A Dívida-Uma Abordagem Filosófica

May 28, 2017 | Autor: Victor Mota | Categoria: Philosophy, Economic Anthropology
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A Dívida Por Joseph Taigen

Ao Daniel Francisco

Partindo do pressuposto de que devemos sempre a alguém qualquer coisa e que os outros nos devem sempre qualquer coisa. Não está em causa uma pretensa salvação da alma mas uma justiça que, a não ser que deixemos descendência, só se realiza com a morte da pessoa. A questão é que a certo ponto nos fartamos de fazer o bem, adiamos o compromisso com o lado escuro da sociedade, talvez pensando em fazer nome. Trabalhar para o nome, como nas sociedades onde a aristocracia fazia impor o estatuto do nome dominando o outro, é qualquer coisa que ainda não morreu. Substitui mesmo a crença na divindade, pois que nesta sociedade competitiva não há espaço para frustrados, falhados, degenerados. O eugenismo que se tenta promover actualmente na sociedade tem raízes antigas e mostra bem como a natureza humana, o que surge aos olhos e aos ouvidos do circunstancial observador, pode ser uma moeda de duas faces: o lado bom e o lado mau. Não pretendemos traçar um retrato da natureza humana tal qual ela é, mas do modo como se apresenta aos nossos olhos. Parece que a nossa sociedade europeia está saindo de um longo sono onde a dádiva regia as sociedades e acordando para uma nova realidade, criada pelos homens, uma sociedade assente em três pilares essenciais: saúde, amor e dinheiro. Esta sociedade tem uma dívida para com o indivíduo ao mesmo tempo que lhe dá liberdade individual. Tudo parece assentar numa gestão racional das energias, não numa gestão sentimental das energias. O amor é objecto banal de satisfação dos instintos mais básicos e então, na cabeça do autor, instalase o que Nietzsche sublinhava ser o grande objecto de estudo do ser humano: a ruminação. Saúde, amor e dinheiro, é o que se propagandeia nos horóscopos e se olharmos a coisa deste modo parece que a vida humana é só composta destes três assuntos. A natureza humana é perversa no sentido em que se espreme o indivíduo com o fim de que ele realiza estes três objectivos para que não se possa queixar diante da sociedade. Pois eu digo que a sociedade deve muito, imensamente ao indivíduo. Porque em criança lhe promete mundos e sonhos que só com saúde, amor e dinheiro se podem realizar. Ao folhear uma revista de psicologia para o grande público, atente-se no que eles, aqueles que ganham dinheiro com a condição depressiva de outros seres humanos, referem: o sucesso profissional, a frustração social, o tamanho do pénis. Pois o que parece estar em causa é qualquer coisa de social. Ninguém pode viver sem a aprovação ou reprovação dos outros, sem os outros. E nisto há qualquer coisa de fundamental. A nossa identidade constrói-se por referência aos outros. Há os que têm maior necessidade de aprovação social, contando-se entre estes a maior parte dos psicóticos jornalistas televisivos, que fazem perguntas como se não soubessem já a resposta, parecendo gozar com o entrevistado e o grande público. Ao ler a comunicação social vê-se como as pessoas pensam, o que as pessoas querem na realidade saber. E o autor conclui, a meio da vida, que a natureza humana não tem nada de fascinante, é mecânica como qualquer máquina saída da sociedade industrial. Dêem explicações mais ou menos científicas às pessoas que elas logo ficam intrigadas, como se a natureza humana fosse qualquer coisa de insondável. Não, não é, lamento dizer, pois toda a sua curta vida o autor pensava que sim, que era, que as pessoas são interessantes, mas chegou a uma conclusão e esta é de que não podemos ser antropocêntricos, sob pena de atrofiarmos nas nossas funções e tudo em razão das preocupações com os problemas dos outros. Se soubessem o que é ter problemas não pediriam e nisto culpo também a massa popular, mais e mais. Saúde, amor e dinheiro, é isto que as pessoas querem. Não haverá nada de verdadeiramente interessante na natureza humana? Não, e com isto arrisco-me a apanhar uma facada de um fanático idealista um destes dias, ou de um materialista perseguidor de consciências. Antes de desenvolvermos mais a questão dos três pilares da sociedade moderna, contemporânea, pós-moderna ou experimental, voltemos à questão de início, à questão que dá título a este opúsculo. As pessoas simplesmente não querem saber e a isto dá-se o nome de egoísmo. Julgo que devíamos reconsiderar o papel do indivíduo no contexto societal sem perder de vista as liberdades até agora conseguidas. Este meu texto pode ter

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pouco eco, mas enquanto não trabalho, proponho-me seguir e propor algumas pistas que me parecem serem importantes para quem virá mais tarde pensar na mesma óptica, ou pelo menos se dedique a questões sociais. A dívida de que falo é a dívida do indivíduo para com a sociedade e desta para com o indivíduo. Parece estranho pensar nestes termos, mas para quem se habituou a ter de pagar pelo seu desejo, outra alternativa não lhe resta senão encarar a sociedade deste modo. Gostaria o autor de pensar e compreender a sociedade no seu todo, mas talvez quando a compreendesse como um todo ao fim de algum tempo não lhe sobravam energias para agir em seu proveito. Também não quero eleger a sociedade, conceito abstracto adiantado e alimentado por gerações de mais ou menos especialistas, como o alvo das minhas críticas, como o bode expiatório. Apenas e mais uma vez, desejo compreender o que é verdadeiramente a natureza humana, admitindo que há uma natureza humana como conceito que nos guia nas nossas análises. Quando a criança nasce, tem a seu lado o ambiente maternal e paternal. Faz um percurso mais ou menos escolar, os que têm essa hipótese e dá-se tempo para aquele ser humano descobrir como se desenvencilhar nesta selva de interesses. Porém, dever-se-ia tratar com violência um ser que faz da inocência e receptividade a sua razão de existir? No processo de socialização ignoram-se muitos aspectos e um deles é justamente o carácter perverso da vida humana em sociedade. Talvez devêssemos ser mais realistas e preparar os espíritos para lidar com os cancros da sociedade, com o mal, com aqueles que querem tudo obter por meios licenciosos e perversos. Não há um consenso quanto a estas questões, nem sou eu que vou dar dicas de como os outros podem viver melhor. Para já porque não tenho o enquadramento legal e institucional para o fazer. Apenas possuo a possibilidade de escrever e esta é a minha liberdade. Rilke previa já que esta possibilidade de escrever é um dom das sociedades modernas ao indivíduo, contudo, talvez a tarefa de escrever deva ser mais tida em conta como uma actividade social do que um hábito individual, rodeado de secretismos toscos e massarentos, como o hábito de fumar. E eis-nos chegado à questão da ruminação mencionada por Nietzsche. Ela é a razão da solidão que se instala na nossa sociedade portuguesa, por mais apelos que os jornalistas façam para as pessoas se abrirem com os outros. Simplesmente, as pessoas não se podem abrir, não têm outro remédio senão carregar o fardo dos seus segredos até que a morte as deixe ignoradas por completo. Porque até contar segredos custa dinheiro. Ajuntando à ruminação eu diria que há uma imensa desconfiança nos nossos espíritos. Só à pessoa indicada podemos contar certas coisas. Não nos é dado expormo-nos ao mundo, nas nossas fraquezas e necessidades. Nem é bom que tal aconteça, talvez em detrimento da liberdade de expressão. Porque o que a maioria das pessoas faz é falar dos outros. Raramente ouvi alguém falar de si, como se fizesse parte da sociedade, como se assumisse como suas as culpas dos erros e devaneios, da desrazão dos outros. Raramente ouvi. E chegamos talvez ao amor, sem ainda não termos resolvidos a questão de fundo que nos traz a este panfleto, que é a dívida. O amor, sendo um espaço de partilha, perde o seu encanto quando partilhamos demais. Mas quando deixamos de partilhar começamos a sofrer. Quem dá a volta a isto? Um padre iluminado, Deus? Aliás, a presença e urgência da figura de Deus nas nossas sociedades secularizadas devia ser qualquer coisa como uma nova conquista para o pensamento ocidental. Devíamos ter a ambição de reconquistar a ideia de Deus para as nossas vidas. Talvez assim o quotidiano fosse menos penoso. Diria juntando a isto que os Outros, de quem passamos o tempo a falar, escrevendo livros e ganhando com isso dinheiro ou admiração ou o ódio, mas nunca o coração das mulheres, os Outros não estão preparados para ouvir a verdade que temos a contar sobre nós mesmos. E essa verdade pode traduzir-se como sendo um inferno de existir, uma ruminação, uma desconfiança, uma suspeita de todo o mundo se uniu para nos tramar. Talvez devêssemos mais acreditar naqueles que propagandeiam os bons afazeres do espírito, os psicólogos. Mas mesmo estes pregam o que pregavam outrora os

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padres, que tanta culpa têm no cartório, simplesmente utilizando outras palavras: pregam saúde, amor e dinheiro, superação, realização, mas nunca se dão conta do opróbrio que é existir e sofrer. Realmente não têm a solução para o sofrimento individual. Também não acredito que a medicalização dos indivíduos traga alguma melhoria no estado de saúde das pessoas. Falo por experiência própria. Não acredito também no esoterismo, no curandeirismo, que nos lança no coração a sensação de todos se uniram para nos tramar. Porém, se não se uniram todos, alguém nos quer mal. Muito mal. E nós, acreditando nisso, deixámo-nos influenciar na nossa conduta. Que estúpidos fomos! Por um lado devia preparase a criança para as durezas da vida, por outro lado, tem de se protegê-la contra o mal, o espírito de Satã que toda a pessoa tem. Sim, porque nunca vi ninguém que tendo ganho a vida honestamente, decida dar toda a sua fortuna aos pobres. Seria uma grande estupidez, mais vale guardar expectativas até que a morte nos leve e nunca se fala dos verdadeiros temas que poderiam fazer compreender as razões de certas condutas, sociais e psicológicas. A questão é também o que deveremos fazer para merecer um lugar na sociedade e a liberdade que advém desse lugar. Ter consciência do lugar que se ocupa é ponto de partida para o exercício dessa liberdade conquistada à custa de muitas mortes e sofrimentos. A liberdade que gozemos hoje em dia na Europa deve ser tida como a maior das conquistas dos tempos modernos. Mas será que essa liberdade individual, esse espírito de iniciativa que os americanos prodigalizaram no seu modo de agir, não advém antes de mais do conhecimento de como funciona a sociedade? Porque o indivíduo precisa de conhecer a sociedade para nela se deslocar e tudo está implicado nesta compreensão. É óbvio que tenho débitos neste respeito a Max Weber. Mas também a outros. O meu intento com este escrito não será apresentar-me como original, pois sei que há mais gente e melhor habilitada do que eu para apresentar propostas. Por isso mais uma razão que tenho para abdicar das minhas obrigações sociais a este respeito. Talvez os jornais e as revistas tenham razão em enfatizar mo amor. Pelo menos andamos distraídos. Uma força como o amor não se distingue do mero desejo sexual? Porque não trocar energias quando o que conquistámos foi o direito a essa conquista. Mas, mais uma vez, o que fica gravado na nossa mente é a estratégia que se nos exige para realizar o nosso amor. O amor, como o entende o autor, deve ser vivido a dois e felizes os que amam pois estão no centro gravitacional do que é a natureza humana. Eleger o dinheiro como um Deus que tudo permite pode ser o princípio do fim da civilização ocidental. O pior é que este elemento perverso, que veio substituir a troca das sociedades tradicionais, é adoptado mesmo nestas com o tempo. A vida humana passa a valer muito pouco, pois é sob o critério do valor que é avalizada. Este panfleto não pretende ser um ensaio filosófico ou sociológico. Pretendemos dar conta de como o indivíduo fica a dever à sociedade se não cumpre hipocritamente os seus requisitos: alinhar por um sistema de ensino, uma religião, um clube, viver em saúde, pelos menos por fora, realizar dinheiro, porque afinal o dinheiro traz tudo, parece. Com isto o autor não se quer confessar rendido a um deus que nos escravize, muito pelo contrário. O princípio da libertação do homem realiza-se na superação de si próprio, ao cumprir um destino individual. O amor não é senão uma compensação de todo esse caminho. O amor parece não poder ser gratuito mas algo com que a sociedade compensa o indivíduo. Assim se fala. Assim há indivíduos mais bafejados pela sorte do amor do que outros. Feliz a idade em que queríamos crescer como adultos. Feliz essa idade porque é nela que se fazem as descobertas para o amor, o amor que guardamos para o resto das nossas vidas. Eu tinha 15 anos, não deixarei que ninguém diga que é a mais bela idade da vida. A saúde é algo que parece atingir, por relação ao dinheiro, um valor absoluto. Nessa idade de 14-15 anos eu tinha verdadeiramente saúde e pensei: vou aproveitar a minha saúde para ajudar os que não a têm. Porém, com o tempo

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esqueci-me desse intento e não digo que me tenha preocupado exclusivamente comigo próprio, pois dediquei-me a tarefas bem altruístas sem receber qualquer dinheiro. Muitos há que se dedicam ao bem público e pouco recebem, como por exemplo os professores, os médicos de clínica geral. A hierarquia social está mal concebida e julgo que neste ajuizamento não sou o único. A arte de fazer dinheiro é cada vez mais compensada. É isto que a América nos ensina? Sim, porque a União Soviética já pouco nos pode ensinar. É nisto que somos influenciados pelos países mais ricos? Má influência. Deveríamos procurar nas energias intrínsecas a nossa força, o nosso próprio caminho, não fica bem copiarmos os erros dos outros. Ou haverá qualquer força que traz os malefícios com as coisas boas, como o desenvolvimento económico? Na verdade, o único combate que julgo ser digno de travar é o combate pela justiça social, a igualdade de oportunidades, a distribuição equitativa de riqueza. Estarei pensando mal? Não é isto que todos procuram? Que todos anseiam? Talvez não, talvez vivamos mesmo numa selva, num inferno em que o pobre será sempre pobre e o rico sempre rico. Há qualquer coisa de errado no mundo e eu julgo que é a pretensão de poder que todos têm mesmo até à morte. A questão do poder foi já discutida por mim em alguns momentos de escrita. Se nem todos querem o poder, todos são seduzidos por ele secretamente e quando o vêm nas mãos ficam surpreendidos com as maravilhas que ele pode fazer. Não pretendo todavia afirmar que tenho opinião sobre tudo e mais alguma coisa, mas a verdade é que parece que toda a gente tem uma opinião por qualquer coisa, porque não hei-de eu ter também? Junto à liberdade de escrita que tenho, junto a liberdade por não ser compreendido pelos meus contemporâneos até agora. Espero que o caso possa mudar de figura. Apenas descrevo o mundo que vejo e a forma como encaro o mundo, uma concepção de vida que vou construindo com os anos. Também eu me julgava eterno como todos os jovens, porém absorvi aquilo que de melhor a sociedade parecia ter, contudo isso não bastou. Tive de sofrer por acreditar quanto mais não fosse em mim mesmo e fazendo um percurso que julgo muito violento para a mente, conservei no coração as forças para acreditar ainda que vale a pena fazer alguma coisa pela vida. Gostaria de falar de dívida em sentido positivo. Dívida para com os outros, envolvimento, pois parece que não será normal morrer sem dívidas. O problema é que quando queremos realizar os nossos sonhos contraímos dívidas. Por uma questão de princípio ou educação, alguns não estão habituados a terem dívidas e mal suportam a ideia de ter a dever algum dinheiro a alguém. Foi assim que minha mãe me ensinou. Por isso o dinheiro é tão importante, é simplesmente uma bitola que podemos usar nas relações humanas, mas não é a única. Nas relações de amizade há confiança, por isso a questão da dívida põe-se mesmo assim por questões de ética. Contudo, como em tudo, quanto mais pensamos mais asneira fazemos. A premeditação seria o terceiro conceito a adicionar ao de ruminação, que tirámos de Nietzsche e ao que adiantámos de desconfiança. Mas não queremos dar um tom demasiado doentio a este panfleto, apenas seguir o rumo de um pensamento que nos é dado ter, a consciência de fazer parte de qualquer coisa e essa consciência é a própria razão de existirmos como pessoas. Sair por aí esquecendo tudo e todos poderia parecer fácil, mas na realidade é o mais difícil. Porque há instalada uma desconfiança na natureza humana que radica predominantemente no item social da vida humana. Por esta razão devo dar a entender que sou um leigo na questão das relações humanas, apesar de tanto palavreado. Eu próprio tive os meus falhanços e agora só me posso rir deles. Pensará o leitor que tudo estou fazendo para me tornar odiado e conhecido. Pois digo que prefiro, ao fim de tantos anos, contemporizar do que defender ideais e analisar a natureza humana. Na realidade, não é a natureza humana que me interessa, mas cumprir alguma coisa, algum destino, alguma lógica. E suponho que tal só se consegue com a vida quotidiana, com o exercício de uma liberdade individual que respeite o outro. Porque, mesmo assim, aqui chegado, concordo que fiz demasiadas coisas sozinho. Pensar por mim próprio foi o erro que essa liberdade me deu.

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No fundo, talvez não seja católico nem protestante, talvez seja mesmo anarquista e libertário. Seja como for, o reflexo destas palavras será feito pelo leitor. Quanto ao amor, há que definir que temos vários antes demais, dois, tipos de amor, entre homem e mulher e que me interessam. Temos o amor banhado pela religião, que não permite o adultério, tendo em conta o que a Igreja refere. Temos um outro tipo de amor que dá liberdade à pessoa que amamos, porque ninguém gosta em primeira instância de ser traído. Contudo, temos observado que a traição corporal significa na maior parte dos casos a separação. Tudo se resume ao acto sexual? Na verdade, a esta altura da vida, parece-me bem que sim. As pessoas respondem por apelos e não há maior apelo do que o que se faz ao acto sexual. Só quem não sente atracção diz o contrário. O apelo de Deus pode ser mais importante para alguns, talvez o seja para a maioria. Todavia, escreverei para uma minoria que não se sente especialmente dotada de bênçãos ou inspiração divina. Não é meu papel dizer mal de Deus ou das divindades várias, mas talvez ao fim de tanto tempo esteja, como outros, tentando conhecê-lO melhor. Ao fim e ao cabo talvez a questão seja essa. Temos o Outro e temos Deus e se não queremos encarar o Outro como Deus ou Deus como o Outro, talvez estejamos interpretando mal as coisas do mundo. Deus não nos pede que sejamos isto ou aquilo, apenas que sejamos. Será Deus os nossos pais? Estou inclinado a pensar que sim. A desobediência é coisa que nunca conseguimos entender e praticar. Contudo, parece-me que em qualquer lado perdemos o rumo e andamos à deriva. É preciso um outro elemento que nos faça pensar doutra maneira? Será Deus? Será o Outro? Será o amor que sempre procurámos sem saber e que nos escapou entre os dedos como areia? Encontrar um rumo também é propósito deste opúsculo, não pretendemos fazer uma crítica mais ou menos patética do mundo que nos rodeia. Quando se destrói tem de se construir, há que compreender. Por isso não sou anarquista. Pretendo a partir dos elementos, dos dados que se apresentam ao meu espírito e que não são meus, são emprestados, transmitir algo, talvez uma verdade, talvez uma palavra para quem como eu sofre por não amar, por ver os seus direitos cerceados. Não posso esquecer que noutros países, a situação está bem pior. Não nos podemos esconder, mas também não nos podemos mostrar, sob pena de perder a integridade física. Passaremos a ser camaleões no deserto, na selva, regressado à condição primitiva de ter de lutar pela sobrevivência? Porque esta questão darwiniana resume tudo, embora não explique tudo. Resume porque nos diz que temos de ter iniciativa individual, guardar o melhor para nós próprios sob o risco de entrarmos em crise e viver doentes. Antes viver doente de amor do que doente pela nossa própria imagem. A questão darwiniana não explica tudo porque em sequência somos seres sociais, que se dão uns com os outros, que lutam entre si. Esta ideia não significa que tenhamos de matar alguém pelo que ele é, contudo devemos defender-nos do que julgo ser uma intromissão na nossa própria liberdade e identidade, devemos lutar por tudo para nos libertarmos de razões doentias que justifiquem a nossa escalada social. A identidade pessoal define-se com a educação, com o comportamento. Mas muita curiosidade mata. Matou o gato e pode matar-nos a nós. É preciso muita ênfase e cuidado na educação, sob pena de ficarmos com a culpa de não termos orientado bem os outros. Não é a culpa que importa, mas são na realidade os Outros, mais uma vez. Neste aspecto sou muito católico. Antes do meio da vida damo-nos conta que talvez estejamos perdendo tempos e energias mentais e reservamo-nos o direito de expressar a nossa liberdade individual de modo pouco responsável. Reconheço que um dos erros do nosso tempo pode ser esse. Neste aspecto, contudo, sou protestante. Acredito que cabe ao homem controlar o seu próprio destino reprodutivo, contudo o homem sem a divindade nada mais é que uma sombra observada de longe à face da terra. Estes meus pensamentos poderão ser correspondidos na última obra de Alain Touraine, de que conto dar conta mais adiante como referência. É o regresso a como integrar a diversidade, o papel do sexo nas nossas vidas e o papel da religião nas sociedades. Coisas sobre as quais

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sempre reflecti, na minha vida e na minha obra. Não há nada de novo nesta obra, talvez, mas a roupagem é nova como é a que apresento neste panfleto ou possivelmente ensaio, como não são novas as minhas ideias, apenas as formulações pretendem ser originais, tal como se estivéssemos pondo na mesa novas equações matemáticas. Disseram-lhe um dia que a natureza humana não importava. Agora compreendia porquê. O simples facto de nascer foi um acto de dívida, pelo simples facto de nascer teria de pagar toda a vida a sua existência. Além do mais com dinheiro que não lhe pertencia, diziam. Esta condição, juntando a outras, tornava impraticável qualquer relação laboral e odioso qualquer acto social. Existir tornava-se agora uma forma de afirmação, não existia essa coisa a que chamamos sociedade. Qualquer pensamento era perigoso, nisso a religião tinha razão, muitas vezes pensar, falar, agir, pode ser criminoso se não nos adequamos à regras sociais vigentes. Contudo, este ser humano existia em supranumerário e abstraía-se de todos os problemas, mas o simples acto de mijar tinha de ser pago. Se tudo se paga, até a satisfação do desejo, como é possível construir alguma coisa? Se entramos em despesas pelo simples facto de sairmos de casa, de irmos trabalhar, como conseguir ganhar mais do aquilo que se gasta, que se perde? Como conseguir construir algo sem errar? De facto, naqueles tempo de princípio do século XXI a sociedade exigia cada vez mais e mais do indivíduo. Por outro lado, fomentava-se a liberdade do indivíduo e aplaudia-se a inteligência ao serviço do espectáculo, do gáudio das multidões, do sucesso. Sempre parcial, esse sucesso era sempre parcial. Certo, as coisas estavam relacionadas de alguma maneira, mas perdendo tempo (e ninguém nos paga para estudarmos as relações entre as coisas do mundo, as ideias e os actos) a compreender essas relações perdia-se tempo necessário ao agir. Como é que indivíduo que é jogado desde cedo para fora da sociedade se deve comportar? E se é julgado e jogado fora por ser diferente e se ninguém se responsabiliza, como não consentir a revolta deste indivíduo? Como conceber que ele seja incapaz de qualquer forma de violência mantendo intactos os seus dignos desejos quanto à realização no seio da sociedade? Estas questões levantavam-se naquele tempo naquele pequeno país sem que alguém ousasse defendê-las. Eram escritas a pouco e pouco, dia após dia, sem que conhecessem a discussão em colóquios e academias, e programas de televisão. Existiam na mente de uma pessoa que simplesmente continuava um caminho. Não estava perdido como muitos diziam, continuava, pela floresta adentro, desbravando caminho. Podia ser que um dia se revoltasse, podia comentar um dia a alguém as ideias que lhe nasciam como filhos, podia até passar muito tempo sem que alguém se apercebesse que afinal alguém lhe deveria ter reconhecido em certa altura uma certa forma de talento. Mas não, decerto continuaria indigente, esperando, desesperando, batendo a todas as portas até que alguém lhe abrisse uma oportunidade de mostrar que afinal tudo quanto dele diziam não o afectava minimamente. Era seria a sua grande vingança, continuar caminho, continuar até descobrir alguma coisa de seu, perdido que estava desde que nascera. Mas sabia reconhecer quem o ajudara. E contudo que estariam fazendo essas pessoas? Algumas estariam já mortas, outras estariam simplesmente vivendo, em solidão ou não, mas muitos à sua custa estavam bem colocados na escala social, disso tinha consciência. De modo que se a natureza humana era perversa, este ser tinha por vingança ser o mais perverso de todos. É claro que respeitava a sua integridade, numa forma de egoísmo talvez inigualável. Mas não são o egoísmo e o altruísmo dois extremos que se tocam? Apesar de tudo, este ser aprendia a viver e de uma forma ou de outra era testemunha da vulnerabilidade da vida humana. Que não adianta realizar muitos sonhos, alimentar muitos sonhos, pois que pelo meio se encontram os outros a quem é preciso dar atenção. No dia seguinte, no minuto seguinte, no instante seguinte, um tecto podia cair, um tremor de terra podia acontecer, não se sabia bem o que fazia a natureza ou as divindades. E ainda bem pois podia ter algum dia sorte e sobreviver para contar alguma história aos seus netos.

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Os dias continuavam a cair como o pano de um palco. A dívida mantinha-se, pois considerámos que ela se contrai com o nascimento. Mas será que a dívida é só monetária? Temos certamente uma dívida afectiva para com o mundo. Não quer dizer que temos de nos dar permanentemente, mas é algo parecido aos Big Men da Melanésia, que têm de distribuir os seus bens por todos e são os que mais têm em termos simbólicos. Pode ser objectivo de qualquer homem não deixar dívidas para os seus sucessores e começo e ver que este é um dos propósitos e compromissos práticos da vida em sociedade. Parece ser uma sina de muitas famílias ter antepassados que os deixaram pobres e estes tiveram que reconstruir todo o seu futuro na ordem do factor económico. Pois um dos compromissos de uma vida parece-me ser não deixar dívidas para que os outros paguem. Só assim um conjunto de gerações poderá crescer economicamente e noutros sentidos. A dívida de que falamos trata-se de uma dívida de amor para com o mundo. O autor destes escritos fugiu do amor carnal e normal para se instalar numa dimensão de amor estético, místico, altruísta, sem a devida iniciação à vida sexual. Depois, passaram mais de dez anos até que compreendesse como nos devemos entregar aos outros com o nosso corpo e como esse processo de compreensão foi lento e doloroso, pois não tinha sido ele iniciado nas artes do amor. Agora compreende que o verdadeiro amor é aquele em que dois corpos se entregam um ao outro, porque não duas almas, num frémito de desejo que resume todas as suas existências. Esta é a dívida que temos para com o mundo. E se conseguirmos encontrar uma fiel companheira, melhor será, pois não nos expomos ao risco das doenças que alguns na Igreja dizem ser castigo de Deus. Pois nada há de mais belo que a união de dois corpos, seja para procriação seja para simples prazer. Nada há de mais terapêutico e que nos acorde mais o sentidos e a honestidade. Porque é honesto todo o acto de amor. Mas o amor é coisa que se sente, não se vê. Onde ver então o amor? Ele está nos amantes que proliferam pelas ruas, nos jovens que são iniciados às suas artes e que assim cumprem um destino. Não há nada de mais importante a fazermos enquanto estamos no mundo. Nem política, nem dinheiro, nem cargos, nem religião, nem conquistas. Tudo se confunde no amor e no entanto sentimos quando estamos apaixonados pelo mundo e pelas pessoas. Há outras formas de amor que não se resumem a Casanova e Sade. Há tantas formas de amor quanto pessoas há. Há uma altura da vida e que queremos provar tudo, outras alturas em que criamos gostos e seleccionamos as mulheres com que queremos andar. Outras em que procuramos uma em especial para nos acompanhar pela velhice afora. Andamos grande parte da vida procurando o amor e quando ele nos bate à porta ficamos atónitos, parece que queremos mais, que o desejo não pára nunca. O que é feito da paixão, do amor a que nos entregamos sem condição? Talvez seja esse o amor passageiro, o que não gera frutos. Talvez adiante esteja algo de novo se anularmos uma relação existente. Com o amor temos compreensão, nunca pena. Temos compaixão, sentimos empatia, sentimos o que o outro sente. A paixão não dura uma vida diz-se. O amor dura duas vidas, é paciente e generoso, sabe esperar. Sabe partilhar. Só o tempo pode dizer se uma paixão pode ser vivida como amor, mas muitas vezes a necessidade de criar filhos pode trazer o amor. Por vezes sentimo-nos admirados? Será isto uma forma de amor? Quando de repente somos confrontados com uma situação que não esperávamos pode pôr-se o amor em causa. Será que se pode por o amor em causa? Ele não existe independentemente do que fazemos. Quando deixamos de ser admirados, pode então começar o verdadeiro amor. O amor de mãe é distinto do de duas pessoas completamente independentes em termos de consanguinidade. Quanto mais se ama menos se sabe amar, o amor é uma aprendizagem. Outras coisas necessárias a falar é o futuro. Quem não se intimida com a desgraça que vai à sua volta, com o sofrimento humano? A nossa vida é influenciada pelo ambiente em que vivemos e nem sempre temos disposição para conviver. Mas quando o tempo parece correr devagar e estamos numa agonia à espera que a nossa vida se transforme porque não

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sonhámos viver com a vida que vivemos e temos medo de viver. Quando isto acontece é porque há algo de dramático dentro de nós e que precisa de reparação. Mas não somos máquinas. Mesmo os tempos mortos temos de saber olhar para trás com alguma complacência e ver o presente relacionado mas com o futuro do que com o passado. Isto pode ser a chave para eu, estejamos onde estivermos, nos sintamos vivendo, esse sentimento de estarmos vivos e do que a nossa vida, independentemente do que resolvemos dela fazer, é importante. Se ficamos parados na nossa casa, se o ambiente é muito parado, definhamos, tornamo-nos bichos, animais. Precisamos de contactar com outras pessoas, viajar, conhecer outros lugares, saber com outras pessoas vivem. Isto é talvez o princípio de toda a nossa sobrevivência como seres humanos. Sem amor, nada somos. Sem termos por perto quem amamos, não se trata de verdadeiro amor. A espera para mim tem sido grande, tenho sacrificado muitos dias da minha vida à espera das coisas apropriadas e agora não posso já voltar atrás, vou cumprir aquilo por que estou à espera ou mudar de direcção. Tenho a consciência de ter estado parado no tempo e no espaço, de não ter progredido como pessoa. Será mesmo assim? Criei um medo em avançar, rejeitei o espaço em que vivo por me parecer demasiado familiar Agora compreendo porque fui à Grécia, porque fui para o seminário. É um desejo enorme de não estar aqui, de estar por contraponto noutro lugar, em viagem constante quem sabe, em presença constante noutro lugar determinado quem sabe. Gostaria de viajar, mas tenho de trabalhar, nem sempre se pode fazer o que se quer, creio que se passa assim com a maioria das pessoas. Quisera viajar e esta é uma das coisas mui necessárias, mas não posso depender do esforço e do suor do meu pai para fazer o que quero. Acredito que ainda posso ser feliz, de outro modo já teria me conformado e desistido. Como passou tanto tempo e ao mesmo tempo tão pouco! Agora desejo segurar o tempo e não pode ser, tenho de me entregar ao tempo. É isso condição para ser-se feliz. Outra cousa necessária é o trabalho e consequente remuneração. Quando não há contactos, há esperança. Quando não estamos em contacto com o mundo exterior sofremos. O tempo passa e estamos dependentes de razões alheias para trabalhar. Está-se deixando passar o tempo e isso põe-nos em baixo. Há um tempo em que temos de reconhecer que o amor se apagou. Então damos importância a novas formas de amor e esperamos que um dia nos traga o vento novo amor. O que mais espanta nas coisas do mundo é que nem tudo é amor. Coexiste o ódio lado a lado ao amor e a inveja suscita dizermos mal uns dos outros sempre que surge uma oportunidade. Neste particular as mulheres também não escapam, parecem ser as primeiras a dizer mal de quem tem menos sorte e não têm medo nenhum que ao cuspir para cima lhes caia o escarro em cima da testa. Os académicos provincianos são os primeiros a estender a mão e os primeiros a dar-nos uma bofetada com a outra. É disto que vive o academismo em Portugal: competição, inveja, sentimento de capela. Ninguém quer perder o emprego, nem que para isso seja corrompido nas suas ideias. Não vejo a universidade como algo de aberto e saudável, mas como qualquer coisa de doentio, como via Agostinho da Silva. O sistema está organizado para favorecer os interesses de quem entra na academia e a mim próprio só me resta um caminho autodidacta, mas não irei erigir a universidade como meu alvo. Sim, certos universitários que gostam de pisar e gozar quem faz o bem. De mim não levam nenhuma resposta, apenas a minha indiferença. A maior parte dos académicos quer publicar, mesmo desviado do mundo e dos acontecimentos, construir carreira e têm medo das vidas simples. São todos cheios de jogos, intrigas, interesses e tiques. Nada há como a liberdade de não pertencer a nenhuma universidade, possibilita-nos ver as coisas de modo mais saudável e verdadeiro. Longe de nós vitimizar-nos por não ter conseguido certas coisas. Decerto que se as tivéssemos conseguido, o nosso discurso seria outro, ou nem haveria discurso, afogar-nosíamos nas palavras dos outros. Mas os nossos erros foram por falta ou por excesso de coração. Queríamos testar a resistência de um ser humano exposto à coisas do mundo, que

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muitos acham trivialidades, até onde poderia ir o espírito de curiosidade, a ciência de viver, de aprender com o passar dos dias. Éramos adorados, passámos a ser odiados, não sabemos em que lugar somos desejados. Andaremos às cabeçadas ainda como que fazendo sentido entre quatro paredes que o mundo tem. Por vezes sentimos que somos grandes demais no lugar que habitamos. As pessoas não nos dizem nada, não nos reconhecem. Outras, quando os outros falam alto, retraímo-nos e sentimo-nos incomodamente pequenos. Andaremos decerto à procura do nosso lugar, no sentido aristotélico, no sentido de sermos uns globbetroters do pensamento e do espaço. Mas dói-nos ver o tempo passar e não podermos fazer grande coisa senão esperar quietamente as nossas mortes. É isto que define a natureza humana. Temos a dado momento consciência de que esperamos a morte e que os outros esperam a morte, como esperam por um comboio ou um autocarro. O que nos dói é não amarmos já e sentirmos que o mundo nos está a escapar e não o podemos abarcar. O que dói mais e nos faz roer as unhas de nervoso é ver jovens atraentes com homens feios ou velhos. Tem-se uma sensação de injustiça, de raiva. Desaprendemos de como amar, se é que alguma vez amámos, não me quero gabar disso. Não que o nosso coração tenha ficado empedernido, mas cansou-se, cansou-se de esperar pelo amor, pela mulher certa e em algum ponto tudo se desconjuntou. O pior é que este sentimento de desconjuntamento não traz nenhuma bonança ou sorte. É certo que haverá outros como nós que se desencontraram de outros, mas em tudo isto como noutras coisas, somos egoístas. Queremos a nossa saúde, a nossa reforma, queremos perdurar no tempo e refrear os impulsos. Em nome dos outros, pois então. Perdemos a esperança de construir uma vida longa perto dos que amamos que não sejam da nossa família. Há quem esteja longe da família por motivos diversos. E quem esteja por perto e não a possa amar, mais do que platonicamente. Se calhar tinha de ser assim, a vida é uma sucessão incerta de repetições. No sentido biográfico. Os caminhos são tantos quantas pessoas há. Talvez valha a pena reconhecer a riqueza disto. Que a diversidade dos caminhos da vida, das pessoas, a diferença cultural e psicológica de que falo com frequência, é uma riqueza, um meio para, não uma limitação. Seja como for, todos temos uma dívida de amor para com o mundo. Esta dívida começou com a crença numa divindade, ou em divindades, evoluindo para o monoteísmo que impera hoje em dia. O que poucos se atrevem a notar é a relação existente entre género e religião e esta é uma questão que percorre toda a minha vida. Muitos ocupam-se da religião mas esquecem a função sexual, muitos ocupam-se do sexo e da sexualidade e parecem esquecer a sua componente religiosa. A vida que há em nós sob a forma de impulso sexual é qualquer coisa de muito poderoso, diria mesmo de espiritual e é combinando vários items da vida humana que pretendemos descrevê-la. À luz da religião já se cometeram grandes e pequenos pecados, capitais, veniais, pecados da carne e do espírito. À luz da religião na actualidade continuam a fazer-se guerras, numa situação que parece ser uma espiral de afundamento sem fim. Para onde irá a humanidade? Parece não haver lógica no mundo de hoje e se houvesse não seria a minha mente a feliz contemplada em descobri-la. Por isso falo em dívida no sentido em que todos temos algo para construir, material e espiritualmente. O meu propósito nunca foi construir um império económico, digo pessoalmente. Mas tão só bastar-me, deixar obra de pensamento para que possa ser continuação de algo e ser continuada. É este o meu maior desafio. Encontrei diversos obstáculos, mas quando o dom da escrita se desenvolveu, guardei-o durante anos a fio, como se de um segredo se tratasse, não contando que os outros haviam de se interessar pelos meus escritos. Pois é tempo de acabar com esse enguiço, para que sinta que as palavras, como as imagens, contam. Há sempre alguém que as possa vir a ler e no entanto só Deus me pode tirar o prazer de estar escrevendo palavras, estar agindo em pensamento. Em vão procurei junto dos outros correspondência daquilo que dizia. Em vão tentei fazer amigos nas academias e entre escritores. Estou sendo um exilado no meu próprio país. Mas

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não digo isto em sentido negativo. Não odeio o meu país. Apenas quereria não olhar tanto para o passado e não ser perfeccionista em termos de conduta. Porque não adianta. O fluxo da vida está passando por mim e me vai abandonar um destes dias para pertencer a outro ser ou regressar ao infinito donde vim. Simplesmente não temos de nos esforçar por sermos perfeitos ou santos. As coisas acontecem, passam por nós como uma benção. O bem não tem de ser resultado de um esforço mental nem muito menos físico, tem de ser algo espontâneo, porque nascemos com determinadas características de personalidade e a nós cabe desenvolvê-las ou não. Já disse em outro lugar, em outro escrito, que se possuirmos a chave da sexualidade, o mundo pode ser muito melhor governado. Se controlarmos a pornografia o mundo pode ser melhor governado. De modo a evitar tristezas evitáveis. O grande erro meu como de alguns foi o de não me ter entregue à carne quando se exigia que o fizesse e assim não estaria aqui teorizando sobre isto. Talvez tivesse outras ideias. Talvez não julgasse que temos uma dívida para com o Outro, a sociedade, Deus, o próximo, como lhe queiramos chamar. Mas isto é voltar atrás, falar em termos de passado. Contudo é nele que ancoramos o nosso presente e projectamos o nosso futuro. Talvez, como escritor, devesse desejar mal a alguém, odiar alguém, matar alguém. Mas tudo isto seria muito pouco face ao que pretendo fazer. Não pretendo matar Deus novamente, depois de Nietzsche e tanta outra gente o ter feito. Não, pretendo dar provas de que ele existe e dar novas provas, como aliás descrevo e nomeio num meu outro escrito. Habitava nesse ser uma esperança e uma bondade que não se compadeciam com os tempos competitivos de hoje em dia. Quisera ele também ser demasiado acertado, mas creio que falhou o alvo ao confiar nos homens, nas mulheres. Depois de tanto reprimir o desejo, passou anos de privação, desenvolvendo uma sexualidade solitária. O tabaco e a frustração de não ter emprego deitaram-no abaixo e agora vive como um cão abandonado, sem amigos, sem sucesso, sem trabalho, sem mulher ou filhos. Os seus dias são um desvelo de mágoas e o cansaço apodera-se do seu corpo e da sua alma. Arrasta-se entre casa e as cidades mais próximas que, aparentemente, nada têm para oferecer. Cobraram-lhe uma dívida, por existir, por desejar, por ser inventivo e fazer as coisas de outra maneira. Ora, como muitos ficaram pelo caminho antes dele, não se considera infeliz de todo, antes vê nos dias que passam um novo alento de viver pensando, procurando pequenas lógicas para que lhe vai sucedendo. A dívida que lhe cobram a todo o momento é ter de manter relações sociais e isso tem um custo. Na vida tudo tem um preço. Longe vai o tempo em que os antropólogos pensavam que a sociedade podia viver da dádiva e da troca. Hoje em dia nada pode parar o poder do dinheiro. O que se contempla neste caminho é a possibilidade de escrever e o amor à escrita e à leitura. Contudo, são actividades não mercantilizáveis a que não damos a primeira importância que devíamos dar. Dá-se importância às infraestruturas, à criação dos filhos, quando se não pensa devidamente a vida. Pelo autor esta vida foi demasiado pensada e desde cedo. Perdeu as forças viris e pode agora entregar-se ao seu maior prazer: a escrita. Talvez agora lhe dê alguém ouvidos, pelos erros que cometeu a quem muitos chamam pecados, pelas infâmia que fez passar a sua mãe e seu pai, por ter esperado um amor que nunca mais chegava, sob a condição de acreditar no mundo e que alguém consigo acreditasse no seu sonho de uma vida normal. Não pedia muito esta pessoa, este actor social, contudo quando se é jovem não se pensa no futuro; vive-se o presente e só ele importa, não importam as consequências, os projectos são meros castelos de areia. Se não aparece alguém para os proteger são levados pelas águas do mar, das chuvas ou simplesmente pisados. Uma dívida que tenho para com os outros pode ser a dívida da palavra, a palavra dita de Mário Viegas ou simplesmente num café, conforme se fala conforme correm os pensamentos. Aquilo que gostaria que se realizasse um dia seria não haver dívida alguma do indivíduo para com a sociedade, que as crianças pudessem crescer saudavelmente, mas os antropólogos dizem que não podemos evitar o conflito, que ele é

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inerente à natureza humana, contudo creio que se pode dar um jeito se olharmos mais em Portugal às ciências do social. Assim o país pode crescer integrando em si as minorias, crescer verdadeiramente em termos económicos e culturais. E este Portugal por mim tão ofendido com a vida errante que tenho levado, simplesmente porque talvez não tivesse a audácia de outros, contudo amo a vida e é à custa desse amor que sou fatalmente atraído para o erro, desvelando um rol de fraquezas que fazem de mim um ser humano. Este meu mundo, feito de cigarros e pensamentos, intrusado por certas pessoas, pode durar uma eternidade se não fizer alguma coisa. Contudo, tenho a impressão de que não há muito mais a fazer. Não vou correr atrás de ideais como noutros tempo. Talvez mesmo consiga um trabalho que me canse fisicamente e me faça sentir revigorado dia após dia, até que possa justamente ser lembrado como um homem que existiu e tentou ser português. Não é assim nada de tão complicado a vida. Tem três, quatro coisas que interessam, como referem os astrólogos: o amor, o dinheiro, o trabalho, a felicidade. Contudo eu juntava-lhe os amigos, que me têm ajudado com suas palavras de entusiasmo a levar uma vida que estava predestinada a ser passada num hospital psiquiátrico. Contudo, se isso não aconteceu, pode ainda acontecer com o meu consentimento. Perguntar-me-ão os leitores porque é que não consigo falar de outras pessoas que não eu próprios e os meus homens duplicados. Talvez por ter consciência de mim mesmo e imponha a mim mesmo uma tarefa de mudar o mundo. Foi assim até agora, não será mais. Sendo assim, parece que estas palavras soam a algo que se descobriu de novo. Não, nada há aqui que não tivesse sido já descoberto. Apenas relatamos o modo como estas coisas, estes items da vida humana, nos influenciam. Resolveria acaso o dinheiro todos os nossos problemas? Pagaríamos dívidas, ofereceríamos dinheiro aos amigos, faríamos festas. Decerto que a vida sem dinheiro não tem interesse nem defendo ser o dinheiro uma invenção perversa. São conhecidas todas as vantagens que a invenção da moeda e do valor trouxe na economia das nações. Este ensaio está chegando ao fim, sem que se prove cabalmente que o existir é em si mesmo contrair uma dívida, não é essa nossa intenção. Quisemos alertar para o facto de a dívida do indivíduo para com a sociedade ser tão importante como a da sociedade para com o indivíduo. Cabe tão somente a nós alertar para esta relação e que o dinheiro não é tudo na vida, não é um fim, mas um meio, aqui a mão invisível substitui o maquievalismo.

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