A diversidade no mundo romano: considerações sobre as contribuições da Arqueologia

July 6, 2017 | Autor: J. Grillo | Categoria: Ancient History, Classical Archaeology
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS

CAMINHOS DA HISTÓRIA Revista do Departamento de História Centro de Ciências Humanas – UNIMONTES

ISSN 1517-3771 CAMINHOS DA HISTÓRIA

Montes Claros

v. 15, n.1

semestral

2010

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A DIVERSIDADE NO MUNDO ROMANO: CONSIDERAÇÕES SOBRE AS CONTRIBUIÇÕES DA ARQUEOLOGIA

Pedro Paulo A. Funari* José Geraldo Costa Grillo* *

Resumo: De modo a evidenciar as contribuições da Arqueologia para o conhecimento do mundo romano, os autores retraçam a trajetória da Arqueologia Clássica, apontando as transformações metodológicas e epistemológicas pelas quais a disciplina passou e seu interesse atual pela variedade e processos de interação cultural. Unitermos: Arqueologia; Mundo romano; Cultura; Diversidade; Interação. Abstract: In order to show the contributions of Archaeology to the knowledge of the Roman world, the authors start with the trajectory of Classical Archaeology, pointing the methodological and epistemological transformations through which the discipline has passed and its current interest for a variety of cultural interaction processes. Keywords: Archaeology; Roman world; Culture; Diversity; Interaction.

* Professor Titular da Universidade Estadual de Campinas, Coordenador do Centro de Estudos Avançados da Unicamp/CEAv (www.gr.unicamp.br/ceav). ** Professor Adjunto da Universidade Federal de São Paulo e pós-doutorando na Universidade Estadual de Campinas sob a supervisão do Prof. Dr. Pedro Paulo A. Funari. Bolsista da FAPESP.

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Introdução O estudo da diversidade no mundo romano tem tido uma contribuição particular a partir da cultura material. Como parte das transformações das últimas décadas na abordagem do mundo antigo, a diversidade passou a ser um elemento cada vez mais levado em conta e abordado. Foram publicados livros sobre esta temática, no Brasil, refletindo a crescente preocupação com a variedade cultural, social, mas também no âmbito das relações de poder, de gênero, e econômica (FUNARI; GARRAFFONI; LETALIEN, 2008; FUNARI, PÉREZ; SILVA, 2008; FUNARI; SILVA, 2009; NOGUEIRA; FUNARI; COLLINS, 2010). Neste artigo, apresentase, em um primeiro momento, a trajetória da disciplina que estuda a cultura material romana, a Arqueologia Clássica, seguida de três estudos de caso. 1 A trajetória da Arqueologia Clássica Convém começar com um balanço sobre a disciplina Arqueologia Clássica e seus avatares (Cf. BERNAL, 1987; HINGLEY, 2000; SCHNAPP, 1993; SHANKS, 1997). AArqueologia Clássica é um campo de pesquisa cujas origens estão no Renascimento. A coleta de obras de arte gregas e romanas iniciou-se na Itália, desde o início da era moderna, mas seria a descoberta das ruínas antigas de Pompéia e Herculano, no século XVIII, a dar a partida do moderno antiquariado. Por séculos, a coleta de obras artísticas fora considerada uma atividade privada, financiada pela nobreza, nos quadros do antigo regime. O novo antiquariado resultou do desenterramento das cidades do Vesúvio e introduziu a preocupação com o menos impressionante, com temas menos dependentes do alto estilo, como no caso dos artefatos de uso quotidiano. Johann Joachim Winckelmann (1717-1768) é considerado o fundador da Arqueologia Clássica como parte da História da Arte e a face germânica da disciplina está ainda conosco e sua ênfase no detalhe e na exaustividade é o resultado desse legado. O Antiquariado iria ligar-se a uma nova tendência, no ocaso do século XVIII. A Revolução Francesa e a difusão do Iluminismo por toda a Europa deu origem a uma nova ciência, a Filologia, o estudo científico da língua, que está na base do desenvolvimento ulterior da História, o estudo do passado pela compreensão dos documentos escritos. Os primeiros teóricos da Filologia buscavam restabelecer a língua Indo-Européia e a primazia das línguas grega e latina para o mundo ocidental, rotulando-as como línguas de primeira classe e, por isso, clássicas. Desde o século XVII, o termo “clássico” era usado para tratar das antigüidades gregas e romanas, mas a Filologia iria usar o termo para se referir ao mundo greco-romano, em oposição à Antigüidade Egípcia e Mesopotâmica, que começavam, pela primeira vez, a serem estudadas por meio da consulta dos documentos escritos e dos monumentos. Os estudos clássicos como um campo acadêmico logo passou a incluir as disciplinas nucleares, grego e latim, mas também a História e a Arqueologia do “mundo clássico”. 12

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A Arqueologia Clássica como uma atividade acadêmica derivou da Filologia e era, normalmente, praticada em instituições devotadas aos Estudos Clássicos. Em muitos lugares, a Arqueologia e a História da Arte foram consideradas como temas gêmeos, já que o estudo dos restos materiais do mundo antigo concentrou-se, em primeiro lugar, na grande arquitetura, escultura e pintura. A Arqueologia Clássica liga-se, de forma direta, às ambições imperiais de britânicos, franceses, alemães e norteamericanos e, como conseqüência, fundaram-se importantes instituições arqueológicas em Atenas e Roma, como a British School, a École Française o Deutsches Archäologisches Institut e a American Academy, seguidas por escolas arqueológicas em diversos outros sítios clássicos. Desta forma, a Arqueologia Clássica ligava-se, de maneira direta, ao imperialismo. Tem havido muitos debates sobre as definições e aplicações do termo “Arqueologia Clássica”. Em muitas instituições, em particular por influência da definição original alemã, ela está ligada à História da Arte, como no caso dos países de língua alemã, na Itália e em diversas instituições alhures, como nos Estados Unidos. Quase em toda parte, está ligada ao estudo das línguas grega e latina, mas, mais recentemente, tem sido estudada também em instituições arqueológicas sem relação com as línguas, como no caso da Grã-Bretanha. Outro ponto de controvérsia refere-se às civilizações estudadas, pois, às vezes, incluem áreas consideradas importantes para o legado ocidental, como o Egito, o Oriente Próximo e o Egeu. Outra disputa refere-se às suas fronteiras cronológicas, pois mesmo a maioria que considera que ela trata das civilizações grega e romana está dividida sobre seu início e término. Em geral, a Grécia inclui a Grécia pré-helênica até a conquista romana no segundo século a.C. e Roma começa com os sítios proto-históricos itálicos e vai até os Antoninos, no século II d.C., ou até muito mais tarde, com o assentamento de grande número de germanos, no século V d.C. Por fim, a área geográfica varia de acordo com a dispersão de vestígios greco-romanos, com seu centro no Mediterrâneo, mas atingindo ao norte a Escócia, por breve tempo ocupada pelos romanos no século II d.C., ao sul a Arábia e o norte da África, a leste a Turquia e o Oriente Médio e a oeste Portugal e o País de Gales. O termo “clássico” é particularmente ambíguo, pois pode referir-se a um período específico, o acme da civilização, como a Grécia (século V a.C.) ou Roma (final da República e início do Principado) “clássicas”. No interior da Arqueologia, usa-se para designar o zênite de diferentes civilizações, como no caso do maia “clássico”. O termo é ainda utilizado por diversas disciplinas, como em música “clássica” (i.e. estilo de fins do século XVIII). A Arqueologia Clássica, como o estudo arqueológico da Grécia e de Roma, fundase na Filologia e o seu núcleo é filológico. A própria definição da área é baseada em documentos escritos em grego ou latim e, em geral, o arqueólogo clássico deve também aprender essas línguas e, em seguida, especializar-se em uma dessas línguas 13

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e áreas culturais. Os arqueólogos clássicos herdam a dicotomia grego/latim e são helenistas ou romanistas, com uma especialização em um dos dois campos muito precoce. Subjacentes a essas características, encontra-se o pressuposto que os arqueólogos estudam duas civilizações diferentes, um conceito de origem germânica para se referir a uma ambígua mistura de costumes, ethos e outros aspectos subjetivos de uma identidade comum. Como a disciplina desenvolveu-se como um efeito colateral do estado nacional, ela interpretou os mundos grego e romano como entidades homogêneas, como seriam as nações modernas. Na mesma linha de raciocínio, como os estados modernos consideravam que estavam espalhando uma cultural ocidental superior para povos coloniais inferiores, ávidos por adotar uma cultura mais desenvolvida, os classicistas cunharam os termos “helenização” e “romanização” para se referirem à suposta adoção de traços culturais superiores helênicos e romanos, como no caso da cultura material. Outra característica associada à Arqueologia Clássica e às raízes filológicas é a importância da evidência escrita, estudadas por arqueólogos especialistas em epigrafia e paleografia. A publicação de inscrições, desde meados do século XIX, tem sido uma importante tarefa dos arqueólogos clássicos. O Corpus Vasorum Antiquorum e o Lexicon Iconographicon Mythologiae Classicae são dois exemplos notáveis do modelo filológico na publicação da iconografia. AArqueologia Clássica desenvolveu uma ampla gama de especialidades, da Numismática ao estudo das ânforas, todas caracterizadas pela publicação de corpora de artefatos, em geral no estilo germânico de amplidão e exaustão de referências. Os estudos tipológicos também têm caracterizado a área, sempre a partir de modelos filológicos. Isto é claro no estudo dos vasos pintados gregos e da pintura parietal romana. Em ambos os casos, os estilos são definidos segundo analogias lingüísticas e o método tipológico usado em toda a disciplina para estudar diferentes categorias de artefatos funda-se na Filologia, em particular na sua interpretação do inteiro ciclo de existência de uma língua e de uma categoria material. Na tradição da Filologia Histórica, as línguas são consideradas como um ser vivo, seguindo o ciclo biológico, do nascimento, adolescência, maturidade, decadência e desaparecimento. Este esquema é aplicado à cultura material, com os artefatos seguindo um ciclo de vida. A Arqueologia Clássica também tem se dividido entre as técnicas usadas no Mediterrâneo e nos países do norte da Europa. No Mediterrâneo, há uma longa tradição de desenterramento de estruturas arquitetônicas e isso resultou tanto da despreocupação com os pequenos achados como do esplendor dos vestígios às margens do Mediterrâneo. Mesmo que alguns arqueólogos tenham introduzido escavações estratigráficas, como foi o caso de Nino Lamboglia antes mesmo da Segunda Guerra Mundial, na Itália, a difusão dessas técnicas deveu-se a influências vindas do norte. Mortimer Wheeler e depois Paul Courbin foram os responsáveis pela adoção de metodologias de campo estritas na Arqueologia Clássica. Sir Mortimer 14

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criou uma estratégia de campo, inspirada na organização militar, e levou a uma revolução nas práticas de escavação, pois, pela primeira vez, passou-se a estar atento à evidência contextual. Além disso, depois da guerra, crescentemente a Arqueologia Clássica tem se preocupado com o estudo dos artefatos comuns, de humildes ânforas e tijolos a quinquilharias de bronze. Em países mediterrâneos, o estudo dos artefatos comuns é conhecido pela expressão latina instrumentum domesticum. A disciplina tem sido caracterizada, ainda, por uma enorme multiplicação de campos de especialização. Nas últimas décadas uma série de questões tem rondado a Arqueologia Clássica. Tem havido um crescente crítico à relevância do estudo do mundo antigo em geral. O latim e o grego eram ensinados nas escolas de elite e o mundo clássico era idealizado pelas potências imperialistas. Entretanto, os estudos clássicos foram deixados de lado pela sociedade, os Impérios coloniais feneceram e a Arqueologia Clássica tem sido desafiada pelos arqueólogos de outras searas por ser muito conservadora, deslocada da ciência moderna. A Arqueologia Clássica tardou a responder a tais contestações no interior da academia, mas está, de forma crescente, reavaliando seu papel social. Ela praticamente ignorou as discussões levantadas pela Arqueologia Processual dos anos 1960 (New Archaeology), mas, hoje, interage mais com as tendências pós-processuais, com destaque para as características filosóficas e discursivas das teorias pós-modernas que se fundam em raízes clássicas comuns. Não é casual que alguns dos mais ativos arqueólogos teóricos hoje sejam arqueólogo clássico. As perspectivas da disciplina dependem de sua capacidade de interagir com as novas realidades. Muitas vias estão abertas, em particular a cooperação com arqueólogos que estudam outras civilizações e períodos, uma tendência presente no mundo anglo-saxão. O desenvolvimento das áreas específicas tradicionais continuará, como nas ciências em geral, mas sua relevância será cada vez mais avaliada por sua habilidade de dirigir-se a um público acadêmico mais amplo. A Arqueologia Clássica possui uma longa e rica tradição e seu futuro liga-se ao desafio de manter seu legado e, ao mesmo tempo, interagir com as discussões epistemológicas contemporâneas. 2 Estudos de caso da diversidade A. Os castros e a Palestina No noroeste da Península Ibérica, desenvolveu-se, nos últimos séculos a.C., uma sociedade celta cujos vestígios chegaram até nós, na forma de construções muradas em elevações e que são conhecidas pelo nome de castros. Esse nome, muito comum nessa região, tanto do lado espanhol como português, deriva do termo latino castrum, 15

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usado pelos romanos para designar um local fortificado. O sobrenome Castro provém da quantidade de castros na região, também muito usado no Brasil. Os vestígios dos castros mostram restos não apenas das muralhas, como das casas e dos alimentos usados por essa sociedade de agricultores e criadores de animais, com destaque para os restos de bois e vacas, a indicar o consumo de carne bovina e de derivados de leite. Os povos que viviam nesses castros foram encontrados pelos romanos e foram incorporados ao domínio romano. Como usar essas fontes arqueológicas? Inês Sastre (2002) mostrou como houve mudanças nesses castros do período anterior à chegada dos romanos e à sua inclusão no império. Sastre detectou que havia, nos assentamentos anteriores, diferenciação de status, com conflitos internos e entre os diversos castros. A chegada dos romanos acentuou essas diferenças e criou condições para o aparecimento de uma autêntica classe dominante, parte da estratégia imperial de cooptação das lideranças locais, em todo o império. Essa preocupação está presente nas fontes literárias e há inúmeros exemplos na tradição textual que a isso se referem. As fontes arqueológicas dos castros de época romana revelam uma mudança importante, na forma do aparecimento de construções voltadas para o armazenamento e controle da distribuição de alimentos, por parte da nascente elite, assim como se registram ocupações de regiões periféricas menos férteis pelos segmentos empobrecidos da antiga comunidade. Esse processo, na origem das primeiras elites nessa região, é relevante tanto em termos metodológicos, em geral, como para o caso específico do Brasil. O processo de constituição de elites em sociedades mais ou menos igualitárias, com a participação de um poder externo, de uma sociedade altamente estratificada, como a romana, encontra paralelos em muitos outros locais e períodos da História, como no contato entre europeus e indígenas na América ou nativos, na África, em época moderna. A tradição da ocupação das áreas altas, em assentamentos irregulares e com hierarquização viria a influenciar, posteriormente, o surgimento das cidades medievais portuguesas e coloniais brasileiras (Cf. FUNARI, 2005). As fontes arqueológicas foram utilizadas pelo historiador, neste caso, tanto em conjunção com a tradição literária, quanto com a analogia etnográfica, resultando em uma análise original que rompe com a abordagem tradicional, que encarava a ocupação celta em toda Europa sob o mesmo prisma. A especificidade de cada contexto histórico pode ser bem explorada pelo historiador atento às fontes arqueológicas. Mesmo nas sociedades que utilizam a escrita mantém-se largos contingentes populacionais à margem das letras e podemos dizer que, em grande parte da História, os iletrados constituem maiorias ausentes das fontes escritas que apenas as descrevem, distante e negativamente. Neste caso, também, as fontes arqueológicas são importantes para os historiadores, de modo a ter acesso a segmentos sociais 16

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pouco visíveis ou conhecidos. Isto se passa com o estudo do Jesus histórico e dos seus primeiros seguidores da Galiléia, todos analfabetos. As fontes literárias sobre Jesus são os Evangelhos, escritos ao menos quarenta anos após sua morte, em grego, língua que nem mesmo Jesus dominava, falante que era do aramaico. As fontes arqueológicas mostraram-se importantes para o estudo de Jesus e do contexto em que ele viveu, pregou e morreu. Por meio de escavações de aldeias judaicas da época de Jesus, sabemos que Jesus provinha de uma aldeia muito pequena, Nazaré, com poucas centenas de pessoas, que as aldeias da Galiléia que Jesus freqüentava eram também pequenas e com casas de pau a pique e cobertas com tetos de cobertura vegetal (Cf. CROSSAN; REED, 2002; FUNARI, 2010). Os barcos dos pescadores como Pedro, o apóstolo, eram pequenos e simples. Já as fontes arqueológicas do lado das elites mostram outra realidade: a inscrição com o nome de Pilatos, os vestígios monumentais das casas da elite sacerdotal judaica, com sua decoração romana, o ossuário de Caifás, tudo isso atesta uma vida cosmopolita, em que a elite local bem se entendia com as autoridades romanas. Essas fontes arqueológicas permitem melhor entender as frases de Jesus, reportadas muito depois, contra a riqueza e em prol dos pobres, como no famoso Sermão da Montanha. B. As cidades gregas da Ásia Menor As cidades gregas da província da Ásia Menor constituem-se em um caso semelhante de diversidade e de interação com a cultura com romana. Foram os estudos sobre o culto ao imperador, nessa região, que trouxeram isso à tona. O culto imperial variava de lugar para lugar, conforme as particularidades das cidades, fazendo com que cada uma reagisse de maneira diferente à sua presença. Percepção essa que só foi possível devido a um esforço mais amplo de estudo, no qual o uso das arqueológicas assumiu um papel inovador para a compreensão das relações entre Roma e as cidades provinciais. Na província da Ásia Menor, conforme Stephen Mitchell (1995), onde a unidade básica da organização política era a cidade (pólis), as cidades gregas tinham de ajustar seus ideais de autonomia e de liberdade estabelecidos no passado à realidade presente do domínio romano. Ao longo do tempo, do período helenístico ao romano, esses ideais praticamente se extinguiram; o que não significou o fim das cidades gregas, pois o governo romano limitava-se à manutenção da ordem, arrecadação de impostos e administração da justiça. Com a finalidade de prover uma estrutura administrativa para a província, os imperadores mantiveram as cidades como comunidades organizadas (póleis), permitindo, no mais das vezes, que permanecessem com governo próprio e com poderes locais. Da perspectiva romana, entretanto, as cidades provinciais, sejam quais fossem, eram unidades integrantes do amplo sistema imperial de administração e controle. Portanto, uma a uma teve de estabelecer seu lugar e sua postura face ao domínio romano. 17

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As maneiras de Roma se relacionar com as cidades provinciais e destas com ela tornaram-se o ponto crucial dos estudos sobre o culto imperial. Glen Warren Bowersock (1965), por um lado, apoiado quase que exclusivamente nas fontes escritas, conclui que os cultos de magistrados romanos no Oriente revelam mais acerca de diplomacia e clientela do que da religião dos gregos, pois as instituições gregas e romanas fundiram-se com incrível facilidade desde o período da República tardia, dando um impulso adicional à atividade diplomática romana; nesse contexto, o culto imperial foi fundamentalmente uma extensão desse sistema diplomático, pertencendo a essa evolução natural que Augusto estimulou em suas relações com as cidades gregas visando à coesão e à estabilidade. Simon R. F. Price (1984), por outro lado, atento, também, às fontes arqueológicas, como templos, estátuas e textos epigráficos entre outras, entende que o culto imperial na Ásia Menor, antes de ter sido um fenômeno religioso superficial, foi um sistema que, ao mesmo tempo, definia a posição do imperador e formava em grande medida a rede de poder que constituía o tecido social, em suma, um modo de conceituação do mundo, que, junto com a política e diplomacia, construiu a realidade do império romano. Diante dessa nova situação, as cidades da Ásia Menor tiveram de se sujeitarem ao domínio romano, e, apesar da diversidade de suas culturas locais, a resposta dada em comum para esse problema foi, segundo Price (1984), encontrar um lugar para o imperador romano no âmbito dos cultos tradicionais aos seus deuses. Já habituadas com os cultos helenísticos aos dirigentes, não lhes foi estranho sintonizar o culto ao imperador com essa prática. Todavia, algumas mudanças foram efetuadas na dinâmica do culto. Diferentemente dos decretos helenísticos sobre os cultos reais, que descrevem simplesmente as benfeitorias políticas do rei, os de Augusto estabeleciam comparações entre suas ações e as dos deuses. Uma vez que os deuses desde tempos remotos eram descritos como benfeitores, Augusto passou a ser tido como benfeitor de todo o mundo. O arcabouço fundamental do culto ao imperador era formado pelos festivais imperiais. A maneira encontrada de introduzir o imperador na vida da comunidade foi adaptar um festival tradicional em honra da principal divindade local. Através de assimilações, identificações e de dedicações conjuntas da cidade, o imperador entrava em relacionamento íntimo com os deuses tradicionais de cada cidade. O culto imperial provocou transformações nas cidades. O espaço físico foi reorganizado. Mudanças arquitetônicas aconteceram em todas as cidades que tinham templos imperiais; pois, se culto ao imperador era a tentativa de prover um lugar para ele, era natural que expressão física desse lugar se encontrasse no interior de seu espaço cívico, isto é, integrado ao centro da vida religiosa, política e econômica da comunidade. Portanto, os templos imperiais situavam-se, geralmente, nas posições mais destacadas no interior da cidade. Em Éfeso, na Lídia, por exemplo, toda a praça superior foi reprojetada durante o principado de Augusto (Cf. PRICE, 1984, 18

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p. 139, fig. 3): entre o Pritaneu e o Buleutérion, encontram-se os restos de dois templos imperiais e, no centro da praça, há outro templo de Augusto. No período logo a seguir, diante dos dois templos imperiais, foi construído um pórtico real dedicado a Ártemis (a deusa da cidade), Augusto e Tibério, contendo uma sala com a estátua de Augusto. No final do século I d.C., foi construído mais um templo imperial, agora dedicado a Domiciano. Assim alocados, os templos imperiais inscreviam, no coração da cidade, uma expressão permanente do imperador, criando, conforme Paul Zanker (1988), uma espécie de palco arquitetônico no qual ele se fazia lembrar constantemente a todos os moradores da cidade. Lembrança visual que não se esgotava nos aspectos arquitetônicos; fazia-se também presente nas representações pictóricas, nas estátuas espalhadas alhures e nas moedas com sua efígie, as quais circulavam em toda parte. Em suma, era uma linguagem visual, surgida no contexto das formas de se homenagear o imperador, vindo a desembocar num sistema de comunicação no qual se integravam as imagens e o simbolismo do império. A remodelação do espaço físico afetou as identidades das cidades. Os estudos arqueológicos dos espaços religiosos da cidade grega (Cf. ÉTIENNE; MÜLLER; PROST, 2000) têm apontado uma relação entre templos e sociedade: uma vez que suas construções envolviam boa parte da população e, sobretudo, as autoridades da cidade, eles encarnam uma imagem determinada que a cidade intenta mostrar de si mesma, de acordo com sua ideologia e sua história. Esses monumentos de natureza religiosa eram um dos lugares privilegiados de memória, pois exprimiam, através de suas pinturas, esculturas (estatuária e baixos-relevos) etc., mitos, lendas e tradições locais em torno dos quais se estabeleciam os traços identitários das cidades. Nesse sentido, as cidades da Ásia Menor exprimiam suas identidades pela preservação das tradições gregas, estabelecendo cultos antigos, usualmente envolvendo deuses do Olimpo, mas atualizados por mitos e lendas locais que os relacionam à fundação da cidade, a exemplo do culto de Ártemis em Éfeso (Cf. MITCHELL, 1995). Diante da nova cena, entretanto, em que o imperador tem um papel importante, as cidades já não podem ter o sentimento de pertença de antes. Como interpretar essa situação? Deixaram os gregos de serem gregos? Tornaram-se romanos? Não, de modo nenhum! Esse tipo de mudança não precisa necessariamente ser explicado através de polaridades com romanos de um lado e gregos de outro; trata-se de um processo de interação entre a cultura grega e a romana. Ambas se modificam nesse contato: assim como as cidades gregas foram modificadas, Roma não é mais a mesma: o imperador também teve de manter a organização política das cidades e adaptar seu culto aos cultos dos reis helenísticos pré-existentes. A questão não se colocava mais em termos de ser grego ou romano, mas sim em como, de modo paradoxal, permanecer grego tornando-se romano. Identidades não são exclusivas, mas combinatórias (Cf. WOOLF, 1994; 1997). Como ressalta Maurice Sartre (2007), em numerosas cidades da Ásia Menor, a identidade grega já era dupla: as cidades se 19

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tomam ao mesmo tempo por gregas e por gálatas, lídias, lícias, frígias etc. Não há dúvida de que a dominação romana as forçou a assumirem uma nova identidade; pois, Roma deveria incitar as cidades das províncias a se sentirem “romanas”. Todavia, trata-se de uma identidade suplementar, que se agrega às já existentes e as modifica. Assim, a identidade grega das cidades da Ásia Menor foi se modificando pouco a pouco e em ritmos diferentes conforme os lugares e seus contextos. Como Roma nunca procurou impor sua cultura, as cidades puderam se sentir romanas sem o ser culturalmente. Conclusão A cultura material contribui, de forma decisiva, para que se possa estudar e avaliar a diversidade social, cultural e das relações de poder no mundo romano. Regiões tão distantes, a ocidente e a oriente, testemunham como a interação cultural do mundo romano manifestava-se nos rincões mais recuados. As evidências materiais permitem um conhecimento mais amplo e variado de uma diversidade cada vez mais explorada e investigada pelos estudiosos da Antiguidade romana. Agradecimentos Agradecemos aos seguintes colegas: Martin Bernal, Greg Woolf, Richard Hingley, Paulo Nogueira, Charles E. Orser, Jr., Alan Schnapp e Michael Shanks. Mencionamos o apoio institucional do Grupo de Pesquisa Arqueologia Histórica, cadastrado no CNPq e sediado na UNICAMP, da UNIFESP, do CNPq e da FAPESP. A responsabilidade pelas idéias restringe-se aos autores. Referências BERNAL, M. Black Athena: the Afroasiatic roots of Classical civilization. New Brunswick: Rutgers, 1987. BOWERSOCK, G. W. Augustus and the Greek world. Oxford: Clarendon, 1965. CROSSAN, J. D.; REED, J. Excavating Jesus: beneath the stones, behind the texts. New York: Harper Collins, 2002. FUNARI, P. P. A. O Jesus histórico e a contribuição da Arqueologia [A sair, em livro organizado por André Leonardo Chevitarese, Gabriele Cornelli e Mônica Selvatici, 2010]. FUNARI, P. P. A.; GARRAFFONI, R. S.; LETALIEN, B. (Org.). New perspectives on the ancient world: modern perceptions, ancient representations. Oxford: Archaeopress, 2008. 20

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