A Economia Doméstica em Mamirauá

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“A ECONOMIA DOMÉSTICA EM MAMIRAUÁ” Deborah de Magalhães Lima, Departamento de Antropologia, Universidade Federal Fluminense e Universidade Federal do Pará INTRODUÇÃO1 Este capítulo trata da economia doméstica dos moradores da Reserva de Desenvolvimento Mamirauá, localizada em uma extensa área de várzea da região do Médio Rio Solimões, no Amazonas. Essa população poderia ser classificada tanto como cabocla quanto como população tradicional. Como cabocla, entre outras acepções e como neste livro, estaríamos fazendo menção ao campesinato amazônico de origem colonial, habitante principalmente das margens dos rios. Como população tradicional, estaríamos nos referindo ao fato de serem moradores de uma unidade de conservação de uso sustentável, engajados em práticas de conservação, ou ainda ao fato de se tratar de uma população regional, amazônida, com longa história de convivência com o ambiente natural. Os capítulos de Harris e Barreto Filho fazem contribuições importantes para a análise dessas categorias, apontando para a complexidade de seu emprego.2 Já o tema deste capítulo tem mais afinidade com as participações de Castro e Futemma. Apesar dos enfoques diferentes, os três capítulos tratam da economia doméstica de produtores ribeirinhos.3 Mesmo assim, e de forma indireta, os estudos sobre a economia doméstica trazem elementos para a discussão da identidade, ao tratarem de dois aspectos presentes nas representações deste grupo social: a relação, em geral desconsiderada, entre os produtores e o mercado, e as práticas relacionadas aos usos dos recursos naturais. O presente estudo trata da organização social da produção, do consumo e da circulação em Mamirauá, apresentando, em seguida, uma análise quantitativa da relação da população com o mercado, descrevendo seus padrões de renda e de consumo de mercadorias.4

A BASE DA ECONOMIA DOMÉSTICA EM MAMIRAUÁ: A CASA, OS PARENTES E A COMUNIDADE A casa é a referência principal da economia em Mamirauá. É o lócus da produção, a referência da circulação e o núcleo do consumo. Embora nem toda economia doméstica apresente o grupo doméstico exercendo uma tal coincidência entre as funções de produção, consumo, e circulação (cf. Sabean 1990: 98), em Mamirauá não há separação entre as “unidades econômicas” e as “unidades familiares”. A principal característica da economia doméstica em Mamirauá é o fato de ser orientada para o consumo do grupo doméstico que a realiza. Em cada casa os moradores trabalham para

atender suas próprias demandas de consumo. A produção para a venda e a produção para o autoconsumo são usadas para alimentar, vestir, medicar e dar conforto à existência dos que moram sob um mesmo teto. A renda monetária dos moradores de Mamirauá resulta principalmente da venda de três tipos de produtos: produtos agrícolas (entre os quais a farinha e a banana são os principais), a venda de peixes (secos, salgados ou frescos), e a venda de madeiras (para lenha, madeiras leves e madeiras pesadas, chamadas respectivamente “madeiras brancas” e “de lei”). Também constituem fontes de renda os salários (de professores, agentes de saúde e trabalhos ligados à reserva de Mamirauá) e as aposentadorias rurais. Em Mamirauá aqueles que moram em uma mesma casa são invariavelmente membros de uma unidade familiar e a produção é organizada com base nas relações de parentesco. A autoridade doméstica responsável pela organização das atividades econômicas é normalmente exercida por um casal, que distribui as tarefas econômicas entre si e os filhos. A divisão do trabalho é definida de acordo com o sexo e a idade dos membros do grupo doméstico. Esta forma camponesa de organizar a produção está centrada no ideal de autonomia econômica da casa. A capacidade de prover as próprias necessidades confere boa reputação à casa, e não há, em condições normais, dependência econômica estrita entre grupos domésticos. A formação de uma nova unidade doméstica, que tem sua origem no estabelecimento de uma união conjugal, implica automaticamente na constituição de uma nova “célula” econômica. Quando o casal se forma, geralmente estabelece sua primeira residência junto aos pais de um dos cônjuges para que possam construir, eles mesmos, seu começo de vida independente. A autonomia do casal consiste essencialmente na posse de seu próprio trabalho, que antes compunha a força de trabalho do grupo doméstico parental, e na sua primeira produção agrícola independente – a sua primeira roça. Com esta autonomia de trabalho e de consumo, e em torno de um ano após residência na casa dos pais de um dos cônjuges, o casal constrói sua própria casa, época que coincide geralmente com o nascimento do primeiro filho (Lima e Moura 1995). Nem a herança da terra, nem a transmissão de bens materiais de uma geração à outra desempenham um papel importante na reprodução dos grupos domésticos. O legado mais importante que o casal recebe de seus pais são os laços de parentesco. As relações horizontais entre parentes vivos formam uma rede de ajuda e concedem o direito de usufruto coletivo de recursos naturais. Este direito é vinculado diretamente à residência, que por sua vez é facilitada pela presença de parentes em localidades onde o casal queira se estabelecer. O direito de uso é

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também exercido nos locais onde as pessoas tenham residido, mas o direito à apropriação dos recursos naturais tende a depender da presença de parentes na localidade, tanto para hospedagem quanto para conferir a legitimidade da manutenção do direito de uso. O parentesco permite a inclusão e o pertencimento a um grupo local (formado pelos moradores da “comunidade”, como são chamados os assentamentos rurais na região), e este pertencimento confere o direito de apropriação dos recursos naturais no território ocupado. Entretanto, o parentesco não é o único meio de se estabelecer em uma localidade. Uma pessoa não aparentada a nenhum morador do lugar pode solicitar que o grupo lhe conceda permissão de entrada, e nestes casos é a residência que atribui o direito de apropriação dos recursos naturais. Esta definição do direito consuetudinário de apropriação dos recursos naturais é observada empiricamente nas localidades de Mamirauá, onde todas as casas de um mesmo lugar exercem, por princípio, os mesmos direitos de acesso e usufruto dos recursos naturais. A ausência de privilégios ou de alguma forma social legítima de diferenciar o acesso aos lagos de pesca, às terras agriculturáveis e às florestas constitui a base para a realização de um modelo ideal de relações sociais horizontais entre os moradores de uma mesma localidade. Mesmo nos lugares em que uma família é reconhecida como “fundadora”, e que pode ter ou não algum tipo de documento legal que comprove sua “propriedade” (como os recibos de pagamento de impostos territoriais rurais e as licenças de ocupação), no que se refere à apropriação dos recursos naturais, os membros desta família não possuem direitos diferentes dos outros moradores. A antigüidade de residência, no entanto, confere posição diferenciada às famílias dos primeiros moradores, que pode ser expressa simplesmente em termos de uma deferência e respeito especiais, ou às vezes na posição de dono do santo padroeiro do lugar. 5 As famílias de “novatos”, pela mesma lógica, possuem um status inferior, principalmente se não tiverem parentes no local e não se inserirem de imediato em uma das parentelas locais pelo estabelecimento de relações de afinidade. A hierarquia entre casas e indivíduos responde também a diferenças ligadas à ordem de gerações de uma mesma parentela. Com o tempo, e como há uma alta taxa de casamentos entre pessoas da mesma localidade, as parentelas se tornam ligadas por afinidade e por consangüinidade e as diferenças de status relacionadas à anterioridade de ocupação se perdem. E neste contexto se observa um resultado do processo de reprodução dos grupos domésticos que caracteriza a sociedade rural: a constituição de “comunidades de parentes” que detêm o direito de usufruto comum do território onde realizam suas atividades produtivas.

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A delimitação do território desta “comunidade” é mais precisa em relação à extensão do conjunto de áreas individuais de moradia e plantio, enquanto as áreas de pesca, de acesso coletivo do grupo, são definidas em comum acordo com as localidades vizinhas e por isso sujeitas a conflitos com elas.6 Já as áreas para extração de madeira (as florestas e restingas), têm seus limites progressivamente menos definidos conforme aumenta a distância do local do assentamento. Sua extensão equivale ao raio de ação onde os moradores extraem toras de árvores nativas, e estas não são consideradas propriedades, nem individuais nem coletivas, por não terem sido cultivadas por ninguém.

AS TROCAS ENTRE CASAS E COMUNIDADES Entre os grupos domésticos, as relações de troca são principalmente de natureza não monetária. As doações de peixes e caças, as ajudas no trabalho ou trocas de dias, o trabalho de parteiras, e as curas de rezadores, são trocas orientadas pelo princípio da reciprocidade e expressam o modelo ideal de relações sociais horizontais. São caracterizadas por um intervalo entre as contraprestações, e estas são definidas, por um lado, pela necessidade do grupo que a recebe e, pelo outro, pela capacidade do grupo que faz a doação tem para supri-la. As trocas não são contabilizadas, nem necessariamente equivalentes. Seus volumes não são definidos por critérios de mercado, e sim pelas regras de reciprocidade do grupo. Fazem parte do código de conduta do que seja uma “boa vizinhança”.7 Embora nas localidades as trocas monetárias entre as casas sejam raras, há em algumas delas uma ou mais casas que eventualmente dispõem de um pequeno estoque de mercadorias básicas para venda local. Itens alimentares são normalmente doados e constituem o principal objeto do verbo “vizinhar”, que possui o sentido de trocar alimentos regularmente, mas quando o peixe ou outro artigo trocado possui um valor monetário consolidado, como o pirarucu, sua venda é considerada legítima. Nestes casos é possível um vizinho vender um pedaço de pirarucu a outro, sem que o relacionamento entre eles fique abalado. Com relação às trocas de trabalho, não foi registrado pagamento em dinheiro por serviços prestados a outro grupo doméstico. Os trabalhos realizados para outros são normalmente considerados ajudas ou favores, e como tais são eventualmente retribuídos. Nas localidades de terra firme, por outro lado, é comum encontrar um pequeno mercado de trabalho, não regular, que consiste no pagamento de diárias para contratar mão-de-obra extra para a produção de farinha. Nestes casos, os diaristas são moradores da mesma localidade que tiveram produções agrícolas pequenas e por isso podem oferecer seu

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trabalho para produtores maiores e temporariamente em demanda por mão-de-obra extra. Esta diferença decorre do fato de que na terra firme a farinha é o principal produto comercial, de valor equivalente ao pirarucu ou à madeira na várzea. Considerando o conjunto de localidades de Mamirauá, praticamente não há comércio entre elas e mesmo as trocas não-monetárias são raras. Na várzea, o principal artigo que entra em circulação regular são as “sementes”, ou talos de maniva, que têm grande circulação porque se tornam escassas após as enchentes mais severas. Mas apesar de apresentar uma grande demanda entre os agricultores da várzea, a maniva não participa da esfera de trocas comerciais talvez porque o mercado para a farinha da várzea seja relativamente recente em comparação com as produções extrativas de peixe e madeira. Por outro lado, é possível que o forte simbolismo da maniva a torne resistente à mercantilização. Como as mulheres, às quais a maniva está associada no ritual do plantio das roças, a circulação da maniva é responsável pela reprodução da sociedade.8 Também quase não há circulação direta de produtos entre localidades de várzea e de terra firme, que poderiam trocar peixe por farinha, já que o peixe é mais escasso na terra firme do que na várzea, enquanto a farinha é mais escassa na várzea do que na terra firme, e estes são os principais itens da alimentação de ambos. Praticamente toda troca econômica entre as localidades e seu exterior e dá como troca monetária, e como tal faz parte do domínio mercantil da rede formada por comerciantes urbanos. Como resultado desta configuração das trocas econômicas, as pequenas localidades rurais se posicionam como satélites dos mercados urbanos, cada uma ligada ao principal pólo regional mais próximo de si (no caso de Mamirauá, as cidades de Tefé, Alvarães e Uarini), mas sem interação comercial entre si. As redes de troca entre comunidades ocorrem principalmente como redes sociais, de relacionamentos entre pessoas. No caso da maniva, o fato de não ter equivalência monetária, mesmo apresentando uma ampla circulação entre as casas, indica que a passagem de produtos da esfera das doações à esfera das trocas monetárias é reservada aos comerciantes, e responde à demanda do mercado que eles representam. No ambiente local, predominam as trocas não monetárias e estas apresentam caráter aberto, pois não há interesse em finalizar as transações e sim mantê-las contínuas, o que é próprio das trocas que expressam relacionamentos que pretendem ser permanentes. O ideal de autonomia doméstica também se reflete na identidade coletiva dos assentamentos, principalmente daqueles que, apropriadamente, se autodenominam comunidades.

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Como os moradores detêm os mesmos direitos de usufruto de seu território, em princípio, todos fazem parte da representação coletiva do grupo. A identidade do grupo local é muito forte, como se comprova na força do movimento pela preservação de lagos comunitários que mobiliza ribeirinhos da várzea de todo o Amazonas e Solimões. A posse coletiva de áreas de pesca por um grupo de casas, legitimada pelo usufruto comum dos moradores, envolve intensa atividade política e mesmo a defesa armada dos lagos. Há outras áreas em que a identidade comunitária se expressa com força, como nos rituais religiosos, católicos ou protestantes, e nas formas usuais de identidade ligada ao parentesco, como se vê na forma recorrente de representar o grupo como uma “comunidade de parentes”. Mas as manifestações identitárias locais mais fortes são aquelas ligadas à práxis econômica, pois é neste contexto econômico, em que os grupos domésticos se organizam para a produção de pessoas e dos seus meios de subsistência, que a base de sua noção particular e horizontal de coletividade é construída.

DOIS TIPOS DE CONSUMO Em tese, o consumo doméstico que orienta a produção em Mamirauá pode ser distinguido em dois tipos, segundo sua procedência: o consumo de itens que são produzidos pelo grupo, como por exemplo, a alimentação básica (o peixe e a farinha), e o consumo de artigos que são obtidos através da venda da produção doméstica, como alimentos industrializados, instrumentos de trabalho, vestuário, etc. Na prática, entretanto, separar o consumo direto (ou o auto-consumo) do consumo indireto (ou comprado) é uma operação formal, pois suas produções são interdependentes. O uso de instrumentos de trabalho industrializados na produção de alimentos, por exemplo, mostra a dependência de trocas comerciais para a realização da produção para o consumo direto. A distinção formal interessa como base para uma análise do envolvimento da produção doméstica com o mercado. As populações camponesas modernas têm apresentado um processo gradual de crescimento do consumo de artigos adquiridos no mercado. Na Amazônia, como no Brasil, nunca houve um campesinato independente do mercado, e a sua própria origem se deu a partir da implantação colonial de uma economia mercantil (Santos, 1989). O processo de mudança do consumo está ligado à especialização e ao aumento do volume da produção para a venda, que segue o desenvolvimento do mercado regional. As mudanças na definição das necessidades de consumo envolvem também a atração prática e simbólica das mercadorias. Panelas de barro, coberturas de palha, fogões a lenha, são exemplos básicos de uma variedade de artigos de

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produção local que foram substituídos (por panelas e coberturas de alumínio, fogão a gás, etc.), e implicam em um envolvimento crescente da economia doméstica com o mercado. Embora esta direção seja dominante, a tendência à redução do consumo de artigos produzidos localmente e ao aumento da produção destinada à venda é suscetível a flutuações e retrocessos eventuais.9

ORIENTAÇÃO ECONÔMICA E AMBIENTALISMO: A BASE ECONOMICA DA PARCERIA ECOLÓGICA Para os produtores de Mamirauá, a natureza é a principal fonte provedora do seu consumo, tanto o consumo direto como o indireto. Desta dependência resulta a afinidade dos produtores pelas propostas ambientalistas, que eles traduzem ao seu modo. A conservação da natureza é por eles entendida como uma forma de garantir a obtenção continuada dos meios de sobrevivência na área de uso da comunidade. Já para pescadores e madeireiros que exploram a várzea sem ter um território fixo, se deslocando para onde houver recursos, a ecologia, que remete a uma preocupação com as conseqüências futuras das ações do presente é em princípio contrária ao seu interesse imediato pela obtenção de lucros, sobre os quais se baseia seu próprio empreendimento. Neste sentido, a diferenciação que Weber (1968: 14) apontou entre economias “consuntivas” (como a dos produtores domésticos de Mamirauá) e as voltadas para o lucro ou “lucrativas” (como as empresas extrativistas de pesca e madeira), distingue dois grupos sociais que, dependendo como seus interesses econômicos são atingidos, têm diferentes reações à degradação ambiental. Para os primeiros, importa defender o consumo; para os segundos, o lucro.10 Em algumas ocasiões, os dois grupos se enfrentam em atos de violência ou em manifestações políticas sobre a preservação de recursos naturais; em outras, são apenas forçados a reconhecer, a partir do resultado de suas práticas, as diferentes formas como são afetados pela degradação do ambiente. Se a ambos interessa a continuidade da exploração, a capacidade de deslocamento e expansão da área explorada libera os exploradores empresariais da responsabilidade de manter o ambiente integro. Por outro lado, os produtores domésticos têm consciência das conseqüências negativas de uma exploração intensiva porque são diretamente atingidos pela exaustão dos recursos naturais. A separação entre orientações consuntiva e lucrativa não é intransponível e uma casa pode passar de uma orientação à outra, ou trabalhar com as duas. Em Mamirauá, quando um produtor passa a adotar a orientação lucrativa, ou se especializa no comércio local, passando a ser um “pequeno patrão local”, ou estabelece uma pequena venda na cidade, onde a chance de sucesso

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no empreendimento comercial é maior.

A “PRODUÇÃO” E A “MERCADORIA” - TERMOS QUE IDENTIFICAM A TROCA COMERCIAL O vocabulário que os produtores de Mamirauá usam para falar sobre sua economia doméstica faz uma distinção interessante entre as duas classes de artigos que participam de suas trocas comerciais: os artigos que são comprados e os que são vendidos. Na acepção econômica usual, o termo mercadoria se refere a qualquer item comercializado, mas no léxico dos produtores de Mamirauá (bem como na Amazônia em geral), mercadoria é termo restrito aos itens de consumo comprados, enquanto os itens postos à venda são referidos como a produção, ou o produto. Assim, quando debatem sobre as condições de troca, suas análises se tornam mais claras porque as identidades dos objetos não se perdem ao longo das trajetórias comerciais pelas quais percorrem: “produtos” são os frutos dos seus trabalhos e “mercadorias” são os objetos vindos de fora. Sendo que a economia doméstica de Mamirauá consiste na organização de atividades produtivas que resultam em uma produção que é parte destinada ao consumo da família, parte destinada à venda para a aquisição de mercadorias para abastecer a casa, as estratégias adotadas para atender o consumo doméstico são informadas pelo contexto em que se dá a troca entre a produção e a mercadoria. A equivalência entre os volumes de produtos e de mercadorias comercializados, definida pelos preços de mercado, recebe a atenção dos produtores por seu papel central no resultado da produção doméstica, o consumo de mercadorias da casa. O planejamento e a organização das atividades produtivas, as decisões tomadas quanto ao consumo ou a venda de produtos, e mesmo a escolha da atividade produtiva a ser desenvolvida, são exemplos de comportamentos econômicos que são informados pelo conhecimento da tendência dos preços de mercado. Enquanto a produção destinada ao auto-consumo pode ter seu volume diretamente estimado pelo produtor, a produção destinada à troca resulta em um consumo de mercadorias cujo volume é definido fora da esfera doméstica de produção. Na Amazônia, embora o escambo tenha perdurado como o principal meio de troca desde a época colonial, as trocas de produtos por mercadorias são baseadas em valores monetários mesmo quando não incluem a participação do dinheiro na transação. O dinheiro só chegou à Amazônia em meados do século XVIII e o aviamento, que teve seu período áureo entre meados do século XIX e XX, de fato atrasou ainda mais sua circulação (Santos 1980).

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Talvez a ausência física da moeda tenha contribuído para que os produtores domésticos prestassem atenção na relação entre os volumes dos itens comercializados. Entre os mais velhos, é comum a lembrança dos volumes de produtos entregues ao patrão e das mercadorias recebidas em troca. Por exemplo, na década de trinta uma caixa de castanha era equivalente a seis quilos de açúcar. Este tipo de registro ocorre ainda hoje, mas como a diversidade de mercadorias consumidas cresceu, a lembrança se refere principalmente ao volume da produção mais recente (de farinha, de peixe e de madeira) e não à quantidade de cada mercadoria adquirida a partir da sua venda. Mesmo assim, em 1998, ouvi menções queixosas ao fato de, no Médio Solimões, um cacho de banana “valer” apenas um pacote de bolacha.

OS DOIS CIRCUITOS DE TROCA DE PRODUTOS POR MERCADORIAS EM MAMIRAUÁ Em Mamirauá, ocorrem dois circuitos de troca de produtos por mercadorias. O mais antigo é o tradicional sistema do aviamento. Começa com a mercadoria sendo recebida a crédito, o que estabelece o compromisso de entrega posterior do produto. O outro circuito é a forma mais usual de comércio nas economias domésticas, e se dá com a venda dos produtos para obtenção de dinheiro, usado para a compra de mercadorias. O sistema de aviamento, que tem o patrão como figura central, marca até hoje a percepção local da economia, mesmo quando comercializam diretamente nos mercados urbanos. Neste sistema, o patrão, como se chama até hoje o fornecedor de mercadorias a crédito, personificava o próprio mercado, pois detinha o poder de impor os preços e, portanto, a proporção entre os objetos trocados, com o objetivo de lucrar. A dependência do freguês era baseada na necessidade de consumir mercadorias; seu interesse era, como hoje, comprar mercadorias, mas não havia opções de compra como atualmente. Ao fazer a troca de produtos por mercadorias, o patrão geralmente faz duas operações de compra e venda, lucrando em cada uma delas: compra produtos da economia doméstica para revendê-la, e compra e revende mercadorias para os produtores. Na versão moderna do patrão pequeno (o regatão), este duplo lucro também é feito. Por exemplo, Sr Zozó, morador da localidade Barroso, ganha 30% na transação com mercadorias e entre 10 a 15% com a produção. Mesmo que o patrão (como Sr Zozó) lucre menos com a revenda da produção do que com a mercadoria, o duplo lucro é um comportamento condenado moralmente pelos produtores. Na percepção local, uma troca “justa” se basearia no pagamento de mercadorias com a produção, e isto ocorreria, de fato, se o patrão não lucrasse com a revenda da produção. A qualificação de

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um “bom patrão” dependia desta limitação. Como se lembra Sr Sabá, da localidade Punã, a respeito “do tempo do Alceu Gama”, considerado um bom patrão, “Agora o Alceu... comprava a castanha, comprava tudo pelo preço que ele vendia. E ele não ganhava no produto, ele ganhava na mercadoria, só na mercadoria. E hoje em dia os comerciantes ganham na mercadoria e no produto, enquanto o produto tá (com o preço) lá em baixo...”11 Com a liberdade de comercializar sem o patrão, o produto é trocado por dinheiro, que por sua vez é usado para comprar mercadoria. Este é o circuito usual de troca das economias domésticas, que Marx descreveu como: Mercadoria 1  Dinheiro  Mercadoria 2. De acordo com o léxico local, a circulação simples é expressa como: Produto  Dinheiro  Mercadoria. Já no sistema de aviamento, a ordem de troca é inversa, pois o circuito se inicia com o fornecimento de mercadorias a crédito, que são posteriormente pagas com a produção: Mercadoria  Dívida/Patrão  Produção. As trocas pertencem a uma mesma transação, que têm o patrão como centro. Sem o aviamento, o circuito adquire a ordem comum e em lugar do patrão, o produtor usa o dinheiro. A separação entre as etapas desta transação permite a escolha de preços melhores em cada uma, possível graças à presença de um mercado mais competitivo. Em Mamirauá, o aviamento é a forma predominante de comércio para as duas produções extrativistas, a do peixe e a da madeira. O comércio com os regatões é também a principal opção para os que habitam áreas mais afastadas dos centros urbanos, devido ao custo elevado do transporte da produção. Para os que moram mais perto de cidades, a produção agrícola, principalmente a farinha, pode ser vendida diretamente no mercado urbano. Estes reconhecem a libertação da relação comercial pessoal e dominadora do aviamento, donde a observação que fazem de que “o patrão agora é nossa produção, nosso dinheiro”. Esta expressão pode ser entendida como sua forma de atribuir uma equivalência funcional entre o patrão e o dinheiro. Ambos constituem meios de obter mercadorias, com a diferença que a dívida aprisiona e instaura a dependência pessoal a um comerciante.

O “GASTO” DA CASA E O CONSUMO QUE EXCEDE A “DESPESA” Há uma outra distinção presente no léxico da economia doméstica além daquela entre produção e mercadoria, que se baseia no destino que é dado à produção e, conseqüentemente, ao consumo que ela possibilita. A produção mínima, que é a que cobre as necessidades básicas de

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consumo para a sobrevivência, é descrita como uma produção para o “gasto”, para a “despesa”, o “rancho”, ou para a “casa”.12 Estes termos se referem à aquisição e reposição de mercadorias que servem como alimentos, material de limpeza e outros artigos de consumo imediato. Tanto os itens de consumo provenientes da produção local quanto os que são trocados por mercadorias podem atender a este objetivo de consumo e ser incluídos na categoria de “gasto”. Desta maneira, a produção de farinha pode servir apenas para a despesa da casa, quando toda ela é consumida. E quando alguma farinha é vendida, se o dinheiro é usado apenas para a compra de mercadorias básicas para alimentação - que servem à despesa, aos gastos da casa - esta compra é chamada de rancho. Este conjunto de termos poderia ser traduzido para o jargão econômico como modos de se referir à “cesta básica”, o conjunto de itens de consumo não duráveis cuja necessidade de reposição é freqüente. Além da produção mínima, há a produção destinada à aquisição de algum bem de consumo durável, como um motor, um fogão, uma cobertura de alumínio para a casa etc., que resulta em um aumento no patrimônio doméstico. Este consumo além do gasto não recebe uma terminologia específica. É comum o produtor planejar a produção de modo a alcançar um objetivo de consumo além da despesa, sendo especialmente programada para ultrapassar as necessidades do gasto. Entre os que comercializam com o patrão, tanto o volume quanto o tipo de consumo, ou seja, o destino das mercadorias, se é para o gasto ou acima deste, são determinados antes da produção ser realizada. O circuito de troca do sistema de aviamento imprime uma direção específica à produção: saldar a dívida referente ao adiantamento da mercadoria pelo patrão. O “compromisso” entre freguês e patrão é acertado no momento da entrega da mercadoria solicitada pelo produtor freguês, quando é então definido o volume da produção a ser entregue para pagamento. É neste momento que o freguês decide se as mercadorias que vai solicitar serão somente “para o gasto”, ou se vai adquirir um bem de valor como uma moto-serra, um motor, ou outro artigo, para o qual vai trabalhar para saldar a dívida. Quando trabalha com a produção de peixe, um patrão como Sr Zozó do Barroso, apresentado anteriormente, concede um prazo entre 10 e 20 dias desde a entrega da mercadoria, quando sobe o rio, e seu retorno, descendo o rio para receber o pagamento em peixe. Para a produção de madeira, o prazo é mais longo. A mercadoria começa a ser entregue em março ou abril e o acerto de contas é feito no fim do fábrico13 da madeira, que ocorre normalmente entre julho e agosto. Geralmente as produções extrativas de madeira e de peixe são as fontes de obtenção de

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bens do patrimônio doméstico. Já a produção agrícola, principalmente a de mandioca, é em geral usada apenas para o consumo direto da casa, ou no mais para comprar outros itens de despesa. Na várzea, a produção de farinha é sazonal e não encontramos o manejo de roças contínuas como na terra firme. A mandioca é plantada quando as águas estão baixas ou abaixando, em agosto ou setembro. Esperaram seis meses para a mandioca amadurecer, quando começam a arrancar, ou “mexer” na roça, como se referem à primeira colheita. Quando as águas ameaçam alagar a roça, os moradores da várzea procuram arrancar toda a mandioca que conseguem para fazer farinha rapidamente, de modo a não perder a produção. Entre fevereiro e março, quando começam a arrancar a mandioca, os moradores já têm sua produção anual de farinha definida. Neste momento decidem quanto vão guardar para o consumo doméstico, e quanto vão vender. Procuram calcular uma reserva que dê ao menos para passar o período de inverno, quando a água do rio está alta, mas muitas vezes as famílias têm que comprar farinha até a roça do ano seguinte estar madura. A sazonalidade da produção é ilustrada abaixo, com dados quantitativos. O contexto econômico que muitos moradores de Mamirauá vivenciam pode ser ilustrado com o exemplo da situação em que se encontrava um morador da localidade Vila Alencar no mês de novembro, período de águas baixas. A roça plantada em setembro do ano anterior tinha sido mexida com sete meses, em março, e acabado quase dois meses depois, no fim de abril. Por causa da subida das águas, a mandioca teve que ser arrancada às pressas, durante vários dias sem parar, até terminar. Foram produzidas 16 sacas de farinha, e vendidas oito. Em novembro, este morador ainda tinha meia saca de farinha, das oito que tinha reservado para a despesa da casa. Teria que comprar farinha por algum tempo, pois a roça seguinte, plantada em agosto, tinha então apenas três meses. Só poderia decidir a data de começar a arrancar a mandioca quando tivesse uma previsão do comportamento das águas. Enquanto não tivesse farinha para comer, trabalharia na produção de pescado para comprar os artigos de maior necessidade para a despesa de sua casa. No inverno do mesmo ano, tinha comprado um motor com dinheiro da venda de 50 toras de madeira. Neste exemplo, o morador vendeu farinha que depois faltaria para o consumo, teria que comprar farinha entre outros mantimentos com o dinheiro obtido com a venda de peixe e vendeu madeira que derrubou especificamente para comprar um bem “excedente” em relação às necessidades básicas da casa.

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LIMITES DO CONSUMO A capacidade de produção do grupo doméstico e as condições de mercado são os principais fatores que limitam o consumo da casa, tanto o consumo para o “gasto” quanto acima deste, e não necessariamente a saciedade das necessidades de consumo da casa. A simplicidade e a escassez de posses materiais, e o termo “pobre” que os moradores usam para fazer referência a si mesmos atestam essa percepção de uma limitação do consumo. A identidade “pobre”, e sua alteridade “rico”, são categorias relacionais que equivalem a freguês e patrão. A relação de aviamento os une e define posições diferentes de acesso à mercadoria. Nesse contexto regional, ser pobre tem o significado particular de limite de consumo de mercadorias, de acesso restrito ao mercado e aos benefícios do mundo moderno, como saúde e educação, mas não a indigência ou fome. O quanto o grupo doméstico pode consumir depende tanto de condições externas quanto do próprio grupo, incluindo a escolha pessoal de suas estratégias econômicas. A disponibilidade de mão-de-obra e instrumentos de trabalho, o acesso a recursos naturais, e as condições ambientais são as principais variáveis locais que definem a capacidade do grupo doméstico de produzir. A principal variável externa que afeta o consumo é a razão das trocas, a relação entre os preços dos produtos e das mercadorias. As restrições locais ao aumento da produção se devem ao fato da mão-de-obra ser basicamente familiar, dos instrumentos de trabalho serem simples, e do ambiente impor limitações sazonais à produção. A dependência do comércio com o regatão reduz a capacidade de consumo das unidades domésticas, e tanto estas casas quanto as que comercializam diretamente nos mercados urbanos dependem de uma conjuntura externa para a definição da relação das trocas entre sua produção e as mercadorias que consomem. É ainda comum encontrar entre extensionistas rurais que trabalham na Amazônia a idéia de que a economia camponesa, como a dos moradores do Mamirauá, comercializa apenas o excedente de produção, excedente este entendido como o que resta ou sobra da produção após as necessidades de consumo serem atendidas. Esta interpretação do comércio como sendo eventual se baseia na suposição romântica de que os produtores seriam independentes do mercado. A obtenção de mercadorias, como visto acima, é essencial para a sobrevivência da população que apresenta uma interação constante com o mercado.14 Neste contexto, o que poderia ser entendido como excedente não seria a parte da produção destinada ao comércio, e sim o consumo que ultrapassa as necessidades básicas de sobrevivência do grupo doméstico, cuja obtenção é

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eventual. Além disso, muitas vezes o comércio se baseia na produção de itens especificamente destinados ao mercado e que não são consumidos pela população. Outras vezes, ao invés de comercializar o que sobra, a venda da produção é retirada do auto-consumo para permitir o consumo de mercadorias essenciais. Este é o caso da farinha principalmente, como visto antes, pois os outros produtos, como a madeira, e mesmo algumas espécies de peixe como tambaqui e pirarucu, são produzidos especificamente para o comércio. Os artigos destinados à venda são usados tanto para adquirir mercadorias para o gasto quanto para comprar bens duráveis. Segundo a lógica consuntiva de sua orientação econômica, estes sim podem ser entendidos como algo a mais. A ANÁLISE QUANTITATIVA15 Os dados sobre a produção econômica de Mamirauá apresentados a seguir são baseados nos resultados de duas pesquisas sócio-econômicas: um inquérito pontual em uma amostra de 71 casas de 24 localidades, entrevistadas em outubro de 1991, e uma pesquisa de monitoramento, que acompanhou por 18 meses, entre 1994 e 1995, os orçamentos mensais de 59 casas de seis localidades de Mamirauá (ver anexo). Os indicadores econômicos avaliam diretamente a participação dos grupos domésticos na economia de mercado e, indiretamente, a pressão de uso dos recursos naturais relacionada com a produção comercial. Foram selecionados como indicadores da participação da economia doméstica no mercado os valores médios da renda e da despesa. A análise também inclui uma avaliação do grau de desigualdade econômica entre casas e entre localidades, e documenta os efeitos da sazonalidade sobre o orçamento doméstico.16 Todas as variáveis orçamentárias analisadas são estimativas feitas para as casas, a principal unidade econômica em Mamirauá. A renda domiciliar provém de duas fontes principais, a venda da produção e as aposentadorias e salários. A venda da produção é a mais importante das duas, e representa em média 62% da renda monetária anual, mas a contribuição das aposentadorias e dos salários (do funcionalismo público, pago a professores e agentes de saúde, além de empregos relacionados à reserva Mamirauá) vem crescendo e em 1994/95 representou em média 38% da renda anual das famílias.

14

A RENDA GERADA PELA PRODUÇÃO DOMÉSTICA As duas pesquisas (1991 e 1994/5) produziram estimativas diferentes para o valor da renda bruta anual proveniente da venda da produção doméstica. Em 1991, a venda da produção gerou uma renda bruta igual a US$ 566 em média por casa. Em 1994/95 o valor é mais alto e a renda bruta anual média por casa foi estimada em US$ 888. Estas estimativas correspondem a uma renda mensal média igual a US$ 47 (1991) e US$ 74 (1994/95). A despeito das diferenças metodológicas, acredita-se que a diferença entre as estimativas de renda nos dois períodos seja real e reflita um melhoramento na conjuntura econômica. No período da segunda pesquisa, quando entrou em vigor o plano Real, houve redução da inflação e, a partir do ano de 1995, os moradores da área rural puderam se beneficiar de melhores condições de comércio. Além disso, os dados refletem também efeitos positivos da implantação da reserva, pois o fechamento dos lagos para pescadores de fora aumentou a participação da pesca como fonte de renda (ver abaixo). Uma comparação com a renda monetária gerada por famílias de produtores de outras regiões de várzea da região Amazonas permite observar a diversidade de padrões de renda. Em Mamirauá a renda média é muito inferior àquela estimada por Anderson & loris (1992) para produtores extrativistas da Ilha de Combu, uma área de várzea localizada a apenas 1,5 km de Belém. Nesta região, a venda da produção extrativa (principalmente do açaí, seguido da borracha e do cacau) resulta em um rendimento bruto anual de US$ 3.000 por família.17 Já o estudo de Chibnik (1994) sobre a economia na várzea do Alto Amazonas, próximo a Iquitos, no Peru, retrata condições sociais mais parecidas com Mamirauá. O autor é cauteloso em apresentar a estimativa de US$ 628 como valor médio do rendimento bruto anual, devido à variação que uma mesma casa apresenta no tempo, além da grande amplitude de variação entre casas e localidades diferentes. Na região de Santarém, no Baixo Amazonas, McGrath et al. (1999) estimam a renda bruta anual dos grupos domésticos da Ilha de Ituqui em US$ 950. Apesar das diferenças metodológicas entre esses estudos é possível perceber a existência de uma alta diversidade no padrão de renda de populações de várzea. Considerando este conjunto de estudos, que se estendem do Alto Solimões à Foz do Amazonas, os valores médios de rendimento bruto anual da produção variam entre US$ 500 e US$ 3.000. Como mostram as análises abaixo, mesmo considerando apenas a região de Mamirauá, há grande amplitude nos valores da renda entre as casas de uma mesma localidade, entre localidades diferentes, e de uma mesma casa ao longo do ano. O acompanhamento de orçamentos domésticos

15

no período de 1994/95 mostrou que, em média, a renda bruta anual por localidade variou entre US$ 100 e US$ 2.000. Considerando os orçamentos de casas individuais, a variação é ainda mais expressiva, e enquanto uma casa obteve apenas US$ 56 em um ano, outra alcançou o valor de US$ 5.800 com a venda da produção. Isso significa que as casas apresentam grande variação quanto às suas estratégias econômicas, com diferenças muito grandes em relação à sua participação no mercado e maior ou menor ênfase no auto-consumo.

AS FONTES DE RENDA Em Mamirauá, os principais produtos cuja venda geram renda monetária provêm da agricultura (principalmente o cultivo de mandioca para produção de farinha, seguida de plantações de banana), da pesca, e da extração da madeira. A importância de cada uma destas atividades para a geração da renda varia entre domicílios de uma mesma comunidade, entre comunidades, e entre anos distintos. Essa diferença influencia a variação no valor da renda, mencionada acima, pois uma concentração na pesca ou na extração de madeira gera uma renda mais alta do que uma produção predominantemente agrícola. A diversidade de estratégias econômicas é uma característica da economia doméstica na várzea apontada também em outros estudos (Anderson e Ioris 1992; Chibnik 1994; Harris 2000; Hiraoka 1992; Lima Ayres 1992; Nugent 1993; Padoch & de Jong 1992).

Comparando-se os dados dos dois períodos de pesquisa observa-se que houve mudança na ordem de importância dos produtos destinados à venda. Em 1991 a produção doméstica que mais contribuiu na geração da renda doméstica foi a agricultura (representando 44% da composição da renda obtida com a venda da produção), seguida da extração de madeira (37%) e da pesca (12%). Já em 1994/5 a pesca passou a ser a produção que gerou maior renda, representando 67% da renda obtida com a produção doméstica, seguida da agricultura (17%) e da extração de madeira (11%). Em anexo, o quadro 1 apresenta as espécies que compuseram as categorias “pesca”, “madeira”, “agricultura” e “outros produtos”, de produções vendidas pelas 59 casas acompanhadas em 1994/5. A maior participação da pesca na composição da renda doméstica em 1994/5 está ligada à ocorrência de condições ambientais favoráveis nesse período, pois as enchentes dos anos anteriores foram relativamente altas e possibilitaram a migração de peixes para os lagos. Reflete, também, resultados positivos que o fechamento dos lagos a exploradores comerciais trouxe para os usuários de Mamirauá.

16

A produção pesqueira é formada principalmente pelo pirarucu (Arapaiama gigas), tambaqui (Colossoma macropomum) e algumas espécies de peixes-lisos (Pimelodídeos). Este grupo representa mais de 80% das espécies vendidas. As espécies de madeira mais vendidas no período foram a envira-vassourinha (Xylopia frutescens) e a samaúma (Ceiba pentranda). O principal produto agrícola foi a farinha, e a carne de jacaré foi a caça mais vendida. Com relação à contribuição de salários e pensões para a geração da renda doméstica, não é possível fazer uma comparação com os estudos citados acima, pois estes focalizaram apenas a produção doméstica, isto é, o uso de recursos e a renda proveniente da sua venda. Nas nossas pesquisas, apenas em 1994/5 coletamos informações sobre os valores de salários e pensões recebidos por membros dos grupos domésticos. Entre 48 casas de 5 localidades que tiveram seus orçamentos domésticos computados por mais de 12 meses, 19 casas (39,58%) não ganharam nenhum salário ou pensão, 9 casas (18,57%) receberam salários de forma irregular e 20 casas (41,67%) tinham salários e pensões regulares. Nas 20 casas com renda monetária composta, os salários e pensões constituíram 72% da renda total, e os 28% restantes provieram da venda da produção doméstica. Nas 19 casas sem salários ou pensões, a renda obtida apenas com a venda da produção gerou uma renda mensal média de US$ 47, ao passo que nas 20 casas com renda composta, a renda mensal média total foi de US$ 199 e venda da produção gerou em média US$ 76. Portanto, as casas com salários e pensões tiveram uma renda aproximadamente quatro vezes maior e, nestas casas, a venda da produção foi 1,6 vez maior do que nas casas sem esta fonte de renda. Contabilizando todos os orçamentos da amostra para produzir uma estimativa de média anual geral, em 1994/5 salários e pensões contribuíram com US$ 552 para a renda doméstica anual. Somados aos valores da renda obtida com a venda da produção, têm-se a estimativa da renda domiciliar anual média igual a US$ 1.440. A importância dos salários e pensões na composição da renda doméstica é, portanto, bastante expressiva (figura 1). Em algumas localidades (Vila Alencar e Jarauá principalmente), este resultado foi influenciado pelas atividades do Projeto Mamirauá, pois alguns pesquisadores contrataram membros dessas comunidades como seus assistentes de campo, alguns temporários, outros permanentes. O mais comum, entretanto, são salários que provêm dos cargos de professor e agente de saúde, pagos pelas prefeituras, e as pensões relativas a aposentadorias rurais, que os moradores acima de 60 anos e os deficientes físicos recebem do Estado.

17

Figura 1: A composição da renda doméstica de 59 casas. 1994/95

Outros produtos 3% Extração Madeira 7% Salários e Pensões 38%

Agricultura 14%

Pesca 38%

Estes dados mostram a importância que as aposentadorias rurais têm para os grupos domésticos de Mamirauá. A venda da produção doméstica é, ainda, a maior fonte de renda, e constitui em torno de 62% da renda doméstica. É um valor baixo, considerando que representa a maior parte do esforço de trabalho dos adultos e crianças que compõem o grupo doméstico.

PADRÃO DE CONSUMO A principal categoria de consumo que provém diretamente da produção doméstica são os alimentos. A refeição diária básica (o peixe com farinha), é inteiramente produzida pela casa. Também são consumidas frutas coletadas nas matas das imediações e frutas cultivadas nas roças.18 Além da alimentação, há vários artefatos e utensílios domésticos que são feitos com materiais da floresta.19 O consumo de mercadorias inclui tanto artigos não produzidos localmente como alguns que são. Mesmo o peixe e a farinha são ocasionalmente comprados. Embora a diversidade de mercadorias seja maior do que a dos itens que são produzidos para o auto-consumo, a quantidade de mercadorias compradas é menor do que o consumo de produtos produzidos localmente. Uma refeição com macarrão, arroz, ou o consumo de um pacote de biscoito são excepcionais. O Quadro 2, em anexo, ilustra a diversidade de artigos comprados pelas casas. Os gastos feitos pelos moradores de Mamirauá foram estudados a partir de uma amostra

18

de 754 orçamentos domésticos mensais. A análise destes dados estimou o valor médio das compras mensais em US$ 70,00. Com esta despesa, a população adquire principalmente artigos para sua alimentação. Os artigos comprados no período de estudo foram classificados de acordo com seu destino, fazendo um paralelo com a classificação das mercadorias própria dos moradores. 20 A categoria “rancho” inclui os principais artigos de consumo que compõem o que chamamos de “cesta básica”. Os moradores classificam os artigos como aqueles destinados ao “gasto”. Inclui itens de alimentação, material de limpeza, bebidas e fumo, artigos de consumo doméstico e pessoal, de higiene pessoal e medicamentos. O valor gasto com estes itens de consumo representa 59% do total das compras. Os principais artigos que constituem as compras “acima do gasto”, são as peças de vestuário e os bens domésticos. Esta última categoria inclui tanto utensílios domésticos básicos quanto os bens de maior valor, aqui denominados de patrimônio doméstico. Os gastos com estas compras representam 20% do valor total despendido. As despesas com a produção, que compreendem gastos com instrumentos de trabalho e manutenção de equipamentos, constituem apenas 7% do valor total gasto. Incluem também gastos com combustíveis, que em termos gerais representam 8% da despesa total. Materiais de construção e material escolar são pouco consumidos e representam 2% e 1% da despesa total, respectivamente. Os gastos com lazer, os pagamentos de contribuições comunitárias e gastos não específicos, ou “outros gastos”, representam, cada um, apenas 1 % da despesa total. A figura 2 ilustra esta distribuição dos gastos.

19

Figura 2: A composição da despesa doméstica em 754 orçamentos domésticos mensais de 5 comunidades. 1994/5 Lazer 1% Outros gastos 1% Material elétrico e de construção 2% Combustíveis 8% Instrumentos de trabalho e manutenção de equipamentos 7%

Alimentação 47%

"Rancho" 59%

Bens domésticos 11%

Material de Limpeza 4% Bebidas e Fumo 4%

Vestuário 9%

Consumo doméstico 2%

Material Escolar 1%

Higiene Pessoal 2% Medicamentos 1%

Apesar do “rancho” ser responsável pela maior parte da despesa doméstica, as mercadorias compradas são muito simples e o padrão de consumo é bastante regular, com pouca variação entre as casas. Os cinco artigos mais comprados, em ordem de importância, são: açúcar, café, sabão em barra, óleo de cozinha e leite em pó. A tabela 1 apresenta os 15 itens que apareceram com maior freqüência nas compras, incluindo também a quantidade e o preço médios mensais destes artigos no período de 1994/5. Tabela 1: Lista, em ordem decrescente, dos 15 artigos comprados com maior freqüência, a quantidade média comprada por mês e preço médio de compra (59 casas; 1994/95). Produto comprado Açúcar Café Sabão barra Óleo Leite Fósforo

Ocorrência nas compras (%) 61% 56% 53% 40% 40% 36%

Quantidade mensal 10 kg 414 gr 1,6 kg 1 lata 285 gr 8 caixas

Preço em US$ 8,13 3,65 2,46 2,29 2,74 1,24

20

Tabaco Sal Trigo Farinha Sabão em pó Bolacha Arroz Gasolina Pilha

33% 32% 32% 30% 24% 24% 24% 22% 22%

2 onças 7 kg 1,5 kg 10 kg 0,4 caixa 528 gr 0,7 kg 4 litros 1 unidade

1,63 3,44 1,91 10,72 0,69 1,31 0,78 2,92 1,30

O total dos gastos com a produção representa uma pequena parcela do total geral das despesas feitas ao longo do período de estudo (apenas 7%). A produção pesqueira é, entre as atividades produtivas, a que envolveu gastos mais altos com compra de equipamentos para a pesca e armazenagem do peixe.21 A segunda maior despesa foi com a reposição de peças e manutenção de motores.22 Estes são gastos com transporte que aparecem em todas as atividades produtivas, bem como na comercialização. Somadas, estas duas categorias de despesas representam 82% dos gastos diretos com a produção. Os gastos relativos à produção agrícola23 e à caça24 somaram 14% do total despedido. Não foram declarados gastos com extração da madeira, seja porque são muitas vezes cobertos pelo patrão, ou porque pertencem à categoria de gasto “manutenção de motores”. A VARIABILIDADE ECONÔMICA NA RESERVA Das causas da variabilidade econômica entre as localidades, a principal se refere à localização do povoado e a oferta de recursos naturais nas suas imediações. Como as atividades de pesca e extração de madeira são, em geral, mais rentáveis que as agrícolas, as comunidades com acesso mais fácil a esses recursos têm maiores chances de apresentar rendas mais altas.25 Outros fatores que podem influenciar os padrões locais de renda vão desde as aptidões individuais e tradições familiares, ao acesso a instrumentos de trabalho, disponibilidade de mão-de-obra, organização comunitária, cooperação entre as casas e condições de comercialização. A figura 3 mostra a variação no padrão de renda de cinco comunidades: Barroso, Vila Alencar, Nova Colômbia, Novo Pirapucu e Jarauá, em 1994/95. As estimativas da renda média mensal estão decompostas em venda da produção (por tipo de produto) e salários e pensões.

21

Figura 3: Composição da renda média mensal das casas de 5 comunidades. 1994/5 200 Renda mensal média (US$)

180 160 140 120 100 80 60 40 20 0

Barroso

Vila Alencar

Novo Pirapucu

Nova Colômbia

Jarauá

Pesca

23

9

57

26

106

Madeira

9

0

0

0

5

Agricultura

1

3

25

19

19

Salários e Pensões

31

77

15

50

50

Outros Produtos

2

3

0

3

8

A maior estimativa de renda mensal foi obtida na localidade Jarauá: US$ 194, um valor quase três vezes maior do que a estimativa mais baixa, referente à comunidade Barroso: US$ 67. Apesar das outras três localidades apresentarem rendas mensais parecidas, em torno de US$ 90, elas variaram na forma como suas rendas foram geradas. Além das diferenças na importância relativa das produções de pesca, madeira e agricultura, a contribuição dos salários e pensões variou de apenas 15% em Novo Pirapucu, ao excepcional valor de 85% em Vila Alencar. A renda que Jarauá obteve somente com a venda da produção, US$ 143, foi mais alta do que a renda total de todas as outras localidades da amostra. Este padrão diferenciado do Jarauá está associado principalmente à sua localização, próximo a um sistema de lagos muito piscosos, além do comportamento empreendedor de seus moradores. Barroso, ao contrário, está em local muito longe a um centro urbano. Seus moradores dependem quase inteiramente do comércio com regatões que compram sua produção extrativa.26 A venda da produção na Vila Alencar, em contraste com a do Jarauá, gerou uma média mensal de apenas US$ 14, donde a importância de salários e pensões como fonte de renda para seus moradores. Embora as localidades apresentassem grandes diferenças nos seus padrões de venda da produção, houve pouca variação na ordem da contribuição relativa dos principais produtos. A variação do padrão de consumo das localidades acompanhou a diferença do padrão de renda, como esperado. A menor despesa mensal média foi do Barroso, US$ 45, seguido da

22

Vila Alencar, US$ 47, Nova Colômbia, US$ 60, Novo Pirapucu, US$ 60, e Jarauá, cujo valor foi o mais alto, US$ 123. A alimentação foi o principal item de despesa em todas as localidades. Mas enquanto as quatro primeiras localidades destinaram em torno de 60% dos gastos com a alimentação, Jarauá gastou apenas 37%. O percentual do orçamento doméstico destinado à alimentação é um indicador de condições de vida – quanto mais alto este valor, mais perto o grupo se encontra do seu limite de sobrevivência. Uma menor proporção de gastos com a alimentação indica que as necessidades de subsistência estão sendo atendidas e que outros gastos podem ser efetuados. Tomando como referência o padrão de consumo de Jarauá, cuja despesa mensal com alimentação representa em média 37% de um gasto mensal em torno de US$ 123, é possível deduzir que uma renda mensal em torno de US$ 200 por família pode oferecer condições de vida confortáveis para os padrões de consumo dos moradores de Mamirauá. Em relação aos gastos com a produção, as localidades mais voltadas para atividades agrícolas (Vila Alencar, Nova Colômbia e Novo Pirapucu), destinaram entre dois e 4% de seu orçamento para a compra de instrumentos de trabalho e manutenção de equipamentos. Nas localidades Barroso e Jarauá, onde as atividades extrativas predominam, esta despesa foi mais alta e representou 9 e 12% dos seus orçamentos domésticos, respectivamente.

VARIAÇÃO DE RENDA ENTRE AS CASAS A variação de renda entre as casas foi analisada em uma seleção de 48 casas, para as quais os registros de orçamentos mensais eram mais completos. As casas foram distribuídas em seis faixas de renda, baseadas no valor do salário mínimo na época (R$ 100, então equivalente a US$ 100). A distribuição da renda domiciliar é apresentada na figura 4.

23

Figura 4: Distribuição da renda mensal média (N= 48 casas, 5 localidades). 1994/5

($100 - $199) 19%

($50 - $99) 27% ($0 - $99) 58% ($0 - $49) 31%

($200 - $299) 17% ($300 - $399) 2% ($400 - $499) 4%

Como mostra o gráfico acima, 58% das casas tiveram renda mensal média abaixo de um salário mínimo (sendo 31% abaixo de meio salário mínimo, e 27% entre meio e menos do que um salário). 19% das casas alcançaram renda mensal entre um e dois salários mínimos, e 23% teve renda acima de dois salários. Na realidade, entretanto, a renda de uma mesma casa varia muito, a curto e longo prazos. A longo prazo, o padrão de renda de uma casa varia com o estágio de vida da família, pois é influenciado por suas características demográficas como número de pessoas com idade para participar das tarefas produtivas, número de dependentes e idade do casal. A curto prazo, a renda doméstica sofre grande variação anual por causa das mudanças sazonais que o ambiente de várzea apresenta, como analisamos a seguir.

EFEITOS DA SAZONALIDADE SOBRE A ECONOMIA DOMÉSTICA EM MAMIRAUÁ No Médio Solimões, a diferença entre a altura mais baixa e a altura mais alta do nível d’água do rio é da ordem de 11 a 12 metros por ano. Como em outras regiões de várzea, no Mamirauá é o movimento das águas que define o calendário da produção. A alternância da cheia e da seca provoca mudanças nas condições de produção e estas se refletem nos padrões de renda e de consumo das casas. O ano é dividido em inverno e verão, como são chamados os períodos de cheia e de seca, mas as datas do começo e do fim de cada estação, e a altura que a água atinge em cada uma delas, não são inteiramente previsíveis. O verão ocorre aproximadamente entre os meses de agosto e fevereiro, e de março a julho, o inverno. As roças são “desmanchadas” (i.e., colhidas) na subida

24

das águas, quando a venda de farinha é mais freqüente. No final do verão, a madeira é derrubada. O transporte das toras de madeira e o pagamento pela produção extrativa são feitos no inverno. A pesca é mais intensa no verão, quando também é feito o plantio das roças. Os efeitos da sazonalidade sobre a economia doméstica em Mamirauá são muito marcantes, fazendo com que, mês a mês, a renda proveniente das produções de farinha, peixe e madeira variem. Mesmo com alguma complementaridade entre os três fábricos, a renda, e conseqüentemente também a despesa das casas, são afetadas pelas mudanças no ambiente. Na figura 5 observa-se como a renda cai no inverno e é mais alta no verão. Esta variação segue principalmente a variação de renda proveniente da pesca, a atividade que teve maior peso na geração de renda das casas durante o período de estudo. Figura 5: A variação do nível d’água e da renda mensal média em 5 povoados. 1994/5 250

16 14

200 10

150

8 100

metros

renda (US$)

12

renda var. nível da água

6 4

50

2

6

4

2

12

10

8

6

0 4

2

0

Mês

A imprevisibilidade da subida e descida das águas impõe condições de vida instáveis para os moradores da várzea. A agricultura, a pesca e a extração de madeira não podem ser planejadas com segurança, pois as condições ambientais tanto podem favorecer quanto prejudicar, de maneiras diferentes, cada uma das produções. Na agricultura, o tamanho das roças é limitado pela altura do terreno e disponibilidade de mão-de-obra para fazer a colheita antes da alagação. A cada ano as roças são refeitas por causa das enchentes e, naquelas mais severas, árvores frutíferas e animais de criação podem ser perdidos. A madeira, que é derrubada no verão, depende da enchente chegar até o local onde as toras foram preparadas para poder ser transportada. Se a água não chegar, a madeira se perde. Na pesca, os lagos precisam ser alimentados por cheias

25

grandes para serem repovoados por peixes. Após períodos de enchentes fracas, a produtividade da pesca pode cair. O reflexo deste quadro ambiental é a convivência forçada com o risco e uma busca constante por melhores condições econômicas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A economia doméstica em Mamirauá é uma economia de trocas, no sentido dado por Weber (1968: 12) de ser “orientada pelo fato de que se oferecem, em caráter geral, bens para troca e se demandam outros bens”, em contraposição a uma economia natural, que não conhece dinheiro, ou mesmo a uma economia natural de troca, em que as trocas em espécie são calculadas em dinheiro. A unidade desta economia doméstica, como o nome diz, é a casa, que reúne um núcleo de parentes orientados para a produção e reprodução de pessoas e seus meios de vida. Na sua relação com o mercado, a casa está sujeita à determinação dos preços referentes ao que produz e ao que compra, sendo esta razão monitorada pela identificação das proporções relativas entre produtos e mercadorias. A renda monetária obtida com a venda dos produtos é revertida no “gasto” ou “despesa” da casa, a principal categoria dessa economia doméstica de orientação consuntiva, que se vale também de uma produção de auto-consumo para atender as “despesas”. A dependência a uma conjuntura de preços desfavorável limita a construção de um patrimônio doméstico, dado o valor baixo da renda doméstica, levando ao predomínio do consumo não acumulativo. O padrão de despesa é caracterizado por uma composição muito simples da cesta básica local, o “rancho”. Este é formado principalmente por itens alimentares, mesmo sendo a alimentação diária (peixe e farinha) produzida localmente. O planejamento econômico para superar uma tal contabilidade meramente repositiva é orientado pela determinação prévia e específica de um bem de valor (como um motor ou um fogão a gás) a ser adquirido, e da conjuntura de preços, que informa a escolha do trabalho produtivo para a compra do bem. Além de uma tal definição para a execução de um projeto econômico específico, os desempenhos econômicos das casas variam em função das seguintes variáveis: sua localização e disponibilidade local de recursos naturais, sua proximidade a mercados urbanos e grau de dependência de trocas com patrões, e da composição (ou fase de desenvolvimento) do grupo doméstico, sendo que as aposentadorias rurais tendem a reformular a situação de casas com idosos. Como se trata de uma área de várzea com grande variação no nível da água, a economia doméstica está também sujeita aos ciclos anuais de produção. Às estações do ano estão relacionadas diferenças de renda marcantes, mais altas na estiagem e mais baixas nas enchentes.

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ANEXOS SOBRE A PESQUISA QUANTITATIVA O primeiro levantamento foi realizado em novembro de 1991, no início dos trabalhos do Projeto Mamirauá. A amostra consistiu em 71 casas de 24 assentamentos de moradores e usuários da reserva (tabela 1). As respostas eram recordatórias e se referiram aos 12 meses anteriores à entrevista. As entrevistas de campo foram feitas por Margareth Diógenes e Marise Reis. A segunda pesquisa consistiu no acompanhamento mensal dos orçamentos domésticos de 59 casas de 6 comunidades ao longo de 18 meses, entre fevereiro de 1994 e julho de 1995. A pesquisa resultou em uma amostra de 774 orçamentos domésticos mensais (tabela 2). As casas que participaram da pesquisa eram visitadas mensalmente por Inês Sousa, que recolhia os dados anotados pelos chefes das casas ou fazia ela mesma a anotação do orçamento mensal do mês anterior à sua visita. Os valores monetários foram transformados em dólar, com base nas médias mensais divulgadas pela Fundação Getúlio Vargas. Tabela 1. A amostra do censo da produção econômica - 1991 SETOR MAMIRAUÁ BARROSO BOA UNIÃO JARAUÁ LIBERDADE INGÁ TIJUACA HORIZONTE 9 Setores

Comunidades

N Casas

Boca do Mamirauá, Sítio São José, Vila Alencar Maguari, Barroso Nova Estrela, Vila Nova do Cuiu-Cuiu, São José do Cuiu-Cuiu Nova Colômbia, Jarauá, Isolados do Japurá Fortaleza de São José, Cauaçu de Cima, Cauaçu de Baixo, Coadi Jaquiri Nova Betânia S.João, Porto Braga, Aiucá, Aiucá de Cima, Porto Praia, Miraflor, Sta. Luzia do Horizonte 24 Localidades

11 3 6 9 9 3 4 26 71 Casas

Tabela 2. A amostra do monitoramento socioeconômico de 1994/95 Vila Alencar Nova Colômbia Barroso Jarauá Acari Novo Pirapucu

Total

N casas participantes N orçamentos mensais

15 245

8 70

8 95

15 234

2 20

11 110

59 774

N meses monitorados

18

11

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Fev94-Jul95

SOBRE O CONTEÚDO DA PRODUÇÃO E DO CONSUMO DE MERCADO Quadro 1: Lista das espécies de produtos destinadas à venda na amostra de 1994/5, por categoria de venda. Pesca Peixes: aruanã, bodó, caparari, curimatã, dourada, matrinxã, pacu, pirapitinga, pirarara, pirarucu, sardinha, surubim, tambaqui, tucunaré. Quelônios: iaçá, tracajá. Madeira Acapu, assacu, cedro, copaíba, envira-vassourinha, itaúba, jacareúba, louro-inamuí, louro-preto, macacaricuia, maparajuba, muiratinga, piranheira, samaúma, ucuúba, xixa. Agricultura Abóbora, banana, cacau, cebolinha, farinha, feijão, maxixe, melancia, milho, pepino, pimentão, quiabo, tomate. Outros Produtos Artesanato - assadeira, canoa, fogão de barro, paneiro, pote de barro, tipiti, tupé, vaso de barro, vassoura. Caça - capivara, jacaré, jabuti, mutum. Criação de animais - galinha, ovos, pato, porco. Produtos florestais: ingá, mel.

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Quadro 2: A despesa doméstica em Mamirauá: listagem de todos os artigos comprados, em ordem alfabética e segundo a categoria de consumo, por 59 casas acompanhadas entre 1994 e 1995. Alimentação: abacate; açaí; açúcar; alho; anilina; aracu; arroz; arrozina; aveia; banana; batata; biscoito recheado; bolacha; biscoito doce; bolo; bombom; bucho; café; canela em pó; capivara salgada; carne de gado; carne de anta; cebola; chocolate em barra; colorau; cravinho; cremogema; curimatã fresco; enlatado; erva doce; farinha; feijão; fermento; frutas; galinha; geladinho; jabá; jaraqui fresco; k-suco; laranja; leite em pó; leite condensado; limão; maçã; macaxeira; maizena; margarina; massa de macaxeira; matrinxã fresco; mel; melancia; milho; mucilon; nescafé; nescau; neston; óleo; ovos; pacu fresco; pão; peixe; picadinho; pimenta do reino; pimentão; pirapitinga fresca; pirarucu fresco; pupunha; rapadura; refresco; refrigerante; rosca; sal; salgadinho; sardinha; tambaqui fresco; tempero; tomate; torrada; trigo; tucumã; tucunaré fresco; verduras. Material de limpeza: água sanitária; amaciante de roupa; anil; bombril; detergente; esponja; estopa; sabão em barra; sabão em pó; sabão em tablete. Bebidas e fumo: cachaça; cerveja; cigarro; papelinho; tabaco; vinho. Consumo doméstico: detefon; elástico; fósforo; isqueiro; lâmpada; linha para costura; pente; ração; rodax; tinta para tingir; vela. Higiene pessoal e cosméticos: absorvente; acetona; barbeador; batom; brilhantina; creme babosa; creme de barbear; creme p/ cabelo; desodorante; escova de dente; esmalte; gilete; leite de rosas; óleo para cabelo; papel higiênico; pasta de dente; perfume; sabonete; serra de unha; xampu; talco. Medicamentos: remédios diversos; seringa. Combustíveis: gás de cozinha; gasolina; óleo diesel; pilha; querosene. Instrumentos de trabalho e manutenção de equipamentos: anzol; arpão; arpoeira; banca de cevar; bico de arpoeira; bico de flecha; bomba de brita; bombilho; breu; caixa de isopor; cartucho; cavador; chave de boca; chumbo; consertos em geral; crê p/ calafetar barco; enxada; esmeril; espoleta; fundo de motor; gaxeta p/ motor; gelo; graxa p/ motor; haste; lima; linha de pesca; lona; machado; malhadeira; mangueira; nylon; óleo lubrificante; óleo queimado; palheta p/ motor; peça p/ motor rabeta; peneira; pião de moto-serra; pólvora; remo; terçado; tipiti; vela de motor; zagaia. Material de construção: armador de rede; bocal; charão; durapox; fio elétrico; lambril; parafusos; porcas; pincel; prego; ripa; rolo para pintar; tábua; tinta a óleo; tomada; torneira; zinco. Bens domésticos: Patrimônio doméstico - aparelho de som; árvore de natal; bicicleta; bola de futebol; botija de gás; brinquedo; calculadora; canoa; colchão; filme para máquina; fita cassete; fogão; guarda-chuva; máquina de costura; máquina fotográfica; motor; quadro; rabeta; rádio-gravador; relógio; toca fita; valise; ventilador. Utensílios domésticos - abridor de lata; agulha de costura; bacia; balde; bico de mamadeira; boca de fogão; cadeira; chupeta; colcha de cama; concha; copo; corda; cortador de unha; escova p/ lavar roupa; espelho; faca; filtro de barro; fita; garrafa térmica; guardanapo; jogo de bacias; jogo de mantimentos; lamparina; lampião; lanterna; lençol; mamadeira; mosquiteiro; panela; pano p/ mosquiteiro; peneira pilão; pinico; porta-prato; pote de barro; prato; pregador de roupa; rede; registro fogão; saco; sacola plástica; talheres; tigela; toalha; tupé; vaso plástico; vassoura; vela p/ filtro; xícara. Material escolar: apontador; borracha; caderno; caixa de lápis de cor; caneta; cartilha; cartolina; cola; envelope p/ carta; lápis; papel almaço; papel crepom; papel sem pauta; pasta escolar; quadro. Vestuário e uso pessoal: atracador de cabelo; bermuda; biquíni; blusa; bolsa; bota; botão; brinco; broche; calça comprida; calçado; calcinha; camisa; camiseta; carteira; casaco; chapéu; chuteira; cinto; conjunto de roupa; cueca; fraldas; gargantilha; grinalda; meia; mochila; óculos; pulseira p/ relógio; sandália; short; sombrinha; sunga; sutiã; tecido; travessa; vestido; vestido de noiva; zíper. Lazer: cartela de bingo; foguete; maracá; liga p/ estilingue. Outros gastos: contribuição p/ associação comunitária; pagamento de dívida; passagens; registro de nascimento; revelação de filme.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Alencar, E. 1994. Memórias de Mamirauá. Manuscrito. Alencar, Edna Ferreira. 2002. Terra caída: encante, lugares e identidades. Brasília, 245p. Tese de doutorado em Antropologia, Universidade de Brasília, Departamento de Antropologia. Almeida, M. W. B. 1992. Rubber Tappers of the Upper Juruá River, Brazil – The Making of a Forest Peasant Economy. Cambridge, 400p. Dissertação de Doutorado, Departamento de Antropologia Social, Universidade de Cambridge, Inglaterra. Anderson, A. B. & Ioris, E. M. 1992. The Logic of Extraction – management and income generation by extractive producers in the Amazon. In: REDFORD, K. H. e PADOCH, C. (Eds), Conservation of Neotropical Forests – working from traditional resource use. New York e Oxford: Columbia University Press, pp: 175 – 199. Chibnik, M. 1994. Risky Rivers: The Economics and Politics of Floodplain Farming in Amazônia. Tucson & Londres: The University of Arizona Press. Garcia Jr., A. 1983. Terra de Trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra. Gudeman, S. & Rivera, A. 1990. Conversations in Colômbia – The Domestic Economy in Life and Text. Cambridge: Cambridge University Press. Harris, M. 2000. Life on the Amazon. Oxford: Oxford University Press. Hiraoka, M. 1992. Caboclo and Ribereño Resource Management in Amazônia: A Review. In: REDFORD, K. H. e PADOCH, C., Conservation of Neotropical Forests – working from traditional resource use. New York e Oxford: Columbia University Press, pp: 134-157. Lima Ayres, D. 1992. The Social Category “Caboclo”: history, social organization, identity and outsiders identification of the rural population of an Amazonian region. Cambridge, 342p. Dissertação de Doutorado, Departamento de Antropologia Social, Universidade de Cambridge, Inglaterra. Lima, D. e Moura, E. 1995. A Reprodução Social de Grupos Domésticos em Comunidades do Mamirauá. Projeto Mamirauá - Relatório Semestral No 6, manuscrito. Lima, D. 1999. A construção histórica do termo caboclo. Sobre estruturas e representações sociais no meio rural Amazônico. Novos Cadernos do Naea, V.2, N.2, pp: 5-32. Lima, D. & Alencar, E. 2001. “A lembrança da História: memória social, ambiente e identidade na várzea do Médio Solimões”. Lusotopie 2001, pp.27-48. McGrath, D.; Castro, F.; Câmara, E. & Futemma, C. 1999. Community management of floodplain lakes and the sustainable development of Amazonian fisheries. In C. PADOCH, J. M.

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AYRES, M. PINEDO-VASQUEZ & A. HENDERSON (Eds.) Várzea – diversity, development, and conservation of Amazonia’s whitewater floodplains. Nova York: NYBG Press. Murrieta, R.S.S. 1998. O Dilema do Papa-Chibé: Consumo Alimentar, Nutrição e Práticas de Intervenção. Revista de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP), 41(1): 97150. Murrieta, R.S.S. 2001. Dialética do Sabor: Alimentação, Ecologia e Vida Cotidiana em Comunidades Ribeirinhas da Ilha de Ituqui, Baixo Amazonas, Pará. Revista de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP), 44(2): 39-88. Murrieta, R.S.S. e A. M. WinklerPrins. “ Eu adoro flores!”: Estética, Experimentação Agrícola e Gênero nos Quintais e Jardins de uma Comunidade Ribeirinha da Ilha Ituqui, Pará, Brasil. Nugent, S. 1993. Amazonian Caboclo Society – an essay on invisibility and peasant economy. Providence / Oxford: Berg. Padoch, C. & W. DE Jong. 1992. Diversity, Variation and Change in Ribereño Agriculture. In: REDFORD, K. H. e

PADOCH, Christine, Conservation of Neotropical Forests –

working from traditional resource use. New York e Oxford: Columbia University Press, pp: 158 – 174. Padoch, C., Ayres, J.M., Pinedo-Vasquez, M. & Henderson, A. (eds). 1999. Ecology, Conservation and Development of Amazonian Várzea. The New York Botanical Garden Press. Queiroz, H. & Crampton, W. 1999. Estratégias para Manejo de Recursos Pesqueiros em Mamirauá. Brasília: Sociedade Civil Mamirauá. Sabean, D. W. 1990. Property, production, and family in Neckarhausen, 1700-1870. Cambridge: Cambridge University Press. Santos, R. 1980. História Economica da amazona (1800-1920). São Paulo: T. A. Queiroz. Santos, R. 1989. O "Genius" de uma Economia: Reflexões e Propostas sobre o Desenvolvimento da Amazônia. In: Populações Humanas e Desenvolvimento Amazônico, Série Cooperação Amazônica 3. Belém: OEA, UFPa. Weber, M. 1968. História Geral da Economia. São Paulo: Editora Mestre Jou. 1

Agradeço a Edna Alencar, pela leitura e comentários.

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Sobre a categoria social caboclo, e sobre a identidade particular dos moradores da região de Mamirauá, ver Lima Ayres 1992, Lima 1999, Lima e Alencar 2001, e Alencar 2002.

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Além das diferenças nos seus focos temáticos, há diferenças regionais importantes a considerar. Por exemplo, na região do Médio Solimões, as alagações anuais atingem 12 metros, as faixas de restinga são estreitas e o sistema de “lagos” de várzea é formado por centenas de corpos de água relativamente pequenos, se comparados com as grandes formações lacustres do Baixo Amazonas, onde a amplitude das variações do nível da água é menor e as extensões dos terrenos de várzea são consideravelmente maiores. No Médio Solimões, o território de pesca de uma comunidade é formado por um conjunto de lagos, manejados de diferentes modos, enquanto no Baixo Amazonas várias comunidades podem compartilhar um mesmo lago (como, por exemplo, o Lago Grande de Monte Alegre, ou o de Curuai) e ter que negociar acordos comuns. Na várzea do Baixo Amazonas, há grandes extensões de pastos naturais e a criação de gado é uma fonte de renda e poupança importante para a economia doméstica na várzea (como mostram Castro e Futemma neste volume), ao contrário do Médio Solimões, onde não ocorrem campos naturais, e a criação de gado na várzea é pequena. 4

Como este estudo foi realizado no início da implantação da reserva, é possível considerá-lo representativo da economia doméstica dos moradores da várzea da região do Médio Solimões. Na ocasião, as poucas mudanças causadas pela criação da reserva referiam-se ao aumento da produção pesqueira, em razão do fechamento dos lagos a pescadores de “fora”, fato que já pôde ser registrado pela pesquisa. Sobre a RDS Mamirauá e mudanças nas condições de vida da população, acessar a URL: http://www.mamiraua.org.br/. 5

Nos casos de conflitos internos, o status da família mais antiga pode referendar nominalmente o acatamento de sua opinião pelo grupo, mas o que de fato determina esta decisão é o peso de sua parentela, que tende a ser a mais numerosa. 6

Estes conflitos se acirraram após o surgimento do movimento de preservação de lagos, no qual ribeirinhos defendem a conservação e o direito de explorar exclusivamente lagos de pesca. Os ribeirinhos se posicionam contra a entrada nos lagos não só de pescadores comerciais como também de pescadores artesanais de outras localidades. O movimento de preservação de lagos representa, na verdade, menos uma demanda ambiental do que uma ordenação do território. A repartição de lagos de pesca entre as localidades é assessorada pelo Movimento Eclesiástico de Base (o MEB) e a Igreja Católica. Tal divisão de territórios aquáticos, que segue os pleitos encaminhados por lideranças comunitárias em assembléias regionais, foi chamada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) de “reforma aquática”. 7

Para outras descrições sobre trocas econômicas em comunidades ribeirinhas, ver Lima Ayres (1992) e Harris (2000).

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Ver Murrieta (1998; 2001) e Murrieta & WinklerPrins, neste volume.

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Uma caracterização estatística do consumo doméstico, apresentada abaixo, qualifica o grau de envolvimento da economia doméstica com o mercado na década de 1990, relevante para o monitoramento de mudanças no padrão de consumo local. 10

Esta distinção entre as orientações consuntiva e lucrativa tem o mesmo sentido analítico que a oposição entre “casa” e “corporação” de Gudeman e Rivera (1990). Mas com relação a uma comparação entre a economia doméstica ribeirinha e a dos camponeses colombianos retratados pelos autores, é pertinente lembrar a observação de Almeida (1992), de que a orientação de consumo dos seringueiros do Acre, como a dos ribeirinhos de Mamirauá, não envolve a mesma preocupação em economizar (thriftiness) apresentada pelos camponeses colombianos. No Acre, ao contrário, a capacidade de exceder o consumo básico é socialmente valorizada e incorrer em dívidas elevadas com o patrão é visto como prova de coragem e disposição para o trabalho. 11

Depoimento coletado por Alencar (1994).

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Garcia Jr. (1974) apresenta a noção de gasto usada pelos pequenos agricultores rurais de Pernambuco. Significa o consumo doméstico e se contrapõe à categoria mais que o gasto, que se refere à parte da produção cuja venda permite a compra de outros artigos de consumo. Entre eles, gasto corresponde ao consumo direto e mais que o gasto, ao consumo indireto. Os agricultores pernambucanos também possuem uma noção de lucro que se refere tanto ao produto líquido, ou seja, o produto total menos as despesas com a produção, quanto o lucro concebido como um dom, exemplificado pela produção de frutas das árvores, um ganho que não provêm do esforço humano (Garcia Jr. 1974: 109; 143; 203). No seu léxico econômico, os ribeirinhos da várzea não possuem nenhuma noção equivalente à de lucro. 13

Termo que indica a época do ano em que se realiza determinada atividade produtiva.

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Nugent (1993) rechaça a pertinência do conceito de “subsistência” para caracterizar o que seria uma área autônoma da economia camponesa na Amazônia. Para o autor, ao contrário, as condições necessárias para que produção de subsistência exista provêm da relação da economia doméstica com a economia capitalista.

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Uma equipe do Projeto Mamirauá participou da produção dos dados quantitativos, entre 1991 e 1996, época em que coordenei o programa de pesquisas socioeconômicas. Gostaria de agradecer a todos, em especial Marise Reis, Margareth Diógenes e Inês Sousa pelo trabalho de campo, Aline Azevedo e Edila Moura pela colaboração técnica, aos estagiários Reginaldo Dias (in memoriam), Fred Cahete, Marília Souza, Márcia Macedo e equipe do Banco de Dados do Projeto Mamirauá por suas contribuições. 16

É importante lembrar que a renda monetária não reflete inteiramente nem a produção total realizada pelos grupos domésticos, nem o consumo total das casas, pois há várias esferas do consumo doméstico, a principal sendo a alimentação, que são providas diretamente pelo trabalho familiar. Devido às limitações da pesquisa, foram coletados apenas indicadores econômicos ligados à produção de mercado, relativamente mais fáceis de medir do que o consumo não quantificado monetariamente. Dados sobre o consumo de recursos naturais podem ser encontrados nas coletâneas Padoch et al. (1999) e Queiroz & Crampton (1999). 17

No entanto, Combu representa uma situação especial. Além da proximidade a Belém, que permite que os moradores comercializem diretamente a produção de açaí, o contexto econômico da produção doméstica difere muito de Mamirauá. Os produtores acompanhados pelo estudo não tinham livre acesso aos recursos extrativos. Eram moradores de uma propriedade e pagavam 50% da sua produção para o dono da terra. Portanto, o valor da venda da produção efetivamente revertido para o orçamento doméstico foi US$ 1.500. 18

Fazem parte da alimentação o abacate, abiu, açaí, a bacaba, o bacuri, vários tipos de bananas (como a banana baré, comprida, ferrão, guariba, guariba azul, maçã, miranha, najá, pacovã, prata, reboio, são tomé, sapo, três-pencas, e a banana urucuri), o cacau, a cana-de-açúcar, castanha, o coco, cupuaçu, a goiaba, graviola, ingá, jaca, laranja, o limão, a manga, melancia, o melão, patauá, a pupunha, a sapota e o tucumã. São também cultivados para o consumo doméstico o cará, cubiu, feijão-de-praia, jerimum, a macaxeira, o maxixe, milho, pimentão, tabaco, e o tomate, entre outros produtos. 19

Tais como o abano, alguidar, as bacias de barro, batedor de ovos, cabo de machado e de terçado, caixa para massa, caniço, canoas, as casas, vários tipos de cestos, chapéus, cuias, esteiras, fogareiros de barro, hásteas, peneiras, paneiros, paredes e coberturas de palha para as casas, potes de barro, remos, tipitis, tupés, vassouras, e prensas. Para a fabricação destes objetos coletam da floresta o arumã, vários cipós, envira, jacitara, o jauari, o cauxi, as palhas de babaçu, cauaçu, ubim, ouricuri, a paxiúba, o açaizeiro, a abiorana, o araçá, a fava, munguba, paxiúba, ripeira, taboca, urucurana, além de diversos tipos de madeiras brancas e pesadas. 20

Almeida (1992: 122), faz uma análise do sistema usado por seringueiros do Acre para classificar mercadorias. A base da classificação é a distinção entre mercadorias duráveis e não duráveis; em um segundo nível, a classificação separa artigos básicos (ou essenciais) e não-básicos (como “luxo” e “vícios”). 21

Anzol, arpão, arpoeira, bico de arpoeira, bico de flecha, caixa de isopor, gelo, haste, linha de pesca, malhadeira, nylon, zagaia. 22

Bomba de brita, bombilho, calafeto, chave de boca, fundo de motor, gaxeta, graxa, mangueira, óleo lubrificante, óleo queimado, palheta, remo, vela de motor. 23

Banca de sevar, cavador, enxada, esmeril, lima para amolar, peneira, terçado, tipiti.

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Cartucho, chumbo, espoleta e pólvora.

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Mas embora o retorno financeiro da pesca seja maior do que o da agricultura, em Mamirauá a atividade agrícola é mais valorizada socialmente do que a pesca. A agricultura é considerada “trabalho” por causa do envolvimento humano na sua produção e porque requer maior tempo e energia do que a pesca. A dedicação exclusiva à atividade pesqueira é mal vista, por razões inversas. Harris (2000) traz uma discussão a respeito desta concepção valorativa do trabalho entre os moradores de uma comunidade de várzea do Baixo Amazonas. 26

A produção extrativa (peixe e madeira) limita a produção agrícola e leva os moradores a incluírem a compra da farinha nos seus gastos. Com isso, cria-se um círculo vicioso: a produção agrícola é prejudicada pela produção extrativa e para pagar as dívidas com o patrão, que inclui gastos com a compra de farinha, não podem deixar de se dedicar ao extrativismo.

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