal cantáveis. Daí o valor excecional deste exemplo detetado durante o restauro do retábulo do Funchal. 53 Ainda não foram dadas à estampa os resultados do estudo integrado do retábulo da sé pela equipa de investigadores designada pelo World Monuments Fund, de que o autor desta comunicação fez parte. Dados sobre as características autorais caberão, nesse estudo científico, ao escopro analítico de José Alberto Seabra Carvalho, Joaquim Oliveira Caetano e Fernando António Baptista Pereira, não forçosamente coincidentes com as conclusões que aqui se apresentam e que comprometem exclusivamente o autor. 134

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4) Apesar da persistência desse regime laboral, as pinturas estimam-se por uma ciência de fatura, erudição de programa e sedutora modernidade na modelação das figuras, fundos de paisagem, arquiteturas e acessórios decorativos, que atestam a sua inserção numa plena linguagem renascentista; 5) Para a obra dos painéis trabalham três dos melhores artistas da corte de Lisboa, sendo dominante a “mão” do chamado Mestre da Lourinhã, que foi seguramente o autor da parte essencial das tábuas Abrão e Melquisedeck, Missa de São Gregório e Apanha do Maná, da fiada eucarística, e Jesus no Horto, Descida da Cruz e Ressurreição, da fiada superior (com cenas da Paixão), que mostram afinidades gritantes, por exemplo, com as séries de Santiago de Palmela e da matriz das Caldas da Rainha; 6) As tábuas da fiada central, Anunciação, Natividade, Pentecostes e Assunção da Virgem são distintas das que se citaram e devem-se a um pintor cosmopolita que era bom conhecedor dos modelos da Oficina do Mestre de 1515 (Jorge Afonso) e com formação nessa escola, artista esse ainda de identidade incerta e que atuou aqui com o Mestre da Lourinhã em regime de parceria; 7) A tábua de Cristo a caminho do Calvário da primeira fiada, peça que tem dimensões maiores que as outras, é de soberba qualidade e apresenta características formais notabilíssimas, com matéria transparente e um desenho subjacente de finura irrepreensível, que a torna uma das melhores do conjunto e a distingue estilisticamente das duas “mãos” dominantes, podendo tratar-se de uma intervenção isolada, que se liga mais diretamente ao estilo da Oficina de Francisco Henriques; 8) Também a tábua da Última Ceia, na fiada inferior, se afasta em termos de estilo das duas “mãos” dominantes, acima destacadas, e poderá ser um trabalho com intervenção direta de Francisco Henriques (ocupado de 1512 até à sua morte em 1518 com as obras da Relação, e que por isso mesmo só teria tido aqui, tal como sucedera na Charola de Tomar, uma intervenção muito pontualizada); 9) Se o regime coletivista imperou na fatura das doze tábuas retabulares, não deixa de ser assinalada a apertada unidade que o conjunto revela a nível do desenho preparatório, mostrando que, provavelmente, houve um único mestre a definir e debuxar as “histórias”; 10) Entre outras intervenções ulteriores que as pinturas sofreram ao longo de cinco séculos e até ao restauro recente, merece registo o “repinte tridentino” que cobriu a Virgem desmaiada na tábua Descida da Cruz, repinte esse que foi aposto oitenta anos após a fatura por determinação e fidelidade aos cânones da Contra-Reforma.

6. O programa de grottesche do transepto e a obra definitiva da sé O conjunto artístico da capela-mor manuelina tem de ser visto de per si e na sua íntima ligação ao magnífico programa de tetos de alfarge que cobrem o transepto e tornam a sé do 54 Funchal um dos mais importantes e extensos testemunhos da arte mudéjar em Portugal . !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 54

Lina Maria Marrafa de Oliveira, “Estrutura e decoração dos tetos de alfarge”, Monumentos, n.º 19, op. cit., pp. 40-49. 135

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A decoração manuelina da sede da primeira Diocese Global é valorizada, assim, pelo facto de preservar na sua integridade uma armação de carpintaria mudéjar com o seu original programa de pinturas de grottesche, com temas vegetalistas, heráldicos e fantasistas, datáveis de cerca de 1515-1518, que revestem as esteiras, frisos, asnas, trompas e panos laterais do cruzeiro e a totalidade dos tetos das naves. Executadas em boa madeira de cedro branco, por uma empreitada que em 1515 estava à responsabilidade 55 do mestre de carpintaria Pero Anes, segundo as contas da Alfândega do Funchal , estas armações de madeira hispano-mouriscas preservam a original decoração pictórica, facto incomum no património artístico nacional e que merece ser relevado. Aliás, em sequência do sucesso da decoração manuelina da sé, multiplicaram-se no Arquipélago decorações mudéjares em forros de igrejas, em Santa Clara do Funchal, Santa Cruz, Ponta do Sol, 56 Calheta, Ribeira Brava e, ainda, na Alfândega e no Solar de D. Mécia .

Pormenor dos tetos de alfarge mudéjares da sé, com pintura de grottesche de c. 1520, de mestre não identificado, inspirada em modelos renascentistas de Nicoletto Rosex da Modena.

A pintura que reveste esta ampla estrutura de alfarge da sé foi certamente realizada no Funchal, por artista desconhecido, na sequência da sagração da igreja em outubro de 1518, sabendo-se que, como se disse, algumas obras prosseguiam após essa cerimónia e o próprio rei D. Manuel mandou 600.000 rs para a sua ultimação. Ignora-se, todavia, a quem possa ser a decoração assacada, ainda que se saiba da existência de um pintor

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José Pereira da Costa, A Construção da Alfândega Nova do Funchal, Lisboa, Junta de Investigação Científica e Tropical, 1979, cota ANTT, Núcleo Antigo, n.º 764, pasta 15. 56 Cf. Pedro Dias, “Arquitetura mudéjar portuguesa. Tentativa de sistematização”, Mare Liberum, n.º 8, 1994, e Rui Carita, “Os tetos de alfarge da Madeira: século XVI”, Atas do II Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, CEHA, 1990. 136

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Martim Lopes no Funchal, já em 1498 ativo nas decorações da gaiola processional das 57 festas municipais , e em 1517 conste um pagamento ao pintor, nos registos da Alfândega, por serviço desconhecido. Também morava em Câmara de Lobos, no início do 58 século XVI, um pintor chamado João Afonso . Sejam ou não estes nomes ligáveis à obra que tratamos, as decorações pictóricas incluem motivos de grotesco romano, que são dos primeiros que se pintaram em Portugal, a revestir os frisos das naves e do transepto, com animais alados, grifos, bucrâneos, putti, candelabra, taças, urnas, águias, e motivos vegetalistas de fantasia, tudo inspirado na linguagem dos grottesche que, a partir de Roma e das descobertas arqueológicas das pinturas decorativas nos salões dos antigos palazzi imperiais de Tibério e de Nero, faziam as delícias das primeiras gerações 59 de artistas do Renascimento . Esses motivos, tão estranhos quanto encantatórios, passam de seguida para os repertórios ornamentais da Renascença, fora de Itália, através de estampas e livros de gravuras que circulam em larga escala, como é o caso das estampas do pintor e gravador Nicoletto Rosex da Modena, que foi seguramente uma das fontes utilizadas no caso da decoração madeirense. Já fizemos observar que existem similitudes no uso de repertórios comuns nas figuras híbridas que surgem nos frescos com grottesche e decoração fantasista na capela-mor da igreja românica de Santa Leocádia (Chaves), que foi decorada a fresco na data precoce de 1509-1511 a mando de D. Fernando de Meneses Coutinho, futuro bispo de Lamego e homem de formação renascen60 tista . No caso da sé do Funchal, a modernidade decorativa pretendida pelo rei numa estrutura arquitetónica tradicional abrangeu não só essa disponibilidade para acolher elementos do classicismo italiano como para explorar, também, aspectos de exotismo, que o uso dos motivos grotescos permitia destacar de forma exuberante. Vem a propósito referir, embora de fatura anterior a toda a decoração manuelina da sé, que temos analisado, a existência de uma pintura sobre madeira do final do século XV que representa um Santo Franciscano (?) e que devia decorar a rudimentar ousia da primitiva igreja que antecedeu a sé. Esta pintura, ocasionalmente descoberta sob grossas camadas de repinte, sofreu processo de restauro e encontra-se, em boa hora, exposta no 61 Museu de Arte Sacra do Funchal , foi encomenda de D. Manuel, senhor do Funchal, dignitário da Ordem de Cristo e duque de Beja, para a primitiva igreja existente antes de se erguer a sé definitiva. A tábua, executada em carvalho do Norte, estava totalmente repintada quando, no final dos anos 90 do século passado, foi alvo de intervenção morosa !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 57

Arquivo Regional da Madeira, Div. Avulsos, cx. 4, n.º 484, 23-VII1498. José Pereira da Costa, Vereações da Câmara Municipal do Funchal. século XV, Funchal, Região Autónoma da Madeira, pp. 101, 152, 154 e 639. 59 Cf. Pedro Dias, op. cit., e Rui Carita, “Os tetos de alfarge da Madeira: século XVI”, Atas do II Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, CEHA, 1990. 60 Cf. o clássico estudo de Nicole Dacos Crifó, La Découverte de la Domus Aurea et la Formations des Grottesques, London-Leiden, Warburg Institute, 1969.oria da Universidade de Lisboa, maio de 1999). 61 Raquel Fraga, “O painel quatrocentista da sé do Funchal: novos dados para o estudo material”, Artis. Revista do Instituto de História da Arte, n.º 6, 2007, pp. 121-137. O estudo de intervenção laboratorial esteve a cargo de Conceição Viana, António Salgado e José Pessoa, entre outros. Ver, também, o texto de Fernando António Baptista Pereira (que considera ser um santo beneditino e não franciscano) in Catálogo Obras de Referência dos Museus da Madeira, Lisboa, Galeria D. Luís do PNA, 2012. 58

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e, não sem polémica, veio a revelar uma bela composição ainda de fidelidade goticizante, ancorada num fino desenho subjacente, com complexas arquiteturas perspetivadas de um templo a integrarem a figura do santo central, e com a esfera armilar a decorar o arcomestre, acima da cabeça nimbada. As afinidades desta pintura de finais de Quatrocentos com a tábua Santos Franciscanos do Museu de Arte Sacra da sé de Évora levou a considerar a hipótese de se tratar, como aquela, obra inspirada nos modelos sequenciais de Nuno 62 Gonçalves e executada por um artista de bons recursos ativo no reinado de D. João II . A pintura quatrocentista de Évora, ocasionalmente encontrada na igreja de Santa Helena do Monte Calvário e coberta por espessa repintura, apresenta de facto iniludíveis similitudes de estilo com a sua contemporânea tábua do Funchal. É importante assinalar a tábua da primitiva igreja da sé por outra razão de peso: a sua existência mostra em termos de representação arquitetónica intestina, nos conduz à presunção de que o modelo que foi seguido na construção definitiva da sé do Funchal se discutia e ‘experimentava’ em datas muito anteriores ao começo das obras de pedraria.

Frescos com grottesche e demais decoração fantasista na igreja de Santa Leocádia (Chaves), c. 1509-1511.

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Dagoberto L. Markl, “O painel da igreja do Calvário de Evora e a pintura portuguesa do século XV”, in A Cidade de Evora, n.º 56, 1973, pp. 5-11. 138

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Mestre desconhecido (seguidor da oficina do mestre dos Painéis de S. Vicente), c. 1495-98, Santo Franciscano (?), Museu de Arte Sacra do Funchal. (fot. durante o restauro)

Vem a propósito referir, embora de fatura anterior a toda a decoração manuelina da sé, que temos analisado, a existência de uma pintura sobre madeira do final do século XV que representa um Santo Franciscano (?) e que devia decorar a rudimentar ousia da primitiva igreja que antecedeu a sé. Esta pintura, ocasionalmente descoberta sob grossas camadas de repinte, sofreu processo de restauro e encontra-se, em boa hora, 63 exposta no Museu de Arte Sacra do Funchal , foi encomenda de D. Manuel, senhor do !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 63

Raquel Fraga, “O painel quatrocentista da sé do Funchal: novos dados para o estudo material”, Artis. Revista do Instituto de História da Arte, n.º 6, 2007, pp. 121-137. O estudo de intervenção laboratorial 139

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Funchal, dignitário da Ordem de Cristo e duque de Beja, para a primitiva igreja existente antes de se erguer a sé definitiva. A tábua, executada em carvalho do Norte, estava totalmente repintada quando, no final dos anos 90 do século passado, foi alvo de intervenção morosa e, não sem polémica, veio a revelar uma bela composição ainda de fidelidade goticizante, ancorada num fino desenho subjacente, com complexas arquiteturas perspetivadas de um templo a integrarem a figura do santo central, e com a esfera armilar a decorar o arco-mestre, acima da cabeça nimbada. As afinidades desta pintura de finais de Quatrocentos com a tábua Santos Franciscanos do Museu de Arte Sacra da sé de Évora levou a considerar a hipótese de se tratar, como aquela, obra inspirada nos modelos sequenciais de Nuno Gonçalves e executada por um artista de bons recursos 64 ativo no reinado de D. João II . A pintura quatrocentista de Évora, ocasionalmente encontrada na igreja de Santa Helena do Monte Calvário e coberta por espessa repintura, apresenta de facto iniludíveis similitudes de estilo com a sua contemporânea tábua do Funchal. É importante assinalar a tábua da primitiva igreja da sé por outra razão de peso: a sua existência mostra em termos de representação arquitetónica intestina, nos conduz à presunção de que o modelo que foi seguido na construção definitiva da sé do Funchal se discutia e ‘experimentava’ em datas muito anteriores ao começo das obras de pedraria.

7. A intervenção de Fernão Gomes no antigo altar da Confraria da Ascensão Não sendo possível em breve síntese como esta destacar todas as valências artísticas da sé, optámos por dar ênfase a duas obras-primas do seu acervo. A primeira é o recém-restaurado conjunto retabular da capela-mor, de cerca de 1514-1517, com os sequentes cadeiral e tetos de alfarge pintados. A segunda é a extraordinária tábua retabular que o pintor régio Fernão Gomes executou, cerca de 1583, para decorar o vão do desmantelado altar da Confraria da Ascensão, criada em 1572 no cruzeiro da banda da Epístola 65 da sé . Trata-se, em ambos os casos, de programas picturais modernos, acentuando um esforço de atualização (e internacionalização) cumprido pelos encomendantes das obras: no caso do retábulo, a adoção do Renascimento de raíz ítalo-flamenga, no caso do altar pintado por Fernão Gomes o gosto requintado da Bella Maniera romana. Se os mestres do retábulo manuelino deram corpo a uma pintura detalhista, eivada de pormenores de vincado naturalismo com atmosferas transparentes e escalas de minucioso enlevo, já no caso da tábua da Ascensão de Cristo buscou seguir a nova escala ciclópica de figurinos, o sentido de despejo compositivo (tão elogiado por um Francisco de Holanda) e o gosto !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! esteve a cargo de Conceição Viana, António Salgado e José Pessoa, entre outros. Ver, também, o texto de Fernando António Baptista Pereira (que considera ser um santo beneditino e não franciscano) in Catálogo Obras de Referência dos Museus da Madeira, Lisboa, Galeria D. Luís do PNA, 2012. 64 Dagoberto L. Markl, “O painel da igreja do Calvário de Evora e a pintura portuguesa do século XV”, in A Cidade de Evora, n.º 56, 1973, pp. 5-11. 65 M. J. Pita Ferreira, op. cit., pp. 108 e 280. 140

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por formas serpentinadas e de deliberada deformidade, criando assim novos pólos de 66 emotividade e arrebatamento espiritual por parte dos clientes e devotos . Estão assim bem patentes, com dois testemunhos de primeiríssima grandeza, o melhor da nossa pintura renascentista e o mais ousado da nossa pintura maneirista.

Fernão Gomes, Ascensão de Cristo. Painel do antigo retábulo do Altar de Jesus na Sé do Funchal, c. 1590. FunchaL, Museu de Arte Sacra.

Prosseguia, portanto, a vocação da sé do Funchal por acentuar o seu papel de Diocese Global e que, por ter a si adstritas as ‘novas terras’ descobertas e conquistadas, se exigia a si própria seguir a modernidade artística europeia nos seus patamares mais marcantes e originais. De facto, o grande quadro de Fernão Gomes, pintado a mando de uma das confrarias nobres da cidade, a Confraria da Ascensão, atinge na escala de figuras, no desenho precioso, no domínio da cor ácida, na ambiência cenográfica, na

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Cf. o clássico estudo de Nicole Dacos Crifó, La Découverte de la Domus Aurea et la Formations des Grottesques, London-Leiden, Warburg Institute, 1969. 141

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finura da modelação, no dramatismo da atmosfera, e na atitude reverencial face ao legado dos “pais da Pintura”, Rafael de Urbino por um lado (na conceção geral da cena tratada, com citações da Transfiguração do Vaticano) e Miguel Ângelo por outro (este, no gigantismo das poses e irreverência das formas serpentinadas), um nível nunca superado de qualidade, que seguramente conquistou o mercado madeirense. Não por acaso, Fernão Gomes assegurará regularmente, até ao início do século XVII, encomendas em avultado número para o mercado da Ilha da Madeira, obras que Isabel Santa 67 Clara cartografou e estudou pormenorizadamente . Uma delas é o Quo Vadis? do Museu de Arte Sacra, trabalho oficinal. Outro foi um retábulo para altar da capela do Calvário, na Ribeira Brava, que estava a pintar em 1590 na sua oficina de Lisboa e de que infelizmente se perdeu o rasto. No panorama da cultura artística portuguesa da segunda metade do século XVI e alvores do XVII, um tempo marcado havia meio século pela influência dos modelos do Maneirismo italianizante, a personalidade de Fernão Gomes destaca-se pelos seus méritos 68 inventivos e solidez de formação . Foi o único pintor que, ao invés de um aprendizado em círculos italianos, aprende a sua arte no Norte flamengo. De origem estremenha, pois nasceu em Albuquerque, junto à fronteira portuguesa, em 1548 (com o nome de Hernán Gómez Román), teve ensejo de aprender a arte em Delft, pequena cidade da Holanda meridional, perto de Roterdão, célebre pelas suas fábricas de faiança, e só depois se radica em Lisboa, onde está em 1570, pinta o retrato de Luís de Camões, atinge o grau de pintor régio de Filipe II e será personalidade relevante no campo das artes e no associativismo dos pintores em defesa da sua liberalidade. Em Delft, frequentou a oficina do pintor Anthonis Blocklandt: é o seu biógrafo Félix da Costa Meesen, pintor-escritor do tempo de D. Pedro II e autor do tratado Antiguidade da Arte da Pintura, quem nos dá essa informação, ao destacar Gomes entre dezanove pintores que eram, a seu ver, dignos de maior encómio: “Fernão Gomes pintor de bravo talento, e mui destro no pintar, com grande valentia, e excellente Debuxo, foi Discipulo de Blocklandt Flamengo, fes admirações em suas obras, seu ademiravel painel, a Transfiguração do S.or em a Igreja de Sam Julião, e o Tecto da Capella-mor do Hospital Real, e em as mais faz Igrejas pintura sua”. Porém, e tal como os outros bons criadores do Maneirismo em Portugal, como Campelo, Gaspar Dias e Francisco Venegas, deve ter tido possibilidade, também, de ter contacto direto com Roma e os centros italianos.

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Isabel Santa Clara, na sua magnífica e citada tese Das coisas visíveis às invisíveis, op. cit., refere dezena e meia de peças atribuíveis a Fernão Gomes e à sua oficina que se encontram em igrejas, museus e coleções madeirenses, o que mostra que o sucesso da Ascensão da sé lhe abriu caminho a numerosas encomendas, ainda que nenhuma delas sem a qualidade de acabamento do quadro da sé, sendo grosso modo produção oficinal. 68 Sobre o artista, cf. Dagoberto L. Markl, Fernão Gomes, um pintor do tempo de Camões, Lisboa, Comissäo Executiva do IV Centenário da Publicação de “Os Lusíadas”, 1972; Sylvie Deswarte-Rosa, As Imagens das Idades do Mundo de Francisco de Holanda, Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1987; Vítor Serrão (coord.), A Pintura Maneirista em Portugal – arte no tempo de Camões, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1995; e Adriano de Gusmão, Ensaios de Arte e Crítica (coletânea póstuma, organizada por Vitor Serrão e Dagoberto L. Markl), Lisboa, ed. Vega, 2003. 142

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A arte de Fernão Gomes respira essa lição maneirista filtrada da cultura nórdica e fundida com a Bella Maniera romana, com ecos não apenas dos modelos de Anthonis Blocklandt (Montfoort, 1533-Utrecht, 1583) e outros fiamminghi romanizados, caso de Franz Floris ou Henri van der Clerck, Hendrick Goltzius e Dirck Barendsz, mas também dos modelos maneiristas italianos, que produziam atmosferas com figuras de escala ciclópica e dinâmicas linhas serpentinas, tal como se admira na Ascensão da sé do Funchal, hoje no Museu de Arte Sacra. Designado, pela sua competência, pintor régio, em 1594, e indigitado para o cargo de pintor dos Mestrados das Ordens Militares, será um dos promotores-fundadores em 1602 da Irmandade de São Lucas, espécie de primeira academia das artes em Lisboa. Félix da Costa chama-lhe “pintor de bravo talento e mui facil no pintar”, destacando assim as qualidades de desenho e o forte romanismo das suas obras, de que deixou memória de uma Transfiguração existente na igreja de São Julião, infelizmente destruída com o terremoto de 1755, mas que temos todas as razões para considerar similar, na retoma do modelo rafaelesco, com a Ascensão do Funchal. Aliás, Fernão Gomes retomaria o tema da Transfiguração no ático do retábulo da sé de Portalegre, um dos seus melhores encargos públicos, curiosamente uma das obras onde ressurge (no Pentecostes) o autorretrato do pintor, já visível na figura de homem calvo e obeso que nos fita, no agrupamento à direita, no grande painel do Funchal. Outro autorretrato do artista, além dos que se vislumbram nas tábuas do Funchal e de Portalegre, ressurge numa Assunção da Virgem da igreja matriz São Julião do Tojal, Loures, e atesta o exercício de liberalidade e o estatuto de autoconsideração que o pintor sempre assumiu. A Ascensão de Cristo de Fernão Gomes parece denunciar, na sua imagem artística de excecionalidade no contexto do Maneirismo em Portugal, uma outra questão que não tem sido devidamente considerada: o facto de o altar direito do transepto da sé do Funchal integrar, por oferta do próprio Filipe II (I de Portugal), quatro tábuas executadas pelo idoso mestre neerlandês Michiel Coxie (1499-1592), que tal como Gomes era 69 pintor régio de Filipe II . Natural de Malines, “romanizou-se” em Itália, recebendo influências de Perino del Vaga e dirigindo depois a manufatura real de tapeçarias de Bruxelas, e ocupando depois o cargo de pintor da corte de Filipe II. As tábuas do Funchal, do final da longa carreira de Coxie, mostram o peso das convenções de modelos e a repetição de receitas oficinais, o que não deve ter deixado de ser notado pelas clientelas madeirenses mais atentas. Tinham como destino o altar de Santa Ana da sé, tendo sido depois integradas no do Senhor Jesus, que em 1677 recebe uma imponente estrutura retabular entalhada. Os outro quatro painéis da oficina Coxcie, do fronteiro altar de Santo António, devem ter sido também reutilizações de outro desmantelado conjunto ofertado na mesma altura pelo rei Filipe. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 69

Cf. Fernando António Baptista Pereira, “Descoberta a autoria dos painéis do Altar do Senhor Jesus”, Jornal da Madeira, 1 de janeiro de 1997, e Didier Martens e Isabel Santa Clara, “Exotisme flamand mitigé à Madère: les huit Coxcie de la cathédrale de Funchal”, Handelingen van de Koninklijke Kring voor Oudheidkunde, Letteren en Kunst van Mechelen (Compts rendus du Cercle royal d’Archeologie, de Littérature et d’Art de Malines), n.º 116, 2012, pp. 71-113. Sobre o altar do Senhor Jesus, cf. ainda Rui Carita, “A capela do Senhor Jesus da sé do Funchal”, Islenha, n.º 22, 1998, pp. 5-10. 143

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Estaremos perante obras que datam de uma mesma fase de redecoração da sé, ambas financiadas pela corte, tanto o altar de Santa Ana pintado na oficina Coxie, como o altar da Confraria da Ascensão, com a grande Ascensão de Gomes? Aquelas pinturas datam de 1581, e foram executadas no ambiente da oficina familiar de Coxie, à data já muito idoso, enquanto que a data da Ascensão, não estando documentada com precisão, é de circa 1583. Segundo nos comunica Rita Rodrigues, em 1583 as contas da sé registam o lançamento de uma esmola de 7.200 rs “que se deu pera ajuda da despeza 70 do retabollo dascensão da See” . O convencionalismo das tábuas de Coxie (e oficina), apesar da sua competência plástica em termos de peças com função cultual, deve ter dado matéria de discussão num espaço que sempre pugnara pela modernidade das suas obras artísticas e em que se buscava originalidade: fora assim na época manuelina, será assim no século XVII com as obras tenebristas “ao sevilhano” do pintor Martim Con71 rado, autor de muitas telas para o mercado madeirense . Aliás, deve notar-se que a Diocese do Funchal, no seu afã de seguir as novidades estéticas, não deixou de acompanhar o forte naturalismo nascente com o proto-barroco de Sevilha, cidade de onde vieram obras para os arquipélagos atlânticos (para a Catedral de Gran Canaria sabe-se 72 de uma encomenda em 1609 ao famoso Juan de Roelas) , e sabemos que em 1603-1605 era mandado um moço madeirense, Domingos Nunes Teixeira, aprender a pintura precisamente no 'atelier' sevilhano de Juan de Roelas. A 3 de junho de 1606, “Domingo Núñez Tejera, natural que dixo ser de la ciudad de Funchal de la ysla de la Madera”, entrava por aprendiz com “el maestro Juan de la Rueda presbítero maestro del dicho 73 74 arte” , e em 1609 estava já ativo na sua cidade natal, pintando obras . São dados significativos que importa destacar, pois situam melhor a importância artística e a expansão de influências proto-barrocas na pintura da diocese madeirense da primeira metade do século XVII, e não apenas nas telas de Martim Conrado. Era assim, com este espírito de alinhamento possível à modernidade dos grandes centros, que se entendiam as encomendas catedralíceas no final do século XVI, em início da Monarquia Dual, pelo que a encomenda do grande quadro da Ascensão de Cristo a Fernão Gomes, adivinha-se que a pedido da confraria dos nobres da cidade, poderia ter tido a intenção de reativar o velho costume de garantir na sé a presença de obras do maior merecimento e da maior novidade estética, algo que a empreitada dos discípulos de Coxie manifestamente não assegurava...

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ANTT, Cabido da sé do Funchal, L.º 6 de Receita e Despesa da sé do Funchal, 1574-1605, fl. 145v. (microfilme n.º 3573). Informação inédita de Rita Rodrigues, que muito agradecemos. 71 Rita Rodrigues, Martim Conrado, “insigne pintor estrangeiro”. Um pintor do século XVII na Ilha da Madeira, texto policopiado, tese de Mestrado apresentada à Universidade da Madeira, 2000. 72 Enrique Valdivieso (coord.), Juan de Roelas, h. 1570-1625, Sevilla, Junta de Andalucía, Consejería de Cultura, 2008, n.º 3. 73 Archivo Histórico de Protocolos de Sevilla, Legajo 6956, fls. 903 a 805, notas tabeliónicas do Lic. Perea Teniente. Publicado por Gonzalo Martínez del Valle, in Enrique Valdivieso (coord.), op. cit., doc. 5, p. 217. 74 Documentação revelada por Maria Isabel da Câmara Santa Clara Gomes Pestana, Das coisas visíveis às invisíveis, op. cit. 144

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8. Uma arte em uníssono com a modernidade Parece possível, a partir dos exemplos analisados nesta comunicação, estabelecerem-se algumas conclusões: se a tradição da encomenda artística do mercado funchalense ao longo do século XVI privilegiava Bruges, Antuérpia, Lovaina e outros centros pictóricos e escultóricos da Flandres, no caso da capela-mor da sé o primeiro bispo D. Diogo Pinheiro optou pelos melhores artistas escolhidos nas oficinas régias de Lisboa, para realizarem o retábulo e o cadeiral. O mesmo se passou no tempo de Filipe I de Portugal com a atividade do pintor maneirista Fernão Gomes para um altar da sé do Funchal. Os cabidos, confrarias e demais mercados sucessores iriam manter essa opção encomendatária e, gradualmente, impor-se-ia nas escolhas artísticas, também, um escol de competentes oficinas locais, o que conduz a que os prelados e os dignitários da sé, nos séculos XVII e XVIII, recorressem também a bons artistas funchalenses, tanto na 75 imaginária (caso do competente escultor seiscentista Manuel Pereira ), como no entalhe, na ourivesaria de ouro e prata, no douramento, no brutesco, nos têxteis e paramentaria sacra, no mobiliário, etc. A História cinco vezes secular da Diocese do Funchal completa-se, assim, com um percurso artístico de excecionais qualidades, que pode ser documentado através de obras ímpares em quase todas as suas fases evolutivas.

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Sobre o imaginário Manuel Pereira, autor do Camarim da sé e de muitos retábulos funchalenses, cf. Rita Rodrigues, “Manuel Pereira, entalhador e imaginário madeirense do século XVII, e os circuitos de divulgação de modelos para as periferias”, Anuário do Centro de Estudos de História do Atlântico, n.º 2, Funchal, SREC/CEHA, 2010, pp. 229-337. 145

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