A distinção pelo passado: processos de construção de um passado imaginário nas apresentações de André Rieu e sua utilização como evidência de distinção cultural

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A distinção pelo passado* Processos de construção de um passado imaginário nas apresentações de André Rieu e sua utilização como evidência de distinção cultural Fernando Gonzalez† Resumo Atuando no mercado fonográfico desde o começo da década de 1980, o violinista e regente holandês André Rieu vem acumulando resultados inusitados no campo em que aparenta se inserir e no qual seu público parece identificá-lo, o da música clássica, com turnês que se aproximam de artistas como Britney Spears, Lady Gaga e Paul McCartney, tanto em termos de público total registrado quanto em relação à receita bruta arrecadada. Este artigo busca compreender alguns dos mecanismos que gravitam em torno da imagem associada à música de André Rieu, identificando esse produto midiático como uma ferramenta para obtenção de capital simbólico e distinção, à partir das perspectivas do sociólogo Pierre Bourdieu sobre trocas simbólicas e crítica social do julgamento, e do conceito de tradição inventada, dos historiadores Eric Hobsbawm e Terrence Ranger. A metodologia utilizada compreende a análise das apresentações de Rieu disponíveis em DVDs lançados comercialmente no Brasil, com o foco principal voltado para a maneira como estes eventos são formatados, de modo que contribuam para o culto à aparente tradição inventada de uma Viena imaginária (que reforça clichês exagerados relativos à música clássica), para a afirmação de sua identidade midiática e lugar ocupado no campo musical, e reforcem aquilo que já é esperado pelo seu público.

Palavras-chave André Rieu, distinção, tradição inventada

Abstract Working on the music industry since the start of the 1980’s, the Dutch violinist and conductor Andre Rieu has been accumulating unusual results for the field in which he seems to insert himself and with which his public seems to identify him, the classical music field, with world tours that are similar to artists such as Britney Spears, Lady Gaga and Paul McCartney, in terms of total public and of gross revenue. This paper seeks to comprehend some of the mechanisms that gravitate around the image associated with Andre Rieu’s music, identifying this product as a tool to attain symbolic capital and distinction, from Pierre Bourdieu’s perspectives on symbolic trades and his social critique of the judgement of taste, as well as from the concept of invented tradition, by Eric Hobsbawm and Terrence Ranger. The methodology comprehends analyzing Rieu’s performances available in DVD’s released commercially in Brazil, focused on the way in which these events are formatted, in a way that they contribute to the cult to an apparent invented tradition of an imagined Vienna (which strengthens exaggerated clichés regarding classical music), to reaffirm his identity and place occupied in the musical field, and reinforce that which is already expected by his public.

Keywords André Rieu, distinction, invented tradition

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Trabalho apresentado no 12º Encontro Internacional de Música e Mídia, em setembro de 2016 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade Cásper Líbero, e-mail: [email protected]

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1. Introdução A disposição estética pelo consumo de um produto musical mostra-se atualmente como um dos elementos mais relevantes no processo de afirmação – e autoafirmação – de identidade. Assim como muitos vínculos são formados com base na apreciação de bandas e artistas em comum, outros tantos relacionamentos podem emergir abalados de debates sobre a produção musical das diferentes fases da banda de rock britânica Pink Floyd ou sobre qual seria o melhor integrante dos Beatles. A intensidade com que se discute e se vivencia o tema resulta, em grande medida, da presença constante da música ao longo das diferentes fases da vida, seja no rádio ou na televisão como produto da indústria cultural, seja nas canções de ninar e cantigas de roda da cultura oral. As experiências musicais estão enraizadas na experiência corporal mais primitiva. Sem dúvida não existem gostos – talvez com a exceção dos gostos alimentares – que estejam mais profundamente encravados no corpo do que os gostos musicais. É isto que faz, como diria La Rochefoucauld, que “nosso amor próprio sofra mais impacientemente a condenação de nossos gostos de que de nossas opiniões” (Bourdieu, 1983. p.123).

A organização da música como campo social – ou a sua identificação como componente integrante de diferentes campos – apresenta-se como elemento de análise das ciências sociais aplicadas, seja como fenômeno comunicacional, seja como elemento em torno do qual se descortinam processos sociais, considerando que música não acontece em um vácuo; ela invariavelmente contribui para e reflete a cultura da qual é parte. Assim sendo, deve ser vista da perspectiva daqueles que formatam a arte e circunscrevem seu significado, determinando as maneiras nas quais ela deve ser compreendida3 (Katz, 2009, p. xiii).

O estudo, logo, enfoca os efeitos da música no tecido social, ao invés de propriamente analisar suas características especificas ou, considerando especificamente o objeto de pesquisa, empreender em qualquer tipo de juízo de valor quanto à qualidade de sua produção musical – isso poderia ser melhor detalhado por um trabalho inserido na área de musicologia ou história da música.

2. A fórmula André Rieu

“Music does not happen in a vacuum; it invariably contributes to and reflects the culture of which it is part. As such it must be viewed from the perspective of those who both shape the art and circumscribe its meaning, determining the ways in which it is to be understood”, no idioma original. 3

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Atuando no mercado fonográfico desde o início da década de 1980, o violinista e regente holandês André Rieu vem investindo e refinando uma dinâmica específica em suas apresentações, responsável em grande parte por formatar a imagem que se constituiu em seu entorno. Ao mesmo tempo, vem acumulando resultados incompatíveis com o campo em que aparenta se inserir, o da música clássica, com turnês que se aproximam, quanto à receita e público total, a nomes conhecidos da música popular, como Paul McCartney e Lady Gaga4. Atuando como um bandleader carismático, ele reproduz um repertório apoiado sobre um tripé conservador, constituído por peças amplamente conhecidas do repertório dos séculos XVIIXIX (ou, como diz Bourdieu (2015, p.21), “obras de música chamada ‘ligeira’ ou de música erudita desvalorizada pela divulgação, tais como a música do Danúbio Azul, a Traviata, a Arlésiene”), transcrições de árias de óperas famosas e arranjos de música folclórica, tradicional e popular (como Hava Nagila, Funiculì Funiculà ou, no caso do show em São Paulo, Manhã de Carnaval e Ai se eu te pego), apostando naquilo que já tem aceitação garantida e que seu público já espera quando compra um ingresso para sua apresentação. Não existe possibilidade de mudança, assim como não há chance de entrar em contato com algo diferente e trazer para o jogo algo que leve o espectador a novos círculos culturais. Considerando a música como um campo social, ou seja, um espaço estruturado e estruturante de relações dentro do qual seus ocupantes competem pelas posições dominantes, supremacia e detenção de capital simbólico (BOURDIEU, 1983; MARTINO, 2009), a dinâmica de investir naquilo que já se sabe ter sucesso garantido funciona como estratégia para a manutenção de uma posição dominante, considerando que aqueles que, num estado determinado da relação de força, monopolizam (mais ou menos completamente) o capital específico, fundamento de poder ou da autoridade específica característica de um campo, tendem a estratégias de conservação (...), enquanto os que possuem menos capital (...) tendem a estratégias de subversão (Bourdieu, 1983, p.90).

Na medida em que as mesmas estratégias seguem produzindo resultados positivos e uma vez que a estrutura do campo não é fixa, mas um estado fluído e mutável das relações de força entre os agentes (BOURDIEU, 1983), não existe motivo para investir o capital simbólico acumulado apostando em algo diferente, que possa trazer mais riscos para a posição ocupada

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As turnês de Rieu realizadas entre os anos de 2009 e 2013 integram o Top 25 da revista norte-americana Billboard, que traz as 25 maiores turnês mundiais quanto à receita bruta. Suas temporadas encontram-se entre as posições de número 6 (em 2009) e 20 (em 2013), com receitas entre US$ 95,8 milhões e US$ 39,9 milhões. Em 2013, o público de Rieu atingiu 484.599 pessoas, próximo de nomes como Lady Gaga, com 544.333 pessoas, e Paul McCartney, com sua plateia de 565.705 pessoas.

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no campo do que recompensas. Assim, dentro da lógica da indústria cultural, o consumo segue sendo determinado pela produção dos mesmos bens simbólicos, enquanto o novo é descartado por posar um risco para a eficiência da dinâmica de mercado (ADORNO E HORKHEIMER, 2006). A fórmula pode ser rastreada até os primeiros anos de sua carreira musical, quando fundou, em 1978, a Maastrichts Salon Orkest, sua primeira orquestra. No formato quinteto com piano, mas substituindo a viola por um contrabaixo, o grupo lançou cinco álbuns ao longo da década de 1980 (Rendez-Vous, La Belle Epoque, Serenata, Eine Kleine Salonmusik e Hieringe Biete). Lançado em 1985, o terceiro álbum inclui entre suas faixas Vilja’s Song, do compositor de operetas Franz Lehar, Meditation, da ópera Thaïs de Jules Massenet, e Adieu Tristesse, que nada mais é do que um arranjo do estudo para piano em ré menor, Op. 10 número 3, de Frédéric Chopin; os arranjos, aliás, são do próprio Rieu. Nos shows ao vivo, que consideramos como os grandes momentos de formação e afirmação de sua imagem midiática, Rieu envolve a música em uma atmosfera de nobreza e elevação. O processo se completa com a ambientação suntuosa que remete a palacetes europeus, com membros da orquestra trajando vestidos de festa bufantes e casacas exageradas e com eventuais intervenções de casais de dançarinos, que ocupam o palco valsando e reforçando a ambientação de baile de contos de fadas.

3. As tradições inventadas e o esvaziamento da música A narrativa ficcional criada por André Rieu em suas apresentações com a Johann Strauss Orchestra busca resgatar referências e estabelecer continuidade com uma Viena imaginária do século XIX, apoiando sobre mitos e preconceitos aplicados à música clássica aquilo que os historiadores Eric Hobsbawm e Terrence Ranger identificam como tradições inventadas. Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado (Hobsbawm e Ranger, 2015, p.8).

A tradição, aqui, é entendida pelos autores como um conjunto de práticas de natureza simbólica, que servem mais a justificativas ideológicas do que técnicas; neste ponto, se diferenciam de atitudes e modos de operação que se instalam como costumes, de utilidade 4

prática, e que podem ser facilmente modificadas se o contexto assim demandar. Enquanto, no universo da música clássica, a tradição de realizar a afinação dos instrumentos da orquestra com base na nota Lá tocada pelo oboé serve a uma praticidade técnica (uma vez que este instrumento é o que consegue soar a nota Lá com mais precisão, próxima de sua frequência ideal de 440 Hz), a tradição de os músicos se levantarem para a entrada do maestro no palco vem de um hábito respeitoso, herdeiro provável de uma época em que os regentes eram todopoderosos e dirigiam suas orquestras com punho de ferro (época, essa, que há muito pouco tempo começou a ser superada em sua totalidade). Exemplos de tradições inventadas incluem a utilização de um tipo específico de chapéu e casaco vermelho pelos participantes de uma caçada e a indumentária solene, composta por toga, peruca e outros acessórios ritualísticos, adotada por juízes e magistrados em algumas culturas, segundo Hobsbawm e Ranger (2015), assim como, segundo Martino e Marques (2012), o costume social ritualizado do consumo de chá na Inglaterra, que “acontece durante a construção do regime colonial na Era Vitoriana” (Martino e Marques, 2012, p.54) e se torna um dos elementos de uma identidade nacional mantida até hoje. No caso das tradições inventadas, mais do que uma origem facilmente identificável, o importante é que seja possível traçar uma linha de continuidade, mesmo que artificialmente, que estabeleça o contexto de repetição e manutenção do ritual, ou seja, “elas são reações a situações novas que ou assumem a forma de referência a situações anteriores ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quase que obrigatória” (Hobsbawm e Ranger, 2015, p.8). Lançando sua linha de continuidade artificial quase 200 anos no passado, Rieu busca estabelecer continuidade com Johann Strauss II, o compositor que empresta seu nome à orquestra do violinista. Colocando-se na posição de um novo “Rei da Valsa”5, Rieu mostra-se como herdeiro de um costume que teria seu declínio na segunda metade do século XIX, as orquestras de baile itinerantes. Enquanto a instituição da orquestra sinfônica que conhecemos hoje estava na sua infância nos idos de 1830-1840, eram as orquestras de dança que se desenvolviam como grupos virtuosos, realizando por vezes mais de 100 concertos em um período de menos de três meses (SCHONBERG, 2010). O cenário, no entanto, mudaria gradualmente ao longo da segunda metade do século XIX, com a crescente profissionalização 5

King of the Waltz, ou Rei da Valsa, é também o título de um box de CDs e DVDs lançado por Rieu em 2012, que inclui também um livro de 144 páginas, com capa de couro, contendo fotos e comentários sobre seu trabalho.

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das orquestras e a instituição dos concertos em moldes próximos aos que conhecemos hoje. Um dos expoentes deste processo foi o compositor alemão Felix Mendelssohn, que, como regente titular da orquestra da Leipzig Gewandhaus, à partir de 1835, impôs disciplina na organização do grupo, aumentou o número de integrantes e elevou a receita e os salários dos músicos (SCHONBERG, 2010; TARUSKIN, 2005), que puderam dedicar-se integralmente à orquestra. O compositor também foi responsável por reforçar uma noção de respeito à integridade das obras executadas, colocando fim no costume de interromper os movimentos de sinfonias com entreatos destinados a distrair o público (SCHONBERG, 2010). Consolidar sua imagem em torno de elementos cristalizados em clichês, neste caso sobre a cultura da música clássica, também traz avanços para a posição de dominação no campo ocupada por Rieu. Se esta é a imagem esperada por quem consome seu produto, ele pode, declarando sua relação com as noções pré-concebidas, obter mais facilmente a validação desejada e manutenção da coesão do campo social (BOURDIEU, 1983). A isso se soma a utilização de repertório que, além de desempenhar o papel já identificado de ratificar a escuta esperada, atua como uma ponte para extrair uma resposta emocional e sensibilizar a plateia, com a repetida execução de peças como a Ave Maria de Bach/Gounod, Nessum Dorma, da ópera Turandot, e arranjos orquestrais de peças de música popular como Don’t Cry For Me Argentina e I Could Have Danced All Night, do musical My Fair Lady. Deslocada de seu contexto, a música torna-se elemento de um processo de esvaziamento de sentido, que despreza as especificidades de cada peça, sua posição dentro da grande obra à qual pertence e a conjuntura de sua produção, sendo utilizada predominantemente em sua esfera sensorial, para resultar em uma reação emotiva predeterminada que por si só já atue como elemento de busca de legitimação, baseada na ideia que prioriza a performance como momento de expressão emocional do artista. No entanto, o problema com esse modelo é que ele parte do ouvinte de volta para o compositor. Porque os ouvintes se sentem profundamente movidos e acreditam que a música fale por eles de alguma maneira, eles depositam sinceridade e intensidade de autoexpressão em nome do intérprete ou do compositor. Muitas vezes esse simplesmente não é o caso, como todo músico bem sabe. É possível levar o público às lágrimas com uma série de clichês sentimentais, nenhum dos quais é entregue com qualquer sinceridade pelo intérprete, que não mais acredita neles 6 (Johnson, 2002, p.40).

“The problem with this model is that it is inferred from the listener back to the composer. Because listeners feel deeply moved and believe that the music in some way speaks for them, they infer sincerity and intensity of selfexpression on behalf of the performer and composer. This is often simply not the case, as every musician knows. One can bring an audience to tears with a string of sentimental clichés, none of which are delivered with sincerity by the performer, who no longer believes in them,” no idioma original. 6

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O constante reforço deste processo resulta naquilo que Adorno e Horkheimer (2006) identificaram como um dos aspectos ideológicos da indústria cultural, a expropriação do esquematismo7: ao constantemente oferecer chaves de interpretação para seus produtos, a lógica da indústria cultural direciona as formas de percepção dos seus produtos de maneiras pré-determinadas, tirando do sujeito a capacidade de absorver e reinterpretar de acordo com a sua própria subjetividade (DUARTE, 2008). A função que o esquematismo kantiano ainda atribuía ao sujeito, a saber, referir de antemão a multiplicidade sensível aos conceitos fundamentais, é tomada ao sujeito pela indústria. O esquematismo é o primeiro serviço prestado por ela ao cliente. (...) Para o consumidor, não há nada mais a classificar que não tenha sido antecipado no esquematismo da produção (Adorno e Horkheimer, 2006, p.103).

Assim, “música clássica” e “concerto” convertem-se em algo ligado àquela estética imaginária, que remete a ideias de elevação, riqueza e distinção, e essas imagens são consolidadas, baseado em preconceitos e clichês, em um público inconsciente (ou mesmo desinteressado) destes mecanismos e que não cultiva o costume de frequentar o circuito de concertos de música clássica

4. Consumo, capital simbólico e distinção O consumo do produto oferecido por Rieu e a associação à sua imagem tornam-se estratégias de elevação de capital simbólico e busca por distinção, tendo em vista considerações de Bourdieu (2015) que afirmam que, apesar da noção comum de que os gostos culturais são algo inato, pessoal e intransferível (de onde aparece o ditado que diz que gosto não se discute), o trabalho de pesquisa científica evidencia que a aquisição e consumo de produtos culturais está diretamente ligado à educação, seja ela formal (adquirida nas escolas e universidades), seja ela informal (advinda da criação e do contexto familiar). O consumo de certos produtos culturais, portanto, como música clássica (gênero com o qual o público de Rieu parece identificá-lo), estaria diretamente ligado a evidências de pertencimento a uma classe específica, e a tudo aquilo que esse pertencimento traz consigo. Isso não significa, no entanto, a sugestão de algum tipo de predeterminação, ou mesmo de classificação estanque de classes sociais; o que o modelo infere é uma predisposição para o 7

Segundo Duarte (2008), Adorno e Horkheimer fazem em A Dialética do Esclarecimento uma apropriação livre do conceito kantiano de esquematismo, que seria uma capacidade particular do sujeito transcendental de relacionar sua observação do mundo com a sua capacidade de raciocínio, o que possibilitaria estabelecer leis que permitam o conhecimento da natureza (DUARTE, 2008).

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consumo deste ou daquele produto, não só pela educação normalmente encontrada em cada categoria, mas também por adequação ao ambiente social no qual se vive e se busca pertencimento (BOURDIEU, 2014). A própria noção de classe social, nesse contexto, é tratada como algo teórico, um agrupamento realizado no papel que possui a predisposição de se concretizar, por conta das afinidades culturais identificadas. “O que não quer dizer que a proximidade no espaço social, ao contrário, engendre automaticamente a unidade: ela define uma potencialidade objetiva de unidade ou, para falar como Leibniz, uma ‘pretensão de existir’ como grupo, uma classe provável” (Bourdieu, 2014, p.25). É importante destacar que, quando Bourdieu fala de “cultura legítima” e práticas culturais, ele está se referindo a manifestações artísticas como literatura, pintura e música. Desta forma, ele se aproxima do conceito de cultura trabalhado pelos autores da Escola de Frankfurt (intepretação que escolhemos adotar neste trabalho): Quando os frankfurtianos se referem a cultura, eles utilizam o termo com um significado distinto do que lhe é conferido pelos antropólogos. Cultura não significa práticas, hábitos ou modo de vida, e se por um acaso é legítimo falarmos em antropologia, trata-se de uma Antropologia Filosófica. Na verdade os autores seguem a tradição alemã, que associa cultura à Kultur, e a identificam com a arte, filosofia, literatura e música (Ortiz, 1968, p. 48).

A cultura seria, para os alemães, parte de um processo de humanização, algo que deveria se estender por toda a sociedade. Outro ponto importante para os frankfurtianos é a diferença estabelecida pelo pensamento alemão entre a ideia de cultura e a noção de civilização, já que esta última abarca o desenvolvimento do mundo material, enquanto a primeira estaria circunscrita a uma esfera espiritual (ORTIZ, 1968). Dentro dessa interpretação, a música é alçada a uma posição de destaque, funcionando como um signo de distinção cultural, considerando que se nada existe, por exemplo, que permita, tanto quanto os gostos no campo da música, afirmar sua “classe”, nada pelo qual alguém possa ser infalivelmente classificado, é porque, evidentemente, não existe prática para determinar melhor a classe, pelo fato da raridade das condições de aquisição das disposições correspondentes, do que a frequência do concerto ou a prática de um instrumento de música “nobre” (práticas menos disseminada no caso em que todas as outras variáveis sejam semelhantes, que a frequência do teatro, dos museus ou, até mesmo, das galerias) (Bourdieu, 2015, p.23).

A afirmação de classe se manifesta também no momento de discorrer sobre a cultura musical, de afirmar sua posição no campo social através da exibição de erudição e conhecimento sobre sua história e especificidades, uma vez que “o discurso sobre a música faz parte das mais

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cobiçadas ocasiões para a exibição intelectual. Falar de música, é a ocasião por excelência para manifestar a extensão e a universalidade de sua cultura” (Bourdieu, 1983, p.122). O valor social atribuído ao conhecimento musical talvez esteja ligado à noção da música como algo divino, extra-humano, ligado diretamente à espiritualidade, resultado de sua larga utilização ao longo dos séculos como elemento de culto e instrumento de adoração religiosa. Esta ferramenta, no entanto, somente estaria disponível para iniciados, para os que possuem a capacidade de se apropriar de sua técnica e dela fazer uso, o que, em um contexto social que não possui como prioridade a educação musical, ganha caráter raro e exclusivo, como se dependente de uma habilidade inata e não de estudo e dedicação. A música, no entanto, constitui-se como uma linguagem independente, com regras próprias e especificidades que podem ser decifradas. Bourdieu (1983) afirma que, A música é a arte “pura” por excelência. Situando-se além das palavras, a música não diz nada e não tem nada a dizer [grifo do autor]; não tendo função expressiva, ela se opõe diametralmente ao teatro que, mesmo em suas formas mais depuradas, permanece portador de uma mensagem social que só pode “passar’ na base de um acordo imediato e profundo com os valores e as expectativas do público. (Bourdieu, 1983, p.122).

Esta análise, entretanto, esquece de considerar as especificidades da música como sistema independente, que vem se constituindo há centenas de anos na busca de uma estrutura interna de coesão e coerência. Comparando-a ao teatro – ou a outras formas de expressão artística objetivas – sem dúvida a música se apresenta em primeiro momento como algo fechado em si mesmo, algo que “representa a forma mais radical, mais absoluta de negação do mundo e especialmente do mundo social que realiza todas as formas de arte” (Bourdieu, 1983, p.122). A música, apesar de não ser portadora de nenhum tipo de mensagem objetiva sobre o mundo social, se constitui em uma distinta chave de apreensão do mundo que nos cerca, oferecendo interpretações elaboradas de acordo com suas próprias regras internas que, à sua maneira, sugerem maneiras de enxergar o mundo e a sociedade – como qualquer idioma organizado socialmente. A diferença é que, enquanto grande parte dos idiomas utilizados na contemporaneidade opera por associações objetivas, a linguagem musical se situa em um campo semântico subjetivo, conformado com base nas relações entre seus elementos que, quando isolados, podem assumir uma infinidade de significados linguísticos – ou até mesmo nenhum. No entanto, a música, eu repito, é a mídia mais articulada apesar de por si só não ser capaz de expressar sobre o que se articula. Para que possa “fazer sentido”, a

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música de arte ocidental, como vimos, esforçou-se para atingir coerência sem precisar fazer uso de fatores extramusicais. Casado com diversos textos de diferentes formas e em variados graus de dependência, o poder expressivo da música se tornou cada vez mais aparente com a elaboração de esquemas referenciais de relação interna que puderam ser manipulados de variadas formas 8 (Katz, 2009, p.113).

O caráter hermético da linguagem musical, sua posição como linguagem fechada em si mesma, constitui mais uma característica que contribui para sua utilização como elemento de distinção, uma vez que empresta ao falante que se apresenta como dotado destas competências a posição de detentor de discurso legítimo, pairando acima dos outos que assim percebem-no e dotam-no de capital simbólico de destaque no campo, uma vez que isso dá ao dominante o direito de indicar caminhos e interferir nas regras do campo. Quando o dominante fala, sua fala é revestida da autoridade, ganhando um duplo significado – pela mensagem em si e pela valoração específica da posição do falante. (...) Na dinâmica estrutural dos campos, o dominante tem a hegemonia do discurso criador e prático, define o certo e o errado, decide quais serão as práticas, gostos e ações. (Martino, 2009, p.148).

O processo segue, portanto, de forma cíclica, uma vez que o uso do discurso legítimo contribui para que o ator social ocupe uma posição de dominação no campo e, uma vez nesta posição, é sua prática que passa a orientar as outras, como modelo a ser seguido por imitação na tentativa dos outros agentes de ascender na escala social do campo.

5. Considerações finais Este artigo buscou demonstrar a potencialidade das tradições inventadas como ferramentas para obtenção de capital simbólico e sua utilização como evidências de distinção - de acordo com as perspectivas detalhadas por Pierre Bourdieu – através da análise da articulação destes elementos em torno da imagem midiática do violinista e maestro holandês André Rieu. Utilizando-se de uma imagem fictícia, apoiada sobre clichês e estereótipos da cultura da música clássica na Viena do século XIX, Rieu busca o estabelecimento de uma continuidade artificial que o coloque na posição de um Johann Strauss contemporâneo, buscando uma posição dominante no campo musical em que se insere. Este mecanismo acaba resultando também no direcionamento sugestivo do consumo e da interpretação pelo público do produto musical oferecido por Rieu (identificado como elemento da indústria cultural), o que pode “Yet music, I repeat, I the most articulate of media though it itself cannot say what it is articulate about. In order to ‘make sense’, Western art music, as we have seen, strove to achieve coherence without having to resort to extramusical factors. Wedded to many texts in different manners and varying degrees of dependency, the expressive power of music became increasingly apparent with the elaboration of internally related referential schemes that could be manipulated in a variety of ways,” no idioma original. 8

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ocasionar o esvaziamento do sentido da música clássica restringindo-a somente à esfera sensorial de absorção imediata e acrítica.

Referências ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. 223 p. BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero Limitada, 1983. 208 p. ___________. Razões Práticas. Sobre a Teoria da Ação. Campinas, SP: Papirus Editora, 2014. 224 p. ____________. A Distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre, RS: Zouk, 2015. 556 p. DUARTE, Rodrigo. Indústria Cultural Hoje. In: DURÃO, Fábio Akcelrud; ZUIN, Antônio; VAZ, Alexandre Fernandez. A Indústria Cultural Hoje. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 97110. HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terrence. A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015. 390 p. JOHNSON, Julian. Who Needs Classical Music? Cultural Choice and Musical Value. New York: Oxford University Press, 2002. 140 p. KATZ, Ruth. A Language of Its Own: Sense and Meaning in the Making of Western Art Music, Chicago: The University of Chicago Press, 2009. 354 p. MARTINO, Luís Mauro Sá. Teoria da Comunicação: Ideias, conceitos e métodos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. 286 p. _________________________; MARQUES, Ângela Cristina Salgueiro. Política na ora do chá: ética e identidade no debate online sobre uma bebida. Comunicação, Mídia e Consumo, São Paulo, v. 9, n. 24, p. 49-74, mai. 2012

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ORTIZ, Renato. A Escola de Frankfurt. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 43-65, jun. 1986. SCHONBERG. Harold. C. A Vida dos Grandes Compositores. Osasco, SP: Novo Século Editora, 2010. 743 p. TARUSKIN, Richard. Music in the Nineteenth Century. New York: Oxford University Press, 2010. 905 p.

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