A educação brasileira no caminho da qualidade? Questões e problemas das políticas educacionais atuais

June 22, 2017 | Autor: Jefferson Mainardes | Categoria: Política Educacional
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MAINARDES, J. A educação brasileira no caminho da qualidade? Questões e problemas das políticas educacionais atuais. In: PULLIN, Elsa; BERBEL, Neusi A. N. (Org.). Pesquisas em educação: inquietações e desafios. Londrina: Eduel, 2012, v. , p. 163-173. (ANPEDSUL 2010).

A educação brasileira no caminho da qualidade? Questões e problemas das políticas educacionais atuais1

Jefferson Mainardes2

A notícia intitulada “A Educação brasileira no caminho da qualidade” vem sendo divulgada, nos últimos tempos, como encarte de jornais e revistas. O objetivo do encarte é mostrar que o Governo Federal “mudou o retrato da Educação Brasileira” e que houve um aumento dos investimentos em educação, de 19 bilhões em 2003 para 50 bilhões em 2010. Além disso, o encarte apresenta as ações do PDE – Plano de Desenvolvimento da Educação, que reúne as ações do Governo Federal que foram delineadas justamente com o objetivo de melhorar a qualidade da educação, ou seja, de mudar o retrato da educação brasileira. Segundo o encarte, o maior desafio do PDE é “assegurar educação de qualidade para 50 milhões de crianças e jovens que freqüentam nossas escolas e universidades”. Para tanto, o encarte apresenta a lista e o resumo de 27 ações. Além dessas ações, há outras ações que integram o PDE que não foram listadas. Outras formas de propaganda das ações do Governo Federal na área da educação são divulgadas pela TV, rádio e outras formas. Na língua inglesa, o termo “spin’ tem sido convencionalmente usado para referir-se a processos e produtos de trabalhar propositadamente com as informações com o objetivo de apresentar instituições, indivíduos, políticas, práticas ou ideias de Trabalho apresentado na Sessão Especial do Eixo Educação Básica – VIII Encontro de Pesquisa em Educação da Região Sul – Anped Sul, no dia 20/07/2010. Apoio: CNPq. 1

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Professor do Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual de Ponta Grossa. E-mail: [email protected]

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forma favorável, com o objetivo de obter apoio para elas ou de convencer o público em geral de que o produto ou a política são bons (GEWIRTZ, DICKSON; POWER, 2004). As práticas de veicular propagandas das ações políticas e das obras não são novas e consomem recursos financeiros significativos. No entanto, no caso do Ideb, do PROUNI, do Mais Educação, da Prova Brasil e demais ações do PDE, observa-se que tem havido uma grande preocupação com a propaganda em detrimento da comprovação das conseqüências e do impacto dos programas que vêm sendo implementados. Assim, o PDE, enquanto uma política educacional abrangente e as estratégias de divulgação que têm sido empregadas pelo Ministério da Educação, assim como qualquer outra política, colocam problemas e desafios aos pesquisadores de políticas educacionais.

Em primeiro lugar, destacamos a importância da autonomia do campo pedagógico (pesquisadores, instituições de pesquisa, editoras, periódicos) em relação ao campo oficial (criado e dominado pelo Estado)3. Embora em muitos momentos esses dois campos estejam próximos e vinculados, como é o caso do Governo Lula, onde intelectuais e pesquisadores têm participado da formulação e avaliação das políticas do Governo Federal, é fundamental que a autonomia do campo pedagógico (ainda que relativa) seja garantida. Um das possibilidades de autonomia ocorre quando os pesquisadores mantêm um certo distanciamento do campo oficial e conseguem realizam análises mais isentas e objetivas das políticas e do seu impacto. A existência de intelectuais distanciados do campo oficial é um dos elementos que garante a análise de pesquisas e tomadas de posicionamentos mais independentes e críticos.

Em segundo lugar, deve-se destacar o papel dos pesquisadores do campo das políticas. Em uma perspectiva crítica, embora os pesquisadores possam destacar os possíveis avanços das políticas, eles não poderiam deixar de explorar os possíveis equívocos, contradições, conseqüências materiais das políticas e a possível reprodução de desigualdades e injustiças. Uma significativa parte desse trabalho está associada a questões de reflexividade ética (GEWIRTZ, 2007; GEWIRTZ; CRIBB, 2006) na qual os pesquisadores precisam refletir em que medida as suas análises podem reforçar ou 3

Segundo Bernstein (1990, p. 184), o processo de recontextualização do discurso se dá em dois campos: o campo recontextualizador oficial (CRO) e o campo de recontextualização pedagógica (CRP). O CRO é criado e dominado pelo Estado, política e administrativamente. O CRP é constituído por pedagogos em escolas, faculdades, setores de educação de universidades, periódicos especializados, fundações privadas de pesquisa. Os agentes do CRP lutam para controlar o conjunto de regras e procedimentos para construir os textos e práticas pedagógicas. Assim, o discurso pedagógico, “é um princípio recontextualizador que, seletivamente, apropria, reloca, refocaliza e relaciona outros discursos, para constituir sua própria ordem e seus próprios ordenamentos” (BERNSTEIN, 1990, p. 184).

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relegar a segundo plano problemas como a reprodução de desigualdades, as formas de opressão e os processos de exclusão que podem ser identificados nas políticas. Pode-se afirmar que há uma relação entre a autonomia do pesquisador e a reflexividade ética, uma vez que em muitos casos, os princípios e valores que orientam a análise das políticas são diversos dos valores que orientam as políticas educacionais. Por exemplo, o pesquisador pode tomar seriamente como referência a democratização efetiva, a justiça social e a eliminação das formas de desigualdade e opressão, enquanto que as políticas educacionais podem comprometer-se fragilmente com a “diminuição das desigualdades”, melhoria da qualidade de ensino, etc.

Plano de Desenvolvimento de Educação e Ideb: uma breve análise

No âmbito desse texto, apresentamos algumas reflexões sobre o PDE, que tem sido objeto de diversas formas de propaganda, bem como de pesquisas e reflexões acadêmicas (por exemplo, GRACIANO, 2007; GRACINDO, 2007; KRAWCZYK, 2008; FERREIRA, 2009; GHIRALDELLI JÚNIOR, 2009; MARTINS, 2009; SAVIANI, 2009; WERLE, 2009).

Partimos do pressuposto de que o PDE apresenta várias características de uma concepção gerencialista de educação. Essa concepção enfatiza a busca da eficiência e eficácia da gestão educacional e escolar e prioriza resultados numéricos, por meio do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica- Ideb, da Prova Brasil, da Provinha Brasil, etc4. Embora a definição de metas e o acompanhamento de dados estatísticos das escolas públicas sejam necessários, é preciso levar em conta a chamada “A ilusão das estatísticas” (BESSON, 1995). Para Besson, as taxas e números constituem somente indicadores de realidades sociais, produzidas para ações específicas que foram observadas, contadas e codificadas. Esses indicadores podem ser uma aproximação mais ou menos satisfatória, dependendo do seu grau de ligação com o objeto que se deseja conhecer. Um dos problemas do Ideb é o fato de utilizar a mesma fórmula para apurar índices de realidades bastante desiguais, seja em termos de desigualdades regionais ou desigualdades de escolar de um mesmo local, situadas em contextos sócio-econômicos 4

Segundo Ferreira (2009), os planos, programas e projetos implantados no atual governo são incongruentes e “alimentados por perspectivas antagônicas em relação a um projeto de sociedade democrática e popular” (p. 265).

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diferenciados. A partir dessas considerações, apresentamos alguns exemplos de questionamentos sobre o Ideb.

No caso do Ideb, observa-se um crescimento nos índices, ou seja, há evidências de que a educação pública brasileira está melhorando (Tabela 1). Na rede pública (Brasil), o Ideb dos Anos Iniciais foi de 3,6 (2005), 4,0 (2007) e 4,4 (2009). Nos anos finais, 3,2 (2005), 3,5 (2007) e 3,7 (2009). O Ideb do Ensino Médio na rede pública foi de 3,1 (2005), 3,2 (2007) e 3,4 (2009). Tabela 1 – Ideb de 2005, 2007, 2009

Brasil – Rede Pública (Total) Brasil – Rede Municipal Curitiba – Rede Municipal Ponta Grossa - PR Rede Municipal Vitória da Conquista - BA Rede Municipal

Anos Iniciais 2005 2007 2005 3,6 4,0 4,4

2007 3,2

Anos Finais 2009 2009 3,5 3,7

Ensino Médio 2005 2007 2009 3,1 3,2 3,4

3,4 4,7 4,7

4,0 5,1 5,0

4,4 5,7 5,5

3,1 4,2 -

3,4 4,2 -

3,6 4,4 -

2,9 -

3,2 -

-

3,2

3,8

2,8

2,4

3,4

2,5

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Fonte: MEC-INEP

Os índices dos Anos Iniciais são animadores. No entanto, é preciso reconhecer que esses índices representam a média. Assim, há redes que não seguiram a tendência de melhoria, como é o caso de Vitória da Conquista (BA), cujos índices dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental foram: 3,2; 3,8 e 2,8 e nos Anos Finais: 2,4; 3,4 e 2,5. Além disso, é preciso considerar o efeito escola (uma escola dentro de uma rede), o efeito professor e o efeito das características sócio-econômicas dos alunos e suas famílias. Embora as médias dos Anos Iniciais das redes municipais de Curitiba ou Ponta Grossa-PR tenham se elevado e estejam acima da média nacional (4,4 em 2009), nas salas de aula certamente podem ser encontrados alunos que não correspondem ao padrão médio de desempenho da rede. São alunos que necessitam de maior atenção e apoio para que possam continuar na escola e terem garantido o direito à apropriação do conhecimento da forma mais ampla e exitosa possível, como seria esperado da escola. Nessas condições, a experiência da escolarização para esses alunos está distante de ser

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bem sucedida, constituindo-se em uma forma de inclusão precária e instável, marginal (MARTINS, 1997)5.

O conceito efeito da escola é utilizado com diferentes sentidos (WILLMS, 2008). De modo geral, o efeito da escola refere-se a determinadas políticas ou práticas de uma escola ou aos efeitos de uma intervenção. Da mesma forma, o efeito professor e características dos alunos e suas famílias são variáveis importantes a serem consideradas na análise dos resultados obtidos em exames nacionais ou apuração de índices tal como o Ideb. Para a apuração do Ideb, as diferenças regionais e locais e os efeitos escola, professor, etc não são considerados. No entanto, isso pode ser considerado pelos pesquisadores em suas análises.

Pode-se admitir que o Ideb constitui-se em um indicador de qualidade de ensino que, considerado isoladamente, não solucionaria o problema das desigualdades educacionais e do processo de aprendizagem. Do nosso ponto de vista, a melhoria da qualidade da educação e a superação das práticas pedagógicas homogeneizadoras, classificatórias e excludentes não dependem do aumento das estratégias de controle e regulação. Ainda que a definição de metas e de índices (tal como o Ideb) e a avaliação em larga escala possam oferecer alguns elementos para isso, defendemos que tal melhoria e superação estão relacionadas a questões macro-contextuais e a questões mais diretamente ligadas ao trabalho pedagógico. No nível macro-contextual, destacamos como essenciais as transformações contínuas de longo prazo voltadas à construção de uma sociedade igualitária e democrática (APPLE, 2001)6. Já entre as questões diretamente ligadas ao trabalho pedagógico (nível micro-contextual) destacamos como essenciais: a melhoria na infraestrutura e condições de trabalho docente; a existência de estratégias de suporte para professores e alunos (principalmente para aqueles que

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Martins (1997), ao discutir a questão da exclusão em um nível mais amplo, defende que o que chamamos de exclusão é “aquilo que constitui o conjunto das dificuldades, dos modos e dos problemas de uma inclusão precária e instável, marginal” (p. 26). 6

Segundo Boron (2003), uma democracia integral e substantiva remete: a) a uma formação social caracterizada por um nível relativamente elevado, ainda que historicamente variável, ao bem-estar material e igualdade econômica, social e jurídica, que permita o pleno desenvolvimento das capacidades e tendências individuais, bem como a infinita pluralidade de expressões da vida social; e b) a garantia formal e factual do pleno gozo dos direitos e exercício dos mesmos na vida cotidiana (capacidade da comunidade ter um governo baseado no sufrágio universal e a mais ampla liberdade política).

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necessitam de mais tempo e apoio para a apropriação do conhecimento); a formação continuada de professores (não apenas a distância ou de modo semi-presencial), etc.

Um dos problemas da perspectiva gerencialista é concentrar os esforços nos processos de controle e regulação, enfatizar a eficiência e eficácia dos processos de gestão, criar políticas amplas, abrangentes e homogeneizadoras. Ao lado disso, a perspectiva gerencialista, em geral, propõe poucas políticas voltadas ao atendimento das diferenças que podem ser melhor visualizadas e percebidas apenas no nível micro (e não por meio da ilusão das estatísticas). Ball (1994) explica que as políticas são “cruas e simples”, já as práticas são complexas, sofisticadas, contingentes e instáveis. As políticas em geral, são pensadas e em seguida escritas com relação às melhores escolas possíveis (salas de aula, universidades, faculdades), com pouco reconhecimento de variações de contexto, em recursos ou em capacidades locais (Ball, em entrevista a MAINARDES; MARCONDES, 2009). Assim, ao mesmo tempo em que o Ideb pode funcionar como um indutor de qualidade, como índice da qualidade de ensino e como um plano de metas a serem atingidas, pode também alterar a forma como as escolas recebem e trabalham com os alunos, principalmente com que “acrescentam pouco valor” ou que “agregam valor negativo” aos índices, como pode ser o caso de crianças com necessidades especiais, alunos que necessitam de maior apoio para a aprendizagem, alunos oriundos de contextos sociais muito adversos, etc.

A pesquisa sociológica traz inúmeras contribuições para essa questão. Ball (2005), em um estudo sobre o processo de mercantilização da educação na Inglaterra, apresenta algumas análises do impacto da mercantilização sobre as crianças e pais, nas relações sociais e sobre o conhecimento. Com relação aos alunos, Ball explica que: “Os mercados obviamente têm duas faces – o consumo e a produção – e o mercado da educação não constitui exceção. Pretendo argumentar que a atuação do mercado estatal na educação, com a sua privatização endógena, demonstra claramente mais uma forma de mercantilização do aluno. As exigências da concorrência, a ‘informação’ disponibilizada pelas Tabelas de Avaliação – ‘ranking’ das escolas -, as pressões por parte do Estado no sentido da melhoria do desempenho, do cumprimento dos objetivos e do financiamento per capita, numa época de contenção de custos, conjugam-se no sentido de criar ‘economias [locais] do valor aluno’. Com efeito, as escolas entram em competição para recrutar os alunos mais aptos para contribuir para o ‘aperfeiçoamento’ e para o ‘desempenho’, mais 6

fáceis e mais baratos de ensinar e mais capazes de contribuir para atrair outros com eles. Como muitos diretores parecem prontos a admitir, a melhor forma de melhorar a escola e de ser bem sucedido na cultura performativa é alterar as admissões. Para o diretor executivo de uma escola do sul de Londres ‘para melhorar o desempenho das escolas é preciso controlar as admissões’. Daí que, muito naturalmente, Kenway e Bullen (2001, p. 135) adiantem que “os diretores das escolas devem angariar clientes, reputação e recursos, incitados a cultivar clientes e meios de comunicação e a encontrar patrocinadores, os diretores passaram a ser empresários educacionais. Nessa economia, algumas crianças têm um valor elevado, ou seja “acrescentam valor” e são muito procuradas; outras, porém, têm baixo valor, isto é “acrescentam valor negativo” (Kenway e Bullen, 2001, p. 140) e são evitadas sempre que possível. Os alunos e pais são, portanto, “produtores do valor de troca da instituição” (Kenway e Bullen, 2001, p. 137). E, segundo os autores (2001, p. 138), espera-se que os pais “trabalhem com afinco no sentido de fazer os filhos trabalharem com afinco”. A criança torna-se um meio para atingir um fim – um objeto. Valorizada pelo seu valor agregado ou estigmatizada pelo seu custo elevado. Assim, as meninas são portadoras de mais valor do que os meninos no mercado da educação (Ball e Gewirtz, 1997) (BALL, 2005, p. 15) Embora não seja ainda possível avaliar o impacto do Ideb, das avaliações nacionais, da ênfase na obtenção de resultados e do alcance de metas, os questionamentos apresentados acima podem servir de alertas importantes no necessário acompanhamento dos desdobramentos e consequências dessas políticas.

Embora tenhamos criticado a falta de políticas voltadas especificamente para os processos de aprendizagem, é preciso reconhecer que essas também foram pensadas, como é o caso do PDE Escola e Programa Pró-Letramento. O PDE Escola é uma “ferramenta gerencial” (segundo a homepage do MEC) destinada às escolas com IBED mais baixo, consideradas escolas prioritárias. Essas escolas precisam desenvolver um Plano de Trabalho e recebem recursos do MEC para realizar essas ações. Diversas limitações podem ser identificadas nessas propostas e encaminhamentos, mas há uma intencionalidade subjacente no PDE-Escola na qual cada escola precisa fazer o diagnóstico da realidade, a autoavaliação e planejar ações com vistas à superação das dificuldades (Plano de Ação e Plano de Ações Financiáveis).

Uma outra política voltada mais diretamente à melhoria do processo de ensinoaprendizagem é o Programa Pró-Letramento, cujo objetivo é oferecer formação 7

continuada para professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental, nas áreas de Alfabetização/Linguagem e Matemática. O Programa foi previsto para funcionar na modalidade a distância e é desenvolvido com o uso de material impresso7, vídeos e atividades presenciais conduzidas por professores orientadores de estudo (tutores) dos próprios municípios, que são formados pelas Universidades que integram a Rede Nacional de Formação Continuada de Professores. O público-alvo do Programa são os professores em exercício que atuam nos anos iniciais do Ensino Fundamental das escolas públicas. Cada grupo de 20 professores cursistas se reúne com um tutor, num período que pode ser semanal ou quinzenalmente. Os encontros são utilizados para discussão dos textos lidos, retomada de atividades realizadas e planejamento de futuras ações. Cada rede de ensino conta com um Coordenador Geral, que é um profissional da Secretaria de Educação, responsável pelo acompanhamento do Programa no seu município, além de participar de reuniões e encontros agendados pelo MEC e/ou pelas Universidades, e prestar informações sobre o andamento do programa no município (ALFERES, 2009).

A partir da pesquisa realizada por Alferes (2009), pode-se afirmar que o Programa Pró-Letramento constitui-se em uma intervenção necessária e importante para que os professores cursistas possam enfrentar os desafios da alfabetização com uma instrumentalização teórico-prática mais adequada. No entanto, pode-se ponderar também que o Programa investigado focaliza um aspecto mais específico e pontual: a questão da alfabetização e as dificuldades em obter resultados mais positivos no que se refere à apropriação do conhecimento básico/inicial da Língua Portuguesa pelos alunos. Além disso, o Programa enfatiza a formação continuada de professores e o trabalho docente em uma perspectiva individual e não em uma perspectiva de ação coletiva para melhorar a qualidade da educação oferecida na escola pública. Dessa forma, conclui-se que o Programa Pró-Letramento é uma medida necessária, mas não suficiente para uma promoção efetiva da qualidade da educação oferecida às classes trabalhadoras. Assim, defende-se a ideia de que a promoção de tal qualidade demanda o encaminhamento de uma série de outras ações que ultrapassam a formação continuada dos professores, tais como: uma maior valorização dos profissionais da educação,

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A coleção do Pró-Letramento (Alfabetização e Linguagem) é composta por 7 fascículos que abordam temáticas relacionadas à Alfabetização e que foram produzidos por docentes e pesquisadores de diferentes universidades (Anexo 1). A coleção conta ainda com um fascículo do Tutor e um outro complementar que trata de questões relacionadas ao processo de ensino e aprendizagem da língua escrita.

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garantia de melhorias na infra-estrutura das escolas, estímulo para a construção de propostas curriculares com a participação dos professores, a existência de projetos pedagógicos consistentes nas redes de ensino e nas escolas, a utilização dos resultados obtidos por meio de avaliações para o planejamento de estratégias de intervenção com a participação do coletivo das escolas, entre outras medidas.

Assim como qualquer política, o PDE Escola e o Programa Pró-Letramento estão sujeitos a diversas formas de tradução e reinterpretação em cada contexto (LENDVAI, STUBBS, 2007)8. Embora sejam políticas mais focalizadas na escola, o desafio dos pesquisadores é identificar em que medida tais políticas contribuem para a construção de um sistema educacional mais democrático e inclusivo, em um contexto caracterizado pela existência de uma profusão de políticas dispersas e contraditórias, e no qual algumas políticas tornam-se centrais e mais difundidas pela propaganda. Não se pode perder de vista que as políticas atuais não possuem valores e pesos paritários e algumas são privilegiadas e mais difundidas (propagandeadas!) talvez por serem as consideradas principais e que nem sempre são aquelas que melhor poderiam colaborar para colocar a “educação brasileira no caminho da qualidade”, pelo menos na qualidade para todos, indistintamente, e não apenas para alunos que possuem capitais culturais e econômicos mais elevados.

Conclusão Nesse texto, partimos da constatação de algumas estratégias de propaganda que têm sido utilizadas pelo Governo Federal e das implicações disso para a análise de políticas educacionais, em especial da importância da autonomia do campo pedagógico e da reflexividade ética na análise das políticas. A partir disso, apresentamos uma breve análise do PDE e do Ideb. Em termos gerais, indicamos que a análise ética e justa das políticas educacionais pressupõe não apenas a indicação de possíveis avanços e

Para Lendvai e Stubbs (2007), a “tradução” é uma forma de leituras ativas, um processo de rerepresentação, de re-ordenamento, de re-instrução através de várias práticas materiais e discursivas. A noção de tradução problematiza a política, a qual é vista como um processo contínuo de “deslocamento, deslocação, transformação e negociação” (CALLON, apud LENDVAI; STUBBS, 2007, p. 177). A tradução pode ser vista como um “processo contínuo por meio do qual os indivíduos transformam o conhecimento, as verdades e os efeitos do poder cada vez que se defrontam com eles” (HERBERTCHESHIRE apud LENDVAI; STUBBS 2007, p. 177). Este processo não pode ser entendido como qualquer resistência ativa ou aceitação passiva, mas como contínua transformação de um símbolo por muitas e diferentes pessoas diferentes que “lentamente transformam-no em algo completamente diferente, na medida em que procuram alcançar como seus próprios objetivos iniciais” (LATOUR apud HERBERTCHESHIRE, 2003, p. 461). 8

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benefícios das políticas mas sobretudo, a explicitação dos processos de reprodução das desigualdades e dos processos de inclusão frágil, instável, marginal. Para isso, é preciso ir muito além dos dados numéricos e refletir sobre as possíveis mudanças que as políticas podem causar nas formas de acesso e permanência dos alunos na escola. A análise da literatura internacional sobre os resultados da perspectiva gerencialista na educação (GEWIRTZ; BALL, 2000; GEWIRTZ, 2002; BENJAMIN, 2002; BALL, 2005) pode ser útil para anteciparmos possíveis impactos e para aguçar a necessária imaginação sociológica que pode em muito contribuir para a análise de políticas.

Referências ALFERES, M. A. Formação continuada de professores alfabetizadores: uma análise crítica do Programa Pró-Letramento. 2009. 159 f. Disertação (Mestrado em Educação) – Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, 2009. APPLE, M. W. Política cultural e educação. 2.ed. São Paulo: Cortez, 2001. BALL, S. J. Education reform: a critical and post structural approach. Buckingham: Open University Press. 1994. BALL, S. J. Educação à venda. Viseu: Editora Pretexto, 2005. (Coleção Discursos). BENJAMIN, S. The micropolitics of inclusive education: an ethnography. Buckingham: Open University Press, 2002. BERNSTEIN, B. The structuring of pedagogic discourse. Volume IV - Class, codes and control. London and New York: Routledge, 1990. BESSON, J. L. (Org.). A ilusão das estatísticas. São Paulo: Editora da Unesp, 1995. BORON, A. A. El Estado y las “reformas del Estado orientadas al mercado”. Los “desempeños” de la democracia en América Latina. In: KRAWCZYK, N. R.; WANDERLEY, L. E. América Latina: Estado e reformas numa perspectiva comparada. São Paulo: Cortez, 2003. p. 19-67. FERREIRA, E. B. Políticas educativas no Brasil no tempo da crise. In: FERREIRA, E. B.; OLIVEIRA, D. A. (Orgs.). Crise da escola e políticas educativas. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. p. 253 – 270. GEWIRTZ, S. A reflexividade ética na análise de políticas: conceituação e importância. Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 2, n. 1, p. 7- 12, jan./jun. 2007. GEWIRTZ, S. The managerial school: post-welfarism and social justice in education. London: Routledge, 2002.

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Jefferson Mainardes é professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa. É mestre em Educação (Unicamp) e doutor em Educação (Institute of Education/University of London). Desenvolve pesquisas no campo da política educacional. E-mail: [email protected]

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