A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA DIFERENCIADA E O ENSINO DE GEOGRAFIA NA ESCOLA MUNICIPAL INDÍGENA DE EDUCAÇÃO BÁSICA DO POVO PITAGUARI

June 30, 2017 | Autor: W. Farias De Souza | Categoria: Geography, Education, Indigenous Studies, Ensino de Geografia, Pitaguary, Educação Escolar Indígena
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA

WALLASON FARIAS DE SOUZA

A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA DIFERENCIADA E O ENSINO DE GEOGRAFIA NA ESCOLA MUNICIPAL INDÍGENA DE EDUCAÇÃO BÁSICA DO POVO PITAGUARI

FORTALEZA 2013

WALLASON FARIAS DE SOUZA

A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA DIFERENCIADA E O ENSINO DE GEOGRAFIA NA ESCOLA MUNICIPAL INDÍGENA DE EDUCAÇÃO BÁSICA DO POVO PITAGUARI

Monografia elaborada como requisito para obtenção do título de licenciatura plena em Geografia pelo Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará no período letivo 2013.2

Fortaleza 2013

WALLASON FARIAS DE SOUZA

A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA DIFERENCIADA E O ENSINO DE GEOGRAFIA NA ESCOLA MUNICIPAL INDÍGENA DE EDUCAÇÃO BÁSICA DO POVO PITAGUARI

Monografia elaborada como requisito para obtenção do título de licenciatura plena em Geografia pelo Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará no período letivo 2013.2.

Aprovado em: ___/___/_____

______________________________________________ Prof. Dr. Edson Vicente da Silva Universidade Federal do Ceará (UFC)

______________________________________________ Msc. Juliana Felipe Farias Universidade Federal do Ceará (UFC)

______________________________________________ Msc. Leilane Oliveira Chaves Universidade Federal do Ceará (UFC)

______________________________________________ Msc. Lucio Keury Almeida Galdino Universidade Federal do Ceará (UFC/UERR)

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais Conceição e Marcelo e minha irmã Milena, pelos ensinamentos para a vida e pelo amor e paciência de sempre. Ao professor Pitaguary Nilton Targino, pela atenção fornecida desde as primeiras visitas realizadas na escola ainda em 2011, estando sempre entusiasmado e disposto a receber e dialogar sobre a escola e a comunidade pitaguary. Ao professor Pitaguary de Geografia Francisco Kelvin Gonçalves, pelo apoio e disposição na realização dos estágios curriculares realizados na escola e na pesquisa para monografia. Aos professores, funcionários e ao núcleo gestor da Escola Municipal Indígena do Povo Pitaguari pelo acompanhamento, atenção, receptividade e apoio nas atividades realizadas. Ao Professor Edson Vicente da Silva (Cacau) por orientar a realização deste trabalho. À Juliana Felipe Farias e Leilane Oliveira Chaves pelo apoio ao longo da minha graduação e pela participação nesta banca de avaliação. À Nicolly Santos Leite que sempre esteve do meu lado ao longo destes quase quatro anos. Às pessoas que fazem parte do Laboratório de Geoecologia da Paisagem e Planejamento Ambiental - LAGEPLAN, onde se iniciou esta pesquisa.

RESUMO O presente trabalho de pesquisa discute a importância da educação escolar indígena diferenciada e do ensino de geografia nesta modalidade, enfatizando a importância desta modalidade no resgate e valorização da cultura indígena, na reafirmação de identidades e na garantia dos seus territórios e direitos. Para isso, realizaram-se leituras preliminares sobre a temática e adotou-se como lugar de pesquisa a Escola Municipal Indígena de Educação Básica do Povo Pitaguari, em Maracanaú-CE. Assim, realiza-se um resgate histórico da questão indígena e uma contextualização da realidade atual desses povos no Ceará e no Brasil. Em seguida, discute-se sobre a educação escolar indígena, a oferta dessa modalidade e o cenário atual no Brasil. No que se refere ao contexto da etnia Pitaguary, realiza-se um resgate histórico da comunidade, enfatizando suas lutas por uma educação diferenciada, até chegar a realidade atual da escola em análise, destacando os sujeitos que compõem a escola indígena e o ensino de geografia na escola. Elaboram-se, por fim, estratégias de ensino-aprendizagem em geografia baseadas nos Referenciais Curriculares Indígenas e na realidade da comunidade, sendo as categorias de paisagem e território centrais nessas discussões. Conclui-se então que este trabalho é importante motivador do ensino diferenciado realizado pela escola Pitaguary e que as estratégias propostas devem potencializar o ensino diferenciado de geografia. Palavras-chave: Educação Pitaguary.

escolar indígena diferenciada.

Ensino de geografia. Etnia

RESUMÉ Ce document de recherche parle sur l'importance de l'éducation autochtone différenciée et l’enseignement de la géographie dans cette modalité dans le sauvetage et la récupération de la culture autochtone, dans la réaffirmation des identités et d'assurer leur territoire et les droits. Pour cela, il y avait des lectures préliminaires sur la question et a été adopté comme un lieu de recherche l’École municipale de l'éducation de base des populations autochtones Pitaguari, dans Maracanaú-CE. Ainsi, il y aura un sauvetage historique des questions autochtones et une contextualisation de la réalité actuelle de ces peuples au Ceará et au Brésil. En ce qui concerne le contexte de l'ethnicité Pitaguary, réalise une communauté historique, mettant l'accent sur leurs luttes pour une éducation différenciée, jusqu'à ce que la réalité actuelle de l'école en question, en soulignant les sujets qui font l'école indigène et de l'enseignement de la géographie à l'école. Ils sont préparés, enfin, les stratégies d'enseignement et d'apprentissage dans la géographie basée sur les structures des programmes autochtones et la réalité de la communauté. Ensuite, estiment que ce travail est important facteur de motivation de la pédagogie différenciée réalisée par l'école Pitaguari et que les stratégies proposées devraient améliorer l'enseignement de géographie différenciée. Mots-clés: Pitaguary.

L'éducation autochtone différenciée.

L'enseignement Géographie.

L'ethnicité

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Mapa das Terras Indígenas do Brasil. ...................................................................... 17 Figura 2 - Localização geográfica da Terra Indígena Pitaguary. .............................................. 29 Figura 3 - Vista da EMIEB do Povo Pitaguari. ........................................................................ 32 Figura 4 - Espaços de convivência e recreação da escola. ....................................................... 32 Figura 5 - Laboratório de Informática ...................................................................................... 33 Figura 6 – Biblioteca da escola................................................................................................. 33 Figura 7 - Antes da construção do muro................................................................................... 33 Figura 8 - Depois da construção do muro................................................................................. 33 Figura 9 - Alunos brincando no campinho de areia da escola .................................................. 34 Figura 10 - Realização do ritual do toré no aniversário da escola com a presença de alunos, professores, pais e lideranças da comunidade. ......................................................................... 35 Figura 11 - Observação da aula de geografia. .......................................................................... 38 Figura 12 – Livro didático adotado pela escola no ensino de geografia .................................. 39 Figura 13 - Apresentação dos projetos sustentáveis ................................................................. 41 Figura 14 - Equipe com o material reciclável coletado. ........................................................... 41 Figura 15 - Mangueira sagrada ................................................................................................. 42 Figura 16 - Ritual na mangueira sagrada. ................................................................................. 42 Figura 17 - Visita a Igreja de Santo Antônio ............................................................................ 45 Figura 18 - percurso pela comunidade...................................................................................... 45 Figura 19 - Vista panorâmica da Aldeia de Santo Antônio. ..................................................... 46 Figura 20 - Construção de molduras para exposição de fotografias. ........................................ 47 Figura 21 - Discussão sobre os recursos hídricos da comunidade. ........................................... 48

SUMÁRIO

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INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 9

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PROCEDIMENTOS METEDOLÓGICOS .................................................................. 10

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RESGATE HISTÓRICO E CONTEXTO ATUAL ..................................................... 12 3.1 A questão indígena no Brasil .......................................................................................... 12 3.2 A questão indígena no Ceará .......................................................................................... 18

4 A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: LUTAS E CONQUISTAS DOS POVOS INDÍGENAS............................................................................................................................ 19 4.1 As Leis e a Educação Escolar Indígena .......................................................................... 21 4.2 Cenário atual brasileiro da Educação Escolar Indígena Diferenciada ............................ 24 5 A ETNIA INDÍGENA PITAGUARY E A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: LUTAS, RESISTÊNCIAS E CONQUISTAS ....................................................................... 27 5.1 A história da EMIEB do Povo Pitaguari ......................................................................... 30 5.2 O ambiente escolar em análise........................................................................................ 32 5.3 Quem são os sujeitos que compõem a escola indígena ................................................... 33 6 A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA E O ENSINO DE GEOGRAFIA NA EMIEB DO POVO PITAGUARI ........................................................................................................ 35 6.1 Por que estudar geografia nas escolas indígenas? ........................................................... 36 6.2 A Geografia na escola e na comunidade Pitaguary......................................................... 38 7 ESTRATÉGIAS DE ENSINO-APRENDIZAGEM EM GEOGRAFIA NA EMEIB DO POVO PITAGUARI ............................................................................................................... 42 7.1 A Geografia no cotidiano dos alunos: a categoria paisagem como um possível direcionamento...................................................................................................................... 43 7.2 A Geografia no apoio à conservação ambiental.............................................................. 45 7.3 A Geografia como instrumento de resistência e garantia de direitos .............................. 48 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 51 REFERÊNCIAS...................................................................................................................... 52 APÊNCICES ........................................................................................................................... 54

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1 INTRODUÇÃO O presente trabalho de pesquisa aborda a Educação Escolar Indígena diferenciada e o ensino de Geografia, de modo que tem por objetivo compreender a importância da disciplina de geografia nesta modalidade e no contexto diferenciado em que ela se insere, tendo como foco a Escola Municipal Indígena de Educação Básica do Povo Pitaguari, localizada na terra indígena Pitaguary, no município de Maracanaú. A educação formal foi desde o período colonial um instrumento de assimilação e integração dos povos indígenas à sociedade nacional, imponde-lhes os modos de vida e conhecimentos eurocêntricos, além da fé cristã. Com isso, além de outros fatores, muitas culturas indígenas se perderam e muitos povos incorporaram a cultura a cultura ocidental ao seu modo de vida. Somente no fim do século XX se começou a pensar a educação como possibilidade de resgate e valorização da cultura indígena tendo os próprios índios como sujeitos ativos no processo de ensino-aprendizagem. Assim, estes povos conquistaram o direito a uma educação indígena diferenciada, ou seja, uma educação que considera e privilegia as suas culturas e os seus próprios processos pedagógicos, sendo mais um instrumento em suas lutas por garantia de direitos. Dessa forma, este trabalho discute como o ensino de geografia na educação escolar indígena pode ser um instrumento de reafirmação étnica e no resgate e valorização da cultura indígena, tendo como exemplo a Escola Municipal Indígena de Educação Básica do Povo Pitaguari, na aldeia de Santo Antônio, Terra Indígena Pitaguary, em Maracanaú-CE. Deve-se ressaltar que Pitaguary e Pitaguari ou até mesmo Pitiguari são variações terminológicas desta etnia. Neste trabalho adota-se a denominação mais corrente, que é Pitaguary (com “y” no final). Entretanto, o nome oficial da escola tem a grafia Pitaguari (com “i” no final). Para atender o objetivo principal deste trabalho, buscou-se entender como a geografia está presente cotidiano escolar indígena; identificar potencialidades, problemas e limitações da escola e da comunidade; e discutir estratégias de ensino-aprendizagem em geografia. Para isso, julgou-se necessário: (i) contextualizar sobre a questão indígena no Ceará e no Brasil, abordando elementos históricos e a situação atual desses povos; (ii) discutir sobre a educação escolar indígena no que se refere à legislação e situação atual desta modalidade considerando a demanda dos povos indígenas e a oferta por parte do poder público; (iii) refletir o papel da escola indígena e do ensino de geografia no contexto escolar e comunitário; e (iv) discutir estratégias de ensino-aprendizagem em Geografia, além de

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práticas interdisciplinares, que viabilizem o resgate das memórias históricas, da cultura, a reafirmação de identidade dessa etnia e a preservação ambiental. A compreensão da proposta deste trabalho e a aplicação das propostas de ensino-aprendizagem em geografia perpassam o entendimento acerca de duas categorias de análise da ciência geográfica: a paisagem e o território. A paisagem como o elemento visual que contém múltiplas dimensões, símbolos e significados, e o território envolvendo a posse da terra tradicionalmente habitada e um significado histórico e cultural para os que o possuem, além da sobrevivência através das diversas formas de uso e ocupação.

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PROCEDIMENTOS METEDOLÓGICOS O presente trabalho relacionando a educação escolar indígena e o ensino de

geografia resulta das experiências vivenciadas ao longo de três anos de atividades de extensão e pesquisa na EMIEB do Povo Pitaguari. Inicialmente, visitaram-se as três escolas diferenciadas da terra indígena para firmar parcerias e planejar a realização das atividades de extensão universitária do projeto “Salas interativas e ações comunitárias: estratégias de desenvolvimento local de terra indígena no Ceará”, sendo na EMIEB do Povo Pitaguari a maioria das atividades. Também se realizou nesta escola indígena duas práticas de estágio curricular supervisionado em geografia, os quais tinham finalidades de observação, participação e regência nesta modalidade diferenciada. Assim, pode-se afirmar que o trabalho de monografia resultou de três anos (20112013) de acompanhamento, observação e participação das atividades escolares indígenas e de momentos da comunidade como rituais, discussões, reuniões, gincanas e caminhadas. Contudo, a redação do presente trabalho exigiu aprofundar as questões referentes às atividades e a questão indígena como um todo, enfatizando na educação escolar indígena. Dessa forma, exigiu-se a realização de um levantamento bibliográfico visando abordar a questão indígena no Brasil através um resgate da história desses povos desde a formação social e territorial do Brasil, destacando a diversidade étnica e o contingente populacional existente quando ocorre o “descobrimento” até as perdas físicas e culturais nos séculos posteriores, enfatizado o estado do Ceará. Abordou-se também o contexto atual dos povos indígenas no Brasil, de modo que se utilizaram os dados do censo demográfico do IBGE de 2010 para traçar um panorama geral sobre a situação atual destes povos no país, sua distribuição por regiões, terras indígenas,

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autorreconhecimento, além dos direitos garantidos pela legislação vigente (constituição de 1988) e dos conflitos envolvendo essas populações. Numa etapa posterior, o levantamento bibliográfico deteve-se na abordagem sobre a educação escolar indígena. Assim, buscaram-se bibliografias que discutissem a educação escolar para as populações indígenas como um instrumento de assimilação até a visão da educação diferenciada que considera suas identidades étnicas. Dessa forma, houve a necessidade de recorrer a leituras preliminares dos direitos indígenas presentes na Constituição Federal de 1988, para que possibilitasse assim a compreensão dos documentos posteriores sobre a Educação Escolar Indígena na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei 9394/96, e no Plano Nacional de Educação (PDE), Lei 10.172. Observou-se ainda o parecer 14/99 do Conselho Nacional de Educação, a resolução 3/99 do Conselho Nacional de Educação e o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas. Todos esses documentos encontram-se compilados no livro “Educação Escolar Indígena: As Leis e a Educação Escolar Indígena”, organizado em 2005 pelo Ministério da Educação (MEC), facilitando a localização da legislação específica (GRUPIONI, 2005). Tendo realizado esse levantamento bibliográfico, as etapas seguintes visaram coletar informações e sistematizar aquelas informações coletadas ao longo das atividades na escola indígena e na comunidade. Assim, estas informações foram obtidas através de diálogos, entrevistas (estruturadas e não estruturadas) com lideranças, professores e núcleo gestor, trabalhos de campo e participação das atividades escolares e da comunidade. Assim, pôde-se conhecer sobre a história da etnia em conversas com o cacique e o pajé da comunidade, a história recente de lutas por escolas diferenciadas, enquanto com os professores e núcleo gestor da escola, pode coletar informações sobre o ambiente escolar, sobre os sujeitos que compõem a escola e sobre as atividades que são realizadas. Por fim, visando alcançar o objetivo principal do trabalho, buscaram-se estratégias de ensino-aprendizagem em geografia que melhor pudessem ser aplicadas a partir da realidade escolar pitaguary. Tais estratégias foram elaboradas tendo por base as observações realizadas em sala de aula e no contexto escolar e da comunidade, além de basearem-se nas sugestões do Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (MEC, 2005) elencando os conceitos de paisagem e território como centrais. Assim, estas atividades foram elaboradas através do diálogo com os professores, alunos e lideranças indígenas visando discutir aspectos que fazem parte do cotidiano da comunidade e como estes podem estar presentes nas aulas de geografia, sendo duas destas atividades realizadas conjuntamente.

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RESGATE HISTÓRICO E CONTEXTO ATUAL Quando os europeus chegaram ao Novo Mundo, ainda no século XV, encontraram

pessoas que já habitavam essas terras e vieram a chamá-los de índios. Estes jamais tinham tido contato com o homem branco e sua modernidade, tendo se fixado no continente americano após as migrações na última idade glacial há cerca de 40 mil anos (FUNAI, 1997). Em 1500, quando ocorre a conquista pelos portugueses da terra que viria a ser o Brasil, estima-se que havia uma população indígena de até 5 milhões de pessoas (RIBEIRO, 2006). Ao longo da formação histórica do Brasil, essas etnias sofreram com a exploração portuguesa e passaram por um intenso processo de exploração, além dos conflitos e doenças que as atingiram, o que acarretou na dizimação da maioria dessas populações e consequentemente uma grande perda cultural. Atualmente, segundo o censo demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado em 2010, 0,4% da população brasileira se autodeclararam indígenas, o que corresponde a 817 mil pessoas. Vale ressaltar que os “índios isolados” não estão nesta contagem, visto que não foram entrevistados pela própria política de contato. Destes, aproximadamente 20 mil pessoas se autodeclararam índios no estado do Ceará, sendo que a FUNAI Ceará reconhece a existência de 14 etnias indígenas no Ceará (POPULAÇÃO, 2012). Assim, este capítulo apresenta um breve resgate histórico sobre as populações indígenas no Brasil e no Ceará nos cinco séculos posteriores a invasão do que hoje é o território brasileiro pelos colonizadores europeus, enfatizando as perdas físicas e culturais sofridas pelas populações autóctones ao longo da formação da sociedade e do território do Brasil. Além disso, aborda-se neste capítulo o contexto atual dos povos indígenas no Brasil e no Ceará, destacando o contingente populacional atual, os modos de vida desses indígenas e a legislação vigente sobre estes povos. 3.1 A questão indígena no Brasil Desde o século XVI, quando ocorre a conquista pelos europeus da terra que viria a ser o Brasil, os povos que ali se encontravam foram submetidos a um “processo civilizatório” que mudou completamente o rumo de suas vidas no plano étnico-cultural. Processo este que condicionou a formação de uma nova etnia, resultante da confluência dos índios autóctones, dos negros trazidos da África e dos colonizadores europeus: o povo brasileiro (RIBEIRO, 2006).

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O “enfrentamento dos mundos”, acontecido desde o primeiro instante no contato entre europeus e índios, provocou uma guerra injusta para as populações autóctones, visto que, já na chegada das embarcações, deflagrava-se uma guerra biológica tendo de um lado povos que traziam doenças das quais já tinham certa resistência, como a coqueluche, o sarampo e a tuberculose, e de outro lado, povos que não conheciam doenças. O resultado foi uma epidemia de pestes mortais que iniciaram o genocídio indígena ao longo dos cinco séculos posteriores, pois ainda viriam as guerras de extermínio e a escravidão (RIBEIRO, 2006, p.42), além da integração, aculturação e a não garantia direitos desses povos em tempos recentes. A partir de então, a colonização portuguesa foi responsável pelo desaparecimento ou invisibilização das povoações indígenas, principalmente aquelas próximas ao litoral. Muitas aldeias foram incorporadas a “empresa colonial”, enquanto outras conservavam sua autonomia ou estavam regidas pelos missionários jesuítas. Estes dois grupos, povoadores dos núcleos agrário-mercantis e jesuítas, tinham concepções diferentes sobre os indígenas. Os jesuítas os viam como criaturas de Deus e com direito de fazer parte do rebanho da igreja, enquanto que para os colonos os índios serviriam somente para escravidão. É claro que não se pode esquecer o papel nefasto dos jesuítas na catequização indígena, concentrando as aldeias nas reduções, onde eram vítimas fáceis dos colonos e das doenças (RIBEIRO, 2006). A escravidão indígena predominou no século XVI na colônia portuguesa, pois o índio era o trabalhador ideal para carregar cargas e pessoas por terra e por águas, para o cultivo e preparo de alimentos e ainda para a caça e a pesca, além de ser útil na luta contra índios arredios e negros quilombolas. Conforme Ribeiro (2006, p. 89), Milhares de índios foram incorporados por essa via à sociedade colonial. Incorporados não para se integrarem nela na qualidade de membros, mas para serem desgastados até a morte, servindo como bestas de carga a quem deles se apropriava. Assim foi ao longo de séculos, uma vez que cada frente de expansão que se abria sobre uma área nova, deparando lá com tribos arredias, fazia delas imediatamente um manancial de trabalhadores cativos e de mulheres capturadas para o trabalho agrícola, para a gestação de crianças e para o cativeiro doméstico .

A ganância de expansão dos domínios portugueses incitou os colonos a invadir terras adentro o continente. Esta expansão realizada por “mamelucos” (gerados por pais brancos sobre mulheres índias) paulistas, ou bandeirantes, buscava índios para uso próprio e venda para trabalho escravo na economia colonial. Ribeiro (2006, p. 96) afirma que, Para isso, se organizavam em bandos imensos de mamelucos e seus cativos que, por meses e até anos, se deslocavam a pé, descalços, nas bandeiras ou remando as

14 canoas das monções. Nas entradas mais profundas e pioneiras que duravam anos, viajavam uns quantos meses e acampavam para plantar e colher roças com que se supriam de mantimentos para prosseguir viagem sertão adentro, através das matas e campos naturais.

Este papel de agentes da civilização rendeu aos mamelucos o título de heróis da civilização e de conquistadores da nação, quando na verdade foram “impositores da dominação que os oprimiam”, o que acarretou na dizimação cultural e física de um enorme contingente indígena (RIBEIRO, 2006). Na metade do século XVIII ocorreu uma série de transformações políticas na coroa portuguesa que se estenderam para as colônias, dentre estas transformações estava uma rigorosa laicização do Estado, o que ocasionou no Brasil o “a expulsão de ordens religiosas, o controle de todos os seus agentes em contato com as populações indígenas e o confisco de suas propriedades” (OLIVEIRA; FREIRE, 2006, p.70).

Um

decreto

real

em

1758

instaurou o diretório dos índios na colônia do Brasil. Segundo ALMEIDA (1997) apud OLIVEIRA; FREIRE (2006, p.70), O Diretório não só dispôs sobre a liberdade dos índios como alterou a administração desses povos, reorganizando as aldeias depois do afastamento das diversas missões religiosas. Os novos diretores de índios deveriam perseguir os fins estabelecidos pela Coroa portuguesa: a dilatação da fé; a extinção do gentilismo; a propagação do Evangelho; a civilidade dos índios; o bem comum dos vassalos; o aumento da agricultura; a introdução do comércio; e finalmente o estabelecimento, a opulência e a total felicidade do Estado.

Entende-se que a intenção portuguesa neste período era integrar o índio a sociedade nacional, estimulando a aprendizagem da língua portuguesa, inclusive na escola, doutriná-los na fé cristã e “civilizá- los” nos modos de vida adequados a economia portuguesa. Em 1850, quase três décadas após a independência do Brasil, houve a promulgação da Lei de terras (Lei nº 601, de 18/9/1850). A intenção da lei era regular os conflitos do Estado com os proprietários de terra. Porém, na prática, a lei de terras reduzia o acesso de terras dos aldeamentos conquistados no período colonial. Percebe-se então que no século

XVIII,

os povos indígenas continuam sofrendo perdas no plano cultural e

principalmente patrimonial, como apontam Oliveira; Freire (2006, p. 75-76), No século XIX, a questão indígena tornou-se parte importante da política territorial do Estado brasileiro. Os índios considerados “assimilados” sofreram grandes perdas patrimoniais. A garantia dos direitos indígenas dependia da atuação dos dirigentes públicos. As sesmarias e as terras de aldeamentos já tituladas deviam ser revalidadas. Estas terras começavam a dificultar o desenvolvimento de regiões litorâneas, sendo muitas vezes identificadas como devolutas apenas como uma etapa de sua transferência ao domínio privado, tornando-se de imediato objeto de projetos colonizadores. Muitos índios que tinham títulos legítimos de terras foram expulsos

15 de suas propriedades. Descendentes de indígenas perderam direitos de herança territorial.

Sobre as perdas do contingente populacional indígena, Ribeiro (2006) afirma que no século XVIII os números reduziram-se de 5 milhões para 1 milhão de indivíduos, sendo que este último milhão vem decaindo com a ocupação de vastas áreas florestais no sudeste, no Brasil Central e na Amazônia. Nas primeiras décadas do século XX, a situação dos indígenas no Brasil era altamente conflitante com os missionários, haja vista que, além de catequizarem os povos indígenas, apropriavam-se e loteavam suas terras. Também no século XX, surge a figura de Cândido Rondon, de onde viriam os pensamentos e ações que serviriam de base para a política indigenista oficial, privilegiando o direito a identidade étnica e a garantia de um território para reconstituição de suas vidas e seus costumes (RIBEIRO, 2006). Para sintetizar esse resgate histórico, Ribeiro (2006, p.130) afirma que, Conforme se vê, a população original do Brasil foi drasticamente reduzida por um genocídio de projeções espantosas, que se deu através da guerra de extermínio, do desgaste no trabalho escravo e da virulência das novas enfermidades que os achacaram. A ele se seguiu um etnocídio igualmente dizimador, que atuou através da desmoralização pela catequese; da pressão dos fazendeiros que iam se apropriando de suas terras; do fracasso de suas próprias tentativas de encontrar um lugar e um papel no mundo dos "brancos". Ao genocídio e ao etnocídio se somam guerras de extermínio, autorizadas pela Coroa contra índios considerados hostis, como os do vale do rio Doce e do Itajaí. Desalojaram e d estruíram grande número deles. Apesar de tudo, espantosamente, sobreviveram algumas tribos indígenas ilhadas na massa crescente da população rural brasileira. Esses são os indígenas que se integram à sociedade nacional, como parcela remanescente da população original.

Segundo o censo demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado em 2010, 0,4% da população brasileira se autodeclarou indígena, o que corresponde a 817,9 mil pessoas distribuídas no território nacional (TABELA 1), sendo que ainda existem 78,9 mil pessoas que não se declararam indígenas, mas consideram-se índios por estarem dentro de terras indígenas. Vale ressaltar que os “índios isolados” não estão nesta contagem, visto que não foram entrevistados pela própria política de contato. A metodologia utilizada pelo IBGE levou em consideração a autoidentificação no quesito cor ou raça, e para aqueles que se identificavam como indígenas, questionou-se a etnia e a língua falada (IBGE, 2012). Do contingente populacional identificado pelo Censo, a região Norte concentra essa população com mais de 342 mil indígenas. Ainda levando em consideração os números totais, identificou-se que 36,2% residem em áreas urbanas, enquanto 63,8% residem em áreas rurais, e que é na região Nordeste onde existem mais indígenas fora de terras indígenas com

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mais de 126 mil pessoas, enquanto os números totais apontam que aproximadamente 380 mil indígenas residem fora de terras indígenas. A TABELA 1 sistematiza alguns números sobre os povos indígenas coletados no Censo Demográfico 2010. Tabela 1 - População indígena e distribuição percentual, por domicílio e condição de indígena, segundo as Grandes Regiões - 2010

Fonte: IBGE, Censo Demográfico, 2010.

Identificaram-se no Censo Demográfico 2010, a partir das informações cedidas pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) ao IBGE, 516 terras indígenas reconhecidas (classificadas em delimitadas, declaradas, homologadas e regularizadas) compreendendo assim 12,5% do território nacional (106 739 926 ha), com expressiva concentração na Amazônia Legal, além de 182 terras com processo de demarcação em curso, como pode ser visto no Mapa de terras indígenas no Brasil (FIGURA 1). A legislação brasileira trata em alguns de seus documentos sobre os povos e terras indígenas no país, propondo diretrizes sobre os direitos a diferenciação étnica e a posse dos territórios tradicionalmente habitados. Assim, a Constituição Federal, lei maior do país, promulgada em 1988 trata em alguns dos seus artigos sobre os povos indígenas. Vale ressaltar que essa é uma conquista dos povos indígenas no Brasil visto que houve uma articulação do movimento indígena visando à garantia de direitos na futura constituição

do país. Dentre as principais conquistas estão o abandono à política

integracionista, o direito a diferença cultural (Artigo 215), o direito sobre as terras tradicionalmente ocupadas (Artigo 231) e o uso de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem (Artigos 210 e 231), conduzindo assim a formação de escolas indígenas diferenciadas (GRUPIONE, 2005).

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Figura 1 - Mapa das Terras Indígenas do Brasil.

Fonte: IBGE (2012).

Apesar dos direitos indígenas estarem garantidos na legislação do país, na realidade muitos direitos não são concretizados. A Constituição, por exemplo, em seu Artigo 67, propõe que a demarcação das terras indígenas seria concluída no prazo de cinco anos após a promulgação, quando até hoje os processos de demarcação não foram concluídos. A posse dos territórios indígenas atualmente vem sendo deixada de lado em face do modelo desenvolvimentista adotado pelo Brasil, de modo que sendo a União proprietária desses territórios, utiliza-se o desenvolvimento como argumento para utilização dessas terras. Além disso, a expansão do agronegócio desrespeita as populações indígenas, invade seus territórios e com a chegada dos ruralistas no poder político constituído, existem atrasos e pressões para mudanças no processo de demarcação de terras indígenas através de propostas de emendas constitucionais (PEC 215) transferindo do Executivo para o Legislativo a responsabilidade na demarcação de terras indígenas no Brasil. Dessa forma, pode-se verificar que, apesar de todo o desgaste histórico sofrido pelos índios brasileiros ao longo do processo civilizatório, com perdas de vidas humanas e de identidades, estas populações resistiram como puderam para manter suas vidas, identidades e culturas. Em tempos recentes, percebe-se através dos Censos Demográficos de 1991, 2000 e 2010 (IBGE, 2012) que há um movimento inverso, ou seja, existe um aumento progressivo no contingente populacional indígena no Brasil. Enquanto em 1991, 294,131 pessoas se autodeclararam indígena, em 2000 esse número alcançou aproximadamente 735 mil pessoas e

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em 2010 alcançou as 817 mil pessoas. Inúmeros fatores contribuem para isso, mas o fato é que as populações indígenas no Brasil estão envolvidas nas discussões no cenário político nacional e dispostas a lutar pela garantia dos seus direitos, pela manutenção dos seus territórios e, sobretudo pela reafirmação de suas culturas e identidades. 3.2 A questão indígena no Ceará A questão indígena no Ceará também ocorre modo conturbado. Desde o achamento do Brasil, as populações autóctones do Ceará e do Nordeste brasileiro foram as mais resistentes ao processo civilizatório. Conforme Oliveira & Freire (2006), O contato dos povos indígenas com os invasores coloniais – portugueses, franceses, holandeses etc. – não pode ser reduzido ao binômio extermínio e mestiçagem. Desde as primeiras relações de escambo (Marchant, 1980), passando pelas inúmeras alianças guerreiras até o desespero causado pelas epidemias de varíola, cada povo indígena reagiu a todos os contatos a partir do seu próprio dinamismo e criatividade.

Como o processo de ocupação dos europeus ocorreu com bastante intensidade no litoral cearense e nordestino já nos séculos XVI e XVII, as populações indígenas que habitavam estas regiões tiveram que fugir para áreas mais isoladas, longe do contato e da dominação europeia. Assim, a história dos índios do Ceará foi marcada por conflitos, lutas e resistências, de modo que o processo de colonização portuguesa e holandesa encontrou forte resistência indígena neste estado, onde havia 22 povos indígenas no século XVI. Nos três séculos

seguintes,

aquelas

populações

indígenas

foram

quase

exterminadas

pelos

colonizadores, levando a maioria da população indígena a se retirar para viver em zonas mais isoladas, como matas, serras, margens de rios, manguezais e lagoas (SILVA, 2011). Este processo de extinção das populações indígenas no Ceará teve seu ápice baseado na Lei de Terras de 1850, quando em 1863, o presidente da província do Ceará decreta por meio de relatório a inexistência de índios. Assim, nenhuma etnia indígena do Ceará era reconhecida pelo Estado brasileiro até meados do século XX. Provavelmente esta seja a explicação para que ainda hoje, parcela da população cearense desconheça a existência de índios no estado, pois durante muito tempo as políticas oficiais invisibilizaram essas etnias. Somente a partir do fim da década de 1980, com as mudanças políticas no cenário nacional, a promulgação de uma nova Constituição com avanços significativos no que se refere aos direitos indígenas e os movimentos indigenistas existentes no país, os índios cearenses começaram a reivindicar seus direitos de posse de terra e o reconhecimento de suas etnias com ações apoiadas pela Arquidiocese de Fortaleza, pelo Conselho Indigenista

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Missionário (CIMI) e alguns missionários católicos (CORDEIRO, 1989 apud SILVA, 2006a). Hoje, as 14 etnias (Tapeba, Tremembé, Pitaguary, Jenipapo-Kanindé, Kanindé, Potiguara, Tabajara, Kalabaça, Kariri, Anacê, Gavião, Tubiba Tapuia e Tapuia Kariri) que resistiram ao intenso processo civilizatório no Ceará continuam enfrentando diversos problemas que vão desde o reconhecimento étnico, a demarcação e o reconhecimento oficial dos seus territórios até problemas ambientais nas aldeias e conflitos com posseiros (POPULAÇÃO, 2012). Segundo os dados do Censo Demográfico 2010 (IBGE, 2012), o Ceará possui mais de 20 mil indígenas, sendo que os dados específicos por terra indígena não são satisfatórios, visto que considera-se somente as terras Pitaguary e Córrego João Pereira. Dessa forma, resistem os índios integrados à sociedade cearense de modo que parte de seus costumes foram perdidos, além da completa extinção das línguas maternas. O que não quer dizer, evidentemente, que estes deixaram de ser índios em sua essência, como propõe RIBEIRO (2006, p.130), quando afirma que, Essa integração não corresponde a uma assimilação que os converta em membros indiferenciados da etnia brasileira. Significa, tão somente, a fixação de um modus vivendi precaríssimo através do qual transitam da condição de índios específicos, com sua raça e cultura peculiares, à de índios genéricos. Esses, ainda que crescentemente mestiçados e aculturados, permanecem sempre “indígenas” na qualidade de alternos dos “brasileiros”, porque se veem e se sofrem como índios e assim também são vistos e tratados pela gente que estão em contato.

Dessa forma, o que se percebe atualmente no Ceará é um movimento de reafirmação étnica dos povos indígenas no estado, de modo que as comunidades procuram resgatar suas culturas e identidades através dos hábitos, danças e rituais, e assegurar através de debates e lutas a garantia dos seus direitos a diferenciação étnica, educação diferenciada e territórios reconhecidos oficialmente. 4

A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: LUTAS E CONQUISTAS DOS POVOS INDÍGENAS Este capítulo aborda a modalidade diferenciada chamada de educação escolar

indígena. Assim, realiza-se uma problematização conceitual da temática e discute-se sobre como a educação passou de uma prática de aculturação para um instrumento no fortalecimento das culturas indígenas. Além disso, busca-se sintetizar a legislação atual brasileira referente à educação escolar indígena e o contexto atual dessa modalidade diferenciada no ensino básico e o acesso desses povos ao ensino superior no país. Segundo Luciano (2006, p. 129),

20 “a educação se define como o conjunto dos processos envolvidos na socialização dos indivíduos, correspondendo, portanto, a uma parte constitutiva de qualquer sistema cultural de um povo, englobando mecanismos que visam à sua reprodução, perpetuação e/ou mudança”.

Dessa forma, o mesmo autor problematiza sobre o termo educação indígena, pois este deve ser entendido como os processos próprios de transmissão dos conhecimentos dos povos indígenas, ou seja, são os processos tradicionais de perpetuação das culturas indígenas através de suas danças, rituais, hábitos e costumes que são repassados a cada geração sem a necessidade da instituição escolar. Sendo assim, o processo educacional que envolve a instituição escolar se refere à educação escolar indígena, sendo esta apropriada pelos povos indígenas para reforçar seus projetos socioculturais e abrir caminhos para os conhecimentos universais. A educação indígena foi um instrumento de aculturação dos povos indígenas ao longo da formação social do Brasil, visto que como aponta Luciano (2006, p.150), desde o período colonial, “ela foi promovida por missionários, principalmente jesuítas, por delegação explícita da coroa portuguesa, e instituída por documentos oficiais, como as Cartas Régias e os Regimentos”. Assim, a atividade escolar estaria diretamente associada à catequese missionária e ao projeto de colonização portuguesa. Aos poucos, a Coroa portuguesa diversificou as parcerias na oferta de educação indígena com alguns fazendeiros, o que não significou uma “civilização” dissociada da catequese (LUCIANO, 2006). A situação no império permaneceu inalterada em seus aspectos gerais, pois a educação para os povos indígenas continuou sendo um instrumento de civilização e catequese. Já no inicio do século XX, a educação escolar indígena passou a ser atribuição do recém-criado Ministério da Agricultura, tendo um órgão para esse fim que era o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que passou por diferentes ministérios até ser extinto na década de 1960. Com a Constituição de 1934, a União passou a legislar sobre as questões indígenas. Assim, as escolas indígenas criadas neste período constituíram-se como os principais instrumentos de incorporação dos povos indígenas a sociedade nacional, em detrimento, evidentemente, das diferenças culturais (LUCIANO, 2006). Portanto, percebe-se que até a metade do século XX, a educação consistiu em um meio de catequização, civilização e integração dos povos indígenas à sociedade nacional, desconsiderando as suas diferenciações étnicas e culturais. Porém, a partir da década de 1970, podem-se perceber avanços no que se refere a reivindicações

das

organizações

indigenistas

não-governamentais

e

dos

movimentos

21

indígenas por mudanças na forma com que a educação escolar indígena é aplicada no país. Dessa forma, colocou-se em discussão a necessidade da criação de uma modalidade especifica e diferenciada de ensino, levando em consideração as realidades socioculturais dos sujeitos envolvidos e os seus próprios processos de ensino-aprendizagem, o que foi concretizado na legislação através da Constituição de 1988 e posteriormente de outras leis e decretos específicos, como já pôde ser visto anteriormente. Conforme Luciano (2006, p.156), A grande importância inicial da proposta de educação escolar indígena diferenciada, com suas educação intercultural e educação bilíngue ou plurilíngüe, foi ter trazido idéias e propostas concretas que alimentaram o ânimo, a motivação e a esperança dos professores e das lideranças indígenas emergentes. As idéias serviram como valioso argumento para marcar posição política e uma razão necessária para capitanear o apoio dos povos e das comunidades indígenas em favor das lutas mais amplas do que aquelas que as emergentes organizações indígenas estavam desenhando e implementando, como a defesa da terra e a (re)valorização cultural. A proposta, portanto, ao lado de outras bandeiras de luta, como a defesa e a garantia da terra, a defesa do meio ambiente, o desenvolvimento sustentável e a saúde indígena diferenciada, alimentaram o repertório da agenda política interna e externa do movimento indígena contemporâneo.

Dessa forma, as escolas indígenas no Brasil vêm se constituindo sob uma nova ótica, passando a serem chamadas de diferenciadas, pois visam considerar os contextos diferenciados no quais se encontram, tendo as suas ações e estratégias de ensinoaprendizagem baseadas na possibilidade de proporcionar aos povos indígenas a recuperação de suas memórias históricas, a reafirmação de suas identidades étnicas, o resgate e a valorização de suas culturas e a garantia de seus territórios e direitos, possibilitando ainda o acesso aos conhecimentos da sociedade global, visto que são necessários para suas vidas na sociedade atual.

4.1 As Leis e a Educação Escolar Indígena De modo preliminar na realização deste trabalho, houve a preocupação de ter-se como norteador a legislação específica que rege esta modalidade de educação e o contexto diferenciado em que esta se insere. Assim, pôde-se compreender acerca do contexto histórico e da necessidade de uma educação escolar indígena diferenciada, de modo que as informações na legislação mais relevantes para este trabalho serão relatadas abaixo. Dessa forma, pode salientar-se que a Constituição de 1988 promoveu um novo momento nas relações entre o Estado e os povos indígenas, determinando através de alguns de seus artigos o reconhecimento e a valorização da sociodiversidade indígena e o dever do

22

Estado de proteger suas manifestações culturais, assegurando aos índios no Brasil o direito de permanecerem índios, isto é, com suas línguas, culturas e tradições. No âmbito da educação escolar, foi a partir da Constituição de 1988 que se reconheceu a utilização de suas línguas maternas e seus próprios processos de aprendizagem, de modo que a escola indígena poderia agora contribuir para a afirmação étnica e cultural desses povos, em vez de ser um dos principais veículos de assimilação e integração, assumindo o princípio da diversidade sociocultural e linguística do país e o direito a sua manutenção. É válido ressaltar que todos os direitos conquistados nesta Constituição foram frutos da articulação entre os movimentos indígenas e dos movimentos de apoio aos índios na luta pela garantia dos direitos indígenas e na tentativa de barrar as ações dos grupos contrários (GRUPIONI, 2005). Dos artigos relacionados à questão indígena presentes na Constituição Federal de 1988, convêm destacar neste trabalho aqueles que se referem à Educação (Seção I – Artigo 210) e a Cultura (Seção II – Artigo 215). Sobre a Educação, destaca-se que será “assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”. Sobre a Cultura, o Artigo 215 enfatiza que “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.” O Artigo 231 trata especificamente sobre os índios, afirmando que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (GRUPIONI, 2005). A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei Nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996, aponta alguns direcionamentos no que se refere à aplicabilidade da educação escolar diferenciada para os povos indígenas. Aparece de forma explícita no Artigo 32 uma reprodução do Artigo 210 da Constituição Federal, assegurando no ensino fundamental a utilização nas comunidades indígenas de suas línguas maternas e dos seus próprios processos de aprendizagem. Nas “Disposições Gerais”, presentes nos Artigos 78 e 79 da LDB, enfatiza-se o papel do Estado em oferecer uma educação intercultural e bilíngue, que fortaleça as práticas socioculturais, proporcione a manutenção das línguas maternas e a oportunidade de recuperar as memórias históricas e a reafirmação das identidades destas etnias, oferecendo-lhes ainda o acesso

aos

conhecimentos

técnico-científicos

da

sociedade

nacional.

Dentre

outros

23

dispositivos presentes na LDB que ainda tratam da educação escolar indígena. (GRUPIONI, 2005, p. 21-22). No Plano Nacional de Educação (PNE), Lei Nº 10.172 de 9 de janeiro de 2001, a educação escolar indígena aparece na forma de um capítulo que está dividido em três partes. Primeiro se realiza um diagnóstico de como se encontra a oferta educacional para os povos indígenas. Em seguida, apresentam-se as diretrizes para educação escolar indígena, e por fim, estabelecem-se os objetivos e metas que deverão ser atingidos a curto e longo prazo. Destacam-se neste documento as propostas de universalização da oferta de programas educacionais para todas as séries do ensino fundamental, assegurando autonomia para as escolas indígenas e a participação das comunidades nas decisões relativas ao funcionamento das escolas. É previsto também a criação de programas específicos de atendimento as escolas indígenas e se estabelece que a União, em parceria com os estados, deve equipar as escolas indígenas, bem como possibilitar a adaptação dos programas já existentes. Atribui-se ainda aos sistemas estaduais de ensino a responsabilidade legal pela educação indígena (anteriormente responsabilidade da Fundação Nacional do Índio), e prevêse a criação da categoria de professores indígenas como carreira específica do magistério e a implementação de programas contínuos de formação dos professores indígenas. (GRUPIONI, 2005, p. 27-28). O parecer 14/99 da Câmara básica do Conselho Nacional de Educação instala as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Escolar Indígena, aprovadas em 14 de setembro de 1999. Este documento encontra-se dividido em capítulos que apresentam uma fundamentação da Educação escolar indígena, determinam a estrutura e o funcionamento da escola indígena e propõem ações concretas em prol da educação escolar indígena. Destaca-se aqui a proposição da categoria escola indígena, a diferenciação entre os termos educação indígena e educação escolar indígena, a formação do professor indígena, o currículo da escola e as possibilidades de flexibilização. (GRUPIONI, 2005, p. 37-53). A Resolução 3/99 do Conselho Nacional de Educação foi publicada em 17 de novembro de 1999 no Diário Oficial da União (DOU) e fixa as diretrizes nacionais para o funcionamento das escolas indígenas. Criaram-se aqui mecanismos efetivos para a garantia do acesso a uma educação diferenciada e de qualidade aos povos indígenas. Destaca-se a criação da categoria de escola indígena, garantindo autonomia pedagógica e curricular para a escola. Garantiu-se também a formação específica para os professores indígenas, podendo se dar concomitantemente com a sua própria escolarização. Estabeleceu-se que os estados devem regularizar a situação profissional dos professores indígenas, criando uma carreira específica e

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realizando concurso público diferenciado para o ingresso nessa carreira. Então, “aos Estados caberá a responsabilidade pela oferta e execução da educação escolar indígena, diretamente ou por colaboração com seus municípios” (GRUPIONI, 2005). O Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas se trata de um conjunto de ideias, princípios e práticas que são frutos das experiências de algumas escolas em comunidades indígenas no Brasil que já buscavam realizar um ensino diferenciado. Assim, este referencial surge com a intenção de oferecer aos professores e comunidades indígenas uma sistematização de reflexões em contextos de diversidade sociocultural visando à implementação de diferentes práticas pedagógicas considerando a valorização e o fortalecimento das identidades étnicas do Brasil. Este documento procura problematizar a necessidade de uma educação escolar indígena no Brasil e os porquês de se estudar as variadas disciplinas nas escolas indígenas. (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2005). Assim, percebe-se que existem avanços consideráveis na legislação vigente no que se refere à garantia dos direitos indígenas e de seus próprios processos de aprendizagem em escolas diferenciadas. Porém, também se percebe que, na prática, as proposições presentes nos textos ainda caminham de forma vagarosa, seja por ineficiência do poder público ou pela falta de autonomia das comunidades para realização deste processo. Obviamente, este processo demanda tempo e uma organização coletiva entre as comunidades e o empenho do poder público através dos órgãos responsáveis para que ações sejam efetivadas com sucesso. 4.2 Cenário atual brasileiro da Educação Escolar Indígena Diferenciada O cenário atual da Educação Escolar Indígena no Brasil, na perspectiva de um ensino diferenciado, tem avanços no que se refere à conquista por escolas, formação de professores e universalização do ensino fundamental, mas ainda carece de avanços em outros setores que por vezes induzem uma escola indígena diferenciada a adotar posturas de uma escola convencional dentro de uma comunidade indígena. Trazemos aqui dados do Censo Escolar Indígena 2005 e do Censo Escolar 2012, dados que possibilitam a compreensão de forma específica e atual, respectivamente, sobre a situação da educação escolar indígena no contexto brasileiro. Tais recenseamentos foram realizados pelo Ministério da Educação e Cultura do Brasil (MEC), resultando na publicação dos relatórios “Estatísticas sobre Educação Escolar Indígena no Brasil” no Censo Escolar Indígena de 2005 (MEC, 2005b) e o “Censo Escolar da Educação Básica 2012 - Resumo Técnico” com os dados do Censo Escolar 2012 (MEC, 2012) e que é realizado anualmente.

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O Censo Escolar Indígena de 2005 identificou a existência de 2.323 escolas indígenas no Brasil com relativa concentração nas regiões Norte e Nordeste (TABELA 2) com 163.693 matrículas, sendo que apenas 4.270 correspondem ao ensino médio, o que sugere uma tendência de que até 2005, os alunos indígenas terminariam o ensino fundamental em escolas indígenas e cursariam o ensino médio em escolas convencionais. Os números também apontam um aumento da oferta por educação escolar aos povos indígenas comparando-se com o Censo Escolar Indígena de 1999, quando existiam 1.392 escolas indígenas com 93.097 matriculados.

Tabela 2 - Número de Estabelecimentos de Educação Escolar Indígena ¹, Professores e Matrículas, por Nível/Modalidade de Ensino, segundo a Região Geográfica e a Unidade da Federação - Brasil 2005.

O Censo de 2005 também aponta que existem 8.431 professores nestes estabelecimentos indígenas, dos quais a Coordenação Geral de Educação Escolar Indígena da SECAD/MEC estima que 90% desses professores sejam indígenas, sendo que a maior parte

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deles, 72%, trabalha no ensino fundamental. Ainda sobre os professores em estabelecimentos indígenas, comenta-se o grau de formação desses professores sendo que 9,9% não concluíram o ensino fundamental, 12,1% tem o ensino fundamental completo, 64,8% tem o ensino médio e 13,2% têm o ensino superior, o que também revela um avanço com relação ao Censo Escolar de 1999 (MEC, 2005b). Luciano (2006) afirma que tal crescimento na oferta resulta de fatores como o crescimento demográfico indígena acima da média nacional, o que condiciona o aumento da demanda, a concentração das lutas em questões relevantes para os interesses indígenas, a formação de professores indígenas em magistrados indígenas específicos e as políticas de expansão da oferta baseadas na legislação vigente e as políticas de universalização do ensino fundamental no país. No que se refere ao ensino superior, também se percebe um relativo aumento no acesso dos índios às vagas de universidades públicas no Brasil. Isso se deve a possibilidade de acesso à educação básica, o que condiciona o aumento da demanda pelo ensino superior, mas também deve-se apontar as políticas de ampliação do acesso de povos indígenas ao nível superior com a criação de magistérios indígenas específicos, como é o caso do MISIPITAKAJÁ, ofertado pela Universidade Federal do Ceará aos povos Indígenas Pitaguary, Tapeba, Kanindé, Jenipapo-Kanindé e Anacé, e ainda a recente aprovação da política de cotas para índios nas universidades públicas brasileiras como medidas compensatórias na tentativa de amenizar a desigualdade existente na educação básica nas práticas de seleção adotadas pelas universidades. A partir dessa visão geral, percebe-se que nos últimos 25 anos houve relativos avanços no que se refere ao acesso dos povos indígenas a uma educação diferenciada, na qual eles próprios conduzam os processos de ensino-aprendizagem. Porém, muitos desafios ainda estão postos, como afirma Luciano (2006), a educação indígena no Brasil ainda carece de programas adequados baseados em metodologias de aprendizagem específicas considerando os interesses dos sujeitos envolvidos, o que também exige a formação diferenciada de recursos humanos e, sobretudo, carece de autonomia em seus projetos educacionais considerando as necessidades e os modos de vida das comunidades indígenas.

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A ETNIA INDÍGENA PITAGUARY E A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: LUTAS, RESISTÊNCIAS E CONQUISTAS Os índios da etnia Pitaguary são resultantes da confluência de sociedades

indígenas que com a invasão europeia no nordeste brasileiro, buscaram refúgios onde pudessem estar protegidos do homem branco e tivessem ao seu dispor os recursos necessários a sua sobrevivência. Dessa forma, percebe-se a ocupação desses povos em serras, matas, margens de rios e lagoas ou manguezais (SILVA, 2011). Conforme Galdino (2007), os índios Potiguara ou Pitiguara são os antepassados dos Pitaguary e que segundo Lyra (1998) apud Galdino (2007, p. 46) estes índios formavam a aldeia de Bom Jesus da Aldeia de Parangaba, no atual bairro do Mondubim, em Fortaleza-CE, e posteriormente, em 1680 constituíram a Aldeia Nova de Pitaguary. Galdino (2007, p.46-47) ainda apresenta em seu trabalho as Cartas de Sesmarias onde em 1722, o capitão-mor da capitania do Ceará doa meia légua de terra visando o sustento dos índios e seus descendentes. Como já foi dito, em 1850, as terras indígenas no Brasil foram confiscadas pela chamada Lei de Terras, limitando o acesso desses povos as terras que lhes foram “dadas”, o que foi agravado em 1863, quando o presidente da província decreta por meio de relatório a inexistência de índios no Ceará, apesar de neste mesmo ano os índios Pitaguary terem conseguido um registro de posse coletiva das terras que habitavam (GALDINO, 2007). Os anos que se sucederam foram marcados por entraves e ocupações indevidas do território indígena e pela dispersão dos índios por fatores como a construção da via férrea Baturité e o crescimento demográfico de Maracanaú. Percebe-se então que ao longo dos séculos de formação da sociedade e território cearense, as populações indígenas existentes sofreram grandes perdas e se organizaram como foi possível para garantir a posse de suas terras e a manutenção de suas culturas. Apesar desses esforços, as perdas vão desde a completa extinção das línguas indígenas até a não garantia dos seus territórios. Realidade que não foi diferente para os índios Pitaguary. Contudo, a partir do fim dos anos 1980, os índios cearenses começar a se organizar no intuito de começarem a ser vistos, de romper com a ideia (instituída por lei) de que não existiriam índios no Ceará, tendo como principal motivação o direito aos territórios tradicionais. Assim, motivados pelos movimentos nacionais em defesa dos povos indígenas, pelo novo regime político em vigor no país e pela nova Constituição Federal que garantia certos avanços na questão indígena do país, os índios Pitaguary, juntamente com os índios Tapeba e Jenipapo-Kanindé e apoiados por grupos da igreja católica iniciaram as lutas e

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manifestações para que fossem reconhecidos como índios e tivessem suas terras demarcadas e seus direitos reconhecidos. Dessa forma, como afirma Galdino (2007, p.53), “Com relação à etnia dos Pitaguary, a questão da territorialidade teve sua visibilidade no período pósemancipação de Maracanaú [1983], tendo em vista que os índios começaram a se organizar e lutar pela reterritorialização das terras de seus antepassados”. Assim, nos anos 1990, as lutas por reconhecimento étnico ganharam forma e conquistaram resultados. Em 1993, quando a presença da etnia pitaguary foi oficialmente reconhecida pelo município de Maracanaú, o que resultou na doação de 107 hectares de terra segundo o Instituto Socioambiental (2013). Segundo esta mesma fonte, dentre as frentes de luta do povo pitaguary, estava a conquista por uma escola indígena diferenciada. Em 1998, as lideranças locais já falavam da necessidade de se equipar uma escola que pudesse funcionar como espaço de construção de um saber especializado na cultura local, desenvolvendo para isso um plano educacional que reconhecesse o modo de vida, aqui incluindo a história e a memória, do povo Pitaguary. Naquela época, o cacique Pitaguary lamentava o fato de que não existia “colégio pras crianças” porque não existia “uma escola indígena mesmo”, isto é, “professore s índios para ensinar os índios” (INSTITUTO SOCIOAMBIENTA L, 2013).

Em 1998, realizou-se um estudo pela FUNAI para fornecer o reconhecimento étnico perante o Estado, e consolidar as bases para a delimitação do território indígena. Este estudo contemplou aspectos geográficos como o clima, o relevo, os tipos de solo, a vegetação, a fauna, a ação antrópica e a utilização sustentável dos recursos naturais. Nos anos seguintes, as manifestações do povo Pitaguary transformaram-se em conquistas, quando no ano de 2000 a FUNAI identificou o território indígena com 1735 hectares e no fim de 2006 consolidou o processo demarcatório da terra indígena através de portaria declaratória (GALDINO, 2007, p.58). Contudo, como se percebe, os avanços são lentos e burocráticos, além disso, existem interesses que se contrapõem aos dos povos indígenas na efetivação dos processos que garantem a posse de suas terras, de modo que até hoje a etnia Pitaguary aguarda o processo de homologação da terra indígena por parte do Estado. Atualmente, os índios da etnia Pitaguary habitam o sopé da Serra da Aratanha, nos municípios de Maracanaú e Pacatuba, na Região Metropolitana de Fortaleza-CE. A Terra Indígena Pitaguary foi demarcada oficialmente em 15 de dezembro de 2006 com uma extensão de 1.735 hectares, sendo que ainda aguarda o processo de homologação. Segundo os dados do Censo 2010, habitam a terra indígena 2.694 pessoas divididas em quatro aldeias principais: Monguba, Santo Antônio do Pitaguary (Central), Horto e Olho D’água. Entretanto, o censo apontou que 3.413 pessoas se autodeclararam índios Pitaguary (FIGURA 2).

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Figura 2 - Localização geográfica da Terra Indígena Pitaguary.

Fonte: elaboração própria com base de dados do Ministério do Meio Ambiente.

No que se refere às escolas indígenas, em 1999 com o apoio de uma ONG estrangeira, houve a primeira escola indígena Pitaguary, que se chamou de “cuaba”, que quer dizer conhecimento, mas que acabou tendo que ser abandonada por problemas em sua estrutura física. Dessa forma, as lutas por escolas diferenciadas condicionaram a criação em 2001 da Escola Indígena Chuí, na Aldeia do Horto e em 2002 da Escola Indígena Itá-Ara, na Aldeia de Monguba. Neste mesmo ano, a escola com estrutura curricular tradicional que funcionava na aldeia de Santo Antônio foi transformada em escola diferenciada após a mobilização de lideranças e professores da etnia, vindo a se chamar Escola Municipal Indígena de Educação Básica do Povo Pitaguari, sendo esta o foco deste trabalho. Muitos questionamentos se fazem quanto à autenticidade desses povos indígenas por parte de setores da sociedade que encaram a manutenção dessas culturas e territórios como atraso. Muitos argumentos preconceituosos afirmam que os índios que ainda existem são os da Amazônia e que este movimento que existe em quase todos os estados brasileiros não passam de grupos de ambientalistas e indigenistas que querem comprometer o desenvolvimento do país, dentre outros argumentos. No caso da etnia Pitaguary, e de outras etnias do Ceará, muito se contesta em relação aos modos de vida dessas populações, pois elas possuem hábitos e costumes da sociedade urbana e global, acentuado pela proximidade das

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terras indígenas dos centros urbanos, como é o caso dos Pitaguary, que está a 5 km do centro de Maracanaú e a aproximadamente 30 km do centro de Fortaleza, o que condiciona o senso comum a ver essas populações na condição de não-indígenas. Sobre isto, Baines (2002) afirma que Tentativas populares de argumentar que o índio na cidade ‘deixa de ser índio’ são fruto de um preconceito altamente pejorativo quanto ao índio, que o congela no tempo e no espaço, colocando-o em oposição à vida urbana e relegando-o ao atraso, à pobreza e à ignorância.

Atualmente, os Pitaguary sofrem com a perda ou desvalorização dos seus costumes por parte dos mais jovens, o que se avalia estar diretamente ligada a proximidade das cidades, o que faz com que o modo de vida urbano se faça muito presente no cotidiano. Além disso, a exploração mineral por parte de uma pedreira localizada próxima a aldeia de Monguba, a reabertura de uma segunda pedreira e a falta de abastecimento regular de água são problemas que fazem parte do cotidiano indígena e estão nas discussões da comunidade com o poder público para que sejam resolvidos. Neste sentido, as escolas indígenas do Povo Pitaguary, Chuí e Itá-ara atuam, promovendo uma educação diferenciada na tentativa de fortalecer a cultura indígena Pitaguary e fazer com que as crianças e jovens da comunidade cresçam conhecendo a realidade diferenciada em que estão inseridos, sem deixar de ter acesso aos conhecimentos do mundo global. Entretanto, destaca-se que apenas a Escola Indígena Chuí oferece vagas no ensino médio e que em muitos casos, após terminar o ensino fundamental em uma das escolas indígenas, os alunos concluem o ensino básico em escolas regulares nas proximidades da terra indígena. Dessa forma, os índios da etnia Pitaguary buscam cada vez mais o resgate e valorização de suas culturas, a reafirmação étnica e a garantia dos seus direitos através de dos seus rituais e costumes ou mesmo de debates e manifestações buscando visibilizar as necessidades da etnia, sendo a educação escolar indígena diferenciada um importante instrumento neste sentido. 5.1 A história da EMIEB do Povo Pitaguari A partir de entrevistas e diálogos com o núcleo gestor da escola (APÊNDICE A), pôde-se conhecer a história da escola indígena e sobre o seu papel no dia a dia da comunidade. Serão colocadas aqui também as impressões a partir das observações realizadas da estrutura física, curricular e organizacional da EMIEB do Povo Pitaguari.

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A escola está localizada na aldeia de Santo Antônio e atende o ensino infantil e fundamental. A história da escola requer um conhecimento prévio da história da etnia indígena. De modo geral, conheceu-se um pouco acerca dessas histórias a partir dos diálogos informais e entrevistas realizadas com professores da escola e lideranças da comunidade. Assim, compreendeu-se que a escola já teve uma estrutura curricular convencional e que é diferenciada há onze anos. Desde 1992, a escola era uma unidade escolar municipal convencional dentro de uma aldeia indígena, onde não se considerava o contexto diferenciado em que estava inserida. Logo, a cultura indígena não era considerada. Não se permitia a realização dos rituais, festas ou qualquer manifestação cultural indígena dentro da escola. Em 1999, em meio às lutas por reconhecimento étnico e de demarcação da terra indígena, surgiu a preocupação de se trabalhar a historia e a cultura da comunidade com as crianças e jovens da comunidade na escola, visando o fortalecimento da cultura do povo Pitaguary. Através de um projeto com uma Organização Não Governamental, construiu-se uma pequena escola na aldeia que se chamou Cuaba, que quer dizer “casa do conhecimento”, porém houve certa rejeição da comunidade no que se refere ao ensino ministrado, pois tinham a pequena escola indígena como um reforço da escola convencional. Alguns meses depois, diversos fatores contribuíram para que a estrutura física da escola não suportasse, e tivesse que ser demolida. Esta iniciativa, porém rendeu forças para continuar a luta da comunidade por uma escola autenticamente indígena e diferenciada e que pudesse fortalecer a cultura do povo pitaguary. Sendo assim, a luta agora era pela adoção a modalidade diferenciada da escola dentro da aldeia. A conquista veio em 8 de janeiro de 2002, quando houve acordo entre a comunidade, a FUNAI e a prefeitura de Maracanaú para tornar a escola autenticamente indígena e diferenciada recebendo o nome de EMIEB do Povo Pitaguari (FIGURA 3). Recentemente a escola comemorou com festa os seus onze anos de existência como escola indígena com a presença das lideranças, alunos, pais, professores e convidados.

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Figura 3 - Vista da EMIEB do Povo Pitaguari.

Fonte: Wallason Farias de Souza (2012).

5.2 O ambiente escolar em análise A análise da estrutura física da escola foi facilitada pelo acompanhamento do zelador e do professor de artes. A partir disso, pôde-se perceber que a escola indígena apresenta uma boa estrutura física se comparada com outras escolas municipais. A mesma possui 6 salas de aula forradas e com ventiladores e janelas, 1 biblioteca que serve também como laboratório de informática, ambos bem equipados, 2 banheiros para os alunos, sala dos professores com banheiro, secretaria, direção, 2 campinhos de areia e uma quadra coberta, cantina, além de espaços de convivência e recreação para os alunos do ensino infantil (FIGURA 4). Em cada sala de aula existem dois armários onde os professores guardam materiais didáticos para uso em aula. Figura 4 - Espaços de convivência e recreação da escola.

Fonte: Wallason Farias de Souza (2012).

Buscando informações um pouco mais detalhadas destes espaços, concluiu-se que a organização das salas de aula fica a cargo do professor, alguns preferem em círculos, outros em fileiras e outros preferem trabalhar fora da sala de aula. Sobre o laboratório de informática (FIGURA 5) percebeu-se que este contém 16 computadores com sistema operacional Linux, sendo que dois estão com defeito, e que são utilizados diariamente através das disciplinas escolares ou de projetos de inclusão digital como o “Se liga” e o “Luz do saber”. Já os livros disponíveis na biblioteca

(FIGURA 6) são disponibilizados pelo Fundo Nacional de

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Desenvolvimento da Educação (FNDE), pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e pelo Governo do Estado do Ceará. Figura 5 - Laboratório de Informática.

Fonte: Wallason Farias de Souza (2013).

Figura 6 – Biblioteca da escola.

Fonte: Wallason Farias de Souza (2013).

Sobre a estrutura física convém ainda destacar o fato da recente construção de um muro cercando a escola.

Antes a escola era aberta, de modo que a comunidade tinha livre

acesso a escola e vice-versa. Ou seja, não existia um limite físico de onde terminava ou começava a escola na comunidade (FIGURA 7). Porém, após discussões internas entre os professores e o apoio da prefeitura, decidiu-se construir um muro (FIGURA 8) sob os seguintes argumentos: melhorar a segurança dos alunos e professores e dos materiais da escola, melhorar o trabalho didático-pedagógico e evitar a entrada de animais na escola. Figura 7 - Antes da construção do muro.

Figura 8 - Depois da construção do muro.

Fonte: Wallason Farias de Souza (2011).

Fonte: Wallason Farias de Souza (2013).

5.3 Quem são os sujeitos que compõem a escola indígena Sobre quem são os sujeitos que participam do cotidiano da escola indígena, concluiu-se que todos os professores são indígenas da etnia Pitaguary com formação em nível superior ou em andamento. Alguns possuem formação convencional em pedagogia e complementaram com a formação no magistério indígena MISI-PITAKAJÁ da Universidade

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Federal do Ceará, que beneficia as etnias Pitaguary, Tapeba, Kanindé, Jenipapo-Kanindé e Anacé, sendo que estas formações acontecem dentro das aldeias indígenas. Todos os funcionários da escola são indígenas da própria comunidade, com exceção da gestão escolar, que deve ser formada por profissionais concursados pela Prefeitura Municipal de Maracanaú. Sobre isso o parecer 14/99 do CNE enfatiza que “os profissionais que atuarão nas escolas indígenas devem pertencer, prioritariamente, às etnias envolvidas no processo escolar. Essa é uma tendência crescente em todo o Brasil. Regularizar a situação desses profissionais é uma urgência” (GRUPIONE, 2005). A escola atende desde o infantil até o 9º ano do ensino fundamental somando ao todos 163 alunos matriculados em 2012. Assim, as salas de aula contam geralmente com poucos alunos, o que tende a favorecer a aprendizagem. Os alunos, também são todos moradores da comunidade indígena, porém parte deles não se declara como índio. Avalia-se que esta postura deve-se a influência externa no cotidiano desses alunos, da presença de marcas do urbano e de uma sociedade global dentro da terra indígena, como, por exemplo, a proximidade com a cidade de Fortaleza e a presença de meios de comunicação de massa como a televisão e a internet. Não que isso seja determinante, mas acaba influenciando

o

modo

de ser dessas crianças e consequentemente no não

reconhecimento étnico. Esses estudantes estão sujeitos a problemas como drogas, gravidez precoce e desestímulo pelos estudos. Uma minoria considera a importância de se estudar, segundo a diretora. O que se destacou também foi que a escola, além de um lugar de aprendizagem para essas crianças, constitui-se como um lugar de encontro com os amigos, de diversão e de lazer, o que motiva que a assiduidade das crianças (FIGURA 9). Figura 9 - Alunos brincando no campinho de areia da escola

Fonte: Wallason Farias de Souza (2013).

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Sobre a relação da escola com a comunidade, pôde-se perceber que atualmente existe certa criticidade por parte de alguns moradores sobre a existência de uma educação realmente diferenciada, pois para estes, a escola pouco tem de diferenciada. Os pais mais presentes são aqueles dos alunos do ensino infantil, em contraponto, os pais dos alunos maiores se mostram menos presentes na escola. Nas reuniões de pais a presença destes é mínima. Verifica-se o maior envolvimento da comunidade nas atividades da escola em momentos festivos (FIGURA 10) como na noite cultural, realizada anualmente através da exposição de trabalhos e atividades culturais realizadas com os alunos, na gincana cultural e nas festas de conclusão do ensino fundamental. Realizando uma análise geral, conclui-se que a maior parte da comunidade gosta muito da escola e a vê como parte integrante da cultura indígena. Figura 10 - Realização do ritual do toré no aniversário da escola com a presença de alunos, professores, pais e lideranças da comunidade.

Fonte: Wallason Farias de Souza (2013).

Para concluir a entrevista, argumentou-se para a diretora se a EMIEB do Povo Pitaguari estaria preparada atualmente para atender de modo diferenciado aqueles alunos. A partir da resposta obtida, avalia-se que ela não está totalmente preparada, mas que a tentativa existe e que é tudo um processo que demanda tempo para se alcançar completamente os objetivos propostos. Sendo assim, ainda se está a caminho que tem os esforços cotidianos dos professores e lideranças para que seja possível uma escola cada vez mais preparada para recepcionar estes alunos.

6 A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA E O ENSINO DE GEOGRAFIA NA EMIEB DO POVO PITAGUARI Este capítulo aponta as principais justificativas da realização deste trabalho, no sentido de que faz uma ligação entre a modalidade diferenciada de educação escolar indígena e as possibilidades de ensino-aprendizagem sugeridas pelo Ministério da Educação no

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Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas - RCNEI (MEC, 2005) e que serão direcionadas a realidade escolar indígena Pitaguary no próximo capítulo. Assim, inicialmente aborda-se o porquê de se estudar Geografia nas escolas indígenas, tendo em vista as demandas e necessidades das comunidades envolvidas e, em seguida, faz-se uma aproximação do contexto da Terra Indígena Pitaguary, especialmente na aldeia de Santo Antônio, onde está localizada a escola que é o local de realização desta pesquisa, mostrando como a geografia está presente no cotidiano escolar e na comunidade como um todo. Trata ainda sobre o livro didático de geografia adotado no ensino fundamental da escola indígena através da análise dos seus conteúdos e da relação com o ensino diferenciado indígena. 6.1 Por que estudar geografia nas escolas indígenas? A indagação sobre a necessidade e a importância da presença da geografia como disciplina na educação escolar indígena diferenciada se faz indispensável para fornecer as justificativas de realização desta pesquisa, pois, só tendo estas respostas, podem-se compreender as estratégias de ensino-aprendizagem deixadas como sugestão para realidade escolar pitaguary. Assim, o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (MEC, 2005) fornece algumas sugestões que são utilizadas e direcionadas ao contexto da etnia Pitaguary. Este documento traz um texto elaborado durante uma formação de professores indígenas do Acre e Sudeste do Amazonas e que resume, na visão dos próprios sujeitos indígenas, a importância da Geografia para estes povos.

Geografia é onde o rio está. Onde o município está. É para onde vem o sol. É para onde vai o sol. Este rio para onde vai? Geografia é a divisão das águas É igarapé, igapó, lago, açude, mar É a medição da terra, a demarcação É fotografia, desenho, cor, é um mapa É descobrir e aprender o que tem um mapa. Geografia é o homem que transforma as coisas, A mata numa cidade, a terra num roçado, a folha num remédio, A madeira num barco, a macaxeira em farinha. Geografia é o entendimento da aldeia e do mundo Do nosso mundo e do mundo do branco. É a cidade, o Brasil e os outros países Geografia é a história do mundo

37 O mundo é terra, a terra é a aldeia, o rio, O rio que cai num outro rio, que cai num outro rio, Que cai no mar. Geografia é o depois do mar (MEC, 2005, p. 126).

Percebe-se nos trechos acima que a Geografia tem diversos significados para os professores indígenas como a relação homem-natureza, os modos de vida, a Cartografia, o entendimento de mundo e a garantia de seus territórios e direitos. Entretanto, entende-se que cada povo tem um relacionamento diferenciado com os seus lugares de vida, criando assim seus espaços geográficos, e criando também seus modos de entendê-los, explicá-los e vivenciá-los, ou seja, cada povo tem as suas Geografias. Neste sentido, o MEC (2005, p.126) afirma que, A geografia permite, assim, conhecer e explicar o mundo por meio do estudo do espaço geográfico levando em conta o que se vê – as paisagens; o que se sente e com que a pessoa se identifica – os lugares; e o que são referências significativas para os povos e os indivíduos, para conviver, trabalhar, e produzir sua cultura – os territórios.

O capítulo do RCNEI dedicado a Geografia sugere temas de estudos organizados para auxiliar professores indígenas na seleção, organização e integração com outras áreas de estudo. Tendo em vista os objetivos desta pesquisa e a realidade escolar em análise, decidiuse evidenciar aqueles objetivos e conteúdos referentes ao tema “espaços geográficos da aldeia, do território, de outros territórios”. Dentre os objetivos sugeridos pelo RCNEI com o tema em questão, destacam-se: conhecer e valorizar os conhecimentos tradicionais; fortalecer a identidade cultural; orientarse no espaço físico; reconhecer o lugar de vivência do povo e a relação entre a natureza e seus modos de vida e essa relação em outras realidades; refletir sobre as relações do povo indígena com os não-índios; refletir sobre possibilidades de melhoria ambiental no território indígena; conhecer e valorizar a história do lugar em que vive e viveu o seu povo ao longo da história; e dominar a linguagem cartográfica sabendo representar todos os conhecimentos anteriores (MEC, 2005, p. 231-232). Os conteúdos neste tema estão divididos no RCNEI em (i) componentes da natureza e modos de vida; (ii) identidade, território e relações sociais, (iii) uso dos recursos naturais; (iv) relação com os não-índios e (v) Cartografia, sendo esta última integrante de todos

os

outros

conteúdos,

de modo

que todos eles podem ser representados

cartograficamente. Estes temas de estudo buscam valorizar aspectos do modo de vida indígena, comparando com outros modos de vida em outras aldeias, nas cidades, e a ligação que as pessoas têm com o espaço geográfico ou com a paisagem, seu componente visível (MEC, 2005, p. 232-239).

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Dessa forma, compreende-se que o ensino de Geografia nas escolas indígenas pode ser um importante instrumento para auxiliar as comunidades indígenas nas suas necessidades, desde a conservação ambiental em seus territórios até as lutas pela garantia de seus direitos e territórios, além de promover o resgate e a valorização cultural. 6.2 A Geografia na escola e na comunidade Pitaguary Neste tópico realiza-se uma descrição sobre as geografias presentes na sala de aula, na escola e na comunidade Pitaguary como um todo, evidenciando a importância dessa multiplicidade de geografias para o ser índio pitaguary e para a oferta de um ensino de geografia diferenciado que possibilite os alunos indígenas a utilizar estes conhecimentos em benefício da comunidade. Observaram-se então duas aulas de Geografia (em sala) do ensino fundamental II, podendo assim compreender de forma geral a dinâmica das aulas nesse contexto diferenciado. Inicialmente, a aula de Geografia parecia com as aulas desta disciplina no ensino básico convencional, pois até os momentos como acalmar a turma e fazer a chamada foram semelhantes aqueles vivenciados em escolas convencionais. Entretanto, o número de alunos na sala contribuía para uma melhor fluidez da aula, pois a turma do 6º ano, que estava sendo observada, contava com 24 alunos, sendo que as outras turmas também possuem uma média de 20 alunos, bem abaixo das turmas em escolas públicas convencionais. No decorrer da aula, eles foram dispostos pelo professor em duplas para pesquisar no livro didático as perguntas de uma revisão para a prova bimestral de geografia. Em um momento, o professor saiu e mesmo assim, os alunos continuaram as atividades com um nível de conversa razoável (FIGURA 11). Figura 11 - Observação da aula de geografia.

Fonte: Dayane de Siqueira Gonçalves (2013).

O professor, que é índio Pitaguary e está em formação em pedagogia convencional, por vezes, caminhou pela sala e solucionou as dúvidas dos alunos mostrando o

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caminho, mas sem dar as respostas. A postura do professor pareceu bem natural, apesar da observação que se realizava. Os alunos pareciam habituados com esse modo de orientar do professor. Os livros didáticos de Geografia adotados pela escola no ensino fundamental são os da coleção “Geografia Crítica”, dos autores José William Vesentini e Vânia Vlach, da editora Ática (FIGURA 12). Figura 12 – Livro didático adotado pela escola no ensino de geografia

Fonte: Site da Editora ATICA.

Em conversa com o professor, ele relatou que quando chegou à escola, já tinha sido escolhido o livro didático e que não gostava desse livro didático, pois tem conteúdos muito distantes da realidade Pitaguary. Sobre esse livro, a resenha do Guia de Livros Didáticos diz que, Na coleção, destacam-se as diferenças sociais, étnicas e religiosas. Os afrodescendentes e descendentes indígenas no Brasil são mencionados de maneira a considerar sua presença na formação do espaço geográfico brasileiro, mas predomina uma abordagem tradicional e sintética, sem mencionar suas condições sociais ao longo da História do Brasil, tampouco sua situação atual. A referência à mulher aparece na obra de maneira pontual, através de exemplos que reforçam sua participação efetiva no mundo contemporâneo (PNLD, 2011).

O professor reclamou do fato de o livro possuir textos muito grandes, que cansam os alunos e da precariedade de conteúdos referentes à geografia física. Ele disse ter planos de escolher um livro mais condizente com a realidade dos alunos e mais interessante para eles quando tiver oportunidade. De acordo com Schäffer, (2003, p. 137), Sobre o professor tem recaído, de uma forma ou outra, a responsabilidade de selecionar o livro a ser adquirido e que terá a função de auxiliar o desempenho pedagógico. Como instrumento de ensino, o livro didático serve para um fim, às intenções do plano de trabalho previamente elaborado. Por esta razão importa, sobretudo, que o professor tenha clareza quanto aos seus objetivos, antes de fazer a escolha de um título.

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Sabendo das deficiências do livro para o contexto em que está inserido, o professor de geografia o utiliza como um guia do que se deve ser trabalhado e procura inserir fatos históricos e presentes da comunidade e realizar trabalhos de campos na própria aldeia, visando uma aula contextualizada com o cotidiano dos alunos. Analisando a sala de aula, observou-se a presença de livros paradidáticos acessíveis, colagens de desenhos, pinturas feitas pelos alunos e objetos decorativos confeccionados com garrafas PET (Politereftalato de etileno), parecendo assim um ambiente bem acolhedor para os alunos. Se levássemos em consideração somente estes dois momentos de observação em sala de aula, possivelmente se diria que o ensino de geografia não seria diferenciado, pois os momentos, as atividades, os conteúdos e os rituais escolares convencionais puderam ser observados. Entretanto, as observações também aconteceram em atividades envolvendo toda a escola e toda a comunidade com discussões variadas. Assim, ao longo do tempo de observação das atividades escolares, puderam-se observar momentos como o aniversário da escola, o dia do índio, a caminhada até a mangueira sagrada no dia de Santo Antônio, as gincanas escolares, a noite cultural, a IV Conferência Infanto-Juvenil pelo meio ambiente e a Pré-Conferência de Assistência Social. Estas atividades consistem em momentos onde a escola se faz presente nas manifestações e discussões da comunidade indígena, o que nos faz lembrar a reflexão de uma professora da escola indígena que salienta que “a escola é a comunidade” e não somente o que os muros cercam. A IV Conferência Infanto-Juvenil pelo Meio Ambiente foi uma atividade organizada pela escola visando discutir com os alunos a questão ambiental como um todo, mas principalmente na comunidade, de modo que os alunos compreendessem os problemas ambientais e buscassem se comprometer com a conservação do meio ambiente da terra indígena. Dessa forma, dividiram-se os alunos em equipes representando os quatro elementos (terra, fogo, água e ar), fazendo com que estas equipes, auxiliadas por um professor, trabalhassem na identificação dos problemas ambientais na comunidade referentes a esses elementos e, posteriormente, elaborassem projetos visando à resolução dos problemas e uma sustentabilidade ambiental na comunidade (FIGURA 13). Estas atividades visam também à elaboração da Agenda 21 escolar, na qual a escola busca se comprometer com a questão ambiental através de práticas sustentáveis. A equipe que o professor de geografia orientou, a qual se acompanhou mais de perto, discutiu a questão da água, uma das maiores problemáticas da comunidade que carece de abastecimento,

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e elaborou uma proposta de reaproveitamento da água do bebedouro e das chuvas nos banheiros da escola. Figura 13 - Apresentação dos projetos sustentáveis

Fonte: Wallason Farias de Souza (2013).

Acompanharam-se também as atividades da III Gincana Cultural da EMEIB do Povo Pitaguari, que teve como tema central os Direitos Humanos, a valorização da cultura indígena Pitaguary e a conservação ambiental, de modo que duas equipes competiam através de atividades que despertassem aquelas temáticas. Assim, dentre as atividades, houve a dança do toré, a criação e apresentação de uma música indígena, pinturas corporais, exposição com artes indígenas, dança coreografada indígena, arrecadação e recolhimento pela comunidade de garrafas PET e latinhas de alumínio para reciclagem (FIGURA 14) e o plantio de mudas de árvores ao redor da escola e apresentação de mural sobre os patrimônios naturais e culturais da comunidade. Figura 14 - Equipe com o material reciclável coletado.

Fonte: Wallason Farias de Souza (2013).

Em outra oportunidade, pôde-se observar e participar da tradicional festa da comunidade, no dia 12 de junho, a festa de Santo Antônio, que reúne todas as aldeias da etnia para manifestações culturais que atraem centenas de visitantes. Neste festejo, a escola não realiza suas atividades dentro dos seus muros, mas sim em meio aos rituais, danças e festejos. Dessa forma, acompanhou-se o professor de Geografia na realização de uma “aula de campo”, onde os alunos participaram dos rituais sagrados e das manifestações culturais da

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etnia pitaguary, enfatizando assim a importância desses momentos nos resgate e valorização da cultura indígena pitaguary.

Figura 15 - Mangueira sagrada.

Figura 16 - Ritual na mangueira sagrada.

Fonte: Wallason Farias de Souza (2013).

Fonte: Wallason Farias de Souza (2013).

Acompanhou-se ainda a realização da Pré-Conferência de Assistência Social de Maracanaú, que foi organizada pelo Centro de Referência de Assistência Social Indígena da Etnia Pitaguary (CRAS Pitaguary) visando aproximar o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) as atividades e necessidades da comunidade. Nesta atividade, acompanhou-se o professor na orientação dos alunos na participação da conferência, que contou com a presença de dezenas de moradores e lideranças indígenas. Avalia-se que esse momento é de extrema importância para a comunidade tornando-se um ponto positivo a integração dos alunos nessas discussões, conhecendo desde jovens as dificuldades e demandas da comunidade e os meios para resolução dos problemas, despertando um olhar crítico sobre a realidade vivenciada. Assim, estes momentos, por mais que não fossem uma aula de geografia convencional/formal,

contemplam os

objetivos

e

conteúdos

propostos

pelo

RCNEI

mencionados anteriormente, levando os alunos a participar, refletir e discutir sobre a realidade de suas vidas, da comunidade e da realidade em que estão inseridos no que se refere ao resgate e valorização da cultura indígena Pitaguary, a reafirmação de identidade étnica e a conservação ambiental.

7 ESTRATÉGIAS DE ENSINO-APRENDIZAGEM EM GEOGRAFIA NA EMEIB DO POVO PITAGUARI Neste capítulo, propõem-se estratégias de ensino-aprendizagem em geografia nas temáticas que mais se evidenciaram necessárias para o contexto da comunidade. Estas estão

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baseadas nas leituras realizadas, no que é sugerido pelos referenciais para a modalidade de educação escolar indígena e nas experiências vivenciadas junto a EMIEB do Povo Pitaguari. Assim, as atividades propostas foram construídas através de observações e diálogos com professores, alunos e lideranças indígenas tendo em vista os problemas e potencialidades da comunidade e como estes poderiam estar presentes no ensino de geografia. As duas primeiras foram realizadas em conjunto com os professores da escola através de atividades como discussões em sala de aula e aulas de campo, enquanto a última deve ser vista como uma proposta. Como se propôs desde o início, estas atividades visam utilizar o ensino de geografia como instrumento no resgate e valorização da cultura indígena Pitaguary, na reafirmação étnica e na garantia dos seus territórios tradicionalmente habitados e dos direitos conquistados. Dessa forma, os momentos de ensino-aprendizagem em geografia devem estar necessariamente ligados ao cotidiano dos alunos, a realidade que eles vivenciam diariamente e que pode ser trabalhada com aqueles objetivos. 7.1 A Geografia no cotidiano dos alunos: a categoria paisagem como um possível direcionamento Entende-se que a Geografia na educação indígena diferenciada deve buscar possibilidades e estratégias de ensino-aprendizagem que valorizem os conhecimentos tradicionais, mas que também possibilitem o acesso aos conhecimentos científicos da sociedade global. Assim, avalia-se que o estudo da paisagem, umas das categorias de análise da ciência geográfica, pode cumprir esta premissa, de modo que direcione a construção de conhecimentos acerca da realidade que os alunos vivenciam e de outras realidades através desse componente visível do espaço geográfico. Sobre estes conceitos, Santos (1991, p.61) afirma que “Tanto a paisagem quanto o espaço resultam de movimentos superficiais e de fundo da sociedade, uma realidade de funcionamento unitário, um mosaico de relações, de formas, funções e sentidos”. Cosgrove (1998, p.98) alerta que “a paisagem sempre esteve intimamente ligada, na geografia humana, com a cultura, com a ideia de formas visíveis sobre a superfície da terra e com a sua composição” e ainda considera a paisagem como um “texto cultural”, reconhecendo suas múltiplas dimensões e possibilidades de leituras diferenciadas, mas igualmente válidas. Nas visitas a Terra Indígena Pitaguary, verificou-se que as estradas, as construções, os monumentos, os espaços sagrados e a própria natureza circundante podem promover um resgate da história e da cultura do povo Pitaguary. Pois, esta paisagem reflete

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um momento histórico da etnia e/ou um simbolismo no qual os significados podem ser investigados. Assim, propõe-se um estudo da paisagem atrelado ao ensino de geografia da EMIEB do Povo Pitaguari, para que as crianças da etnia, que são cada vez mais suscetíveis ao processo de aculturação, possam crescer conscientes da história e da cultura do povo pitaguary, identificando na paisagem circundante marcas dessa cultura de modo que os símbolos presentes nestas paisagens continuem a ter significados. Neste sentido, Cosgrove (1998, p.104) comenta sobre os conceitos de paisagem e símbolo, onde afirma que “para compreender as expressões impressas por uma cultura em sua paisagem, necessitamos de um conhecimento da ‘linguagem’ empregada: os símbolos e seu significado nessa cultura” de modo que “os valores culturais que elas [as paisagens] celebram precisam ser ativamente reproduzidos para continuar a ter significados” (COSGROVE, 1998), sendo assim, esta uma das intenções desta proposta: rememorar os significados simbólicos e os valores culturais expressos pela paisagem da terra indígena Pitaguary. Sauer (1998), numa abordagem semelhante, enfatiza que a paisagem natural é o meio, a cultura é o agente e a paisagem cultural é o resultado. Avalia-se, portanto, que o estudo da categoria de paisagem pode contribuir de forma significativa no ensino de Geografia, pois a paisagem, como foi visto nas referências é o resultado da ação da cultura num determinado tempo histórico sobre o espaço. Sendo assim, a expressão da paisagem cultural possui muitos significados que serão rememorados por meio de estratégias de ensinoaprendizagem neste sentido. Houve a oportunidade de desenvolver uma atividade neste sentido com alunos do ensino fundamental II da EMIEB do Povo Pitaguari, onde se realizou uma aula de campo com alguns alunos e professores pela aldeia enfatizando os elementos naturais e culturais da paisagem da aldeia, buscando rememorar o significado de algumas paisagens da comunidade, além de

realizar

o

registro

fotográfico

dessas

paisagens.

Assim,

o

percurso

de

aproximadamente 1,5 km teve como pontos de parada para diálogos e registros fotográficos a Igreja de Santo Antônio (FIGURA 17), onde é possível ter uma visão panorâmica da comunidade, o Cemitério, o açude Santo Antônio, a casa do Cacique Daniel (FIGURA 18), em seguida, adentrou-se pela mata, e por fim chegamos até a mangueira sagrada, árvore com mais de 100 anos. Além de fazer fotos, em cada parada, procurou-se dialogar sobre a importância daquele lugar para o Povo Pitaguary.

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Figura 17 - Visita a Igreja de Santo Antônio.

Figura 18 - percurso pela comunidade.

Fonte: Nicolly Santos Leite (2012).

Fonte: Nicolly Santos Leite (2012).

Assim, entende-se que a partir do estudo da paisagem pelos alunos indígenas puderam-se realizar atividades no ensino de geografia (e práticas interdisciplinares) que atendam as sugestões do RCNEI e que sejam relevantes para os problemas vivenciados pela etnia como as perdas culturais e históricas, os problemas ambientais e valorizar as potencialidades de modo que os alunos possam crescer conscientes da realidade diferenciada em que se encontram, entendendo a história de seu povo e do seu território através da paisagem, compreendendo também as influência dos não-índios nessa paisagem e quais as diferenças nas paisagens destes em seus lugares de vida. 7.2 A Geografia no apoio à conservação ambiental A Geografia como ciência, permite a abordagem de questões referentes à sociedade e à natureza, sendo assim uma ciência complexa, assim como são complexas do ponto de vista teórico-metodológico as questões referentes à temática ambiental, sendo a Geografia umas das muitas ciências que abordam o assunto e tem procurado discutir estratégias de preservação e conservação ambiental (MENDONÇA, 2005). Atualmente, as populações indígenas no Brasil têm sido fortes aliadas aos movimentos ambientalistas, e vice-versa, pois, geralmente, onde existem reservas indígenas, existem maiores possibilidades de um ambiente conservado, pois os modos de vida dessas populações contribuem para tal devido as suas próprias relações com a natureza. No caso da etnia Pitaguary e outras etnias com fortes influências do modo de vida urbano e com processos recentes de reconhecimento territorial oficial, a questão ambiental possui uma complexidade maior, pois os modos de vida tradicionais acontecem paralelamente a modos de vida com presença do urbano. Assim, além do consumo de produtos industrializados e a má destinação dos resíduos sólidos e líquidos, percebe-se como problema

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para a comunidade a presença de não-índios utilizando os recursos naturais inadequadamente, como o açude de Santo Antônio, por vezes, frequentado para lazer e consumo de bebidas alcoólicas por não-índios. Percebeu-se que a comunidade possui uma paisagem diversificada de fauna e flora, além de várias nascentes fluviais do rio Cocó, por estar localizada em um maciço residual pré-litorâneo (Serra da Aratanha), que interfere na umidade vinda do oceano e ocasiona chuvas orográficas, e mesmo assim sofre com problemas ambientais como má destinação de resíduos sólidos, erosão das encostas, queimadas e poluição dos recursos hídricos (FIGURA 19). Além disso, a exploração mineral de uma pedreira nas proximidades da

terra

indígena

pode

influenciar

no

equilíbrio

ambiental da

terra

indígena

e,

consequentemente, a vida dos índios Pitaguary. Figura 19 - Vista panorâmica da Aldeia de Santo Antônio.

Fonte: Wallason Farias de Souza (2012).

Assim, avalia-se que o ensino de geografia pode também caminhar nestas discussões, pois a abordagem das questões ambientais está diretamente ligada aos interesses e aos modos de vida do povo Pitaguary. Dessa forma, o ensino de geografia deve acontecer de modo interdisciplinar tendo a Educação Ambiental como eixo integrador. Nesse contexto Silva e Rodriguez (2011, p.25) propõem que, A educação ambiental deve assumir um papel fundamental na mudança de mentalidades e incorporar os fundamentos do pensamento ambiental, mas também no pensamento sustentabilista, considerando-os como propriedades emergentes e integradoras entre os sistemas ambiental, socioeconômico e cultural.

Dessa forma, o ensino de geografia na EMIEB do Povo Pitaguari deve considerar os problemas e potencialidades naturais da aldeia de Santo Antônio visando à elaboração de estratégias de ensino-aprendizagem que propiciem uma aldeia ambientalmente equilibrada e sustentável. O que exige a elaboração de processos que envolvam diretamente os alunos da escola em projetos sustentáveis que tenham ações concretas no contexto escolar e/ou da aldeia ou comunidade, sendo necessário para isso um esforço coletivo entre alunos, professores e

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gestão escolar, além das lideranças e organizações comunitárias para a obtenção de resultados concretos. Neste sentido, participou-se de atividades organizadas pela EMEIB do Povo Pitaguari, como a já mencionada IV Conferência Infanto-Juvenil pelo meio ambiente, onde os alunos da escola elaboraram projetos sustentáveis tendo quatro elementos (terra, fogo, água e ar) como norteadores e que resultaram em boas ideias sustentáveis aplicáveis ao contexto local, mas que não dependem exclusivamente dos alunos. Além disso, organizaram-se atividades como uma aula de campo, descrita anteriormente onde se evidenciou a questão ambiental no percurso, e também posteriormente, quando se propôs a construção de uma exposição dos registros fotográficos impressos em molduras com materiais reciclados e restos orgânicos, como o talo da carnaúba (FIGURA 20). Todo o processo foi feito com os alunos e os resultados já foram expostos em várias ocasiões na escola. Figura 20 - Construção de molduras para exposição de fotografias.

Fonte: Wallason Farias de Souza (2013).

Também se realizou uma discussão sobre a questão da água na comunidade Pitaguary, tendo em vista que a falta de água é um problema ambiental que afeta diretamente a vida da comunidade, pois a poluição dos recursos hídricos e a distribuição irregular realizada condicionam a falta de água corriqueiramente. Dessa forma, a discussão realizada visou incitar a reflexão sobre a temática a partir de três questionamentos: 1. Como e onde se pode encontrar água na comunidade? 2. Como é o abastecimento de água na comunidade? 3. Como essa água é utilizada? A partir disso, os alunos puderam expor seus conhecimentos prévios sobre a temática e destacaram os problemas de abastecimento de água existentes na comunidade, onde se buscou direcionar as discussões para o reflexo destes problemas em suas vidas. Por

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fim, buscou-se conscientizar sobre a responsabilidade da sociedade diante dos impactos ambientais como o a má destinação dos resíduos sólidos e líquidos e a falta de saneamento básico e as consequências dessas ações que vão desde a morte de animais até doenças graves nas pessoas (FIGURA 21). Figura 21 - Discussão sobre os recursos hídricos da comunidade.

Fonte: Nicolly Santos Leite (2012).

Entretanto, entende-se que estas ações ainda são muito pontuais e que trabalhar com a questão ambiental visando resultados concretos exige um esforço coletivo que pode ser alcançado através de projetos interdisciplinares na escola indígena, tendo os professores e a disciplina de geografia um papel fundamental nestas discussões,

devido

à própria

característica desta disciplina em discutir de uma forma complexa a relação entre sociedade e natureza. 7.3 A Geografia como instrumento de resistência e garantia de direitos Historicamente, como se relatou no início deste trabalho, os povos indígenas no Ceará e no Brasil têm passado por processos de lutas, conflitos, resistências e conquistas. Estes processos estão vinculados principalmente à garantia dos seus territórios tradicionais, através dos processos de reconhecimento da FUNAI, e a garantia a outros direitos como saúde, educação diferenciada, equilíbrio ambiental em suas terras, a não invasão dos seus territórios por posseiros (mesmo após terem sido reconhecidos), além do resgate, valorização cultural e a reafirmação étnica. Todas estas questões aparecem nas sugestões do RCNEI para serem trabalhadas no tema “espaços geográficos da aldeia, do território, de outros territórios”, sendo a questão territorial o elo entre essas discussões, pois no território estão presentes os aspectos históricos e culturais, além da sobrevivência de muitas famílias que dependem da agricultura e é por meio dele que se garante a manutenção dos modos de vida tradicionais indígenas.

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Dessa forma, propõe-se aqui um ensino de geografia que seja capaz de formar pessoas comprometidas com o bem-estar da comunidade, a manutenção dos modos de vida tradicionais e a garantia legal e ambientalmente equilibrada dos seus territórios, tendo assim uma função estratégica na garantia efetiva dos direitos para os povos indígenas. A partir das leituras realizadas e das vivências na ciência geográfica, avalia-se que a Cartografia pode ser um excelente caminho no tratamento dessas questões, pois através dela possibilita-se visibilizar estas questões numa linguagem universal e que pode ser construída pelos próprios sujeitos, no caso, os índios pitaguary. Assim, como propõe o RCNEI, todos os conteúdos estudados e discutidos no ensino de geografia das escolas indígenas, no que se refere ao tema em questão, podem ser representados na forma de mapas, tendo os alunos e professores indígenas o domínio desta ferramenta para utilizá- la em beneficio da comunidade. Para além da realidade escolar, a Cartografia vem sendo apropriada por comunidades tradicionais visando à garantia dos seus territórios através de cartografias sociais e participativas, como afirma Colchester (2002) apud Acselrad e Coli (2008, p.19), O mapeamento participativo chegou para ficar, como parte do conjunto de ferramentas utilizado pelo movimento indígena. As comunidades descobriram que ele é uma ferramenta poderosa, tanto para o controle, a organização e a criação de estratégias comunitárias quanto para transmitir as visões locais ao exterior. O mapeamento pode ajudar a trazer coerência para o seio da comunidade e reafirmar o valor e a relevância do conhecimento tradicional ao infundir respeito pelos anciãos e pelas práticas tradicionais de manejo dos recursos .

Assim,

a

cartografia

social mostra-se

como

uma ferramenta capaz de

instrumentalizar comunidades na defesa dos seus direitos e territórios tradicionais, de modo que elas podem produzir seus próprios mapas e utilizá-los como instrumentos de poder e resistência no que se refere a conflitos socioambientais, conflitos territoriais e a reafirmação de culturas e identidades, entendendo o território como lugar vivido e dotado de significados históricos e simbólicos (FOX et al., 2008). Portanto, avalia-se que esta ferramenta pode ser um direcionamento no ensino de geografia no tratamento dessas questões, pois possibilitam discussões que envolvem a escola e a comunidade como um todo, de modo que a partir das iniciativas discutidas em sala de aula podem incitar a construção de mapas sociais pelos próprios alunos. Assim, a partir da realidade Pitaguary, avalia-se que podem ser construídos por alunos e professores indígenas os seguintes mapas, tendo em vista as problemáticas e potencialidades locais: 1. Localização e limites da terra indígena, visando discutir sobre o território tradicionalmente habitado pelos índios Pitaguary e os processos de demarcações

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oficiais que condicionaram os limites vigentes, problematizando sobre os conflitos existentes (pedreiras, posseiros etc.); 2. Mapa dos aspectos físico-ambientais da aldeia de Santo Antônio, tendo em vista que a aldeia possui uma exuberante paisagem com diversidade de flora e fauna, nascentes fluviais, um açude que abastece a comunidade, e mesmo assim sofre com problemas ambientais como má destinação de resíduos sólidos, erosão das encostas, queimadas e poluição dos recursos hídricos. 3. Mapa de uso e ocupação da terra identificando os roçados, as áreas de caça e de pesca, as estradas, as moradias, os lugares comunitários; 4. Mapa dos espaços sagrados e históricos como a Igreja de Santo Antônio, o Cemitério, a mangueira centenária entendendo a importância da conservação destes espaços para a cultura da comunidade; 5. Mapas propositivos como de áreas de reflorestamento, uso e ocupação do solo adequado, novos limites de terra indígena, novos espaços culturais etc. Assim, entende-se que a cartografia no ensino de geografia da EMIEB do Povo Pitaguari constitui-se como uma possibilidade em face aos problemas e potencialidades da aldeia e da terra indígena, na medida em que podem ser construídos mapas que servirão de base para lutas comunitárias e para a garantia de direitos e bem-estar comunitários, além da garantia legal e ambiental dos seus territórios. Entretanto, deve-se refletir que, o mapa não é o produto final, pois se entende como mais significativo nesta proposta o processo que envolve a construção dos mapas, pois exigirá a participação ativa dos alunos na descoberta das informações

que

deverão

estar contidas nos mapas,

criando

proporcionando ideias que visam melhorias para a comunidade.

assim articulações e

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8 CONSIDERAÇÕES FINAIS A educação escolar indígena foi durante séculos um instrumento dos não-índios visando a integração/assimilação destes povos a sociedade nacional, em detrimento das perdas de línguas e culturas milenares. Em tempos recentes, as populações indígenas enxergaram a possibilidade de utilizar este mesmo instrumento a seu favor, tendo uma educação diferenciada que considerasse suas culturas, línguas e modos de vida, podendo ser mais um instrumento para estes povos em suas lutas por visibilidade e conquista de direitos. A partir dessa premissa, esta pesquisa buscou avaliar a importância dessa modalidade de ensino e do ensino de geografia para ela, tendo como local de pesquisa a EMIEB do Povo Pitaguari, em Maracanaú-CE. Assim, considera-se que, ao longo de cinco séculos de formação da sociedade e do território brasileiro, as populações indígenas sofreram perdas demográficas e culturais, mas que muitas dessas populações resistiram como foi possível e resguardaram parte dos seus costumes e modos de vida até os dias atuais. Tendo a educação escolar indígena diferenciada caminhado no sentido de reverter as perdas culturais e promover um resgate e valorização da cultura indígena, avalia-se que a legislação sobre o tema atenderia as necessidades destes povos se realmente fosse praticada em sua plenitude, pois ainda se percebem deficiências no oferta e qualidade metodológica desta modalidade Por fim, avalia-se que a educação escolar indígena diferenciada na EMIEB do Povo Pitaguari é um importante instrumento diante das perdas culturais e das necessidades atuais desta etnia no que se refere a reafirmação étnica, resgate e valorização cultural e conquista de direitos, pois tem uma educação diferenciada de modo a conduzir os alunos a discussões que envolvam a comunidade, sem perder a noção da realidade externa. Assim, entende-se que as estratégias propostas no fim deste trabalho são complementos ou fundamentações as atividades que já são desenvolvidas pela escola, visando potencializar o ensino de geografia de acordo com a realidade da comunidade Pitaguary tendo a geografia um papel fundamental nesta realidade diferenciada de modo que pode discutir diferentes questões de interesse da comunidade.

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REFERÊNCIAS

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APÊNCICES APÊNDICE A – Entrevista com a diretora da escola

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA

1. O currículo da Educação Indígena  O que diferencia o currículo escolar indígena?  Como as diretrizes são trabalhadas nesta escola?  O currículo escolar indígena atende as demandas/necessidades das comunidades indígenas?  O que poderia melhorar no currículo?  Existe um Projeto Político Pedagógico? Como funciona?

2. Histórico da Escola  O que fundamenta a existência da escola indígena?  Relate um breve histórico da escola?  A escola já teve uma estrutura curricular convencional?  O que mudou com os processos de reconhecimento étnico oficial?

3. Quem são os sujeitos?  Quem são os alunos da escola?  Quem são os professores, coordenadores e funcionários?  Qual a relação da escola com a comunidade?  A escola está preparada para receber os alunos?

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