A distopia platónica na Filosofia dos Direitos Humanos: totalitarismo e nomocracia

July 13, 2017 | Autor: Miguel Almeida | Categoria: Human Rights, Critical Legal Theory, Ancient Philosophy, Critical Legal Studies
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Direitos Humanos - Centro de Investigação Interdisciplinar

II Jornada Internacional de Direitos Humanos 4 de Abril de 2014 Escola de Direito da Universidade do Minho

Publicação dos artigos apresentados em conferência

ISBN: 978-989-97492-1-4

Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projeto «PEst-OE/CJP/UI4036/2014» Universidade do Minho Direitos Humanos

II Jornada Internacional de Direitos Humanos

Direitos Humanos – Centro de Investigação Interdisciplinar Escola de Direito da Universidade do Minho Campus de Gualtar

2014 II

Título: II Jornadas Internacionais de Direitos Humanos Autores: Alexandre Guerreiro, Antónia Martin Barradas, Bruno Monteiro, Daniela Guimarães, Daniela Marques Cardoso, Fabrício Lopes Paula, Joaquim Loureiro, Luane Nascimento, Miguel da Costa Paiva Régio de Almeida, Rui Garrido, Sara Hidalgo Blanco Prefácio: Andreia Sofia Pinto Oliveira Nota do Editor: Pedro Carlos Bacelar de Vasconcelos Comissão Organizadora: Ana Filipa Pinto, Ana Isabel Quintas, Maria João Teixeira, Natália Carvalho Coordenação e Revisão Científica: Ana Filipa Pinto, Ana Isabel Quintas, Ana Maria Rodrigues, Filipe Venade de Sousa, Francielle Vieira, José da Fonseca Jr., Maria João Teixeira, Marta Botelho, Miguel Meira, Natália Carvalho, Nuno Borges, Pedro Costa, Rute Baptista Design Gráfico: Helena Mota Data: Outubro 2014 Editor: Direitos Humanos – Centro de Investigação Interdisciplinar Escola de Direito da Universidade do Minho Campus de Gualtar

ISBN: 978-989-97492-1-4

A Comissão Editorial não se responsabiliza pelo teor dos artigos aqui reproduzidos. III

Índice Agradecimentos………………………………………………………………………...IV Nota do Editor…………………………………………………………………………..VI Prefácio………………………………………………………………………………..VII Painel I - Hate Speech e Liberdade de Expressão…………………….……………….1 O Discurso do Ódio Online………………………………………………………3 (Bruno Monteiro)

O Panorama Histórico do Exercício da Liberdade de Expressão………………..33 (Fabrício Lopes Paula)

Um Acórdão que é uma síntese jurisprudencial…………………………………59 (Joaquim Loureiro)

A Distopia Platónica na Filosofia dos Direitos Humanos………………………71 (Miguel Régio de Almeida)

Painel II - As Novas Dinâmicas do Direito Internacional Humanitário.……………95 De Breisach a Roma: O Longo Caminho do Tribunal Penal Internacional……..97 (Alexandre Guerreiro)

Ciberwarfare and the Role of International Humanitarian Law……………….119 (Daniela Marques)

Assistência Humanitária em Situações de Catástrofe e Desastres Naturais……137 (Luane Nascimento)

Os Novos Desafios ao Direito Internacional Humanitário Relativos à Proteção de Jornalistas em Conflitos Armados……………………………………………..163 (Rui Garrido)

Painel III - A Atualidade dos Princípios Constitucionais à Luz da Nova Jurisprudência Europeia (TEDH e TJUE)………………………...………….…… 187 Quotas for Men in the University……………………………………………...189 (Antónia Barradas)

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The Impact of Human Rights Law on supranational regimes………………….221 (Daniela Marques)

A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia: Do Recorte à Consagração Formal…………………………………………………………………………249 (Daniela Guimarães)

Doctrina Parot Contra los Derechos Humanos………………………………...273 (Sara Hidalgo)

Índice………………………………………………………………………………….307

308

A DISTOPIA PLATÓNICA NA FILOSOFIA DOS DIREITOS HUMANOS: TOTALITARISMO E NOMOCRACIA Miguel da Costa Paiva Régio de Almeida1

Sumário: Resumo – Abstract – 1. Platão e a Filosofia dos Direitos Humanos – 2. Politeia: totalitarismo na cidade ideal – 3. Nomoi: nomocracia na cidade possível – 4. Repristinando a leitura de Karl Popper – 5. O areópago de molde platónico e a (falta de) liberdade de expressão – Referências Bibliográficas.

Resumo: Assente no estudo do programa social subjacente à Politeia e aos Nomoi, traçamos uma caracterização da distopia platónica que transcende o seu dualismo metafísico, de acordo com a interpretação de Karl Popper, de modo a melhor compreender o contributo do Ateniense para a Filosofia dos Direitos Humanos. Focamo-nos em particular na engineering de uma proto-liberdade de expressão de cidadãos e escravos sob a égide do totalitarismo e da nomocracia platónicos, cujas ilações não devem ser descuradas.

Palavras-chave: Proto-liberdade de expressão; Distopia platónica; Totalitarismo; Nomocracia; Engenharia Social

Abstract: Based on the social program analysis subjacent to Politeia and Nomoi, I trace a characterization of the platonic dystopia that transcends its metaphysic dualism, according to Karl Popper’s interpretation, aiming to a better understanding of the Athenian’s contribution to the Philosophy of Human Rights. I focus particularly on the engineering of a proto-freedom of expression for citizens and slaves under the aegis of platonic totalitarianism and nomocracy, whose assumptions should not be overlooked.

1

Doutorando em Ciências Jurídico-Filosóficas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Contacto:

[email protected].

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Key-words: Proto-freedom of expression; Platonic dystopia; Totalitarism; Nomocracy; Social Engineering

1. PLATÃO e a Filosofia dos Direitos Humanos

A imediata assunção que hodiernamente é feita do «princípio da dignidade humana» como coração – mais do que corolário – da Filosofia dos Direitos Humanos e prius axiomático do sistema jurídico2 leva-nos a inquirir muitas vezes pelos primórdios do iter percorrido para que não se olvide a (sua) História constituinte, surgindo com frequência a tentação de remontar ao icónico filósofo ateniense. É já tido como consensual que a primeira revolução intelectual do princípio da dignidade humana no apelidado Mundo Ocidental se deu com o Humanismo, e que as suas raízes remontam à filosofia grega, ao específico pensamento jurídico romano e à teologia judaico-cristã. E se é de facto passível que os grandes avanços trazidos por Roma sejam reduzíveis a um inovador sistema rodoviário, a um exército militar deveras eficiente e à autonomização do Direito enquanto Prática (juris)prudencial, espelhada e legada paradigmaticamente por via codificatória, revela-se incontornável mirar a Grécia Antiga para encontrar Arte, Filosofia e Ciência, e assim os postulados materiais deste ramo jurídico sui generis que ganhou forma e subsistência próprias apenas em meados do séc. XX. É igualmente sabido como SÓCRATES e PLATÃO introduziram na Política o racionalismo, ficando a Autoridade subjugada a um processo de justificação argumentada, vera condição necessária à Filosofia dos Direitos Humanos3 – e para nós o seu melhor contributo. Reflexo da pertinência de tal heurística é o facto de a questão nuclear estudada na Politeia ser a mesma com que ainda hoje nos debatemos – “a polémica entre a democracia-liberal e o Estado autoritário totalitário”4 – como atentou CABRAL

DE

MONCADA. Infelizmente, basta cogitar nos correntes neopositivismos e

funcionalismos tecnocráticos que dominam os juristas, paradigmatizados na nefasta imagem do corporate lawyer, para observamos como tanto nos afastámos das nossas 2

Cf. MARQUES 2009.

3

HAARSCHER 1987: 58. PLATÃO teve o grande mérito de valorizar a Filosofia como não havia sido feito antes, desligando-a da mera

contemplação e explanação da Natureza, como nos pré-socráticos; das discussões retóricas e demagógicas de como prevalecer na vida política, dos sofistas; e das teorias éticas de SÓCRATES. O Ateniense desenvolveu uma filosofia abrangente, que abarca simultaneamente os campos da Gnoseologia, da Estética e da Ética, radicando a unidade na sua Teoria das Formas/Ideias, combinando todos estes fatores numa única conceção do Mundo, consagrando a Filosofia como um meio abrangente de explicar a totalidade da experiência humana (MAIRE 1966: 26-27). 4

MONCADA 1948: 238.

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fundações teorético-sociais, deixando de focar os pressupostos e referentes axiológicos e de respeitar os primados histórico-políticos atinentes a este modo possível de regulação social tão próprio do hemisfério cultural no qual estamos inseridos. No que à nossa problemática diz respeito, deparamo-nos com o busílis de os contributos dados por PLATÃO para as Filosofias Política e dos Direitos Humanos serem mormente apresentados de uma ótica humanista, de grande avanço político, sendo assim sujeitos a segunda e terceira leituras que, se o prestigiaram e imortalizaram, também deturparam os seus ensinamentos originais. A nova perceção deste filósofo como “reacionário” e “anti-humanista” só começou a ganhar crédito após a II Grande-Guerra, com as experiências fascistas e os totalitarismos modernos. Na verdade, cremos que herdámos do Ateniense linhas teóricas conducentes a arvorar distopias sociais, imortalizando dogmas segregacionistas e crenças eugénicas, as ferramentas da Filosofia Política clássica inerentes aos mecanismos de sedição das máquinas antropológicas, na oposição do Homem ao não-Homem (GIORGIO AGAMBEN), tanto a dos antigos como a dos modernos.5 Fundamentando a visão já desvelada, importará analisar o programa social projetado no corpus platónico, evitando cair nos parcialismos da intentio lectoris ou nas malhas do anacronismo. Tarefa deveras complexa, visto que a Ordem do Direito foi construída séculos após a morte do Ateniense; que os Direitos Humanos qua tale encontram a sua origem traumática em meados do século XX; e que os Diálogos platónicos contêm um movimento dialético próprio, que sugere repetidas e diversas leituras e interpretações herméticas, dado que, mais do que a contraposição de argumentos de validade, encontramos um diálogo disquisitório, uma discussão conduzida.6 Ademais, há que assumir aqui o óculo do jurista, cuja forma mentis busca os fundamentos, os critérios, os princípios, eventualmente os fins, em suma, os referentes postulados com os quais se ajuíza e se decide. Longe, por consequência, da enaltecedora e tradicional reflexão da ótica exclusivamente filosófica, a qual ignora a específica performance jurídica. Não obstante todos estes confessados relativismos, mantém-se o interesse heurístico em desvelar as leituras possíveis, tanto as realizadas num Passado mui recente, como as deste Presente diariamente marcado pelas mais diversas engenharias. 5 6

AGAMBEN 2002: 28-29; 57-58. Cf. neste sentido Plato, Strauss, And Political Philosophy: An Interview with Stanley Rosen, disponível em

(consultado a 24.03.2014).

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Na verdade, não só é esse o fado das grandes obras que sobrevivem muito além do seu Tempo – tanto com todas as tresleituras infortunadas como com o grande potencial de enriquecimento retroativo possibilitado –, como o próprio fundador da Academia intencionou erigir princípios válidos para todo o Tempo: estamos, pois, a seguir o seu repto dialógico. Assumindo o facto de esta ser uma leitura condicionada e dado o notório continuum na teorização dos dois Diálogos, concentrar-nos-emos na Politeia (2.) – na qual é discutida a construção da cidade ideal, modelo que perfeitamente se integra no dualismo metafísico da Teoria das Ideias, diálogo redigido ainda numa certa fase da infância do pensamento platónico – e nos Nomoi (3.) – em que PLATÃO já cogita sobre a cidade possível, realizável, sendo a sua última obra escrita, determinantemente enriquecida pela experiência política de aquando serviu os tiranos de Siracusa – falhando nos seus projetos – e erguendo por isso a Lei a critério último pelo qual os governantes devem atuar. As nossas asserções encontram bastos ecos no pensamento popperiano (4.), o qual importa repristinar pelo crescente foro de atualidade. Será munidos destes prolegomena que poderemos enfim refletir especificamente sobre as consequências advenientes da engenharia social platónica, focando-nos em particular sobre uma proto-liberdade de expressão neste quadro de pensamento (5.), leitura que surge com uma sonoridade tristemente atual.

2. Politeia: totalitarismo na cidade ideal

De acordo com a posição tradicional, como advogam LEO STRAUSS e STANLEY ROSEN, esta obra deveria ser lida com consciência satírica, dado que tem como função política mostrar que a solução perfeita para os problemas (políticos) é impossível, exemplificando com o/um percurso necessário destinado a erigir o regime mais justo e demonstrando a irrazoabilidade de tal utopia.7 Contudo, foi precisamente uma leitura programática na assumida realização de projetos totalitários outrora tidos por utópicos que foi levada a cabo no século XX, desencadeando os mais controvertidos entendimentos sobre o pensamento político do Ateniense. A ideia pré-concebida de se ver PLATÃO como um humanista e revolucionário principia logo na costumeira mas errónea titularização deste Diálogo enquanto

7

Ibidem.

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“República”, que pouco tem que ver com a coisa pública, origem do termo latino, dado que o grego original – Politeia – se reporta a “Constituição”, “modelos de Constituição” ou “Estado”. Ademais, uma das referências determinantes para o filósofo foi Esparta – a mitológica, descrita por PLUTARCO, não a histórica –, admiração que resultava não só da simplicidade da sua cultura – desprovida da prossecução de riqueza, de artes e de imoralidades –, mas também pela sua política totalitária, nomeadamente pela contínua manutenção da respetiva Constituição. É destarte o ideal espartano que se encontra retratado neste Diálogo, como observaremos. A construção desta cidade está integrada na Teoria das Ideias, ficando assumido que o propósito nominal da Politeia é a definição de Justiça.8 Reconhecendo claramente o carácter para-utópico da cidade delineada, o seu modelo deve ser contudo sempre prosseguido pelo filósofo (592b).9 Assim, a feição prática das ideias expostas revela o fito político prosseguido pelo Ateniense, atribuindo-lhe uma dimensão de vera utilidade. Urge realçar que o pólo preferencial, e a razão de todos os fins, é o Bem Comum concretizado na cidade, associação que compensa as debilidades dos indivíduos (369bc): como sabemos, a conceção de indivíduo e sua inerente valoração data da Modernidade, não se encontrando paralelo para tal no Mundo Antigo; ao invés, há uma dialética transpersonalista que percorre o pensamento helénico, síntese do suprapersonalismo da pólis e do personalismo dos sujeitos enquanto seus meros constituintes. Ideia axial é a de que o indivíduo vive em completa subordinação à Cidade/Bem Comum: os ideais de igualdade surgem somente se contribuírem para a melhoria da pólis. A unidade entre estes dois pólos deve obedecer a uma só teleologia: a realização da Ideia Universal de Bem, posteriormente identificada com a Ideia de Deus.10 PLATÃO acreditava numa lei cósmica que, porque universal, regeria todas as coisas (381b), designadamente o desenvolvimento histórico (546a). Deste modo, toda a mudança social era sinal de corrupção, degeneração ou decadência, na senda da lei cósmica de HERACLITO de que tudo o que se encontra em fluxo está destinado à decadência progressiva. A dicotomia geração/corrupção ocorreria em ciclo, por fases alternadas, admitindo o Ateniense estar no abismo de uma das fases de degeneração;

8

RUSSELL 1945: 111; 1950: 117-118.

9

A versão compulsada é a tradução de A República da autoria de MARIA HELENA DA ROCHA-PEREIRA, Lisboa: Fundação Calouste

Gulbenkian, 2008 (11ª Ed.). 10

MONCADA 1948: 239.

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confiava igualmente que seria possível, por esforço sobre-humano, através da Razão, colocar um ponto de viragem nessa fase. A lei cósmica da degeneração manifestar-se-ia na realidade humana através da degeneração política, que assenta na degeneração moral (e na falta de conhecimento), que por sua vez deriva da degeneração racial. PLATÃO acreditava assim que esta tendência geral para a corrupção poderia ser sustenida se se impedisse a mudança política: o melhor Estado seria o liberto dos males da mudança e da corrupção, o da já ida Era Dourada. Isto coaduna-se com a sua teoria das Ideias ou das Formas, em que há algo imutável, que não degenera, sendo que a relação entre o sensível e o ideal era induzida através da maiêutica socrática. Assim se compreende o esforço de descrever a cidade ideal, pois pretende-se inteligir a ideia imutável e universal, perfeita, de que partirá a deficiente representação mundanal. PLATÃO aspirava atingir a episteme, o conhecimento secreto, mas ideal e perfeito, que lhe permitiria agir no mundo em que habitava. É de acordo com estas linhas de compreensão que nos engenha o seu programa político. A degeneração racial enunciada é descrita através do Mito dos Metais: por disposição divina, os governantes teriam Ouro na sua essência; os auxiliares Prata; e os outros habitantes Ferro e Bronze (415ac). Estes metais são hereditários, não se podendo misturar de forma alguma – dado que tal conduziria à degeneração e à desordem –, encontrando uma correspondência funcional na organização da pólis. A sociologia platónica incumbe esta de três funções essenciais, atribuída a três classes: (1) o governo e a administração cabiam aos Guardiões (regentes); (2) a defesa da ordem interna e externa competia aos Auxiliares (soldados); e (3) a produção era da responsabilidade dos Trabalhadores. É feita a equiparação dos três elementos da alma – apetitivo, espiritual e racional – às três classes referidas: aos apetites cabe obedecer, às emoções assistir e à razão governar. As finalidades do Governo seriam decisivas para determinar qual o ofício a atribuir aos sujeitos, devendo aquele julgar das aptidões individuais de cada um (370b), de modo a cada sujeito desempenhar a sua tarefa (433b).11 A ideia de Justiça vai ao encontro da promoção deste totalitarismo: associando aquela à virtude e à sabedoria e a Injustiça à maldade e à ignorância (350d), gerando a primeira concórdia e a amizade, e a segunda revoltas, ódios e contendas (351d), rapidamente designa o Justo como o que é bom para a pólis (519e, 520a). Sendo a

11

Cf. BAMBROUGH 1956: 154ss.

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Justiça uma virtude da alma, e a Injustiça um seu defeito, “é forçoso que quem tem uma alma má governe e dirija mal e, quem tem uma boa, faça tudo isso bem” (353e). PLATÃO atribui destarte a maior relevância à Educação, pois esta seria o melhor meio de instruir homens e mulheres de modo semelhante, dado virem a desempenhar tarefas também comuns (451e); não obstante, os encarregados da cidade devem vigiar continuamente este sistema, para que não surjam quaisquer inovações contra as regras erigidas (424b). Esta “igualdade” é comummente tomada como sinal de vanguarda feminista no pensamento platónico, dado que alcança inclusive o desempenho equitativo de funções dos regentes na cidade (454de), mas representa um claro erro seminal. Não só porque o que aqui é visado é o proveito da cidade, pelo que o foco não cai na mulher enquanto tal, como PLATÃO descreve inúmeras vezes a sua misoginia (característica comum à época, aliás) em diversos Diálogos (por exemplo excluindo diretamente as mulheres da Filosofia, como significativamente SÓCRATES exemplifica no Fédon, ou da conceção pura de Amor, no Simpósio); de resto, acentua a debilidade natural da Mulher face ao Homem na própria Politeia (455e). É ademais este holístico postulado de compreensão que também justifica o seu não menos nefasto “comunismo” de mulheres e crianças (457cd). Também de acordo com aquela matriz conservadora, propugna claramente um apuramento eugénico, promovendo a descendência dos homens e das mulheres superiores e restringindo a dos inferiores (459de, 460b), tudo feito na ignorância da maioria da população de modo a não criar dissensões, como é assumido na famigerada patranha platónica (459cd). Com aquele propósito é igualmente instrumentalizada a religião, determinando o que é ou não legítimo aos olhos do Divino (461b), promovendo ainda o apartheid (460c), prática também usual à época. Os casamentos seriam destarte regidos por princípios eugénicos, recorrendo-se ao aborto e ao infanticídio para lidar com os filhos deformados ou resultantes de uma união indevida. Sendo as crianças recolhidas e criadas por instituições, desconheceriam quais os seus verdadeiros pais, devendo assim dirigir-se indistintamente a todos os que ocupam a faixa etária dos seus progenitores como “pai” e “mãe”, e da mesma forma para com os seus muitos “irmãos”: seria um modo de manter a paz social, dado ser supostamente mais difícil entrar em conflitos com hipotéticos progenitores, como exige a piedade filial. Os casamentos promovidos pelos Estado velariam assim pelo bem da pólis e não pelo interesse dos nubentes, devendo estes respeitar aquele impreterivelmente. Intentava-se minimizar as emoções possessivas e generalizar o 77

sentimento de desnecessidade de propriedade privada. Aliando isto à comunitarização de mulheres e crianças, PLATÃO deseja criar uma unicidade de tal ordem na cidade que esta deveria ser como um organismo só, arrasando por completo a estrutura familiar, meio mais instintivo de agregação. O filósofo almeja apagar por completo qualquer traço do homem-indivíduo, defendendo que tal promoverá a ordem social: desaparecendo os conflitos, todos participariam dos mesmos prazeres. Neste Estado ideal a virtude radicaria no apropriado funcionamento das partes, e a Justiça no facto de cada indivíduo executar os seus deveres sem se intrometer nos dos outros. Sendo a alma mais relevante que o corpo, uma pessoa justa – por participar dessa Forma – será sempre melhor que outra injusta, por muito bem sucedida que esta seja na aquisição de bens materiais. Natural e adequadamente, só o filósofo está imune à tensão de lucrar com a Injustiça, dado que contemplou a Ideia/Forma da Justiça, tanto que o político tinha de ser aquele cuja envergadura ética sobrepujasse o comum dos cidadãos. Destarte, a opção natural é que sejam os filósofos a governar a pólis, preterindo-se assim

da multidão, “esse

grande sofista”,

estando a Razão

instrumentalizada enquanto apanágio dos governantes. PLATÃO assumia aliás que o tempo-livre era essencial para a aquisição de sabedoria, algo que quem trabalhava para a autossubsistência – a esmagadora maioria da população – não dispunha, ostentando uma perspetiva assumidamente aristocrática, desconsiderando repetidas vezes a Democracia, que carreia a anarquia e a desordem com os “amantes da igualdade” (561e). Defensor da qualidade sobre-humana do filósofo, é ele quem está predestinado a cessar a corrupção do Estado, encabeçando assim o seu governo enquanto Filósofo-Rei (497bc, 503b). Sendo certo, atente-se, que a aversão que PLATÃO tem pela Democracia poderá derivar também de dois importantes acontecimentos pessoais: ter assistido à derrota de Atenas, uma democracia; e a condenação à morte de SÓCRATES, igualmente por via democrática, tendo em conta o grande afeto e respeito que lhe teria. Enfim, talvez a asserção inicial do sofista TRASÍMACO neste Diálogo não seja assim tão despicienda, ao afirmar que “a Justiça não é mais do que aquilo que é vantajoso para o mais forte” (338c-339a)12, se reconhecermos a “força” legitimada que o Filósofo-Rei adquire, perpetuada que fica pela grei dos seus Guardiões, na realização do Bem Comum. No fundo, as conquistas desta distopia totalitária não iriam muito para além do já alcançado por aquela Esparta que inspirara PLATÃO: como atenta BERTRAND

12

Apud PENEDOS 1977: 116.

78

RUSSELL, talvez pelo facto de o Ateniense ter vivido a fome e a guerra, tenha então julgado que o que melhor caberia à Cidade seria evitar tais flagelos, garantindo o sustento de pelo menos uma parte da população e a defesa bélica de toda ela, preterindo de Arte e Ciência.13 Mas julgamos que há mais para além disto: é que o modelo erigido está submetido à sua figura e à elite governativa que haveria de sair da Academia por si fundada, conservando a sua aristocracia através de uma engenharia de clara autopoiese, subordinando toda a população através de técnicas eugénicas e de segregação convivencial, assentes num molde educativo de clara operação ideológica, na qual uma proto-liberdade de expressão de fito inovador, criativo ou crítico não poderia colher lugar. Não se deverá tomar de modo inconsiderado a Politeia como um mero exercício dialógico, de simples maiêutica socrática, mas antes como o esboço de um programa de organização social tido como o mais razoável.

3. Nomoi: nomocracia na cidade possível

Enquanto na Politeia encontramos delineada a cidade ideal, nos Nomoi discutese a cidade possível, sendo que PLATÃO toma como referente a legislação de Atenas – tanto a mais aristocrática, precedente, como a mais democrática, na qual viveu, e que visaria assim reformar. Os Filósofos-Reis são substituídos pelos legisladores-guardiões, detentores

da

sabedoria,

da

virtude

e

da

honestidade,

valendo

agora

o

binómiogovernantes/governados (689e).14 Os habitantes são sancionados de acordo com os seus atos, facto real concreto, pelo que do domínio do possível ou eventual se passa ao do real efetivo, fazendo-se um tratamento coerente e sistemático de um corpus legislativo, heterogéneo e assaz denso.15 Contudo, e não obstante o título da obra, para 13

RUSSELL 1945: 117.

14

Exceto quando indicado em contrário, compulsamos por regra a tradução Laws da autoria de R. G. BURY, Vols. I (Books I-VI) e II

(Books VII-XII), London: William Heinemann, 1926; ed. USA: Harvard University Press, Vol. I (Reprinted 1961) and Vol. II (Reprinted 1976). 15

Por exemplo, no Livro IX encontramos matérias de direito penal, com especial dedicação aos crimes de sacrilégio e alta traição,

com uma doutrina que distingue os aspetos voluntários do crime dos involuntários, de rigorosa classificação. No Livro XI encontramos disposições de direito civil e comercial: compra e venda, regulamentação da atividade mercantil, legados e testamentos, orfandade, divórcio, furtos, opróbrios, mendicidade, responsabilidade dos senhores pelos danos provocados pelos seus escravos; e de direito processual, como a análise das declarações das testemunhas e da instrução do processo. Há que louvar PLATÃO pela previsão legislativa acerca do processo judicial, promovendo a criação de um tribunal especial para decidir dos casos de pena capital e, ao contrário do que era então costume, permitir que a audiência fosse aberta ao público em geral, aumentando a responsabilidade dos juízes e assegurando que a audiência se estendesse por três dias, impedindo que ocorressem execuções movidas pelas “paixões imediatas” nos julgamentos de um só dia, como o que condenou SÓCRATES [cf. Leis (trad. GOMES): 15ss e 52ss].

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além da legislação em si, é apresentada uma discussão abrangente sobre a própria vida do Homem enquanto um animal político. Algo que é evidenciado, por exemplo, nos próprios “prólogos” que precedem e justificam as leis propugnadas.16 O indivíduo cede o seu lugar à instituição: perde-se o carácter pessoal do poder, porque toda a sabedoria filosófica, iluminada pela Razão, foi já encorporada na lei. Será esta a garantir a existência do Estado, fazendo-o sobreviver às catástrofes cíclicas das mundividências humanas: é a nomocracia, o império da lei. Esta surge como forma específica de regulação da cidade porque prescreve o cumprimento de uma norma, que por sua vez implica logicamente uma regra de conduta comum: a ponte com a Ética mantém-se estabelecida. Todavia, para que um dos elementos nucleares da norma releve – a sanção – é necessária uma transgressão: estamos pois perante um problema de legalidade, e já não de Justiça. Até porque o corpo legislativo platónico se revela por natureza seletivo, impondo condutas padronizadas, e fechado, pois não admite sequer a discussão legislativa. Mas é esta sua “cidade das leis” que representa a confluência da ordem do social com a ordem da legalidade, estando assim associada à amizade, promovendo a harmonia na pólis e evitando a discórdia civil. Alia a ideia de doçura à lei17, não obstante a confluência com a noção antagónica do posterior brocardo latino dura lex sed lex. Os anciãos ocupam a primeira linha na hierarquia social, dada a potestade auferida pelo “princípio da aproximação da morte”: a autoridade e o poder supremo das magistraturas seriam ocupados pelos anciãos, serão eles os legisladores. Estarão orientados de acordo com um “espírito de temperança e de justiça” (632c), regendo a interdisponibilização dos bens divinos e humanos; regulando a vida civil; a importância das sissitias; a associação de cidadãos e a distribuição de cereais/bens; a atribuição de honras conforme o mérito no respeito pelas leis ou a condenação pelos flagelos impingidos; a regulamentação dos ritos fúnebres; e, por fim, o modo de acesso aos magistérios dos guardiões, nomeadamente ao Conselho (sýnodos) Noturno, órgão supremo da cidade, e que tem como dever principal a conservação do status quo (960a969d). É privilegiada uma vez mais aquela “mentira proveitosa”, sendo uma espécie de propaganda enganadora, promovendo-se o uso da mentira sempre que esta vise o bem da cidade, ludibriando-se os jovens se necessário (663e).

16

Cf. Laws (trad. BURY) Vol. I: XII-XIII.

17

Cf. Leis (trad. GOMES): 70, Nota 26.

80

O Ateniense acentua a defesa do Ensino – todo o Livro VII é dedicado à Educação –, fomentando assim a cidade idealizada no íntimo de cada um, posteriormente a alargando à pólis (643d): a educação visa a formação cívica, através da prática da virtude e do respeito pela Justiça: a partir desta se formam quase necessariamente os melhores homens e mulheres, estando também prevista uma educação semelhante (e controlada) para ambos (806d-808c). Pelo que o estudo da lei é fundamental no seu programa educativo (688e): o cidadão assumia em pleno a respetiva capacidade legal, fazendo a sua própria defesa ou acusação nos tribunais ou legislando na assembleia. O treino da cidadania afirmava-se na prática da vida política, tomando a guerra como o treino (político) por excelência, dado que promove o confronto entre distintas constituições e regimes, procurando uma solução de compromisso: a cidade seria como um corpo de cidadãos preparado para a guerra, na senda da referida admiração espartana. PLATÃO reconhecia que um dos benefícios de pelejar com outras cidades era o facto de se garantir coesão social interna à sua. No Diálogo fica exposto um modelo finalista, dado que a cidade só pode perseverar na Justiça se se tomar Deus como a fonte de toda a existência e modelo de toda a perfeição. Os deuses garantem a ordem espiritual na cidade, devendo esta celebrá-los, tornando-os seus patronos e assumindo o seu culto uma religião cívica, eminentemente litúrgica, cuja hierarquia será também regulada pela lei. A ordem que um Grande Demiurgo imprimiu na alma de todas as coisas manifesta-se também na ordenação da cidade, conjunto de todos os indivíduos. Será no Livro X que o filósofo regerá a matéria religiosa, punindo com pena capital quem praticar um culto privado, quem negar a existência dos deuses, quem afirmar o desinteresse destes pelas ações humanas e quem julgar que os deuses podem ser corrompidos por benefícios. A estrutura social que subjaz à nomocracia delineada assenta num reabilitado núcleo familiar, como se o Estado fosse composto por um agregado de famílias, sendo um corpo autónomo numa estrutura política maior, cuja autoridade deve ser mantida como base da ordem social. Cada família é representada e está submetida à autoridade do proprietário do terreno atribuído – o cidadão –, diferentemente do postulado na Politeia.18 Ademais, após aquele “comunismo” de mulheres e crianças antes defendido, a ordem da Família é restabelecida dado ser vista como a única solução para combater a desordem sexual. Até porque considera nos Nomoi que o matrimónio tem como

18

Cf. MAIRE 1966: 67-70.

81

principal objetivo a procriação, sendo um contrato social de fundamentação eminentemente cívica19, merecendo a jurisdição dentro do seio familiar a particular atenção do filósofo.20 Tendo sempre no horizonte a Filosofia dos Direitos Humanos, importa focar especialmente a legislação esclavagista projetada no Diálogo, dado que nesta altura os escravos constituiriam cerca de metade da população de Atenas, cabendo na outra metade os cidadãos e, provavelmente em menor número, os metecos. Deste modo, os escravos não representariam uma real ameaça de revolta social numa situação normal, não havendo assim necessidade de adotar medidas de controlo demográfico. Seriam adquiridos em mercados ou capturados em guerra, e divididos em públicos ou privados: os primeiros não deveriam ser em grande número, ocupando-se do ensino e das crianças, mantendo a ordem pública, reparando os percursos e afins; é para os escravos privados que esta legislação é dirigida, devendo estar sob a supervisão direta dos seus senhores, vivendo na sua casa e assistindo-o nas suas ocupações.21 De acordo com o projetado, os cidadãos estavam proibidos de se ocupar do artesanato, do comércio ou do empréstimo de dinheiro a juros, pois isto levaria à sua corrupção moral, devendo somente ganhar o seu sustento do que pudessem extrair do solo, deixando aqueles ofícios para metecos ou estrangeiros mercadores. Mas tal proibição estendia-se ainda aos escravos dos cidadãos, com consequências análogas (846d, 849c e 920a), o que não tem paralelo na legislação grega. PLATÃO revelar-se-ia particularmente severo quanto ao sustento que os escravos podiam retirar do seu trabalho, devendo sempre este resumir-se ao meramente necessário para a sua subsistência. Deste modo, os escravos ocupar-se-iam da agricultura ou pastorícia na propriedade do seu senhor (806d), das lides domésticas (805e), da assistência pessoal constante do seu senhor ou dos seus respetivos filhos (805e) ou do seu ensino (808e); quando tal não fosse necessário, poderiam dispor a sua força de trabalho em obras públicas (760e, 763cd), sendo estes préstimos como que um imposto de fins públicos.22 19

Ibidem: 48.

20

Reconhece a constituição de tribunais familiares para casos de fratricídio (878de) ou se algum membro é deserdado (928e). Por

outro lado, o Estado pode intervir neste núcleo, protegendo a criança contra abusos parentais (878e) e vice-versa (923ab), resolvendo disputas quando os tribunais familiares se revelarem impossibilitados de o fazer (878de) e proibindo o culto religioso privado ou familiar (910cd). 21

Um motivo para a inexistência de distinção entre escravos agrícolas e domésticos, neste modelo aristocrático, é que o cidadão

grego comum não deveria ter poder para sustentar um grande séquito de escravos, dado que estaria muitas vezes ocupado com as exigências laborais do seu terreno, ficando dispensado de atender aos deveres públicos nas assembleias. 22

MORROW 1976: 17ss.

82

Os escravos não ficavam ligados à terra – não obstante a propriedade ser inalienável para os cidadãos –, podendo assim ser vendidos. De outro modo, ficaria facilitada a criação de uma massa homogénea ao fim de algumas gerações – os escravos seriam provenientes ab initio de diversos locais e culturas –, coletivo naturalmente mais difícil de manter submisso. Outra proposta para conservar esta classe em relativa ataraxia passa por uma justa punição do escravo, evitando-se qualquer excesso no momento ou algum ato sacrílego, pois deve-se a todo o custo evitar a hybris.23 Na verdade, estamos diante de um estatuto bicéfalo do escravo, em simultâneo objeto de posse e propriedade, mas não deixando de deter uma rudimentar capacidade jurídica.24 Quanto ao reconhecimento subjetivo do escravo, este passa pela sua integração no núcleo familiar, sendo tal inclusive celebrado aquando da sua chegada a esta unidade. Indiretamente, outro fator relevante deriva do horror tradicional que os gregos tinham ao derrame de sangue – nomeadamente ao fratricídio –, por carrear um miasma, que se estendia também ao homicídio de escravos, exigindo-se as mesmas cerimónias de purificação do ato, de matriz religiosa. Há que notar que se manteve uma mais cuidada proteção legislativa sobre os habitantes mais fracos, mesmo não detendo o estatuto de cidadãos, originando sanções mais graves quando estes fossem vitimados, particularmente em cerimónias sagradas. Mas isto é a lei religiosa. Para a civil, em diversas cidades gregas no século IV a.C. era exigido um procedimento legal a ser cumprido no caso das condenações por homicídio de escravos e de homens livres; já na lei platónica os diversos tipos de occídios de escravos eram sancionados não necessariamente com a vera punição do agente, mas antes com o ressarcimento do senhor pelo prejuízo causado, recuperando conceções arcaicas. Somente o medo de exposição que conduziu ao homicídio levaria a que o cidadão-homicida fosse julgado da mesma forma como se a vítima tivesse sido outro cidadão (872c). Mesmo o direito à autodefesa é limitado pela lei platónica: se um cidadão porventura mata outro em sua defesa, o homicídio é justificado; já se for um escravo a fazê-lo a punição é a sua morte, a não ser que a vítima o perdoe antes de falecer. Também não se considera qualquer direito de asilo para um escravo que fuja de um proprietário abusador. 23

Sobre a hybris, importando mais aos cidadãos do que aos escravos, cf. ibidem: 37ss.

24

Por exemplo, PLATÃO legisla sobre o procedimento de retoma da posse de um escravo foragido (914e) e sobre a proteção do

comprador numa compra fraudulenta de escravos (916a), procedimentos que seguem forma análoga aquando se trata de gado (914cd). Ademais, algum dano no escravo deve ser ressarcido ou compensado ao seu senhor à semelhança de qualquer outro dano nos seus bens (913a).

83

Se as leis penais da Atenas da altura se revelavam particularmente mais humanistas, por exemplo respeitando um princípio de proporcionalidade no uso do chicote, já o filósofo confere maior arbitrariedade ao executor da pena, muitas vezes condenando à morte o escravo infrator e promovendo a vindicta privada, privilegiando de forma desproporcional e assumida o cidadão. PLATÃO propugnava ainda que os escravos deviam continuar aferroados, mormente até obterem o perdão da sua vítima, o que conduzia a uma situação de indignidade contínua degradante, mesmo entre escravos. Afinal, mais do que uma sedição assente numa convenção legal, a superioridade dos senhores perante os escravos estaria naturalmente legitimada, como repetidas vezes o reforça (720ac, 808d, 966b). Aparentemente, a realidade ateniense em que PLATÃO terá vivido suscitou da sua parte as maiores críticas, pois na massa urbana os escravos eram indistintos dos cidadãos, trajando igualmente, estando submetidos a uma frouxa disciplina, havendo grande familiaridade entre escravos e senhores e inclusive igualdade entre o liberto e o seu antigo senhor, ridicularizando isto na Politeia (495e e 563b), aliás. Há que atentar, por outro lado, que certas ofensas contra a pólis, como o roubo de bens públicos, eram mais severamente punidas se perpetradas por cidadãos do que por escravos, pois com o holismo a cidadania traz também maior responsabilidade: o que para um não-cidadão é roubo, para um cidadão é traição, usualmente punida com a morte. Quanto à herança do estatuto de escravidão, para o Ateniense uma criança só é livre se ambos os pais forem livres; basta um só ser escravo para que o descendente também o venha a ser. Este condicionamento não teria paralelo com as legislações da altura, muito mais liberais, mas que podemos melhor compreender dado o programa de eugenia positiva defendido por PLATÃO já na Politeia, mantendo assim a “pureza” da classe dos cidadãos. Naturalmente que, dada a sua conceção de estrutura social, os escravos emancipados só poderiam ocupar um novo lugar entre os metecos, como aliás era comum às legislações da época. Todavia, os libertos ainda estavam sujeitos a inúmeras condutas e subordinações para com o seu antigo senhor (915ac), como por exemplo a inovação platónica de impossibilitar a reunião de mais riqueza que aquele, disposições que se desrespeitadas seriam puníveis com a morte. Permitindo ainda que os libertos se mantivessem nos antigos lotes por um período de 20 anos – limite que depois poderia ser levantado –, o filósofo concebe um período de experiência no qual o Estado poderia depois selecionar quais os libertos em que teria interesse que ficassem. Na legislação grega a distinção entre libertos e escravos era usualmente só de ordem 84

nominal, pois na prática acabavam por estar sujeitos às mesmas implicações, dados aqueles especiais deveres supracitados dos libertos. Logo, a hipótese de conceder a liberdade aos escravos servia na prática para meramente alimentar esperanças e fomentar um melhor controlo sobre uma relativa abolia social. Em suma, e reforçando que a legislação platónica parte do modelo ateniense do seu tempo, podemos concluir que (1) o filósofo é notoriamente menos liberal no que toca aos escravos de descendência mista, que (2) o estatuto de liberto é ainda mais denegrido e legalmente inferiorizado e que (3) há uma tendência gritante para uma maior severidade na punição dos escravos. Assim, o fundador da Academia atribui muito mais autoridade aos senhores no exercício do seu poder sobre os escravos, acentuando a distinção entre as duas falanges sociais. PLATÃO propugnava reinstituir a potestade despótica de uma Atenas antiga, ignorando as atenuantes desde então desenvolvidas e tendo sempre em mente escravos de origens não-helénicas25, sendo esta uma reação sintomática que sintetiza o seu totalitarismo e nomocracia e que, desta arte, o descredibiliza particularmente no seio da Filosofia dos Direitos Humanos. Tudo somado, e não descurando o referente legislativo ateniense, o modelo-maior continua a ser Esparta, sendo que o “Estranho Ateniense” mantém-se tão anti-democrático como o “SÓCRATES” da Politeia. O derradeiro modelo que o filósofo nos lega é assim o de uma incontestada oligarquia moderada.26

4. Repristinando a leitura de KARL POPPER

Dando agora o referido e necessário salto temporal, eis que em meados do século XX quatro eméritos intelectuais se insurgiram contra a tradicional leitura da política platónica: um historiador, ARNOLD TOYNBEE (em A Study of History); um académico de Clássicas, RICHARD CROSSMAN (com Plato Today); um lógico, BERTRAND RUSSELL (no seu Philosophy and Politics); e um teórico da ciência, KARL POPPER.27 Não sendo despiciendos os pontos em comum entre estes Autores, seguiremos mais de perto os ecos encontrados em POPPER, nomeadamente em The Open Societies and its Enemies

25

Ibidem: 124-129.

26

Cf. Laws (trad. BURY) Vol. I: XV-XVI.

27

UNGER 1949: 91ss.

85

(Vol. I) – The Spell of Plato, onde versa especialmente sobre a Politeia e a teorização nesta de um arrested state.28 Temos assim que em PLATÃO se coadunam dois tipos de pensamentos: uma ideia de historicismo, com leis históricas e determinadas; e uma atitude de social engineering, em que se recorre à Política como um instrumento, uma tecnologia social, alterando ou determinando o Homem o seu destino histórico. O filósofo vê a Justiça como techné na realização do Bem da cidade, coadunação que o leva a erigir teorias políticas com fins para-utópicos; daí o desenho de um Estado ideal, perfeito, que impeça a degeneração, baseando-se num modelo primitivo de geração. O filósofo conclui que a força motriz das revoluções políticas assenta no antagonismo dos interesses das classes, fomentando a desordem interna. Em muito contribui, nomeadamente, a sedição da própria classe dominante.29 A origem da sociedade residiria numa convenção, num contrato social que é também natural, dada a natureza social do Homem. Convenção que deriva da imperfeição do homem individual. Destarte, só se atingirá a plenitude através do Estado, desenvolvendo-se assim o conceito holista da pólis e a prossecução do regime ideal, do habitat social perfeito que impeça a degeneração: a sociedade e o indivíduo tornam-se interdependentes, como observámos. Na perspetiva popperiana, PLATÃO procurava a unidade perdida do coletivismo tribal, do holismo primitivo. A degeneração do Estado principia com a degeneração dos indivíduos – nomeadamente os da classe dominante –, originada nas suas almas; e se a degeneração moral está intimamente conexionada com a degeneração racial, facilmente se compreende o quão aflorado está o naturalismo no historicismo platónico. Representando o Estado enquanto organismo, a história da derrocada do regime perfeito não será mais do que o relato da degeneração biológica (da Mulher e) do Homem.30 Para o filósofo austro-britânico, o dualismo fundamental metafísico do fundador da Academia tem a sua origem no desejo do filósofo ateniense de conseguir explicar o contraste entre o desprezível estado do mundo real e a perfeição da sua sociedade ideal, o dualismo entre revolução e estabilidade sociais. A cessão de todas as mudanças políticas seria almejada com o regresso ao estado natural, reerguendo a sociedade perfeita primitiva, historicismo que levou o Ateniense a desenvolver uma engenharia de 28

POPPER 1945: 19ss.

29

Ibidem: 7ss.

30

Ibidem: 35ss.

86

índole totalitária. Se o propósito nominal da Politeia é tratar da Justiça e esta está conexionada com o bem da pólis, então temos aqui a polarização que legitima o ataque à condição humana com o Bem Comum como justificação. Deste modo PLATÃO lançou um ataque direto ao conceito de Justiça associado a Igualitarização, propugnando existir homens naturalmente escravos e outros inatamente aptos para governar: o combate à igualdade moral principiaria com o combate à igualdade biológica. Advogando tratar de forma igual o que é igual – os cidadãos – e de forma diferente o que é diferente – mulheres,

metecos,

escravos



PLATÃO

naturalisticamente

fundamentou

a

desigualitarização. POPPER argumenta que o recurso a uma elaborada metáfora para expor o racismo – a descrita Teoria dos Metais – demonstra o quão consciente estava o fundador da Academia de ir contra as tendências democráticas e humanitárias da Atenas da sua época, numa fase em vias de abolir a escravatura. A educação seria uma verdadeira doutrinação, apagando a socrática crítica individual, com o monopólio da classe dominante e o recurso à censura. É por isso que os níveis mais avançados de ensino, o acesso aos Grandes Mistérios, às Ideias, só estão disponíveis para quem está na velhice, quando tendencialmente se já não tem força para lutar contra o status quo e se almeja atingir o posto de sábio-guardião. PLATÃO assegurava a sua estabilidade política através de um controlo institucionalizado da Educação na sucessão da liderança política, jogando também a religião o seu papel, perfeitamente instrumentalizada no plano político, asseverando o filósofo que os deuses punem todos aqueles que se opõem aos desígnios da cidade. A supremacia do Filósofo-Rei revela-se absolutista: deve ser ele o fundador da cidade e o primeiro legislador, porque é o mais apto a vislumbrar a Ideia da cidade perfeita; todavia, para a manutenção da estabilidade social, que não precisaria assim de quaisquer mudanças, também deve ser o filósofo/guardião a dominar. No campo educativo, promove a criação de uma elite de sábios, circunscrita aos governantes, pois afinal a desnecessidade da crítica individual levaria ao abandono da filosofia para os restantes. POPPER julga que a verdadeira razão é meramente de eugenia positiva, levando ao apuramento de uma linha “dos mais excelentes dos governantes”. Uma cidade por eles preconizada, constituída e governada tenderia a ser memorialista, legalista e a basear-se na experiência de vida de cada um. O facto de só os anciãos

87

poderem questionar a lei, em detrimento dos jovens, leva a que a sociedade se feche, tornando-se estática porque contrária ao diálogo intergeracional.31 É por estas razões que KARL POPPER induz ser a Politeia um tratado político que visava a reforma de Atenas na época: não só por atender a críticas na educação e na política da cidade, mas por apontar como naturais governantes os filósofos saídos da Academia, escola aristocrática de saber, e como Filósofo-Rei por excelência o próprio PLATÃO. Os ensinamentos socráticos há muito desapareceram, com a humildade do filósofo e a sua esperança de atingir o conhecimento dominados pelas aspirações de poder platónicas.32 Posto isto, e não obstante o eventual falibilismo, a leitura popperiana é decerto um evidente suporte de peso da nossa crítica.

5. O areópago de molde platónico e a (falta de) liberdade de expressão

A convivência social é mormente limitada por tabus religiosos e sociais: somos constantemente levados a crer que ocupamos um lugar pré-determinado numa estrutura maior, sentindo que é essa a “ordem natural das coisas”. Melhor o expressa o singular e nada cândido PANGLOSS quando teoriza que “[e]stá demonstrado […] que o que existe não pode ser diferente; porque tendo tudo isto sido criado para um fim, tudo é necessariamente para o melhor dos fins.”33 É esta, no fundo, a matriz de uma ordem conservadora, a qual toma como um dos eixos primordiais a suspensão da liberdade de exprimir pensamentos e opiniões, liberdade que no fundo representa a extensão da qualidade de pensar. “Pensar” esse que, no nosso quadrante cultural, remonta tradicionalmente ao exercício da crítica socrática, precisamente a crítica que o mais popular dos seus discípulos visou obnubilar. Cerzidos alguns significativos topoi de compreensão, podemos cogitar agora adequadamente o lugar (ou sua ausência) de uma proto-liberdade de expressão no seio do pensamento político platónico. Pensamento este que julgamos de facto melhor alcançável quando perspetivamos o Filósofo-Rei em analogia com os ditadores do século XX – HITLER, MUSSOLINI, STALIN, etc. –, dada a fé que os respetivos seguidores têm nas suas ideias e na defesa do Bem Comum que propõem. Apud ALFRED HOERNLÉ, como ponto de comparação encontramos desde logo o comum respeito pelo princípio da 31

Cf. Leis (trad. GOMES): 14.

32

POPPER 1945: 120ss.

33

VOLTAIRE 1759: 8.

88

autoridade deste “líder espiritual” que personifica a vontade popular. Também o Filósofo-Rei não consulta os cidadãos, perpetua a sua posição, preparando inclusive ideologicamente a sua classe de governantes: conta com os seus “auxiliares”, cidadãos de segunda linha que coercivamente mantêm o seu regime, à semelhança do que os ditadores modernos fizeram com os respetivos Partidos. Foi ainda com especial ênfase na educação que os totalitarismos modernos asseguraram uma especial estabilidade, moldando cidadãos cuja formação cívica estava orientada para a sua ideia de Bem da Cidade/Partido/Nação, recorrendo igualmente à censura, à propaganda e à instrumentalização da Arte. É ainda significativo referir que três ideólogos do NacionalSocialismo – designadamente THEODOR VON DER PFORDTEN, HANS F. K. GÜNTHER e H. A. GRUNSKY – se fundamentaram na Politeia para asseverar as respetivas teses da necessidade de um Filósofo-Rei para guiar a Alemanha, da supremacia eugénica ariana e da correlação da alma do cidadão com a do Estado34, cuja maior degeneração recairia no judaico-bolchevismo. Em suma, ao ser adverso à Democracia, PLATÃO defendeu uma sociedade racista e eugénica, alheia à mudança e à abertura ao exterior. Podemos acusar o filósofo de na Politeia promover um sistema de castas, subordinado à vontade política dos filósofos, modelo que facilmente caminha para o autoritarismo, projeto já deveras elaborado nos Nomoi, enriquecido pela própria experiência política do filósofo (e por isso mais importante) e pela fundação da sua escola filosófica de nítidas ambições políticas, a Academia. Por muito que repetidamente plantada, revela-se uma semente bem amarga, a deixada para a Filosofia dos Direitos Humanos, ao se cobrirem os moldes proto-nazis do pensamento político platónico. Centrando-nos no culminar tópico desta exposição, importa observar como (significativamente) JOHN MILTON – no seu conhecido discurso sobre a liberdade de expressão Areopagítica – atenta no facto de que PLATÃO elaborou no Diálogo Nomoi “uma série de decretos para os seus petulantes burgomestres[,] que aqueles que em tudo o mais o admiram prefeririam ver enterrados e procuram desculpar como resultado de alguma noite de farra na Academia.”35 De acordo com esta disposição, o Ateniense não toleraria qualquer tipo de conhecimento para além do já perpetuamente sedimentado, assente maioritariamente em costumes práticos e numa censura desmesurada a qualquer escrito que seria protagonizada pelos juízes e demais agentes da lei. 34

HOERNLÉ 1938: 21ss.

35

MILTON 1644: 54.

89

Tal programa foi elaborado no estrito seio da sua teoria política, pois se realizado sobre si próprio seria tido como transgressor, dadas as discussões assaz avançadas que corporizavam os seus Diálogos e o notório conhecimento das obras de autores “infamantes”, designadamente poetas e tragediógrafos. MILTON considera que o filósofo teria consciência das limitações do controle social propugnado, dado que seriam necessários um exército de agentes e demais mecanismos de disciplina e controle opressivos36 (podendo aqui de imediato chamar-se à colação o teorizado por MICHEL FOUCAULT) para levar a cabo semelhantes censuras. Confessamos que esta defesa de um eventual venire contra factum proprium não nos convence. A teorização de uma engenharia que, idealizada, deveria ser seguida o mais fielmente possível foi desde o início assumida. Não ignorando os variadíssimos contributos do pensamento platónico em numerosos campos da Filosofia, é por claro culto à sua imagem que se intenta mascarar um programa que, no fundo, é passível de ser defensável face à época em que viveu e aos motivos que o catalisaram, procurando o Ateniense dar a sua resposta a um problema com o qual pugnou toda a vida. O que protege um julgamento atual sobre factos passados da acusação de anacronismo é precisamente a tolerância com que devem ser olhadas a História e a Filosofia, até porque a segunda molda a forma mentis da primeira. Vale então a pena olhar uma vez mais para a engenharia em mãos e procurar que lições podem ser aprendidas com a distopia platónica, designadamente no que toca à instrumentalização dos canais e dos agentes de comunicação. Encontramos por exemplo o culminar de uma operação ideológica – extensivamente justificada – naquela mentira piedosa, útil, perpetrada pelo Filósofo-Rei/Guardião/Legislador, enganando cidadãos e inimigos, feita através de propaganda. Em que não só a massa dos governados seria ludibriada, pois após algumas gerações os próprios governantes estariam persuadidos disto, estando inclusive naturalmente aptos para governar naqueles moldes. Este é precisamente o fim das muitas narrativas que intentam mascarar e fundamentar a Realpolitik, a mesma razão pela qual “hoje”, como “ontem”, se limita a liberdade de expressão, para que não surjam vozes dissonantes com o discurso oficial. É também deveras interessante mirar a função informativa dos escravos nos Nomoi, dado consistirem num ambíguo estrato da sociedade ao não serem considerados indivíduos, como foi corrente no Mundo Antigo. Contudo, podiam ocupar um lugar

36

Ibidem: 54-57.

90

muito especial no seio da engenharia social, se se utilizasse a sua qualidade comunicativa de acordo com os fins previstos. Assim, para além da emancipação privada, é-lhes reconhecida uma pública que ocorreria com a prestação de certos serviços, por exemplo delatando a apropriação de tesouros enterrados (914a) e a negligência parental (932d). Nos Nomoi prevê-se também uma capacidade legal rudimentar que permite ao escravo fazer acusações perante magistrados em reduzidíssimas situações, defendendo os seus bens (761). Mas é ainda mais significativo que se aceite que um escravo possa atuar enquanto testemunha, pois em tribunal é dada grande relevância a esta figura, sendo o falso testemunho punido com a morte, costume que PLATÃO manteve (937ab). O filósofo propugnou então uma prática inovadora, permitindo o testemunho de livre vontade, ao invés de exclusivamente sob tortura, como era comum à época em outras urbes. Por outro lado, a política platónica promovia o uso de escravos como informadores, através da oferta de presentes ou dinheiro, mantendo assim os cidadãos sob controlo. Pode-se pois facilmente deduzir a utilidade funcional desta inovadora medida no processo judicial. Observamos assim que, por analogia com o erroneamente defendido face à educação e desempenho de funções pelas mulheres, estas inovações introduzidas aos poderes-deveres

dos

escravos

não

consistem

num

reconhecimento

da

sua

individualidade, mas antes na instrumentalização prática de um recurso objetivo que melhor serve ao controlo da cidade. O domínio informativo sobre esta é de tal ordem que se pode inclusive recorrer a coisas não pertencentes à ordem do Humano se tal resultar no benefício do pólo comunal. A engenharia aqui projetada, somando já vinte e quatro séculos, revelou-se pouco ficcional e deveras praticável, não só pela experiência/realização das ideias totalitárias da Politeia, mas também pela memorável criação do suporte educacional e da instrumentalização informativa que permite perpetuar a matriz dos Nomoi através da Academia. Tão frutífera que ainda hoje convivemos com ela, sendo sempre com grande esforço que se desconstroem os discursos subjacentes à hegemonia político-cultural (ANTONIO GRAMSCI). PLATÃO, enquanto Homem do seu Tempo e para tal desenvolvendo as respostas que melhor ajuizava, revelou especial sageza ao se aperceber do valor central que a Educação e a Comunicação têm no seio de qualquer ordem social, lição que mantém hoje toda a validade. Contudo, julgou por bem ir contra os ventos de mudança pelos 91

quais passava Atenas, e instrumentalizou e minou os melhores legados da Antiguidade Helénica, a crítica socrática e a valoração seminal da Liberdade e da Democracia. De acordo com a linha elíptica que tantas vezes pauta o rumo da História, como que num fado controlado pelas Moiras, forneceu as bases teóricas que inspiraram o grande trauma do século XX, o qual foi por sua vez o catalisador original para o desenvolvimento da Filosofia dos Direitos Humanos. Uma contribuição que dificilmente pode ser considerada “meritosa”.

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94

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