A DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA NA TUTELA DO PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO BRASILEIRO NO ÂMBITO DO PROCESSO DE LICENCIAMENTO AMBIENTAL

July 3, 2017 | Autor: Jorge Fabbro | Categoria: Arqueologia, IPHAN, Licenciamento Ambiental e devido processo legal
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2013

Jorge Luiz Fabbro da Silva, M.A. Museu de Arqueologia e Etnologia Universidade de São Paulo

[A DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA NA TUTELA DO PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO BRASILEIRO NO ÂMBITO DO PROCESSO DE LICENCIAMENTO AMBIENTAL] SUMÁRIO: Considerando que as normas jurídicas brasileiras que tratam do patrimônio arqueológico são muito gerais para serem efetivas em sua tutela, o artigo discute o fato de que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), para poder cumprir seu dever, particularmente no âmbito dos processos de licenciamento ambiental, tem sido forçado a suprir as lacunas da lei por meio do exercício demasiadamente frequente de seu poder discricionário, promulgando atos administrativos que chegam a extrapolar seus limites legais e constitucionais. Como exemplos desse exercício da discricionariedade por parte do IPHAN, são discutidos a Portaria 230/2012, o Memorando 14/2012 e o Ofício Circular 001/2013. O artigo reconhece a inevitabilidade da ação discricionária e o mérito da tutela desse modo assegurada pelo IPHAN. Conclui, porém, que o uso excessivo da discricionariedade na administração pública coloca em risco a própria essência do estado democrático de direito; e propõe a redução drástica do campo de ação da discricionariedade administrativa por meio da elaboração de leis mais precisas e eficazes.

Por meio da Constituição Federal promulgada em 1988 (CF/88), o Brasil constituiu-se em “Estado Democrático de Direito” (Art. 1º). Tal expressão, em seu sentido mais elementar, “significa que não devem governar os homens: devem governar as leis"1. Desse modo, consagrou-se o princípio da prevalência da vontade coletiva (de que a lei é legítima expressão) sobre a vontade individual, colocando a sociedade, e todos os indivíduos que a compõem, a salvo das preferências e interesses particulares, a salvo do arbítrio. Contudo, para que tal proteção fundamental seja efetiva, é necessário que a norma constitucional seja revestida de “eficácia jurídica”, isto é, seja acompanhada de condições que lhe permitam “regular, desde logo, as situações, relações e comportamentos de que cogita”.2 Porém, como tem sido uniformemente apontado pelos doutrinadores do Direito, nem todas as normas constitucionais já nascem com essa eficácia. Algumas tem sido classificadas como “normas de eficácia limitada” ou “normas de eficácia contida”, justamente por serem “aquelas que não produzem todos os seus efeitos de imediato, necessitando de um comportamento legislativo infraconstitucional ou da ação dos administradores para seu integral cumprimento”,3 isto é, são normas que necessitam de outras normas para se tornarem efetivas. Sem estas, as normas constitucionais de eficácia contida são, per si, incapazes de proteger o bem jurídico de que tratam. Esse é o caso dos dispositivos constitucionais que objetivam proteger o patrimônio arqueológico brasileiro. Eles estabelecem que “os sítios arqueológicos e pré-históricos” são “bens da União” (Art. 20, X) e que integram o “patrimônio cultural 1

DIMOULIS, 2007:141. SILVA, 1998a:66. 3 ARAÚDO e NUNES JÚNIOR, 2007:20. 2

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brasileiro” (Art. 216, V) e atribuem ao “Poder Público, com a colaboração da comunidade”, a responsabilidade primária de promovê-los e protegê-los (Art. 216, § 1º). Mas, não dizem como isso deve ser feito. Limitam-se a indicar uma lista exemplificativa de meios (“inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação” e “outras formas de acautelamento e preservação”), deixando para a legislação infraconstitucional a tarefa de disciplinar a matéria. Por serem “normas de eficácia limitada”, os dispositivos constitucionais que tratam da proteção do patrimônio arqueológico tem o efeito, dentre outros, de estabelecer o “dever para o legislador ordinário”4 de elaborar normas que lhe deem efetividade. Isso, porém, ainda não aconteceu. Para suprir tal lacuna legal, o Brasil lançou mão do instituto jurídico da “recepção”, segundo o qual, havendo uma lei que disciplinava a matéria antes da promulgação da nova Constituição, não sendo com esta incompatível, aquela é automaticamente recepcionada no novo ordenamento jurídico, sem qualquer formalidade, e continua produzindo efeitos, como esclarece Luís Roberto Barroso: “Ao entrar em vigor, a nova Constituição depara-se com todo um sistema legal preexistente. Dificilmente a ordem constitucional recém-estabelecida importará em um rompimento integral e absoluto com o passado. Por isso, toda a legislação ordinária, federal, estadual e municipal que não seja incompatível com a nova Constituição conserva sua eficácia. Se assim não fosse, haveria um enorme vácuo legal até que o legislador infraconstitucional pudesse recompor inteiramente todo o domínio coberto pelas normas jurídicas anteriores.” 5

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ARAÚJO e NUNES JÚNIOR, 2007:22. BARROSO, 1996:64.

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No que diz respeito à proteção do patrimônio arqueológico brasileiro, não tendo sido elaborada nenhuma nova norma para dar eficácia à tutela assegurada pela Constituição de 1988, passaram a ser tidos como recepcionados o Decreto-Lei 25/1937 e a Lei 3.924/1961, que já disciplinavam a matéria. Esse fato, aliás, é expressamente admitido pela Lei 8.029/1990, Art. 2º, § 1º, ao atribuir ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), antigo Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (IBPC), as competências previstas na Lei 3.924/1961. Dessa forma, em princípio, ficou assegurada a proteção do patrimônio arqueológico brasileiro. Em grande parte, porém, isso se dá apenas em princípio. Tanto o Decreto-Lei 25/1937 quanto a Lei 3.924/1961, como se discutirá a seguir, não disciplinam a matéria em toda sua abrangência. De modo que, sob a égide de normas constitucionais de eficácia limitada, não havendo leis que lhes deem adequada complementação, outro importante dever é gerado, agora, para o Administrador Público. Mesmo não havendo norma que lhe diga com clareza como cumprir a injunção constitucional, o Administrador Público não tem a liberdade de ignorá-la, pois, como é cediço no Direito, suas prerrogativas são antes um dever que um poder (por isso, é frequentemente chamado de “poder-dever”) e, como tal, implica em subordinação a esse dever. Diante de uma norma constitucional de eficácia contida, não havendo norma que lhe dê plena eficácia, o único caminho que se apresenta ao Administrador Público é dar-lhe cumprimento empregando, por falta de melhor alternativa, o que em Direito convencionou-se chamar de poder discricionário, como leciona o eminente jurista Celso Antônio Bandeira de Mello:

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“Ao agir discricionariamente o agente estará, quando a lei lhe outorgar tal faculdade (que é simultaneamente um dever), cumprindo a determinação normativa de ajuizar sobre o melhor meio de dar satisfação ao interesse público por força da indeterminação quanto ao comportamento adequado à satisfação do interesse público no caso concreto.”6 Quando, porém, as ações do Administrador Público vão além “do que lhe permite a lei”, suas ações constituem agressão à ordem jurídica. Trata-se, neste caso, não de discricionariedade, mas sim de arbitrariedade. Os dois conceitos não devem ser confundidos, pois, o ato arbitrário “é ilícito e por isso mesmo corrigível judicialmente.”7 A imprecisão, indeterminação e mesmo omissão das leis que tratam da proteção do patrimônio arqueológico, geraram uma situação em que tornou-se prevalecente o exercício do poder discricionário e o risco, se não a prática, da arbitrariedade, como se buscará demonstrar abaixo, analisando-se alguns atos da Administração Pública. Casos de Emprego da Discricionariedade A seguir, serão discutidos três exemplos de como a Administração Pública, por meio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), tem exercido seu poder discricionário para proteger o patrimônio arqueológico brasileiro no âmbito do processo de licenciamento ambiental. Os exemplos foram escolhidos por se

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MELLO, 2009:401. Ibidem.

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constituírem, salvo melhor juízo, nos mais importantes instrumentos disciplinadores da matéria já produzidos pelo IPHAN. Portaria 230/2002 do IPHAN A Portaria 230/2002 do IPHAN é um exemplo típico de como esse órgão da Administração Pública tem sido impelido a exercer seu poder discricionário. Uma vez que a legislação não estabelece o modo como o patrimônio arqueológico deve ser preservado, e diante do “poder-dever” que o IPHAN tem de cumprir e fazer cumprir os princípios gerais exarados pela Constituição e pelas normas infraconstitucionais relativas a essa matéria, esse órgão decidiu, por razões de afinidade e conexão,8 atrelar a proteção do patrimônio arqueológico aos mecanismos já existentes de proteção do meio ambiente, por meio do processo de licenciamento ambiental. Em suas justificativas, a Portaria 230/2002 faz menção ao reclamo constitucional e infraconstitucional bem como à “necessidade de compatibilizar as fases de obtenção de licenças ambientais em urgência com os estudos preventivos de arqueologia, objetivando o licenciamento de empreendimentos potencialmente capazes de afetar o patrimônio arqueológico” (itálico acrescido). Desse modo, claramente indica ser resultado de uma decisão discricionária, isto é, de “um juízo privativo de oportunidade e conveniência, tendo em conta o interesse público”. 9 Contudo, para que o atrelamento da proteção do patrimônio arqueológico aos mecanismos de proteção do meio ambiente seja juridicamente possível, é necessário

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“Afinidade” porque, tanto no caso do meio ambiente quanto no do patrimônio arqueológico, o objetivo é a proteção de bens de natureza difusa. “Conexão” porque as jazidas arqueológicas são encontradas no meio ambiente e eventuais ameaças a este podem apresentar risco àquelas. 9 ALEXANDRINO, 2011:217.

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presumir que a espécie patrimônio arqueológico possa ser classificada como parte integrante do gênero meio ambiente. A Lei de Política Nacional do Meio Ambiente (6.938/81), porém, recepcionada que foi por estar em harmonia com o Art. 225 da CF, define meio ambiente como “o conjunto de condições, leis, influências, alterações e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas” (Art. 3º, Inciso I). Uma interpretação estrita do texto legal não permite incluir o patrimônio arqueológico no conceito de meio ambiente, como admite o jurista Luis Paulo Sirvinskas: “Registre-se que o conceito legal de meio ambiente não é adequado, pois não abrange de maneira ampla, todos os bens jurídicos protegidos. É um conceito restrito ao meio ambiente natural.”10 É a doutrina jurídica, não a lei, que recomenda definições mais abrangentes. José Afonso da Silva, por exemplo, conceitua meio ambiente como “a interação do conjunto

de

elementos

naturais,

artificiais e

culturais

que

propiciem

o

desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas. A integração busca assumir uma concepção unitária do ambiente compreensiva dos recursos naturais e culturais”.11 Em contraposição, o jurista Paulo Affonso Leme Machado, parece entender que a definição legal de meio ambiente não permite incluir o patrimônio cultural, muito menos o arqueológico, uma vez que já abrange tudo o que a lei pretende proteger: “A definição federal é ampla, pois vai atingir tudo aquilo que permite a vida, que a abriga e rege.”12 É a doutrina jurídica, não a lei, ainda mais, que entende que o conceito de meio ambiente deva incluir o patrimônio cultural e, por conseguinte, o patrimônio 10

SIRVINSKAS, 2011:12. SILVA, 1998b:2. 12 MACHADO, 2013:149. 11

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arqueológico (cf. Art. 215 e 216, CF/88). Doutrina jurídica, entretanto, por comportar divergentes opiniões, não estabelece a uniformidade necessária à segurança jurídica, e, por isso mesmo, não tem nem pode ter força de norma jurídica, não cria direitos e obrigações, não tem poder vinculante. Assim sendo, apenas por meio de uma exegese extremamente flexível poderse-ia dizer que o patrimônio arqueológico é parte da “ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas suas formas”. Ao emitir resoluções com base nessa interpretação extensiva, o IPHAN só poderia fazê-lo exercitando seu poder discricionário, suprindo o que a lei não diz, buscando dar eficácia aos princípios constitucionais de proteção ao patrimônio arqueológico. Ao assim fazer, deve-se ressaltar, cumpre seu “poder-dever” de forma legítima, embora, por falta de melhor alternativa, enveredando-se pelo caminho escorregadio das decisões autocráticas.

Memorando 14/2012 do CNA/DEPAM/IPHAN O Memorando 14/2012 do Centro Nacional de Arqueologia (CNA) é outro exemplo de como o poder discricionário tem sido usado no âmbito do IPHAN e de quão temerário o caminho das decisões autocráticas pode ser. Ele foi editado para “revogar as instruções contidas no Memorando Circular Nº 002/2008”13 que permitia, para efeito de concessão de Licença Prévia a empreendimentos com potencial de causar danos ao meio ambiente e, por conseguinte, às jazidas arqueológicas eventualmente existentes na área do empreendimento, que o Diagnóstico Arqueológico obrigatório fosse apenas Não Interventivo (DANI). Em sua exposição de razões, o Memorando 14/2012 argumenta que o Memorando 002/2008, 13

Memorando CNA 14/2012, § 1º.

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equivocadamente, exigia a realização de pesquisas arqueológicas com “maior acuidade técnico-científica” apenas na etapa de Licença de Instalação (LI).14 Ressaltando a importância fundamental da etapa anterior, a da Licença Prévia (LP), o Memorando 14/2002 assevera ainda que a concessão dessa licença ambiental sem a realização de “estudos consistentes” implicaria em “violar o postulado básico do princípio da prevenção”15 e conclui:

“Trata-se de um equívoco conceitual relegar a identificação do patrimônio arqueológico, eventualmente existente, em determinado local apenas na etapa de obtenção da Licença de Instalação – LI, pois significa dizer, com outras palavras, que o patrimônio arqueológico por ventura identificado estará destinado ao salvamento, sendo praticamente impossível a sua preservação in situ, uma vez que a viabilidade do empreendimento foi concedida na etapa anterior.”16

Ao buscar corrigir o que havia sido determinado por uma decisão autocrática anterior (Memorando 002/2008), o Memorando 14/2012 indiretamente ressalta os riscos a que o patrimônio arqueológico está exposto num regime administrativo caracterizado pela prevalência da discricionariedade. Decisões autocráticas são mais susceptíveis a erros, demandando correções semelhantes a essa, justamente porque refletem apenas o conhecimento, experiência e capacidade técnico-científica de uma única pessoa ou, no máximo, de um pequeno grupo de pessoas. Decisões colegiadas, com ampla consulta a quem detém significativa parcela do conhecimento técnicocientífico e às diversas partes interessadas, como aquelas que, num Estado de Direito,

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Ibidem, § 9º. Ibidem, § 7º. 16 Ibidem, § 11º. 15

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acabam consolidadas em leis, são menos susceptíveis a erros tão graves, que podem arruinar justamente o bem que se pretende preservar.

Sintomaticamente, embora reconhecendo a “ausência de diploma legal” que discipline toda a matéria,17 o Memorando 14/2012 não sugere a necessidade de leis mais precisas e adequadas, mas prefere, para revogar um ato discricionário, invocar outros atos discricionários, todos do mesmo IPHAN,18 e prefere ainda justificar a validade de suas determinações fazendo referências explícitas aos “princípios da intervenção estatal obrigatória, da supremacia do interesse público, da precaução, da responsabilidade e da indisponibilidade”,19 com especial ênfase ao princípio da discricionariedade:

“O Licenciamento Ambiental é uma das manifestações do poder de polícia do Estado, que é o poder de limitar o direito individual em benefício da coletividade. Portanto, a autorização de pesquisa arqueológica atrelada ao Licenciamento Ambiental designa ato unilateral e discricionário pelo qual a Administração Pública, através do IPHAN, possibilita ao particular o desempenho de atividade material ou a prática de ato que, sem esse consentimento, seriam legalmente proibidos.”20 Tal decisão monocrática poderia, no máximo, alegar interesse do Estado, não “interesse público”, como o memorando equivocadamente o faz, ignorando o que ensina, por exemplo, o jurista Marçal Justen Filho:

“O conceito de interesse público não se constrói a partir da identidade do seu titular, sob pena de inversão lógica e axiológica insuperável e frustração da sua 17

Ibidem, § 8º. Ibidem, § 4 a 7. 19 Ibidem, § 3º, Alínea “a”. 20 Ibidem, § 3º, Alínea “b”. Negrito acrescido. 18

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função. Definir o interesse como público porque titularizado pelo Estado significa assumir uma certa escala de valores. Deixa de indagar-se acerca do conteúdo do interesse para dar-se destaque à titularidade estatal. Isso corresponde à concepção de que o Estado é mais importante do que a comunidade e que detém interesses peculiares. O tratamento jurídico do interesse público não seria consequência de alguma peculiaridade verificável quanto ao próprio interesse, mas da supremacia estatal. Como o Estado é instrumento de realização dos interesses públicos, tem que reconhecer-se que o conceito de interesse público é anterior ao conceito de interesse do Estado.” 21 A índole monocrática do memorando em pauta é ainda ressaltada pelo fato de ter sido escrito na primeira pessoa do singular,22 sem qualquer referência a eventuais consultas à Academia, à Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB), a representantes dos diversos setores interessados ou a qualquer um que possa, de algum modo, contribuir para uma decisão acertada; e, ainda mais grave, sem qualquer referência à importância basilar do princípio da legalidade (que será discutido abaixo).

A mais severa objeção que talvez possa ser levantada contra a prevalência da discricionariedade é que ela permite que o agente público se deixe levar, por ignorância ou conveniência pessoal, pela lógica de que, se é interesse do Estado, é necessariamente interesse público, do qual seu julgamento, vontade e decisão são legítima expressão.

Do ponto de vista estritamente metodológico e técnico, é plenamente defensável a tese de que as ações arqueológicas preventivas, em razão da forma de deposição e natureza única e infungível de seu objeto, para permitirem, se for o caso,

21 22

JUSTEN FILHO, 1999:117. O Memorando 14/2012 é assinado pela Diretora do CNA/DEPAM/IPHAN, Rosana Najjar.

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preservação in situ, devem incluir a realização, antes da concessão de Licença Prévia, de prospecção arqueológica da superfície da Área de Influência Direta (AID) e sondagem da subsuperfície da Área Diretamente Afetada (ADA) do empreendimento, usando-se técnicas de campo já testadas e consagradas. Ações não interventivas seriam incapazes de detectar, em muitos casos, a existência de sítios arqueológicos na área estudada. E, para ser eficiente, esse é um trabalho que precisa ser realizado, imprescindivelmente, por profissional que reúna as necessárias qualificações técnicocientíficas. As orientações de Andrew David, em suas linhas gerais, podem ser citadas como representativas do consenso acadêmico quanto ao tema.23

Assim, do ponto de vista técnico, pode-se afirmar que a decisão do CNA é correta e perfeitamente justificável, pois revoga o Memorando 002/2008 que entendia ser suficiente, para efeito de concessão de Licença Prévia (LP), a mera realização de um Diagnóstico Arqueológico Não Interventivo (DANI). As conclusões da ciência, em seu estado atual, recomendam que, para assegurar a proteção de uma jazida arqueológica que eventualmente exista na área de um empreendimento pretendido, sejam realizados estudos arqueológicos interventivos antes da concessão de qualquer licença ao empreendimento. Tão somente os resultados de tal trabalho arqueológico, acompanhado de recomendações técnicas para mitigação de eventuais impactos, preservação in situ ou resgate dos depósitos arqueológicos, seriam subsídios suficientes para o órgão licenciador competente deliberar quanto à concessão de licenças ao empreendimento que as pleiteia, bem como quanto às condições sob as quais, se aprovado, o empreendimento poderia ser implantado e mantido em operação. 23

DAVID, 2006:10-11.

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As objeções que podem ser levantadas são estritamente de ordem jurídica, como o exemplo seguinte deixa ainda mais claro.

Ofício-Circular 001/2013 da PRESI/IPHAN

Contrariamente à evidência acima discutida, o Ofício-Circular 001/2013, da Presidência do IPHAN, sustenta que a atuação do CNA tem sido:

“...sempre pautada no cumprimento e aprimoramento dos instrumentos legais existentes, no estabelecimento de regras que reforcem a padronização da nossa atuação e no aprofundamento da interlocução entre o CNA e nossos parceiros – pesquisadores, instituições de pesquisa, órgãos licenciadores, empreendedores, consultorias, etc.”24 Tal discurso, ao revelar postura democrática e de respeito para com o princípio da legalidade, talvez seja mais reflexo da atitude e intenções pessoais da Presidência do Iphan do que dos fatos acima discutidos.25

Mesmo assim, em seu propósito de buscar dar eficácia ao Art. 9º da Lei 3.924, não se furta, e nem lhe é permitido furtar-se, de mais um exercício do poder discricionário. Esse dispositivo legal determina que os trabalhos arqueológicos sejam realizados exclusivamente por profissionais que apresentem “prova de idoneidade técnico-científica”. Contudo, não há nenhuma legislação informando o que seria prova bastante. Tal lacuna no ordenamento jurídico força o IPHAN, mais uma vez, a lançar mão da discricionariedade. Mas o faz só após ter tido o louvável cuidado, não apenas

24 25

Ofício-Circular 001/2013 PRESI/IPHAN, § 1º. O Ofício-Circular 001/2013 é assinado pela Presidente do IPHAN, Jurema Machado.

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de consultar a Procuradoria Federal, cujas recomendações adota, mas também de informar ao público que o fez.26 Então, determina:

“Poderão pleitear autorização/permissão para realizar estudos arqueológicos profissionais que tenham concluído curso ou programa de nível superior cujo objeto seja o estudo da arqueologia, ou de áreas de conhecimento próprias do trabalho do arqueólogo.”27 Não há motivos para duvidar que o “objetivo maior” do CNA seja, como afirma a Presidente do IPHAN, “o fortalecimento do campo da Arqueologia no Brasil”.28 Mas, a despeito da intenção democrática e legalista de sua introdução, o Ofício-Circular 001/2013 PRESI/IPHAN afigura-se eivado pela inconstitucionalidade.

A Constituição Federal, no Art. 5º, Inciso XIII, assim determina: “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. Portanto, só a lei, isto é, só a norma jurídica produzida pelo Legislativo, pode exigir do profissional a satisfação de condições prévias ao exercício de sua profissão. Não havendo lei, a Carta Magna assegura seu livre e desimpedido exercício. A esse respeito, o ensino de Araújo e Nunes Junior é claro:

“O inciso XIII do art. 5º da Constituição da República prescreve a liberdade de qualquer ofício, trabalho ou profissão. A finalidade do dispositivo é indisfarçável: proibir o Poder Público de criar normas ou critérios que levem o indivíduo a exercer ofício ou profissão em desacordo com sua vontade...

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Ofício-Circular 001/2013 PRESI/IPHAN, § 2º. Ibidem, § 3º. 28 Ibidem, § 1º. 27

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O dispositivo, porém, foi erigido sob os moldes de uma regra de eficácia contida, permitindo que lei infraconstitucional venha a limitá-la, criando requisitos e qualificações para o exercício de determinadas profissões. Logo, enquanto não existir lei acerca dessa ou daquela profissão, a permissão constitucional tem alcance amplo. Entretanto, caso seja editada uma lei regulamentando determinada profissão, o indivíduo que queira exercer tal atividade fica adstrito à observância das qualificações profissionais que o diploma vier a estabelecer.”29 Essa mesma compreensão é corroborada por Manoel Gonçalves Ferreira Filho:

“Como expressão lídima da liberdade individual, cada um tem o direito de trabalhar no ofício que lhe agradar, para o qual tiver aptidão. Rejeita-se assim o privilégio de profissão, anteriormente consagrado em prol das corporações de ofício. Apenas admite a Constituição as restrições a essa liberdade indispensáveis para a salvaguarda do interesse público. De fato, consente que a lei ordinária imponha ‘qualificações profissionais’.”30 Nesse mesmo sentido, leciona Pedro Lenza:

“A Constituição assegura a liberdade de exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer. Trata-se, portanto, de norma constitucional de eficácia contida, podendo lei infraconstitucional limitar o seu alcance, fixando condições ou requisitos para o pleno exercício da profissão.”31

29

ARAUJO e NUNES JUNIOR, 2007:162. FERREIRA FILHO, 2007:304. 31 LENZA, 2011:892. 30

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Esse é exatamente o caso da profissão de Arqueólogo, como o próprio OfícioCircular 001/2013 PRESI/IPHAN admite: “Tendo em vista que a profissão de Arqueólogo ainda não foi regulamentada”, “não cabe ao Iphan legislar sobre o tema”.32

Atos administrativos, como é o caso do ofício em pauta, não podem realizar o que o que a Constituição Federal só à lei permite. De fato, em seu Art. 5º, Inciso II, a CF/88 estabelece: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Desse Princípio da Legalidade decorre a determinação do caput do Art. 37: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. Dele também decorre o dispositivo que restringe as ações do Poder Executivo aos limites da lei, impondo-lhe o dever de “expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução” (Art. 84, Inciso IV). O significado dessa limitação é esclarecido na obra conjunta dos juristas Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes:

“A afirmação de que a Administração Pública deve atender à legalidade em suas atividades implica a noção de que a atividade administrativa é a desenvolvida em nível imediatamente infralegal, dando cumprimento às disposições da lei. Em outras palavras, a função dos atos da Administração é a realização das disposições legais, não lhe sendo possível, portanto, a inovação do ordenamento jurídico, mas tão-só a concretização de presságios genéricos e abstratos anteriormente firmados pelo exercente da função legislativa.” 33 No mesmo sentido, leciona Bandeira de Mello: 32 33

Ofício-Circular 001/2013 PRESI/IPHAN, § 2º. ARAUJO, 2007:333.

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“Para avaliar corretamente o princípio da legalidade e captar-lhe o sentido profundo cumpre atentar para o fato de que ele é a tradução jurídica de um propósito político: o de submeter os exercentes do poder em concreto – administrativo – a um quadro normativo que embargue favoritismos, perseguições ou desmandos. Pretende-se através da norma geral, abstrata e impessoal, a lei, editada pelo Poder Legislativo – que é o colégio representativo de todas as tendências (inclusive minoritárias) do corpo social – garantir que a atuação do Executivo nada mais seja senão a concretização da vontade geral.”34 O estrito respeito ao princípio da legalidade na Administração Pública jamais pode ser olvidado, como habilmente leciona o jurista Manoel Gonçalves Ferreira Filho:

“... o princípio da legalidade é inseparável da forma ocidental de democracia, construída sobre a ‘separação de poderes’. Esse princípio – ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei – visa combater o poder arbitrário... Só a lei pode criar obrigação para o indivíduo, porque ela é apenas expressão da vontade geral. Expressão da vontade geral por seu órgão, o Parlamento. Expressão da vontade geral, que a tudo e todos governa, na democracia. O princípio da legalidade onde só é lei o ato aprovado pelo Parlamento, representante do povo, exprime a democracia, na medida em que subordina o comportamento individual apenas e tão-somente à vontade manifesta pelos órgãos de representação popular”.35 O único ato do Poder Executivo, previsto na CF/88, que pode criar direitos e obrigações é a Medida Provisória.36 Portarias, ofícios e memorandos devem rigorosamente restringir-se às pautas estabelecidas pela da lei, e devem fazê-lo de 34

MELLO, 2009:57, FERREIRA FILHO, 2007:284. 36 Ibidem. 35

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modo claro e inequívoco. Não lhes é permitido criar, extinguir e nem mesmo modificar direitos ou obrigações, a não ser em razão de lei. Tal disposição da Carta Magna desautoriza in totum, por absoluta inconstitucionalidade, a norma expedida pelo Ofício-Circular 001/2013 PRESI/IPHAN.

Conclusão

Do ponto de vista técnico, como foi demonstrado, as posições adotadas pelo IPHAN tem sido absolutamente justificáveis. Do ponto de vista jurídico, porém, suas ações são bastante vulneráveis à crítica.

A prevalência da discricionariedade em seus atos decorre, deve-se reconhecer, das amplas lacunas existentes nos diplomas legais. Sem o exercício do poder discricionário do IPHAN, não haveria nenhuma proteção efetiva para o patrimônio arqueológico brasileiro.

Contudo, o patrimônio arqueológico, por importante que seja, não é o único bem de interesse público a ser protegido. Nem é o mais importante. Antes e acima dele está a preservação e promoção de tudo o que implica o epíteto “Estado Democrático de Direito”, de que o princípio da legalidade é parte essencial, mesmo vital. Uma nação sem leis, ou sem respeito às leis, é uma nação fadada ao caos ou à tirania.

A inexistência de uma determinada lei ou, mesmo existindo, sendo inadequada, demanda, é verdade, o exercício da discricionariedade administrativa, mas apenas provisoriamente. Não significa que essa lei não foi produzida ou aperfeiçoada porque

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dela se possa permanentemente prescindir, mas apenas que ainda há um trabalho a ser feito pelo Legislativo.

É, portanto, lúcida e pertinente a disposição do IPHAN de buscar “o cumprimento e o aprimoramento dos instrumentos legais existentes”.37 Por “instrumentos legais existentes”, porém, deve-se entender “leis”, não “atos administrativos”. De fato, até o momento, o IPHAN parece ter unicamente se esforçado, com sucesso, para aprimorar suas normas administrativas, promulgando diretrizes, corrigindo outras. Pouco ou nenhum esforço, contudo, tem sido feito para promover o aperfeiçoamento dos diplomas legais. Certamente a produção e aprimoramento das leis é competência do Congresso Nacional, não do IPHAN. Mas, por ser de grande interesse público, tal tarefa deveria ser fomentada pelo IPHAN, bem como pela SAB; pela Academia; pelos Arqueólogos e por toda a sociedade. No caso extremo de o Legislativo não responder a esse clamor, a importância e premência do caso justificaria até mesmo a impetração de um Mandado de Injunção.38

Sem leis adequadas à proteção do patrimônio arqueológico, perpetuar-se-á o atual impasse de ter-se de escolher entre abandonar esse patrimônio a sua própria sorte ou sacrificar o princípio da legalidade. O IPHAN, legitimamente, optou por cumprir sua responsabilidade e tutelar esse patrimônio. Mas, apesar de seus cuidados, nem sempre conseguiu manter-se dentro da estrita legalidade, como é patente, pelo menos, na imposição de condições ao exercício da profissão de arqueólogo.

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Ibidem. Mandado de Injunção, previsto no Art. 5º, Inciso LXXI, da Constituição, é o instrumento processual para, em caso de omissão do Legislativo, forçar a produção de uma norma regulamentadora que viabilize o exercício dos direitos e garantias constitucionais. 38

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Como foi dito na introdução deste artigo, quando as ações do Administrador Público vão além “do que lhe permite a lei”, suas ações constituem agressão à ordem jurídica e, com isso, séria ameaça ao Estado Democrático de Direito. Trata-se, neste caso, não de discricionariedade, mas sim de arbitrariedade. Os dois conceitos não devem ser confundidos, pois, o ato arbitrário “é ilícito e por isso mesmo corrigível judicialmente.”39

Referências Bibliográficas

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