A disciplina histórica e a historicidade das formas disciplinares. Alguns apontamentos. (versão preliminar)

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A disciplina histórica e a historicidade das formas disciplinares. Alguns apontamentos. (versão preliminar)

Rodrigo Turin (Unirio)

Gostaria de iniciar esta apresentação com duas reportagens e dois fatos recentes. A primeira reportagem, publicada em um blog sobre educação, intitula-se "Educar para a Felicidade". Nela, a autora procura orientar os pais, ofertando-lhes certas diretrizes a partir das quais planejar a educação de seus filhos. Para isso, a autora estabelece uma analogia ao mesmo tempo persuasiva, para o seu leitor implícito, e reveladora, para o argumento que aqui interessa: É conhecido que a maioria das empresas tem excelentes estratégias para desenvolver seus negócios e crescer. Apenas algumas, porém, conseguem realmente implementar as estratégias escolhidas. A diferença está justamente na capacidade de foco e na implementação de um bom plano de ação. Assim também é com nossos filhos.1 A segunda reportagem, dedicada às "profissões do futuro", concentra-se em mostrar as novas oportunidades que podem ser exploradas pelos historiadores, mais especificamente, pela categoria "historiadores corporativos", na elaboração dos arquivos e estratégias de "soluções de memória" para empresas. Tal atividade demandaria, por um lado, as (supostas) habilidades técnicas do historiador com os arquivos e, por outro, um grau de perspicácia para entender as demandas das empresas e sua inserção no mercado, em relação às quais ele deve oferecer as mencionadas "soluções de memória". A reportagem, inclusive, não deixa de contextualizar essas demandas dentro de uma atual intensificação dos estudos acadêmicos sobre memória. Como afirma um dos entrevistados, historiadora de formação e com pós-graduação em administração: "a busca da memória pela sociedade pós-moderna vem se contrapor à aceleração do tempo. Acho que a memória serve um pouco para nutrir a identidade individual e coletiva e atribuir sentidos à                                                                                                                 1

http://vida-estilo.estadao.com.br/blogs/educar-para-a-felicidade/educar-filhos-sem-ter-planos-deacao-e-tatear-no-escuro/, 09 Setembro 2015 | 14:46.

realidade. Então, o papel do historiador é dar um uso para isso. Não vale fazer memória pela memória. Você tem de dar uso para isso”2. O que gostaria de destacar, a partir dessas reportagens, é o modo como uma mesma linguagem conforma essas duas instâncias, da formação e do ofício historiográfico; o modo como, enfim, revelam uma mesma gramática a partir da qual as mais diversas experiências hoje são concebidas e medidas, inclusive (e acima de tudo) a educação. Educar, nessa chave, é ser empreendedor, fazendo incorporar essa mesma linguagem empreendedora, assentada na eficácia, na otimização, em uma razão instrumental voltada a alimentar a si mesma e a se expandir. Do mesmo modo, a relação com o passado, na chave da memória, se inscreve como um bem a ser otimizado, capitalizado, possibilitando tanto uma maior eficácia na resoluções de desafios no mercado, como propriamente um bem (e um serviço) a ser vendido. O próprio princípio teórico de uma reescrita contínua da história se transforma, aqui, em uma oportunidade, em um princípio de capitalização. Afinal, como diz a reportagem: "A história continua a ser contada todos os dias. Bem administrado, esse núcleo existe no 'para sempre' e tem muito valor". A tópica tucidedana de um "bem para sempre", aqui, encontra nova fortuna. ***

Os dois fatos recentes, na verdade ainda em andamento, que também gostaria de mencionar aqui, de início, dizem respeito à disciplina da História. O primeiro é o processo de reconhecimento e regulamentação da profissão do historiador, que, ao que tudo indica, está prestes a ser aprovada pelo congresso. Antiga demanda do órgão representante dos historiadores, não sem envolver divergências e polêmicas, representa o reconhecimento do Estado frente à categoria, definindo e resguardando a ela uma autoridade legal e um mercado de trabalho. O segundo fato diz respeito a projetos e debates recentes, também promovidos no congresso, mas presente em diferentes países, que preveem ou sugerem uma remodelação do currículo escolar, privilegiando uma indeterminação disciplinar.                                                                                                                 2

"Profissões do futuro: historiadores corporativos", Estadão, 22/07/2015.

Nesse modelo, ao invés de ofertar aos alunos uma série de disciplinas especializadas, o currículo abarcaria áreas temáticas, o que significaria, na prática, a retirada da disciplina histórica como elemento curricular obrigatório, pelo menos como item singular, no modelo pedagógico estabelecido desde o século XIX. A convergência desses fatos não deixa de suscitar alguma inquietação, naquilo que eles têm de antinômicos. Ou seja, no mesmo momento em que o Estado (no seu sentido genérico) parece estar disposto a reconhecer a profissão do historiador, ele sinaliza um movimento de mudança profunda na própria base de reprodução da categoria. Dá com uma mão, tira com a outra? O que isso parece sugerir? Ao trazer essas reportagens e esses fatos, aparentemente desconectados, não busco uma espécie de colagem ou iluminação profana. Vejo-os, antes, como indícios de um cenário atual, complexo, cuja composição é um esforço a ser feito. *** A partir dessas inquietações, gostaria de desenhar essa reflexão em dois momentos: no primeiro, tentar pensar determinadas chaves de leitura da própria historicidade da disciplina histórica, suas condições de emergência e de reprodução, assim como indicar uma possível leitura de sua condição atual; em um segundo momento, tento sugerir que determinadas pressões que hoje afetam a disciplina não podem ser entendidas apenas a partir da própria disciplina, sem levar em conta aspectos mais amplos, e que dizem respeito às humanidades, como um todo, e ao próprio lugar da universidade. Essas reflexões, devo adiantar, não são mais que apontamentos gerais, elaborações provisórias, que servirão como um primeiro marco de orientação para esse diálogo que está se iniciando. Seguindo o clima da proposta desse grupo, que se estenderá por mais dois anos, a expectativa é que os caminhos a serem trilhados não se iniciem já muito definidos, demarcados, dados de antemão, mas que se desenhem com a própria dinâmica dos debates. Aliás, um dos pontos que quero destacar hoje aqui é justamente a importância dessa dimensão da abertura, que só um espaço como a universidade ainda pode oferecer. *** É notório que a história disciplinar é um fenômeno moderno. Antes do século

XIX, ela se distribuía em uma série de gêneros distintos, envolvendo diferentes protocolos de escrita e de leitura, distintas práticas letradas e atendendo a finalidades diversas, sendo classificada geralmente pela tratadística no amplo gênero epidítico, com matizes dos gêneros deliberativo e judiciário. A escolha por escrever um texto histórico, nesse sentido amplo, se apresentava como uma possibilidade entre outras, não implicando em uma definição ou delimitação específica daquele que escreve. Assumia-se a voz do historiador, mais do que se era historiador. A delimitação estava, portanto, mais nos gêneros específicos do que no agente propriamente dito. Do mesmo modo, não havia qualquer projeto ou instituição de "formação histórica", no sentido escolar. Mesmo com a formação das Academias, no século XVIII, esse modo de funcionamento da máquina de gêneros, na feliz fórmula de Alcir Pécora, não foi essencialmente alterada. Isso só ocorreria, de fato, com a conformação de uma lógica disciplinar a partir do século XIX, cristalizando-se posteriormente nas reformas que dariam o perfil da universidade moderna. Nesse processo, ocorrido de modos distintos e com tempos específicos em diferentes países, a delimitação da autoridade do texto deixava de estar ancorada em protocolos eminentemente retóricos para ser definida pela formação de um agente específico, o historiador, a partir da implementação de um currículo obrigatório e de emblemas e títulos reconhecidos. Nesse processo, definiram-se as habilidades e certas virtudes epistêmicas que qualificavam esse sujeito do conhecimento,

centradas

predominantemente

na

crítica

documental

e

na

imparcialidade, assim como os gêneros através dos quais deveria se expressar, como o livro monográfico, os artigos e as resenhas, regrados por protocolos específicos que traduziam aquelas habilidades e virtudes, constituindo o que Anthony Grafton denominou de "narrativa dupla"3. Como ressaltou Peter Weingart, a emergência das disciplinas modernas, ocorrida por volta de 1800, implicou em um modo distinto de produzir as experiências ou os dados, os quais passaram a ser gerados e controlados a partir de protocolos prioritariamente internos, e não mais ocasionais4. Ou seja, o julgamento de                                                                                                                 3

GRAFTON, Anthony. As origens trágicas da erudição. Pequeno tratado sobre as notas de rodapé. Campinas, Papirus, 1998. 4 WEINGART, Peter. "A short history of knowledge formations", in: FRODEMAN, Robert (org.). The oxford handbook of interdisciplinarity. New York, Oxford University Press, 2010.

relevância de uma agenda de pesquisa, assim como das formas de sua execução, tornaram-se regradas por pares, institucionalizando-se em uma cadeia hierárquica de formação e reprodução nesse espaço relativamente autônomo. É nesse sentido que Weingart define a essência e a evolução das disciplinas a partir de uma comunicação auto-referencial, normalmente estabelecida por meio de congressos, associações e periódicos. Gerando uma espiral de especialização, ao mesmo tempo em que associava a inovação da pesquisa com o ensino, as disciplinas orientavam-se, ao menos idealmente, por uma espécie de finalidade sem fim, já que a própria abertura que caracterizava a pesquisa assentava-se na produção de novidades que não poderiam ser definidas de antemão. É nesse sentido que autores como Weber e Jaspers, por exemplo, definiram a ciência como uma tarefa essencialmente aberta e infinita. É óbvio que há um intervalo entre as expectativas formais que organizaram esse espaço e sua efetivação prática, estando a autonomia disciplinar sempre sujeita a pressões e intervenções externas, fossem elas políticas ou econômicas. Do mesmo modo, é possível pensar pelo menos uma dupla hierarquia entre as disciplinas, aquelas que retiram parte de sua legitimidade e capital simbólico a partir de distinções sociais ou econômicas, como o direito e a medicina, e aquelas que se constituem como detentoras de um capital "puramente" científico, como a física e a matemática. É preciso reconhecer, de qualquer modo, que esse "tipo ideal" de uma lógica disciplinar (entendido no sentido weberiano, mas também no sentido normativo) assentado na autonomia e na auto-regulação foi, até pouco tempo, um fator preponderante nas formas de reprodução e organização das disciplinas universitárias, refratando ou regulando em boa medida as demandas externas a partir de suas lógicas internas. No caso das ciências humanas, contudo, essa posição e essa disposição disciplinar sempre foram mais frágeis, tensas, se não ambíguas. Sua condição de emergência esteve diretamente atrelada a funções políticas, só conseguindo conquistar uma maior autonomia relativa na definição de sua produção e reprodução no decorrer do século XX. Aquilo que era a sua força original, como veremos, torna-se hoje, justamente, sua maior fraqueza. A organização pedagógica e a inovação científica, pilares dessa noção moderna de disciplina, não deixaram de assumir especificidades de acordo com as

áreas (sem mencionar aqui, novamente, os países). No caso da História, particularmente, não é possível pensar sua inserção disciplinar sem vinculá-la à relação umbilical que manteve com o Estado-Nação moderno. Ao mesmo tempo em que ofertava uma linguagem a partir da qual a experiência nacional se tornava pensável, em sua abertura histórica, o Estado a abrigava e a promovia enquanto um saber legítimo a compor o espectro disciplinar. Como ressaltou Stefan Berger, esse processo de estabelecimento de uma distinção mais forte entre profissionais e amadores, garantindo uma autoridade científica, é o que possibilitou ao historiador desempenhar um papel tão preponderante na fase de formação das identidades nacionais, atuando como pedagogos da nação5. Conjuntamente com essa organização institucional da disciplina, investia-se no seu braço forte, qual seja, a replicação da produção historiográfica no sistema de ensino. Mesmo em espaços onde a universidade, no sentido moderno, se constituiu mais tardiamente, essa relação forte entre disciplinarização da história e ensino é patente. No caso francês, por exemplo, o processo de disciplinarização, via liceus e Escola Normal, esteve estritamente atrelado ao esforço de Guizot em massificar o ensino, garantindo uma homogeneidade na formação do cidadão. Se não era possível evitar completamente, ao menos se devia controlar aquilo que Fustel de Coulanges chamou de uma "guerra civil historiográfica". No caso brasileiro, por sua vez, isso ocorre com a criação conjunta do IHGB e do Colégio Imperial Pedro II. Ainda que, nesse caso, o objetivo maior fosse estabelecer um modelo voltado à formação de uma elite para atuar na administração do Estado, disciplinarização e ensino inseriam-se como projetos conjuntos e conscientes, capitaneados e ancorados por uma política estatal. Na medida em que o discurso histórico se tornava fundamental para a inteligibilidade das mais distintas experiências, acima de tudo da política, o perigo de sua dispersão e os conflitos daí resultantes não deixaram de ser uma forte motivação para promover a restrição de sua produção, separando uma competência profissional, disciplinar, da esfera pública, entendida então como amadora. A disciplina histórica - sem que isso se desse de um modo puramente mecânico, bem entendido - apresentava-se como um saber essencial à forma política do estado-nação, uma vez que era em boa parte através dela que a soberania se efetivava em uma narrativa homogênea e                                                                                                                 5

BERGER, Stefan. "The power of national pasts: writing national history in nineteenth and twentieth century Europe", in: BERGER, Stefan (org.). Writing the nation. A global perspective. New York, Palgrave, 2007.

homogeneizadora, realizando aquilo que Jacques Rancière denominou de um triplo contrato da poética da história: narrativo, científico e politico. Esse processo de disciplinarização implicava igualmente a elaboração de um discurso de identidade e de legitimidade, a partir do qual se desenham os critérios constitutivos de cada campo disciplinar, e com a história não foi diferente. Como procurei indicar em outro artigo, no mesmo movimento em que a história se tornava uma disciplina científica, se conformava e se sedimentava um gênero (ou subgênero), a história da historiografia, que buscava evidenciar a própria unidade de seus objetos a história e o historiador. Distintos autores como Ranke, Camille Jullian, Gabriel Monod, Eduard Fueter, Friedrich Meinecke, Geoges Lefebreve, François Chatêlet, Charles-Olivier Carbonnel, José Honório Rodrigues, entre outros, buscaram soluções formais para sua composição, cujo funcionamento pressupunha, ao mesmo tempo em que evidenciava, o que havia de “efetivamente historiador nos textos” da tradição. Era, em boa medida, através dessa costura e enfrentamento da tradição, produzida por esse discurso meta-histórico, que as habilidades e os valores epistêmicos se desenhavam para esse sujeito do conhecimento, variando as resoluções da forma do gênero de acordo com os contextos e embates de cada campo historiográfico. Desse modo, é importante ressaltar como a história da historiografia e a teoria da história, no mesmo movimento em que elaboram uma narrativa sobre as formas de “escrita da história”, se inscrevem elas mesmas como práticas de temporalização no e do presente da disciplina6. Mas definir o que há de essencialmente histórico ou historiográfico, implica igualmente estabelecer aquilo que não é. O entendimento dessa delimitação da unidade disciplinar, portanto, não pode desconsiderar o seu aspecto relacional, ou seja, como ela se definia em relação às demais disciplinas em constituição, como a antropologia, a sociologia e mesmo a literatura. Daí a sedimentação de determinados topoi que são incorporados por professores e alunos em um habitus disciplinar, criando determinadas associações familiares a todos: a história com o documento e o passado, a sociologia com leis gerais e as sociedades modernas, a antropologia com o trabalho de campo e o estudo das alteridades. Essa constelação disciplinar e seus topoi têm, eles próprios, uma profunda vinculação com as suas condições de emergência.                                                                                                                 6

TURIN, Rodrigo. "História da historiografia e memória disciplinar. Notas para um debate", História da Historiografia, Ouro Preto, n. 13, dez., 2013.

Enquanto a história, por exemplo, se constituía em função da identidade nacional, da temporalidade e da escrita; a antropologia, por sua vez, lidava com as alteridades, com a espacialidade e com a oralidade - aquilo, portanto, que perfazia o negativo das nações modernas, atualizado em uma série de pares opostos assimétricos. Na medida, porém, que essas clivagens passaram a ser problematizadas e esvaziadas de sentido, na segunda metade do século XX, no mesmo momento, portanto, em que as humanidades adquiriam uma maior autonomia institucional frente às ingerências externas, essas disciplinas se viram confrontadas com o desafio de elaborar, ao mesmo tempo, uma crítica de suas marcas de origem e uma nova orientação normativa e de legitimação. Nesse processo, abriu-se um caleidoscópio de abordagens, assim como o discurso de uma inter- ou intra-disciplinaridade. Antropologia histórica, história antropológica, antropologia urbana, subaltern studies, história estrutural, connected histories, cultural studies, são apenas algumas dessas manifestações, que não deixaram de revelar, igualmente, as dificuldades de sair ou de ultrapassar o problema das definições disciplinares nas humanidades. Por mais que hoje seja difícil, se não impossível, estabelecer um distinção epistemológica entre saberes como história, antropologia e sociologia, na medida mesmo em que aquelas distinções que conformaram suas emergências (como a partilha das sociedades) já perderam legitimidade, todos ainda temos conhecimento das rixas existentes e resistentes entre essas disciplinas ou, pior, o que parece dominar hoje, a sua ignorância mútua. Todo esse processo de crítica e autocrítica, de inter ou intradisciplinaridade das humanidades, desencadeado principalmente a partir da década de 70, portanto, pouco afetou as suas delimitações institucionais. Como destacou Andrew Abbot a respeito das ciências sociais nos Estados Unidos, vigorou nesse processo

ao

mesmo

tempo

uma

incrível

estabilidade

das

disciplinas

institucionalizadas e uma extraordinária instabilidade de seus paradigmas ou correntes teóricas 7 . Se houve uma crise de sucessão e uma forte expansão do corpo de pesquisadores, naquele momento, como destacam autores como Bourdieu e Noiriel, sendo essa uma das causas singulares desse processo crítico, as disciplinas em si mesmas pouco foram afetas em suas delimitações institucionais8.                                                                                                                 7

ABBOTT, Andrew. Chaos of disciplines. Chicago, Chicago University Press, 2001. BOURDIEU, Pierre. Homo Academicus. Florianópolis, Editora da UFSC, 2011; NOIRIEL, Gérard. Sur la 'crise' de l'histoire. Paris, Gallimard, 2005. 8

Sem me alongar nessa história já bem conhecida, o que quero destacar aqui é de que modo o que se entendeu como uma "crise" das humanidades, nesse momento específico de sua história, não se devia tanto à sua fragilidade institucional, mas às transformações que desestabilizaram certos fatores fundamentais de sua condição de emergência. Na medida em que as disciplinas foram alcançando um grau mais elevado de autonomia e especialização, possibilitado pelo fortalecimento e expansão da instituição universitária, promoveram um movimento crítico, chamado por alguns de "auto-reflexivo", frente ao e possibilitado pelo esvaziamento daquelas experiências oitocentistas que caracterizaram sua formação. A crítica às meta-narrativas, a virada linguística, a crítica pós-colonial, e mesmo a problematização dos usos políticos da história e da memória, se incidiram profundamente em nossas formas de entendimento e no modo como elaboramos nossas agendas de pesquisa, pouco afetaram, naquele momento, a estabilidade institucional disciplinar. Ou seja, a autonomia conquistada pelas humanidades a partir de meados do século, capitalizando os princípios que definiam o funcionamento das disciplinas universitárias, foi o que possibilitou esse movimento de auto-crítica da própria tradição disciplinar, sem incidir, no entanto, em sua própria reformulação. O que também revela, e voltarei a isso, um forte caráter ambíguo da própria condição disciplinar nas humanidades, na medida em que ao mesmo tempo possibilita e veta as suas formas possíveis. Nos últimos anos, porém, em diferentes países, o que parece estar ocorrendo é uma equação distinta. Aquele esvaziamento, ou transformação, das condições de emergência de disciplinas como a História vem afetar agora a sua própria base organizacional. Os debates que cercam essa nova conjuntura não parecem mais focados em questões epistemológicas, mas sim em questões institucionais, que vão desde as condições de trabalho dos historiadores na universidade, até os projetos de remodelação do sistema de ensino, que, alterando a base de sua reprodução, provocariam efeitos diretos na própria existência da disciplina. Fator importante disso, me parece, é o fato de que os Estados já não precisam mais constituir e consolidar uma soberania a partir da formação de uma mesma consciência histórica comum a todos os seus cidadãos. Se o desafio do Estado no século XIX e começo do XX, ao promover o ensino da história, era fazer com que um habitante do Rio Grande do Sul e outro do Amazonas, por exemplo, compartilhassem determinados referenciais que gerassem um reconhecimento de identidade comum, hoje essa

demanda já não parece ter muito sentido, seja pelo fato de que outras mídias podem realizar essa função de modo mais eficaz, seja, principalmente, pelo fato de que se valoriza hoje muito mais a fragmentação e a pluralização das identidades, via memória, do que uma homogeneização, via história disciplinar - cujos protocolos de produção e leitura, aliás, cada vez menos encontram ecos fora da academia. Com esse corte no cordão umbilical, a própria sustentação de um apoio político da distinção entre profissionais e amadores deixa de ser um foco privilegiado. Os fortes investimentos nas políticas de memória e de patrimônio parecem indicar isso. Assim, aquilo que se mostrou como o fator mais importante na condição de emergência da disciplina histórica, possibilitando, inclusive, o que Koselleck denominou de uma "indigência teórica", hoje parece estar esvaziado9. Ou seja, ancorada em uma função de ofertar uma determinada consciência histórica, vinculada ao Estado-nação, a História pôde gozar de uma estabilidade institucional que a liberou, em boa medida, de buscar uma maior legitimação teórica, resguardando para si o lugar da empiria e de uma certa reificação do passado como objeto. Por isso mesmo, aquilo que era sua maior força, hoje tende a se tornar, provavelmente, sua maior fraqueza. De todo modo, nesse arco temporal que estou tentando desenhar, o maior conflito que parece marcar hoje a condição disciplinar da História, e das humanidades de um modo geral, é uma confusão entre o esgotamento de certos critérios originais de emergência das disciplinas com o esgotamento da forma disciplinar em si. A questão que se impõe nesse cenário é se o esgotamento daqueles critérios de emergência das discipinas, sedimentados desde o século XIX, deve significar, necessariamente, o esgotamento da forma disciplinar em si, como instância social e institucionalmente estabelecida, dotada de uma autonomia relativa, para a produção de conhecimentos e linguagens. Ao refletir sobre uma possível era pós-disciplinar, Jean Louis Fabiani aponta alguns problemas que me parecem importantes nesse sentido. Ao mapear os debates sobre o esgotamento de certas premissas disciplinares e uma possível fusão de disciplinas como a história, a sociologia e a antropologia, ele se pergunta se essa fusão, ou reformulação, viria de cima ou de baixo. Ou seja, se seria um movimento produzido dentro da própria lógica disciplinar, universitária, ou o produto de uma                                                                                                                 9

KOSELLECK, Reinhart. "Sobre a indigência teórica da ciência da História", in: Estratos do tempo. Estudos sobre História. Rio de Janeiro, Contraponto/PUC-Rio, 2014.

intervenção externa, do Estado ou do mercado10. Começando a retomar os exemplos citados no início desta apresentação, é possível entender que os projetos de reforma no currículo escolar, em diferentes países, indicam que a segunda opção está mais próxima de ocorrer. Os Estados, sabendo que não conseguiriam intervir diretamente na organização das disciplinas, agem na base de sua reprodução - o ensino -, causando uma reação em cadeia. O maior problema desse movimento não é a proposta em si (algo que, como já disse, é tema de uma longa discussão entre os pares), mas o fato de que os objetivos visados com ela dizem respeito antes à uma lógica externa que interna às disciplinas, como a flexibilização do trabalho dos docentes e uma otimização no gerenciamento escolar. Desse modo, como afirma Fabiani, essa idade pós-disciplinar promovida por burocratas e por um discurso de gestão encobre um pesadelo neo-liberal, marcado por um mundo fluído, de configurações provisórias. Situação que não deixa de colocar os acadêmicos em uma posição delicada, pois pautada em um perigoso antagonismo: ou defender a reformulação disciplinar e, assim, correr o risco de apoiar uma política que, no fundo, vai contra a própria base autônoma da disciplina; ou, então, assumir uma posição sindical, reafirmando por vezes antigos topoi já bastante esvaziados de sentido e desacreditados pela própria comunidade acadêmica. E aí, me parece, está o ponto fundamental hoje, que diz menos respeito a uma suposta crise da disciplina histórica, em si, do que de princípios basilares que organizam a instituição universitária e o funcionamento das disciplinas. Ou, melhor dizendo, os desafios hoje para disciplinas como a História não podem ser desvinculados de uma situação mais ampla que afeta a Universidade, como um todo, e cujos efeitos se estendem para as humanidades, em geral. Como diferentes estudos têm demonstrado, há uma forte tendência de implementação e/ou incorporação, em universidades de diferentes países, de uma lógica auditiva ou avaliativa comumente denominada "Novo gerenciamento público" (New Public Management). Ela constituise como uma espécie de gramática geral a partir da qual diferentes esferas tornam-se objetos de uma intervenção pautada em conceitos como "eficiência", "transparência" e "accountability". Como destacou Chris Lorenz, a consequência típica desse processo é a emergência de um regime de burocratas, inspetores, comissários e especialistas                                                                                                                 10

FABIANI, Jean-Louis. Du chaos des discipline à la fin de l'ordre disciplinaire?, Pratiques, 153/154, 2012.

que acabam por erodir a própria autonomia das disciplinas11. Normalmente traduzida em marcos quantitativos de avaliação, vinculados à produtividade, ela implica a imposição de uma lógica geral e abstrata não convergente com as especificidades e os sentidos de funcionamento das atividades mensuradas, gerando tanto uma deformação dessas próprias atividades, como uma corrupção do que gostariam de significar originalmente aqueles mesmos conceitos orientadores. Se os números de produção da área são eloquentes ao mostrar uma pujança, pouco revelam de seus efeitos reais. Em um estudo focado no campo das letras, por exemplo, Jaime Ginzburg mostrou o descompasso entre a valorização da publicação em periódicos avaliados como A1 pela Capes, e o uso, via citações e debates, desses mesmos periódicos. De 85 artigos analisados, apenas três citações foram contabilizadas12. Portanto, um dos efeitos desse processo é a proliferação eunuca de artigos (ou de coletâneas) sem leitores, cujos efeitos em debates é cada vez menos perceptível; ou, ainda, nesse mesmo sentido, o fato de colegas de um mesmo departamento muitas vezes não terem a mínima ideia do que o outro pesquisa, já que as reuniões ocupam-se cada vez mais, em sua essência, de estabelecer estratégias e soluções para garantir uma competitividade no mercado acadêmico medida numericamente. Mais grave ainda, essa lógica implica em grande medida a incorporação, por parte dos acadêmicos, dessa mesma linguagem, afetando o modo como eles veem e avaliam a si próprios. Chris Shore indicou, nesse sentido, de que modo essa cultura auditiva afeta o modo como os pesquisadores e professores percebem a si mesmos: "ela os encoraja a medirem a si próprios e suas qualidades em função de critérios de produtividade exteriores, indicadores de performance e classificações usadas nos processos auditivos" 13 . Cada vez mais professores e alunos vão sendo vampirizados por essa linguagem empreendedora, medindo-se por aquilo que os destrói. E isto é algo, como disse, que não afeta apenas uma ou outra disciplina. Nas                                                                                                                 11

LORENZ, Chris. "If You’re So Smart, Why Are You under Surveillance? Universities, Neoliberalism, and New Public Management", Critical Inquiry, 38, 2012. 12

GINZBURG, Jaime. "Periódicos acadêmicos: antagonismo entre produção e leitura", Expedições: teoria da história e historiografia, vol. 5, n. 1, julho, 2014, p. 25. Cf. também ARAUJO, Valdei Lopes de. "Pós-graduação, avliação e o futuro da (sem) história", texto apresentado em debate promovido pela AMPUH, em 13 de maio de 2015. 13 SHORE, Chris. "Audit culture and Illiberal governance: Universities and the politics of accountability", Anthropological theory, 8, 278, 2008, p. 281.

próprias ciências exatas e naturais a espiral formal de fragmentação e aceleração na produção científica gerada por esse modelo tem causado tantos danos e angústias como nas humanidades. É a chamada ciência salame, à qual se opõe, hoje, a slow science. A maior diferença dessas disciplinas em relação às humanas seja, talvez, que as possibilidades de sua sobrevivência sob esse regime pareça mais garantida em função de suas possíveis aplicabilidades ao mercado. De todo modo, como ainda ressaltou Shore, o que estamos assistindo, no fundo, é a transformação da ideia tradicional de universidade (aquele tipo ideal, antes referido) como um lugar dotado de autonomia relativa, voltado à produção e ao ensino de conhecimentos que, a princípio, são sem finalidades, em um espaço concebido como uma empresa corporativa, cuja preocupação principal consiste em adequar a sua forma de produção com as lógicas de mercado, servindo a necessidades pré-estabelecidas, maximizando seus retornos, otimizando seus custos e procurando ganhar competitividade. É uma mesma linguagem, portanto, que se expande para as diferentes esferas da vida, inclusive para a ciência e para a educação - como na reportagem citada no início desta apresentação. Por fim, nesse contexto, as disciplinas parecem estar diante de uma dupla opção: ou tentar legitimar-se frente a essas novas demandas e linguagens que vem se impondo de fora com um vigor e uma velocidade incríveis (e, com isso, provar sua "utilidade", demarcando espaços onde podem "prestar serviço"); ou, então, buscar a sua legitimação dentro dos princípios de autonomia da comunidade universitária e, com isso, defender essa própria autonomia como princípio e condição da produção de conhecimento. Ainda que a inércia institucional das disciplinas e mesmo seu corporativismo imponham uma temporalidade na qual mudanças não acontecem repentinamente, aceitá-las a partir de ingerências externas específicas pode significar a escolha pelo fim daquilo que o espaço universitário e a forma disciplinar possuem de mais fundamental: a possibilidade de abertura para o que não é dado de antemão. Inclusive a abertura para a elaboração de novas e imprevisíveis linguagens. Mas, para isso, é necessário não apenas enfrentar o que vem de fora da tradição disciplinar, mas a própria tradição. Afinal, como afirmou Humboldt: "A autonomia [universitária] fica ameaçada não apenas pelo Estado, mas também pelas próprias instituições [universitárias] quando, ao assumirem determinada orientação, impedem a

emergência de qualquer outra"14.

                                                                                                                14

HUMBOLDT, Wilhelm. "Sobre a organização interna e externa das instituições científicas superiores em Berlim", in: KRETSCHMER, Johannes; ROCHA, João Cezar de Castro (orgs). Um mundo sem universidades? Rio de Janeiro, Eduerj, 2003, p. 87.

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