A DIVERSIDADE SEXUAL NO SATIRICON, DE PETRÔNIO

May 27, 2017 | Autor: Taciana Soares | Categoria: Latin Literature, Petronius, Classical Literature, Petronius' Satyricon, Literatura Romana, Petrônio
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A DIVERSIDADE SEXUAL NO SATIRICON, DE PETRÔNIO Taciana Ferreira Soaresi – FAFIRE Orientador: Ronaldo Cordeiro Santosii – UPE

Resumo Importante obra da literatura latina, Satiricon foi escrita por Petrônio, lançada no ano 60 d.C., durante o governo de Nero, narrando as aventuras e desventuras de Encolpio, do seu amigo Ascilto e de Gitão, escravo adolescente de deslumbrante beleza que provoca entre os dois paixões, ciúme e discussão. O presente trabalho se propõe a estudar a diversidade sexual dentro da obra de Petrônio, com foco nas manifestações sexuais que envolvem as três principais personagens, incluindo as redes de interações eróticas que as mesmas estabelecem com os demais ao longo da trama, sejam homens ou mulheres. Sendo o autor um ser social inserido num contexto, e a obra escrita um veículo transmissor de ideias e valores, o Satiricon é um retrato do cotidiano da Roma do século I, revelando seus costumes. Diferente da percepção atual, na época retratada, as relações não eram vistas como homoafetivas, heteroafetivas, ou com qualquer tipo de rótulo. Eram apenas relações, percebidas de forma natural, uma vez que o cristianismo ainda não era amplamente difundido, não existindo, assim, repressão, tampouco vergonhas e pudores referentes à sexualidade. Há um completo desprendimento moral nas pessoas, que enxergam o sexo como elemento essencial do ser humano. Ainda não existem pecados para podar as vontades de homens e mulheres, jovens ou velhos. Palavras-chave: Satiricon, Petrônio, diversidade sexual,

Abstract An important work in Latin literature, the Satyricon was written by Petronius, published in 60 A.D., in Nero’s government, narrating the adventures and misadventures of Encolpius, his friend Ascyltus and of Giton, adolescent slave of extreme beauty, who causes passion, jealously and arguments between them. This paper studies the sexual diversity in Petronius work, focused in the sexual manifestations involving the three main characters, including the network of erotic interactions in which they involve themselves as the plot elapses, be they men or women. The author was a social being inserted in a context, and his work a carrier of ideas and values, the Satyricon is a portrait of 1st century Rome’s daily routine, revealing its customs. Unlike the current perspective, in that epoch, the relationships were not seen as homosexual, heterosexual, or any other kind of label. They were just relationships, looked upon as natural, for Christianity still wasn't completely disseminated, so there wasn't repression about it, neither shame or lack of decency about sexuality. There is a complete lack of moral disregard in people, who looks at sex as an essential element of the human being. There weren't yet sins to cull the will of men and women, young or old. Keywords: Satyricon, Petronius, sexual diversity

Introdução Nos estudos da sociedade atual sobre a obra, em geral fala-se que a maioria das personagens do Satiricon são desprovidas de pudor, notando a completa falta de moralidade dos cidadãos representados. Uma vez que foi escrita no século I D. C., o cristianismo ainda não tinha atingido grandes esferas purificado a todos, logo não havendo repressão, tampouco vergonha com relação à sexualidade, visto que o conceito de pecado ainda não havia sido amplamente difundido. O que seria entendido hoje como total desprendimento moral, era encarado com naturalidade pelos romanos, já que a visão de mundo cristã que reprime o sexo através do pecado e da punição ainda não ameaçava os costumes do mundo pagão, sendo o sexo percebido como elemento essencial do e para o ser humano. Por exemplo, os romanos prezavam tanto o sexo que haviam leis para desincentivar o celibato: a solteirice e a falta de filhos eram punidos, e as pessoas com herdeiros tinham privilégios. Vejamos a seguir um trecho onde é narrado o castigo dos protagonistas por terem violado o culto de Príapo, reservado o acesso apenas às sacerdotisas: Com essas palavras, Psiquê aproximou-se de sua ama e, sorrindo, disse-lhe algo bem baixinho que não pude escutar. - Claro, claro- clamou imediatamente Quartila. – A ideia é excelente, Por que não? Não poderia haver ocasião melhor para livrar Panikis do fardo de ser virgem. Sem demora, trouxeram à sala uma menina belíssima, que não parecia ter mais de sete anos de idade – a mesma menina que fora a nosso albergue com Quartila. Rapidamente, todos os assistentes puseram-se a aplaudir e a acelerar a realização desse casamento. Eu me referia atônito à timidez de Gitão, por um lado, e a tenra idade de Panikis por outro. - Ele – proferia eu – não ousará tentar o combate e ela não poderá sustentá-lo. - Ora, ora – respondeu Quartila. E, porventura, era eu mais madura quando recebi pela primeira vez um homem? Que eu morra se me lembrar de algum dia ter sido uma virgem! Quando era criança, os meninos de minha idade distraíam-me. Um pouquinho mais velha, já tinha homens como amantes. Foi assim que cheguei à idade que tenho hoje. Decerto, será essa a origem do provérbio: “quem carrega um bezerro, aguenta um touro”. [Grifos meus] (PETRÔNIO, 2005, p. 3940)

Ao ler, percebemos que a virgindade, amplamente cultuada pelo cristianismo, é aqui considerada um fardo, que deve ser expurgado. Desse modo, não existem pecados capitais para proibir as vontades de homens e mulheres, jovens ou velhos, ainda que houvessem regras sociais específicas que regulassem determinadas práticas sexuais. Ao longo da obra, são narradas práticas orgíacas, heterossexuais e homossexuais encontradas pelos protagonistas durante as suas viagens, o que, no geral, não os causa nenhum estranhamento. O autor de obras artísticas faz parte da sociedade na qual está inserido e que pretende retratar e reinventar através da sua obra, compartilhando seus costumes. Isso não quer dizer que haja um impedimento de que ele discorde e critique os hábitos sociais de seu tempo, como é o caso aqui estudado. Petrônio faz uma grande crítica aos costumes e à política da Roma Imperial, através de uma crônica cotidiana no período de sua maior ostentação econômica, que coincide com excessos de liberalidade nos costumes e decadência cultural e política. Por esse motivo, é fácil entender na obra porque os episódios são narrados em sintonia híbrida: passagens cômicas intercaladas com outras trágicas de forma natural e harmônica. O narrador parte do retrato puramente zombeteiro da cena para narrar uma desgraça, articulando-se por meio de expressões solenes, artifícios retóricos, da mesma forma que se apresentam palavras da linguagem popular. Porém, sendo conhecido era como Arbiter Elegantiae, - Árbitro da Elegância - na corte de Nero, concluímos que Petrônio não poderia ser totalmente contra os costumes da sua sociedade, visto que notavelmente ele possuía certa visibilidade política, o que o rendia, também, privilégios. Enfim, escrevendo esta crítica, Petrônio inova o fazer literário de época ao dirigir seu olhar para as mais diversas camadas da sociedade do período imperial romano.

A Antiguidade clássica e a manifestação da sexualidade O povo Romano era, de forma geral, bastante aberto a assuntos relacionados à sexualidade e suas manifestações. Para a sociedade Romana, as práticas sexuais tinham como objetivo enaltecer a fertilidade, a procriação e também a procura de prazer, sendo comuns festas de exaltação à fertilidade com banquetes monumentais (tal como é descrito o banquete de Trimalquião na própria obra), como deveriam ser as noites de amor que se seguiriam logo após estes. Nos cultos ao deus do vinho, da ebriedade e dos excessos; sobretudo sexuais, Baco, todos os excessos eram permitidos e a principal preocupação de cada pessoa seria beber e divertir-se. Durante essas festas um enorme órgão sexual

masculino1 era transportado pela cidade em carroças adornadas com flores oferecidas pelas mulheres mais importantes dela. No final das festas, o sexo era um direito ou mesmo quase um dever de todos os participantes. Ainda sobre a naturalidade com que o sexo era encarado, era também bastante comum o uso de talismãs em forma de pênis no culto a Príapo, deus da fertilidade, encontrados geralmente nos jardins das casas, pois se acreditava trazer sorte e fortuna. A adoração a Príapo era feita tanto por mulheres, procurando se tornarem férteis, como por homens, que acreditavam ser possível a devolução da potência sexual, caso ela estivesse debilitada. Outra das características peculiares da sociedade Romana sobre o comportamento sexual era a normalidade com que se encarava a nudez, não sendo motivo de qualquer tipo de sentimento de vergonha, a prática da masturbação era para os romanos considerada completamente natural, não sendo alvo de críticas. Notamos também, diferentemente de algumas sociedades atuais, a aceitação, dentro de determinados parâmetros, das relações homossexuais: Não se estabelece distinção entre amor homossexual e amor heterossexual; o prazer físico é visto como uma continuidade subjacente entre os dois. O prazer enquanto tal não coloca nenhum problema para o moralista de classe superior. Em compensação, julgase – e muito severamente – o efeito que tal prazer pode exercer sobre o comportamento público e as relações sociais do homem: a vergonha que pode levar um homem das classes superiores a submeter-se ou fisicamente, adoptando uma posição passiva no ato sexual, ou moralmente, entregando-se a um inferior de qualquer sexo. (LOPES, 2008)

Pode se verificar, através da citação acima, que a distinção aplicada nos dias atuais de “homossexualidade”2 ou “heterossexualidade” não existia, sendo naturais as relações sexuais entre dois homens. As relações eram enxergadas como fonte de prazer, sendo condenável a paixão, encarada como algo vergonhoso e temível, visto que este sentimento, sobretudo pelas mulheres, era considerada um mergulho na escravidão. Apesar de aceito o sexo entre dois homens, existiam alguns rígidos padrões definindo como e quando ele poderia acontecer: em primeiro lugar, os homens livres não podiam ser Feitas algumas ressalvas, o filme Calígula, dirigido por Tinto Brass e lançado em 1979, ilustra de forma verossímil o costume citado. 2 O termo “homossexual” foi utilizado pela primeira vez em 1869, pelo médico húngaro Karoly Benkert 1

penetrados, apenas penetrar (existia uma lei a regulamentar esta situação), devendo sempre, portanto, tomar o papel ativo nas relações, reservando o papel de amante passivo aos seus escravos; outra das regras era que o membro mais novo, ou eromenos, tomasse o papel passivo, enquanto que o membro mais velho, ou erastes, tomasse o papel ativo3. Estas regras deviam-se principalmente à crença de que apenas o parceiro ativo na relação conseguiria sentir prazer, na qual o parceiro passivo submetia-se ao outro, prática impensável para um “romano decente”, além de ser uma forma de preconceituar a passividade, que representa o papel feminino. A penetração era de importância central e os encontros sexuais eram pensados como uma relação entre penetrador e penetrado. Apesar de mal vistos pela sociedade existem casos documentados de erastes e mesmo de Césares que preferiam o papel passivo nas suas relações com outros homens, escravos ou não4. Ainda sobre a conduta sexual, vemos em Alexandrian (1993 apud LIMA JUNIOR, 2007, p. 218): Se os homossexuais os transgrediam (os códigos de conduta), eram tratados com desprezo pelos termos injuriosos e obscenos de cinedes, de katapygones (correspondendo a bichonas, veados). A homofilia, relação homossexual entre dois adultos, era considerada repugnante. Só era possível haver relação amorosa entre um homem adulto e um adolescente de doze a dezoito anos. Se o eraste procurava um eromene de menos de doze anos cometia um estupro e devia ser castigado; se perseguia um de vinte anos ou mais, perdia sua dignidade viril. Assim que a barba nascia no rapaz, que a pilosidade recobria seu corpo, não devia mais ser tocado.

Assim como os padrões que regiam como deveria ser o sexo entre dois homens citados anteriormente, esse comportamento também era grego, sendo incorporado por Roma. Da mesma forma que a submissão em relação a outro homem era mal vista pela sociedade, também era a submissão – ou paixão - em relação a uma mulher. As mulheres na sociedade romana eram vistas como inferiores aos homens livres, possuindo os deveres de esposa, dona de casa e de mãe e pouquíssimos direitos. Como tal seria impensável a um “romano decente” preocupar-se em proporcionar prazer à sua mulher ou parceira, uma vez

Lembramos que os padrões citados são de origem grega, mas incorporados na cultura romana. Em Roma, Júlio César era conhecido como “o homem de todas as mulheres e a mulher de todos os homens”. 3 4

que esta preocupação demonstraria um sinal de submissão, de fraqueza, de imaturidade5. As mulheres assumiam o papel de mercadoria, mesmo sendo vistas como vorazes do ponto de vista sexual. As paixões arrebatadoras eram vistas como características juvenis, significando inexperiência e ingenuidade, sendo alvo de crítica quando em adultos, que de forma geral, tendenciavam ser mais comedidos. Sobre as relações sexuais entre mulheres sabe-se muito pouco, quase que restritamente aos registros de Safo, na Grécia, uma vez que possivelmente as carícias entre mulheres nem eram vistas como sexo. Já que não havia penetração, estava fora do que era entendido como sexualidade na antiguidade clássica.

O autor: entre a criação artística e o mergulho no contexto sóciocultural O autor é um intelectual cujo trabalho envolve a preocupação estética de criação através da linguagem. É através dela que o autor literário se apropria do mundo e inventa a sua realidade. Primeiramente, entendamos que o artista-escritor é um produto de sua época e de sua sociedade, estando sujeito aos condicionamentos que seu pertencimento de classe, sua origem étnica seu gênero e o processo histórico do qual é parte lhe impõem (FACINA, 2004). Isso quer dizer que o campo de possibilidades temáticas e de interpretação particular da realidade que serão feitas pelo autor são limitadas. Marcado pela contradição, excentricidade, ambivalência e ambiguidade, o Satiricon não pode ser entendido como simples testemunho documental de uma época, mas como retrato estilizado de uma sociedade (AQUATI, 2006), visto que, apesar de fazer referências específicas de lugares, costumes, entre outros aspectos, Petrônio demonstra um cuidado especial com a experiência estética ao escrever, até mesmo inovando, ao usar prosa e verso na mesma composição, não reduzindo a obra apenas a um retrato crítico e bem humorado do período imperial romano. Não é negado aqui o talento individual do autor literário, mas é necessário considerá-lo parte da dinâmica social, dessacralizando a ideia de que ele é um gênio criador intocável. Se o autor é um ser social, condicionado pelo meio que este inserido, a obra será um disseminador de ideias, valores e opiniões através de um tipo de escrita em que forma e conteúdo são indissociáveis (FACINA, 2004). Só é possível assim, entende-la fundindo texto e contexto, Vale ressaltar aqui que essa regra foi válida apenas no reino e na república Romana. As mulheres nobres do império tinham certa voz e liberdade, até mesmo sobre os homens que não fossem da mesma classe social que elas, ficando esta regra para as camadas sociais mais baixas. 5

sendo nocivo à compreensão adotar a análise de cada um separadamente, tornando-se necessária a combinação de ambos para o processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo, (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno. (CANDIDO, 1976, p. 4)

Percebemos, então, que o meio social não é um fator explicativo determinante para obra, mas se torna parte dela à medida que o autor o toma para a construção da trama. A análise de uma obra de arte é primariamente estética, e ao ser inserido diretamente nesta, o contexto torna-se também um elemento estético. Sob essas disposições, o próprio assunto repousa sobre condições sociais que é preciso compreender e indicar, a fim de penetrar no significado (CANDIDO, 1976, p. 6). A representação artística é a revelação e o desmascaramento de costumes correntes em sua época. É preciso ainda ressalvar que o texto foi escrito no latim da Roma antiga, uma língua cujos textos “exprimem uma visão de mundo e uma civilização não mais existentes” (QUERIQUELLI, 2009), logo, é necessária uma compreensão dos hábitos de época para o entendimento da obra. Ao compor sua crônica de costumes, Petrônio nos dá traços do que ela será a partir do título - Satiricon - nos lembrando de sátira, sátira essa ao cânone literário greco-romano que imperava na época (como ponto central as epopeias homéricas, quando o herói causa identificação direta no leitor por fazer parte e defender uma comunidade), combinada com uma apropriação habilidosa de tipos populares da antiguidade, explorando temas que não seriam observados numa literatura “séria”, como é o caso da sexualidade, foco do presente estudo. Essas críticas não são reveladas ao leitor de forma concreta, mas sugerida no texto ao longo de sua escrituração. Por fim, a obra surge indissoluvelmente da iniciativa individual e da influência de condições sociais, não significando que essas condições terão sido necessariamente vivenciadas pelo autor, visto que a arte é uma forma de comunicação expressiva, que será mais ampla que tais vivências. O meio será um fator de influência interna, mas a obra precisa do artista criador. O que chamamos de arte coletiva é a arte criada pelo individuo a tal ponto identificado às aspirações e valores do seu tempo, que parece dissolver-se nele, sobretudo levando em conta que, nestes casos, perde-se quase que sempre a identidade do criador-protótipo. (CANDIDO, 1976, p.25)

A composição da obra precisa, como comentado anteriormente, do autor, vai além dele: as obras artísticas são frutos de valores, ideias e experiências que são compartilhados socialmente e que se opõem aos valores, ideias e experiências produzidos por outros coletivos (FACINA, 2004).

Encolpio, Gitão e Ascilto O principal ponto relacionado à sexualidade representado na obra é o triângulo erótico central, que moverá a narrativa. Aliás, este aspecto representa uma das inúmeras marcas de paródia do Satyricon relativamente à tradição literária anterior, neste caso em particular o romance sentimental grego.(LEÃO, 2009) Sendo uma sátira também à tradição literária vigente na época, o Satiricon tem em seus principais envolvimentos uma relação de amor, inveja e competição entre homens, que mesmo assim, viviam a trair-se, diferentemente, por exemplo, da tradição homérica, na qual podemos citar o amor resignado de Penélope a esperar o retorno de Ulisses por mais de uma década. Sobre isso, diz LEÃO, 2009 : Assim, em vez da ligação heterossexual, o Liebespaar de referência assume antes uma relação homoerótica, pretendida por um terceiro amante igualmente masculino; em lugar da esperada fidelidade a toda a prova que criava as condições para a felicidade do reencontro final, os apaixonados do Satyricon estão continuamente a trair‑se, sendo Gíton o eterno objeto das disputas.

Precisamos lembrar que, o que temos hoje são fragmentos do que seria a obra completa, que teve as maiores partes perdias pelo tempo, então, temos apenas sugestões da existência da relação entre Encolpio e Ascilto, como a divisão da mesma casa por ambos, ainda antes da chegada de Gitão. Podemos observar os seguintes trechos: Já estava na soleira da porta quando me deparei com Ascilto. O infeliz não estava menos esfalfado que eu. Era como se a velha bruxa tivesse a tarefa de nos reaproximar. [Grifo meu] (PETRÔNIO, 2005, p. 19)

Ou ainda: Tu [Encolpio] que, em um certo bosque, em um certo dia, fizeste uso de mim [Ascilto] como Ganímedes para satisfazer tua lubricidade, do mesmo modo como hoje, aqui nessa hospedaria, usas esse menino [Gitão]! [Grifos meus] (PETRÔNIO, 2005, p. 21)

Em outro trecho, ainda no início da narrativa, fica clara a demonstração de ciúme de Ascilto:

Já preludiávamos novos prazeres quando Ascilto, movendo-se nas pontas dos pés, nos surpreendeu em meio às mais picantes carícias. Logo, enchendo nosso diminuto cômodo com suas gargalhadas e aplausos, ergueu o lençol que nos envolvia. - Ah! Mas que estais fazendo, homens de bem? Como? Metidos os dois debaixo da mesma coberta? Como se não satisfeito com seus sarcasmos, o miserável tirou sua cinta de couro e começou a espancar-me violentamente, falando com ousadia: - Mais uma vez, isso te ensinará a jamais romperes com Ascilto! (PETRÔNIO, 2005, p. 22)

A questão que nunca poderá ser respondida com certeza diante da leitura dos textos, é a seguinte: teria Ascilto ciúmes de Encolpio, de Gitão, ou a grande problemática aqui teria sido seu orgulho ferido? Mesmo o sentimentalismo não sendo bem visto entre homens livres, Encolpio se apaixona pelo volúvel Gitão, o belo adolescente requestado por homens e mulheres, esse tem a perfídia sinuosa da cortesã que vende os seus favores ao mais forte ou melhor colocado (MEDEIROS, 1997), sendo sentimento o maior motivo da separação dos dois primeiros. Quando confrontado pelos dois - anteriormente - amigos, Gitão escolhe para companheiro Ascilto, fazendo com que Encolpio deixe o lugar onde viviam e vá para uma hospedaria próxima à praia, a fim de lamuriar sozinho as suas mágoas e ressentimentos pelo abandono: Por que a terra não se abriu para me tragar? Por que o mar, tão funesto com os inocentes, me poupou? [...] E quem me mergulha nessa horrível solidão? Um jovem corrompido por todo tipo de devassidão que, segundo própria revelação, mereceu ser banido de seu país. [...]. Aquele que desde a mais tenra infância, renunciou os atributos do seu sexo; que se entregou aos afagos dos mais vis escravos em uma prisão. Depois de haver passado de meus braços para os de um rival, abandona de repente um velho amigo e, ainda, como uma vil prostituta. Ó vergonha! Em uma noite, tudo sacrifica a uma nova paixão? Agora, casal feliz, eles passam noites inteiras nos mais doces abraços. Talvez mesmo a esta hora, exaustos pelo excesso de prazeres, estejam a zombar de meu triste abandono. (PETRÔNIO, 2005, p. 96)

Apesar do abandono e do desgosto por ele causado, Encolpio, além de desfrutar de outros envolvimentos, ao encontrar Gitão nos banhos públicos, sucumbe ao amor que nutre por ele, perdoando-o rapidamente (não sem sentir algum ressentimento, naturalmente): - que vergonha para mim - eu lhe dizia – amar-te depois de teu ingrato abandono! Busco em vão no meu peito a profunda ferida que deixaste e não encontro sequer a cicatriz. Como explicas o fato de me teres assim deixado para buscar novos amores? Terei merecido similar afronta? (PETRÔNIO, 2005, p. 106)

Seguem-se durante todo o resto da narrativa as declarações entre eles, de forma às vezes afetadas, mas como afirma LEÃO, apenas Encolpio parece amar de forma intensa e continuada, perdoando-o com boa vontade, não significando que, por causa desse perdão, as traições entre eles findam. Um questionamento que merece ser pontuado rapidamente é o da natureza da intencionalidade do interesse de Ascilto por Gitão. Encolpio, que era companheiro de Ascilto há tempos, provavelmente o conhecia relativamente bem, e afirma o seguinte: Ascilto, sempre fértil em invenções que me aborreciam, raptou Gitão de entre meus braços entorpecidos pela embriaguez e levou-o para sua cama. E ali, espezinhando todos os direitos humanos, usurpou sem escrúpulos os deleites que só a mim pertenciam. E adormeceu sobre o peito de Gitão, que não sentiu ou talvez fingiu não sentir a afronta que Ascilto me fazia. (PETRÔNIO, 2005, p. 94)

Fica a reflexão: o interesse de Ascilto por Gitão era real, motivado pela beleza do adolescente, ou era uma forma de provocação? Como dito anteriormente, não podemos fazer algumas afirmativas, visto a situação fragmentada da obra, mas temos algumas pistas, como por exemplo, no canto XCI, onde Encolpio narra que pelo seu ar triste e caído, adivinhava-se sem dificuldade que era contra a sua vontade que servia a Ascilto, ou ainda na sugestão de Ascilto em dividir o garoto ao meio através da espada, quando os amigos decidem se separar, o que nos parece bastante provocador.

Entre outros envolvimentos As tramas eróticas no Satiricon não se limitam à tríade das personagens centrais. Como dito anteriormente, as relações na antiguidade não eram vistas com as rotulações que

temos na atualidade, podendo os indivíduos envolver-se sexualmente com homens ou mulheres, desde que seguissem alguns preceitos sociais determinados. Nos trechos do episódio comentados a seguir, Circe manda Crísis, sua empregada, procurar informações sobre o estrangeiro que havia chegado a Crotona, sendo este o protagonista, Encolpio, que lá habitava sob o nome falso de Polieno. Podemos perceber a aceitação da prostituição masculina, desde que o “contratado” fosse escravo, e a possibilidade da procura dos serviços pelas mulheres nobres. No trecho a seguir, além da representação do desejo sexual feminino, temos Encolpio/Polieno fingindo-se de escravo, quando a serva o procura para a sua ama: - Não – ela persistiu. Foi a ti mesmo que me mandaram chamar. Contudo, orgulhoso de tua beleza, cujo valor conheces, vendes tuas carícias em vez de oferecê-las. Por que tua cabeleira é tão artisticamente encaracolada? Por que pintas o rosto como as mulheres? Para que essas olhadas ternas e lascivas, esse andar compassado e esses passos que jamais se afastam da mesma proporção, senão para realçar tua beleza e comercia-la? Olha-me bem. Não dou ouvidos a presságios e a cálculos astronômicos, mas leio no rosto de um homem os seus hábitos, e ao ver-te caminhar assim, adivinhei o que tinhas na alma. Assim, se vendes a mercadoria que buscamos, o comprador está próximo. Se a dás de graça, o que é mais honesto, consente então que devemos a ti nossos prazeres. Quanto à tua humilde condição de escravo, que alegas, isso não pode senão aguçar ainda mais o ardor de nossos desejos. Há mulheres a quem o odor dos farrapos incendeia. Nada excita tanto sua paixão quanto a visão de um escravo ou de um criado de vestes levantadas. Outras há que só o gladiador, o muleiro coberto de poeira ou o histrião prostituído aos prazeres públicos excitam-lhes o apetite. Minha ama é assim. Ela saltaria todos os obstáculos para ir buscar o objeto de seus desejos nas últimas camadas do povo. (PETRÔNIO, 2005, p.149)

Percebemos os caprichos da mulher nobre e a falta do que hoje chamamos de pudor com relação à prostituição, ao ver que o protagonista aceita a proposta e vai ao encontro da ama de Crísis, além de nos trazer aspectos que nutririam a voracidade no desejo sexual de algumas mulheres. É interessante pontuar que a questão da ambivalência sexual também não era um incômodo para os amantes, como visto ainda no episódio de Circe e Encolpio/Polieno:

- Jovem, se não desprezar uma mulher de certa distinção, e que ainda há um ano era virgem, aceita-me por tua irmã. Eu o sei que tu tens um irmão, e não enrubesço por haver tomado informações a teu respeito. Mas que te impede de ter uma irmã? É a cargo disso que me apresento e, se quando assim quiseres, podes selar com um beijo os laços de nosso parentesco. - Sou eu- respondi – quem te suplica, por tua divina beleza, que admitas um pobre estrangeiro na corte de teus adoradores. Permiteme que te ame e prometo manter por tuas graças um culto religioso. [Grifo meu] (PETRÔNIO, 2005, p. 151).

Nota-se que mesmo sabendo da existência de um irmão a quem Encolpio/Polieno amava – Gitão – não existe nenhuma restrição à busca dele para a satisfação dos prazeres sexuais. É interessante também notar que a importância do envolvimento sexual era tamanha, que os amantes se tratavam como irmãos, como visto no trecho destacado acima. Sobre a questão da ambivalência sexual, vale ainda ressaltar que nesse mesmo episódio, no canto CXXVI, Encolpio, ao ver a grande beleza de Circe, nos diz “Ó, pela primeira vez, Dóris, meu antigo amor, deixou de significar tudo para mim.” (PETRÔNIO, 2005), destacando que, antes do amor nutrido por Gitão, amou ainda outra mulher. Além disso, já foi mencionado que as mulheres eram vistas como seres sexualmente vorazes. Sobre estas, Petrónio oferece uma ampla galeria de personagens femininas, de desigual importância. Entre todas elas, porém, não há uma única que sirva de modelo de amor, dedicação, equilíbrio (LEÃO, 2009). Vejamos como exemplo disso o seguinte trecho: Unidos nossos corpos pelos mais deliciosos abraços, iam efetuar a fusão completa de nossas almas quando, de repente, em meio a todos aqueles edênicos prelúdios, as forças me abandonaram de novo e eu não pude chegar até o fim do prazer. Encolerizada por uma afronta já sem desculpa, Circe pensou apenas em se vingar. Chamou seus criados de quarto e ordenou-lhes que me açoitassem. Logo, esse castigo lhe pareceu demasiado suave. Ela reuniu todas a criadagem, até os encarregados das atividades mais ordinárias, e entregou-me aos insultos daquela infame. Como defesa, eu me limitava a por as mãos diante dos olhos e, sem recorrer a súplicas porque achava que merecera tal tratamento, deixei-me lançar para fora coberto de pancadas e cuspadas. (PETRÔNIO, 2005, p. 157)

Percebe-se nele não somente a avidez feminina com relação ao sexo, como também a importância e culto da virilidade masculina, comentada anteriormente, levando Encolpio a ser castigado sem reclamar, já que havia falhado com a amante. Não lhe valeram a beleza da companheira, o cenário paradisíaco do encontro, ambos dignos da eleição de um deus. (PETRÔNIO, 2005). Percebemos o gênio de Circe, representando uma mulher vil e cruel ao ser contrariada e seu desejo não realizado, deixando amostra toda a crueza do seu génio, e a violência antes sufocada explode com brutalidade incontida (LEÃO, 2009). Outro ponto interessante para discussão é o episódio do garoto de Pérgamo. O velho Eumolpo, despertado pela beleza do rapaz, filho do seu anfitrião, tenta de todas as formas despertar-lhe o desejo, sem que o pai perceba seu interessa, tornando-se até tutor do Rapaz. O que seria uma crítica cômica ao materialismo que nesse período já era cultuado, visto que o garoto permitia que Eumolpo tocasse seu corpo em troca da promessa de presentes – duas pombas, dois galos gauleses e um cavalo macedônio - é um episódio interessante do ponto de vista da sexualidade, visto que, ao tentar reconquistar a afeição do garoto depois de não cumprir a promessa do cavalo macedônio, Eumolpo tenta cativá-lo novamente: - Embora minha falta de palavra houvesse fechado o coração em que eu tão bem soubera abrir uma passagem, não tardei muito em retornar aos mesmos privilégios. Alguns dias depois, na verdade, um feliz acaso criou a oportunidade que eu aguardava. Pedi ao querido menino, tão logo vi seu pai adormecido, que fizesse as pazes comigo e me deixasse proporcionar o prazer pelo prazer. Empreguei todos os argumentos que inspiram uma paixão ardente. Mas por única resposta, ele me disse com tom mais furioso: “dorme, senão chamo meu pai”. - Mas não há obstáculo que não seja vencido por uma audácia perseverante. Enquanto ele ameaçava despertar seu pai, eu me enfiei em seu leito, encontrando apenas uma minguada resistência, e arranquei-lhe os prazeres que ele me recusava. O garoto pareceu tomar gosto por essa violência. Queixando-se de que, por minha ingratidão, havia-se exposto à caçoada de seus camaradas, para quem elogiara minha generosidade, disse: “Para te provar que não me pareço contigo, podes recomeçar se te aprazer”. - Assim, feitas as pazes e obtido o seu perdão, vali-me da permissão que ele me dera e adormeci em seus braços. Contudo, o adolescente, já maduro para o amor e excitado para o prazer, não se contentou com essa dupla forma de amor. “Então?” perguntou-me. “Não queres

mais nada?” Eu sentia uma sobra de vigor e me empenhei o mais que pude. Banhado de suor e sem fôlego, consegui por fim satisfazer-lhe o desejo. Esgotado por esse esforço triplo, logo tornei a adormecer. Porém não havia passado nem uma hora e já ele me beliscava. “Então? Ficamos por aqui?” Cansado de ser tantas vezes despertado, eu tive um violento acesso de cólera e lhe devolvi a ameaça: “Dorme”, disselhe por minha vez, “senão eu desperto o teu pai”. (PETRÔNIO, 2005, p. 101)

O jovem, apesar da mágoa por não ter visto a promessa de Eumolpo atendida, descobre os prazeres do sexo, mais ainda do sexo passivo, querendo continuar com a relação sexual durante mais tempo. Eumolpo, cansando devido a sua idade, dessa vez é quem se nega a atendê-lo. Percebemos nesse trecho não haver problema algum do garoto com relação às carícias de um homem de idade avançada, mas sim com o não-cumprimento de suas promessas, que são deixadas de lado à descoberta do prazer sexual. Vemos ainda outro exemplo desse trato sem demais problemáticas entre jovens e velhos no canto CXL, dessa vez com uma moça, a filha de Filomena, onde pede à mocinha que fizesse o favor de desempenhar o papel de homem, colocando-se em cima dele (PETRÔNIO, 2005).

Considerações finais Dessa sátira notável, alguns temas só seriam novamente explorados, na literatura, a partir de fins do século XIX, dado seu caráter polêmico. A leitura do Satiricon não somente nos pinta um retrato do comportamento sexual do período imperial romano, como deixa que façamos ponderações acerca do pensamento e do comportamento sexual contemporâneo, visto que a obra foi escrita XX séculos atrás, ainda assim, carrega ideais (entendidos hoje como) bastante modernos. Nas palavras de Otto Maria Carpeaux: “O ambiente (…) é o das nossas grandes capitais, da nossa alta sociedade(…). A obra de Petrônio é de estranha e alegre atualidade”.

REFERÊNCIAS AQUATI, Cláudio. O Grotesco no Satíricon, de Petrônio. Clássica, São Paulo, v 19, n 2. 2006. Disponível em: Acesso em: 10/07/2013

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976. CARPEAUX, Otto Maria. História da literatura ocidental vol I . Rio de Janeiro: Leya, 2012 FACINA, Adriana. Literatura & Sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. LEÃO, Delfim F. Amor e amizade no Satyricon de Petrônio. Universidade de Coimbra. Disponível

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03/07/2013 LOPES, Eduardo Matos. A influência religiosa no comportamento sexual na sociedade romana entre os séculos III e VI. In: XVI Semana de Humanidades, 2008, Natal. ANAIS. Natal, 2008. v. Único. LIMA JUNIOR, Luiz Pereira de. A arte de gostar do mesmo sexo. Verve, São Paulo, v. 12. 2007. Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/verve/article/view/5457/3904 Acesso em: 14/07/2013 MOREIRA FILHO, Francisco Carlos; MADRID, Daniela Martins. Conceituando homossexualidade. ETIC – Encontro de iniciação científica. São Paulo, Vol. 4. 2008. Disponível em: Acesso em: 25/07/2013. PETRÔNIO. Satiricon. São Paulo: Martin Claret, 2005 QUERIQUELLI, Luiz Henrique. Satyricon e tradução poética: traduções brasileiras perante sutilezas cruciais da poesia de Petrônio. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE ESTUDOS FILOLÓGICOS E LINGUÍSTICOS, 2, 2009, Rio de Janeiro. ANAIS. Rio de Janeiro, 2009.

Taciana Ferreira SOARES Graduada em letras pela Universidade de Pernambuco – UPE Pós Graduanda em literatura brasileira pela Faculdade Frassinetti do Recife – FAFIRE [email protected] i

Ronaldo Cordeiro SANTOS Mestrando em Ciências da Educação pela Universidade de Humanidades e Tecnologia de Lisboa Portugal-LUSÓFONA Professor da Universidade de Pernambuco – UPE/Câmpus Mata Norte [email protected] ii

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