A DIVERSIDADE CULTURAL NO TEMPO DE AGORA: UMA LEITURA FEITA A PARTIR DE DOCUMENTOS DA UNESCO

May 23, 2017 | Autor: Gabriel Chati | Categoria: Unesco, Culture, Cultural Development, Diversidade Cultural, Cultura E Desenvolvimento
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A DIVERSIDADE CULTURAL NO TEMPO DE AGORA: UMA LEITURA FEITA A PARTIR DE DOCUMENTOS DA UNESCO Gabriel Medeiros Chati1 Nadja de Carvalho Lamas2 Resumo: Nesse trabalho objetivou-se discorrer sobre o conceito de diversidade cultural a partir da leitura crítica de documentos elaborados pela Organização Mundial das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura (UNESCO). Foram expostas as características estruturais, a metodologia de abordagem e conceituados cultura e diversidade cultural no âmbito dos documentos analisados. Na sequência destacou-se o contexto em que operam diversidade e cultura e sua relação com o desenvolvimento. Buscou-se através desta reflexão discorrer sobre o atual tratamento internacionalmente aceito e promovido acerca da diversidade cultural demonstrando, ainda que parcialmente, a necessidade de se estudar seus efeitos e comportamentos atuais a fim de criar ou manter as condições para que se cristalize como direito. Palavras-chave: diversidade cultural; cultura; desenvolvimento cultural. Entendida como elemento agregador, a diversidade cultural está na pauta de discussão de instâncias decisórias de estado e normativas de órgãos reguladores ao redor do globo. Por conta de esse tema ser emergencial e igualmente complexo, teve-se como objetivo discorrer sobre o conceito de diversidade cultural a partir da leitura crítica de documentos elaborados pela Organização Mundial das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura (UNESCO). O referido órgão estabelece com propriedade espaços de discussão qualificados e produz documentos importantes sobre e para a reflexão acerca da diversidade cultural e seu papel estratégico no estabelecimento de políticas culturais locais e supranacionais. A fim de identificar a visão institucional acerca do assunto, os seguintes documentos portadores desse discurso foram analisados: Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural (UNESCO, 2001), a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (UNESCO, 2005) e o Relatório Mundial da 1 Mestrando em Patrimônio Cultural e Sociedade – UNIVILLE; bolsista CAPES/MINC; [email protected] 2 Professora titular da UNIVILLE; Doutora em Artes Visuais pela UFRGS; [email protected]





UNESCO: Investir na diversidade cultural e no diálogo intercultural (2009)3. A metodologia utilizada para a realização da análise se concentrou na leitura investigativa relativa ao assunto presente nos documentos supracitados. Foi respeitada sua ordem cronológica de produção e publicação com a intenção de verificar o processo de construção conceitual sobre a diversidade cultural e sua trajetória na última década dentro da lógica desta Organização. No entanto, a exposição do tema e seus desdobramentos, foram agrupados por uma questão de clareza argumentativa. O ponto inicial desta investigação foi o documento sintético da Declaração, que serviu de base da análise que leva em conta a cronologia da produção da reflexão da UNESCO. Entretanto, antes da abordagem direta à Declaração, entende-se ser importante discorrer sobre o conceito de documento aqui utilizado. Nessa matéria torna-se oportuna a leitura de Ulpiano de Meneses sobre a função e operação dos documentos enquanto portadores de significado. Para o referido autor, antes de mais nada, o “documento é um suporte de informação” (MENESES, 2005). Sua leitura avança para além das características conceituais e observa que “o documento pode fornecer informações jamais previstas em sua programação” (MENESES, 2005). É a partir desse prisma que se pauta a reflexão proposta, uma vez que se entende que a análise do processo de construção conceitual dos documentos aqui avaliados é tão importante quanto as teses por eles defendidas. Ulpiano destaca ainda que o documento “não tem em si sua própria identidade” (MENESES, 2005), e de maneira conclusiva, defende acerca do processo de análise dos mesmos do ponto de vista do historiador, o seguinte: É, pois, a questão de conhecimento que cria o sistema documental. O historiador não faz o documento falar: é o historiador quem fala e a explicitação de seus critérios e procedimentos é fundamental para definir o alcance de sua fala. Toda operação com documentos, portanto, é de natureza retórica. (MENESES, 2005, p. 28)

Antes mesmo de discorrer sobre a construção conceitual sobre o temário central que é a diversidade cultural, valemo-nos da análise estrutural de cada documento a fim de esclarecer parcialmente seu compromisso, função e alcance. Quando da leitura da Declaração, pode-se perceber que, até mesmo por sua relação etimológica intrínseca de revelação, apresenta-se como espécie de conclamação global à emergência do assunto. 3 No desenvolvimento do texto tais documentos foram identificados simplesmente como Declaração, Convenção e Relatório, respectivamente.



Documento sintético e de estrutura relativamente simples – tópica, composto basicamente por artigos claros e diretos – o primeiro objeto de análise é espécie de chamado por mobilização mundial pela diversidade cultural. Apesar de enxuto, sua abrangência, como se pode presumir quando o Órgão o qualifica como universal, é de fato significativa e se aproxima da árdua e quiçá inalcançável tarefa de considerar os direitos culturais de todos os povos da Terra. A estrutura do segundo objeto analisado, considerando também que se passaram quatro anos da publicação do primeiro, é nitidamente mais complexa. A Convenção tem uma preocupação em conceituar os termos que serão utilizados ao longo de sua construção de maneira pontual e com certa rigidez. Novamente recorre-se à análise sobre a construção etimológica e semântica para a qualificação deste documento; convenção, pode ser definida como “acordo sobre determinada atividade, assunto etc., que obedece a entendimentos prévios e normas baseadas na experiência recíproca”4. Para finalizar essa etapa descritiva da estrutura dos documentos, constatou-se que o Relatório, entre outras características, é uma espécie de balanço parcial sintetizado. Para ilustrar isso destacamos um trecho de sua introdução: “o Relatório Mundial propõe-se a fazer uma resenha das novas perspectivas abertas pela análise dos desafios da diversidade cultural” (2009, p. 2). No Relatório podemos encontrar “vetores orientadores à ação” que já indica uma intenção, pouco clara, em estabelecer ferramentas para o campo da diversidade, como veremos adiante. Cultura: delimitação e campo de operação Por questões metodológicas e com o intuito de construir paulatinamente a abordagem ao conceito de diversidade cultural, em primeira instância, entendeu-se ser importante analisar o conceito de cultura propriamente. No preâmbulo da Declaração discorre-se necessariamente sobre a visão da Organização em relação à cultura, tida como o “conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que abrange, além das artes e das letras, os modos de vida, as maneiras de viver juntos, os sistemas de valores, as tradições e as crenças” (2001, p. 1). Considerar a cultura como conjunto complexo da produção subjetiva e material humanas, suas espacialidades e inter-relações, bem como sua distinção em relação à 4 Antonio Houaiss e Mauro de Salles Villar. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Ed. Objetiva, 2001, p. 826.



arte, constituiu-se em enorme avanço para o entendimento da cultura como processo. Vale ressaltar que se atualmente essa leitura é tida como universalmente aceita, levando-se também em conta a contribuição de diversas escolas do pensamento como as ciências sociais e a antropologia para essa expansão conceitual, o documento contribuiu de maneira significativa para a consolidação deste prisma de análise. É oportuno citar a leitura de George Yúdice que, no contexto global atual, considera a cultura um recurso: O papel da cultura expandiu-se como nunca para as esferas política e econômica, ao mesmo tempo que as noções convencionais de cultura se esvaziaram muito. (...) talvez seja melhor fazer uma abordagem da questão da cultura de nosso tempo, caracterizada como uma cultura de globalização acelerada, como um recurso. (...) a cultura está sendo crescentemente dirigida como um recurso para a melhoria sociopolítica e econômica. (YÚDICE, 2004, p. 26)

Essa posição da cultura como recurso disponível, por vezes utilitária em prol do desenvolvimento social e econômico, consolida-se e permeia a Convenção. Em termos de conceito, é esse posicionamento que constrói o corpo do referido documento. Ademais, vê-se que a Organização não discorre muito sobre o que seria cultura propriamente, mas destaca seu papel em campo quando defende ser necessário: “incorporar a cultura como elemento estratégico das políticas de desenvolvimento nacionais e internacionais (...) com sua ênfase na erradicação da pobreza” (2005, p. 2). Além de defender a inserção da cultura na composição das estratégias de gestão, reitera seu caráter dinâmico ao afirmar que “a cultura assume diversas formas através do tempo e do espaço”. (2005, p. 2). Do teor do Relatório, pode-se dizer que em relação à cultura, o conceito se mantém amplo e complexo. Em destaque o aspecto indissociável da cultura e sua relação com a criatividade humana: “Cultura” tem dois significados diferentes e, não obstante, absolutamente complementares. Em primeiro lugar, é a diversidade criativa plasmada nas “culturas” específicas, com as suas tradições e expressões tangíveis e intangíveis únicas. Em segundo lugar, a cultura (agora no singular) alude ao instinto criativo que se encontra na origem da diversidade de culturas. (2009, p. 8)

Considerando a dinâmica da cultura, reiterada como processo, novamente o destaque fica por conta de como ela opera, bem como para o balanço da mudança parcial no foco desta Organização ao lidar com este elemento:

A cultura é entendida mais como processo: as sociedades vão-se modificando de acordo com os caminhos que lhes são próprios. Se, durante muito tempo, a preocupação da Organização se centrou na salvaguarda de locais, práticas e expressões culturais sob risco de desaparecer, agora deve aprender-se também a acompanhar a mudança cultural de modo a ajudar os indivíduos e os grupos a gerir mais eficazmente a diversidade. (2009, p. 4)

Essa breve análise do conceito de cultura contido nos três documentos base, possibilita avançarmos com a reflexão agora focada na construção do conceito de diversidade cultural que os permeia. Reflexões sobre o conceito de diversidade cultural Preocupa-se neste momento em fazer a análise do processo de composição e definição de diversidade cultural. Foi curioso perceber que a Declaração, com seu caráter predominantemente conclamatório, concentra-se em associar a diversidade cultural aos direitos da humanidade e não em conceituá-la. No artigo quarto aborda a preservação como dever e direito humano e a relaciona ao exercício da liberdade: “A defesa da diversidade cultural é um imperativo ético, inseparável do respeito à dignidade humana. Ela implica o compromisso de respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais, em particular os direitos das pessoas que pertencem a minorias e os dos povos autóctones” (2001, p. 3). No quinto artigo reitera o direito à cultura como direito humano universal que alimenta e contribui diretamente na tentativa de promover a manutenção da diversidade quando defende que “Os direitos culturais são parte integrante dos direitos humanos, que são universais, indissociáveis e interdependentes” (2001, p.3). O documento é um momento de reforço e defesa da existência da diversidade para a Organização, mas não tem em si um teor subjetivo tão denso sobre o assunto, visto que primariamente objetiva consolidar as interfaces da diversidade cultural com outras áreas do desenvolvimento humano e seu caráter universal. O grau de comprometimento da UNESCO e sua linha de ação a fim de interferir nas políticas culturais ficam claros quando destaca sua intenção em “promover a incorporação dos princípios enunciados na presente Declaração nas estratégias de desenvolvimento elaboradas no seio das diversas entidades intergovernamentais”. (2001, p. 4). A diversidade cultural já é associada ao desenvolvimento; não como propulsora e sim como elemento a ser integrado às políticas, mais como um direito a ser considerado nas estratégias de desenvolvimento.



Em ordem cronológica a análise dos documentos publicados pela UNESCO nessa última década, chegamos à Convenção. Deste documento de estrutura mais complexa, com peso de compromisso entre as partes que o firmam, extraiu-se basicamente a definição de diversidade das expressões culturais nele exposto: Refere-se à multiplicidade de formas pelas quais as culturas dos grupos e sociedades encontram sua expressão. Tais expressões são transmitidas entre e dentro dos grupos e sociedades. A diversidade cultural se manifesta não apenas nas variadas formas pelas quais se expressa, se enriquece e se transmite o patrimônio cultural da humanidade mediante a variedade das expressões culturais, mas também através dos diversos modos de criação, produção, difusão, distribuição e fruição das expressões culturais, quaisquer que sejam os meios e tecnologias empregados. (2005, p. 4).

Nessa definição, bastante ampla e em alguns aspectos generalista, além de qualificar conceitualmente o termo, tem-se uma atenção especial para a maneira que a diversidade se dá. Em termos de agentes, quando se fala de grupos e sociedades, podemos entender que a definição é alusiva a todos os povos da Terra. No que tange o objeto, também se pode afirmar que o documento não se preocupa muito em restringi-lo ao descrevê-lo como expressão cultural, ao contrário, expande sua possibilidade de significação. Quando reconhece que as tecnologias abrem novas possibilidades de suporte, tanto na etapa de criação quanto nas de difusão, distribuição e fruição, a UNESCO dá indícios da tendência à hibridação das expressões. Destaca-se ainda a associação da diversidade como constituinte, transmissora e mantenedora do patrimônio cultural da humanidade. Quanto à abordagem do Relatório, pode-se destacar seu caráter esclarecedor e intencionalmente alarmante ao expor o tema: A diversidade cultural é, antes de mais nada, um fato: existe uma grande variedade de culturas que é possível distinguir rapidamente a partir de observações etnográficas, mesmo se os contornos que delimitam uma determinada cultura se revelem mais difíceis de identificar do que, à primeira vista, poderia parecer. A consciência dessa diversidade parece até estar sendo banalizada, graças à globalização dos intercâmbios e à maior receptividade mútua das sociedades. Apesar dessa maior tomada de consciência não garantir de modo algum a preservação da diversidade cultural, contribuiu para que o tema obtivesse maior notoriedade. (2009, p. 3).

Em um panorama global, numa economia que caminha em direção às trocas planetárias de bens, serviços e experiências praticamente irrestritas, o documento é



enfático e maduro ao estabelecer a diversidade cultural como processo deflagrado, tratando-o como fato. É evidente que essa maior troca promove um maior conhecimento recíproco entre culturas, transforma-as por adição e hibridação5, no entanto, o documento é conciso e direto ao alertar para o princípio de banalização da diversidade associado à intensificação e aumento exponencial da circulação de bens culturais com identidade cultural diversificada. Na medida em que se verifica uma ocorrência mais intensa e em maior espectro desses processos de troca e reciprocidade, seria importante avaliar esses processos com extrema atenção para se minimizar as relações desiguais e assimétricas. Nesse contexto Canclini observa que “a hibridação não é sinônimo de fusão sem contradições” e atenta para àqueles que têm a cultura como objeto de análise: “Temos que responder à pergunta de se o acesso à maior variedade de bens, facilitado pelos movimentos globalizadores, democratiza a capacidade de combiná-los e de desenvolver uma multiculturalidade criativa” (CANCLINI, 2008, p XVIII). Observa-se, em suma, que a maior oferta e circulação de bens multiculturais não são garantia de diversidade. Poderia-se falar mesmo de uma fetichização do bem cultural, ou seja, produtos que carregam traços de culturas específicas, que se travestem em bem representativo daquela cultura. A mercantilização de bens culturais de massa, ao contrário de fortalecer ou fazer circular em maior espectro valores de determinada cultura, contribui para a diluição desses valores quando se configura como experiência alegórica. São verdadeiros produtos-simulacro que prometem uma fruição do exótico, claramente valendo-se da estratégia em fazer da diversidade cultural uma experiência vendável. O contexto e as características do terreno: globalização e mercado Além da contribuição conceitual acerca da cultura e da diversidade, a Declaração promove a reflexão sobre a conjuntura em que opera a cultura, contextualizando-a: Considerando que o processo de globalização, facilitado pela rápida evolução das novas tecnologias da informação e da comunicação, apesar de constituir um desafio para a diversidade cultural, cria 5 Justo citar a posição de Néstor Canclini para qualificar esses processos de hibridação, que de maneira reduzida, mas operacional, entende que seriam: “processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (2008, p. XIX).

condições de um diálogo renovado entre as culturas e as civilizações. (2001, p. 1).

É interessante constatar que a visão deste documento inclui a observação dos meios de troca cultural, levando em conta a dinâmica global em que ela acontece. É clara a intenção de superar a visão dicotômica entre o preservacionismo estanque e a intensificação das relações entre culturas; é mais importante, no prisma da UNESCO, ver o avanço tecnológico como ferramenta pela diversidade cultural, mesmo quando este, em primeira análise, pareça desintegrador. A UNESCO, nessa etapa preliminar de reflexão, presume que a livre e irrestrita manifestação das culturas nos diferentes meios e suportes, estaria associada à garantia da diversidade. Isso fica claro quando defende políticas e programas que corroborem pela “livre circulação das ideias mediante a palavra e a imagem” (2001, p. 3) e conclui que “a possibilidade, para todas as culturas, de estar presentes nos meios de expressão e de difusão, são garantias da diversidade cultural” (2001, p. 4). Essa leitura, que guarda indícios da falta de maturidade à época em se avaliar os efeitos dessa circulação, pode ser relativizada e por vezes mesmo refutada. Em seu artigo sétimo, a diversidade cultural é tomada como patrimônio cultural e fonte potencial de exercício da criatividade: Toda criação tem suas origens nas tradições culturais, porém se desenvolve plenamente em contato com outras. Essa é a razão pela qual o patrimônio, em todas suas formas, deve ser preservado, valorizado e transmitido às gerações futuras como testemunho da experiência e das aspirações humanas, a fim de nutrir a criatividade em toda sua diversidade e estabelecer um verdadeiro diálogo entre as culturas. (2001, p. 4).

Esse artigo destaca ainda a importância da interatividade entre as culturas e formas de expressão culturais, que devem ser preservadas, mas potencializadas a partir da troca de experiências. Uma tradição acontece dentro de um grupo, mas se fortalece na alteridade, podendo ou não se transformar, a partir do contato com outra. A transmissão desses valores garantiria a atualização da memória e estimularia a criatividade da pessoa e seus coletivos cognatos. O principal aspecto do seu artigo oitavo é reiterar a distinção clara e inequívoca que se deve ter ao lidar com bens culturais e outros bens de consumo. Quando reconhece que os objetos de cultura “são portadores de identidade, de valores e sentido”, e afirma que “não devem ser considerados como mercadorias ou bens de



consumo como os demais” (2001, p. 4). Atualmente esse é um dos aspectos mais conflitantes

nas

trocas

comerciais

internacionais.

Independentemente

dos

desdobramentos que se terá das disputas mercantis em outros âmbitos como o da Organização Mundial do Comércio, é estratégico e conveniente utilizar essa posição da UNESCO quando se trata de regular a indústria cultural. Ainda sob esse aspecto delicado, ao longo de seus artigos décimo e décimo primeiro a Convenção explana sobre o panorama do mercado globalizado e suas especificidades quanto à criação, circulação e consumo de produtos culturais. A Organização reflete sobre a competitividade internacional da produção cultural quando diz que “é necessário reforçar a cooperação e a solidariedade internacionais destinadas a permitir que todos os países estabeleçam indústrias culturais viáveis” (2001, p. 4). Acaba assim reconhecendo, indiretamente, que hoje há um fluxo assimétrico quando se trata da produção e consumo de bens culturais no mercado internacional. Reconhece ainda que há a necessidade de interação entre as políticas de Estado e o mercado pela garantia de uma troca mais equilibrada, já que “As forças do mercado, por si sós, não podem garantir a preservação e promoção da diversidade cultural, condição de um desenvolvimento humano sustentável” (2001, p. 4). A Convenção trata no artigo catorze, Cooperação para o Desenvolvimento, o papel e operação do mercado de bens culturais. Entre outros aspectos, determina o “intercâmbio de informações, experiências e conhecimentos especializados, assim como pela formação de recursos humanos”, bem como a “transferência de tecnologias e conhecimentos mediante a introdução de medidas apropriadas de incentivo, especialmente no campo das indústrias e empresas culturais” (2005, p. 9). Fica clara a atenção especial que o Órgão dá à produção cultural de massa, preocupada em diminuir as diferenças das condições de produção, aumentar a qualidade e a circulação de bens e mercadorias. Como a Convenção vale-se muito do que foi outorgado anteriormente pela Declaração, mesmo tendo o status de acordo entre partes, acaba por não acrescentar muito na reflexão crítica sobre a globalização. Destaca, no entanto, a partir de um de seus objetivos, numa atitude de reflexão profunda, que “a cultura encontrou um lugar de destaque na agenda política a partir da preocupação com a necessidade de se humanizar a globalização” (2005, p. 24).



O conteúdo do Relatório trata com fluidez e destaque o panorama da diversidade cultural no âmbito da globalização, seus percalços e potencialidades. Não obstante o exercício constante e recorrente de reflexão sobre a diversidade, nesse contexto destacase que a leitura em formação do Órgão é uma visão aberta e ampla. A UNESCO desvela seu olhar: Hoje os processos de globalização contribuem para que se produzam encontros, importações e intercâmbios culturais de modo mais sistemático. Esses novos vínculos transculturais podem facilitar consideravelmente o diálogo intercultural. Repensar as nossas categorias culturais, reconhecendo as múltiplas fontes da nossa identidade, contribui para deixar de insistir nas diferenças e, em seu lugar, prestar atenção à nossa capacidade comum de evoluir mediante a interação mútua. (2009, p. 9)

As trocas intensificam-se através de suportes e meios nunca antes imaginados, a principal preocupação da UNESCO é de que se estabeleça sempre o diálogo nessas interfaces para a garantia da diversidade através da inter-relação e reciprocidade. Adiante, abordaremos aspectos da relação que o Órgão faz da diversidade cultural com o desenvolvimento humano e a trajetória da visão crítica dessa vinculação desde a Declaração até a atualidade. Diversidade cultural: fator de desenvolvimento A Declaração de maneira objetiva entende a diversidade como fator de desenvolvimento. “A diversidade cultural amplia as possibilidades de escolha que se oferecem a todos; é uma das fontes do desenvolvimento, entendido não somente em termos de crescimento econômico, mas também como meio de acesso a uma existência intelectual, afetiva, moral e espiritual satisfatória” (2001, p. 1). O documento contribui enormemente para a necessária releitura do desenvolvimento humano para além do desenvolvimento econômico. De fato, considerar que o avanço econômico é uma faceta constituinte do amplo desenvolvimento, a Declaração descarta-o como preponderante e, abre a possibilidade mesma de sê-lo coadjuvante no campo cultural. Destaca ainda o potencial da diversidade cultural de promover o acesso às dimensões essenciais e intangíveis do devir humano, como a espiritualidade, por exemplo. A Convenção continua a associar a diversidade cultural ao desenvolvimento, destacando o seu valor não mensurável financeiramente, e a associa ao desenvolvimento sustentável das sociedades. “A diversidade cultural constitui grande riqueza para os



indivíduos e as sociedades. A proteção, promoção e manutenção da diversidade cultural é condição essencial para o desenvolvimento sustentável em benefício das gerações atuais e futuras”. (2005, p. 5). É clara a intenção de que se incorpore preceito de sustentabilidade às políticas governamentais: o desenvolvimento cultural é apresentado como um dos pilares do desenvolvimento humano sustentável. No Relatório encontramos essa mesma postura entre seus objetivos: Convencer os decisores e as diferentes partes intervenientes sobre a importância em investir na diversidade cultural como dimensão essencial do diálogo intercultural, pois ela pode renovar a nossa percepção sobre o desenvolvimento sustentável, garantir o exercício eficaz das liberdades e dos direitos humanos e fortalecer a coesão social e a governança democrática. (2009, p. 3)

É novamente clara a associação estratégica entre a promoção da diversidade cultural e a contribuição que esta pode dar ao desenvolvimento sustentável. O que fica mais claro, mesmo por conta da atribuição da Organização em estabelecer diretrizes no campo da cultura e afins, é a sinalização para os gestores políticos do potencial da diversidade em promover a coesão social e a governança democrática. Há ao menos dois aspectos que merecem destaque nessa última afirmação. O primeiro seria de que o exercício das liberdades de expressão cultural alimentam a dignidade e levantam a autoestima do agente cultural e, consequentemente, dos demais indivíduos envolvidos no contexto social no qual se dá aquela prática. Um segundo aspecto, mesmo que destaque a sua função social, é de que ela reitera o tratamento utilitarista do investimento em cultura. Acaba por reforçar uma postura que tenta justificar o investimento em cultura por um fator facilitador da governança, um produto do processo, e não por ele mesmo. Considerações finais É oportuna e contundente a contribuição da UNESCO para o avanço contínuo da discussão e estudo na área da cultura. Os fóruns mantidos e promovidos pela Organização para e a partir da produção desses documentos pautam as ações, programas e políticas neste âmbito. Como esta análise pretendeu expor, eles destacam o papel transversal da diversidade cultural e reforçam a necessidade de integrá-la às demais áreas do conhecimento humano, propondo inclusive estratégias para a incorporação de preceitos da diversidade cultural às políticas de estado em escala global.



A atuação da UNESCO acaba promovendo uma densa reflexão que não se encerra ao conteúdo conceitual por ela gerado. Ela vai além na medida que pretende implicar governos, organização civil e demais operadores da cultura, no processo de desenvolvimento humano através do desenvolvimento das culturas. Seu papel é essencial para o avanço das discussões sobre a cultura e sua potencial contribuição para o desenvolvimento da humanidade. Por outro lado, ao passo que o resultado dessa reflexão contribui na outorga de programas privados e políticas públicas em áreas capitais como as da educação e da cultura, deve ser cuidadosamente revisitada e criticada ampla e permanentemente. Promover a investigação sobre a diversidade cultural, assumindo a cultura como ferramenta política, é entender como ela opera; identificar os diversos agentes que atuam no campo cultural, os recursos de que dispõem, a intensidade de poder e influência recíproca, é estratégico para o desenvolvimento humano sustentável. Como o descreveria Guy Hermet em Cultura e Desenvolvimento, ‘desenvolver’ não significa nada se só se trata de despejar cimento, instalar canos de água ou levantar a qualquer custo curvas estatísticas, sem pensar, antes, durante e depois de suas intervenções, nas reações muito diversas das pessoas atingidas por essas intervenções e nos benefícios que esperam ou não das mesmas. (HERMET, 2002, p. 19)

Um desenvolvimento, seja cultural, econômico, político ou social, só se materializa se considera os contextos em que operam transformações, é crítico a seus meios e procedimentos, mas, principalmente, inclui seus promotores e beneficiários. Há perigos em se exaltar os possíveis desdobramentos sociais positivos associados ao desenvolvimento cultural para justificá-lo. Mesmo um desenvolvimento cultural sólido, com autonomia e escolha, não garante as melhorias sociopolítica e econômica. A UNESCO sinaliza claramente para a necessidade de aperfeiçoarmos e aprofundarmos as ferramentas de análise da operação no campo cultural. Não obstante o desafio de lidar com as transformações inerentes ao universo cultural finalmente assumido como processo dinâmico e mutagênico, seus gestores devem trabalhar no sentido de antever tais mudanças, a fim de planejar estratégias sensíveis e eficientes. Referências CANCLINI, Néstor García Canclini. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Ed. USP, 2003. HERMET, Guy. Cultura & Desenvolvimento; tradução de Vera Lúcia Mello Joscelyne. Petrópolis, RJ : Editora Vozes, 2002.



HOUAISS, Antonio e Villar, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A exposição museológica e o conhecimento histórico. In: FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves, VIDAL, Diana Gonçalves, (orgs). Museus: dos gabinetes de curiosidades à museologia moderna. Belo Horizonte, MG: Argvmentvm; Brasília, DF : CNPq, 2005. UNESCO. Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural. Unesco, 2001. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001271/127160por.pdf. Consultado em: 31/03/2011. UNESCO. Convenção sobre a Promoção e Proteção da Diversidade das Expressões Culturais. Unesco, 2005. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001502/150224por.pdf. Consultado em: 31/03/2011. UNESCO. Investir na diversidade e no diálogo intercultural. Unesco, 2009. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0018/001847/184755POR.pdf. Consultado em: 31/03/2011. YÚDICE, George. A Conveniência da Cultura: Usos da cultura na era global; tradução de Marie-Anne Kremer. Belo Horizonte : Editora UFMG; 2004.

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