A EDUCAÇÃO INTERCULTURAL EM TRÊS ÁREAS CURRICULARES ESCOLARES: DIAGNÓSTICOS, DESAFIOS E APOSTAS

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A EDUCAÇÃO INTERCULTURAL EM TRÊS ÁREAS CURRICULARES ESCOLARES: DIAGNÓSTICOS, DESAFIOS E APOSTAS1

Resumo

Este painel vincula-se ao tópico Temas emergentes na relação da Didática e da Prática de Ensino com a Sociedade, pertinente ao eixo temático Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade. A emergência que especificamente se busca abordar é a promoção da interculturalidade na construção do currículo e das práticas pedagógicas escolares, considerando o convívio, o diálogo, o debate e a aprendizagem recíproca entre as culturas como urgências postas às sociedades contemporâneas. Em vista disso, o painel busca fornecer diagnósticos referentes a como a interculturalidade tem sido percebida e promovida pelos/as professores/as da Região Metropolitana do Rio de Janeiro nos âmbitos das disciplinas escolares de Sociologia, Educação Física e Arte. Em “Conhecimento Escolar, Educação Intercultural e Ensino de Sociologia: explorando possíveis confluências”, são identificadas as representações de professores/as de Sociologia sobre as relações entre o conhecimento sociológico escolar vigente na escola brasileira e a proposta da educação intercultural, e são problematizadas possibilidades de construção de currículos sociológicos interculturalmente orientados no contexto de escolas da rede pública. No artigo “A interculturalidade em questão: reflexões a partir do ensino da Educação Física escolar”, as autoras objetivam compreender como a diferença é tratada e questionada nas aulas de Educação Física em uma turma de quinto ano do Ensino Fundamental de uma escola pública e como a formação de professores/as tem sido impactada pelas demandas construídas nas práticas pedagógicas escolares. E em “‘Seu cabelo não nega’: quando a diferença é colocada em questão nas aulas de arte”, são relatadas experiências pedagógicas nas quais se procurou visibilizar preconceitos e práticas discriminatórias raciais vividos usualmente no país, propondo o diálogo entre as diferenças raciais. Face ao quadro presente, os trabalhos apontam desafios e apostas postas ao sistema escolar e aos educadores no que se refere à viabilização da educação intercultural nas três áreas curriculares.

Palavras-chave: Escola Básica, Currículo, Educação Intercultural.

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Painel apresentado no XVII Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino – ENDIPE (Fortaleza/CE, 2014), sub-eixo “Temas emergentes na relação da Didática e da Prática de Ensino com a Sociedade”.

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CONHECIMENTO ESCOLAR, EDUCAÇÃO INTERCULTURAL E ENSINO DE SOCIOLOGIA: EXPLORANDO POSSÍVEIS CONFLUÊNCIAS

NEVES, Fagner Henrique Guedes Universidade Federal Fluminense – UFF

Resumo

Este trabalho situa-se na intersecção entre conhecimento, educação escolar, ensino de Sociologia e interculturalidade, um debate pouco explorado pela pesquisa educacional brasileira. Tendo como principal referencial a concepção intercultural de Santos inscrita nas Sociologias das Ausências e das Emergências, busca-se discutir como os professores de Sociologia lotados na escola básica compreendem as possibilidades de debates entre o saber sociológico escolar e a educação intercultural. Neste empreendimento, dois objetivos são visados: (1) identificar as representações de professores de Sociologia de escolas públicas de Niterói sobre as relações entre o conhecimento sociológico escolar vigente na escola básica brasileira e a proposta da educação intercultural e a (2) problematizar possibilidades de construção de currículos escolares sociológicos interculturalmente orientados no contexto de escolas da rede pública. Para tanto, foram desenvolvidas entrevistas individuais semiestruturadas com onze sujeitos licenciados em Ciências Sociais e atuantes no magistério estadual de Sociologia há pelo menos dois anos. Foram também analisados documentos curriculares oficiais voltados ao ensino médio e à disciplina de Sociologia. Mediante a articulação entre os dados obtidos através desses procedimentos e os referenciais teóricoconceituais enunciados, foi possível obter significativos achados. A despeito de diversas proposições favoráveis à educação intercultural nos documentos curriculares analisados, esta ainda é escassamente promovida na seleção de conteúdos e no desenvolvimento de práticas pedagógicas no ensino básico de Sociologia, conforme relatam os sujeitos da pesquisa. Nesse cenário, a construção intercultural do conhecimento sociológico escolar é uma meta a se cumprir, repleta de desafios e apostas a mobilizar o sistema escolar e os educadores. Palavras-chave: Conhecimento Escolar, Educação Intercultural e Ensino de Sociologia.

O que o ensino escolar de Sociologia deve oferecer a seus estudantes? Uma formação que lhes favoreça a construção de um pensamento crítico sobre a realidade social? Ou uma formação que os disponha ao respeito às diferenças culturais e ao diálogo intercultural? Por certo, ambas as tarefas cabem à disciplina de Sociologia. Eis a proposição a partir da qual se tece o presente artigo.

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Neste artigo, serão relatados aspectos de pesquisa realizada no âmbito de trabalho de dissertação de Mestrado defendido no corrente ano. Tal pesquisa foi norteada pela seguinte questão: como os professores de Sociologia da escola básica compreendem as possibilidades de debates entre o conhecimento sociológico escolar e as proposições da educação intercultural? Em vista disso, procurou-se: (1) identificar as representações de professores de Sociologia de escolas públicas de Niterói/RJ sobre as relações entre o conhecimento sociológico escolar vigente na escola brasileira e a proposta da educação intercultural; e (2) problematizar possibilidades de construção de currículos escolares sociológicos interculturalmente orientados no contexto de escolas da rede pública. Na sequência, serão respectivamente delineados nas três seções que compõem o artigo os conjuntos de referências teórico-conceituais e metodológicas, bem como os achados e considerações decorrentes da pesquisa.

O Conhecimento Escolar como Campo Intercultural O conhecimento escolar é um vastíssimo campo teórico-conceitual em todo o mundo. Este trabalho aborda um dos vários embates que perpassam esse âmbito, representado pelas perspectivas conteudista e intercultural do saber escolar, e sintetizadas por algumas de suas principais ideias. No ponto de vista da perspectiva conteudista, o conhecimento escolar é um elemento fundamental da educação escolar, uma vez que consiste no meio à inclusão social dos estudantes. Nos termos de Libâneo (2012):

O papel da escola é prover aos alunos a apropriação da cultura e da ciência acumuladas historicamente, como condição para seu desenvolvimento cognitivo, afetivo e moral, e torná-los aptos à reorganização crítica de tal cultura (LIBÂNEO, 2012: 25) (...) não há justiça social sem conhecimento (...) Todas as crianças e jovens precisam de uma base comum de conhecimentos” (idem, 2012: 26).

Segundo Young (2011):

O conhecimento baseado nas disciplinas científicas é a forma mais confiável para a equalização de oportunidades de integração dos educandos à sociedade do conhecimento (YOUNG, 2011: 13-14).

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Nas proposições de Libâneo e Young, dois objetivos da abordagem do conhecimento na escola estão claramente marcados: o desenvolvimento cognitivo dos/as estudantes e a equalização do acesso destes à sociedade do conhecimento. O que une as proposições de Libâneo e Young é a defesa da importância social do conhecimento na formação discente. Ambos os autores partem da premissa de Lev Vygotsky de que existe um patrimônio cultural e científico acumulado pela humanidade a ser adquirido e reelaborado pelos estudantes, com o necessário auxílio do sistema escolar. Nas visões de Libâneo e Young, o conhecimento é considerado o cerne da educação escolar, uma vez que é elemento fundamental à justiça social. De posse de conhecimentos, os estudantes podem construir conceitos sobre suas experiências sociais, habilitando-os como sujeitos críticos, contestadores e transformadores da realidade social estabelecida. Contudo, sobre que conhecimento está se tratando acima? Este é o questionamento comum aos autores que pensam o currículo e práticas de ensino e aprendizagem escolares como potenciais instâncias de construção intercultural. Dentre os diversos referenciais possíveis neste sentido, optou-se por considerar a Sociologia das Ausências e a Sociologia das Emergências, de Santos (2002). No parecer de Santos, a racionalidade ocidental moderna, fundamento da hegemonia global do Ocidente, é “indolente” (Santos, 2002, p. 238). Esta forma de racionalidade tanto contrai o presente quanto expande o futuro (Idem, p. 239). Contrai o presente quando silencia ou não confere crédito a experiências e ideias provenientes de culturas não ocidentais no cotidiano. E expande o futuro quando dirige a vida social em função de uma busca incessante pelo progresso, negando às sociedades a deliberação democrática sobre os seus próprios desenvolvimentos. Por ambos os lados, impõem-se violências cognitivas, sociais e culturais. Santos propõe a inversão dos mecanismos engendrados pelo Ocidente. Mediante a Sociologia das Ausências, identificam-se as experiências sociais desperdiçadas, e valorizá-las como objetos tão dignos de atenção e reconhecimento quanto as experiências ocidentais. Ou seja, o presente é muito maior do que concebe o Ocidente. Através da Sociologia das Emergências, um futuro socialmente justo torna-se um possível e que pode ser construído, desde já, com a mútua compreensão e na aprendizagem recíproca entre as culturas, isto é, a interculturalidade. Nessa perspectiva, interculturalidade significa o encontro entre diferentes repertórios culturais, no qual, voluntariamente, haja diálogo, troca e recíproca

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construção entre eles, sem violências e prejuízo às partes, e, sobretudo, em vista da justiça social. É um projeto que visa envolver todas as instituições sociais e seus termos característicos. Porém, se a escola básica, seus currículos e práticas pedagógicas são nichos onde idéias, subjetividades e posturas podem repercutir em maior escala em outras esferas sociais, e por que não elaborá-las em sentido intercultural? Com efeito, à luz da interculturalidade, o tradicional viés monocultural dos currículos escolares deve ser enfrentado pelos educadores em face da necessidade de fazer do currículo um campo intercultural (Candau e Moreira, 2008, p. 35). É desejável a incorporação aos currículos escolares de discussões sobre seu caráter ocidentalizado, fomentando atitudes de respeito às diferenças culturais e de diálogo com as culturas. É preciso pontuar que somente argumentar em favor da formação do sujeito crítico sobre sua própria experiência revela uma contradição (Queiroz e Neves, 2013, p. 157): defende-se uma educação escolar baseada no pensamento crítico, ao mesmo tempo em que ela não se atenta a muitos dos referenciais culturais que compõem a mesma experiência que será objeto de crítica nas aulas, exercícios e avaliações nas diversas disciplinas. Nesta perspectiva, não só o desenvolvimento do pensamento crítico é atribuição fundamental da escola básica democrática, mas também o incentivo à formulação de ideias e atitudes compatíveis com a interculturalidade. Diante dos termos apontados, pode-se afirmar que a construção intercultural do conhecimento escolar passa pela visibilização de diferenças culturais; pela valorização de diferenças culturais; pela construção de instâncias de diálogo entre culturas na construção curricular e nas práticas pedagógicas; e pelo fortalecimento dos movimentos democráticos em outras instituições sociais. Com efeito, estas foram as categorias de análise dos dados obtidos durante a pesquisa.

A Operacionalização da Pesquisa Foram elencados critérios e estratégias metodológicas que possibilitassem a coleta e análise de dados em face da questão e dos objetivos de pesquisa. Empreendeu-se a pesquisa tendo em vista o ensino de Sociologia ministrado no ensino médio, por considerar este um ponto lacunar na pesquisa educacional brasileira, quadro comprovado a partir de revisão da literatura pertinente à Sociologia escolar nos últimos dez anos, período no qual cresceram os movimentos pela obrigatoriedade da Sociologia em todas as redes de ensino médio do país, atendidos pela edição da Lei nº 11.648/08. Especificamente, entre sessenta e três trabalhos (teses, dissertações, artigos e

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livros), quatro versam sobre o conhecimento sociológico escolar, mas nenhum deles em diálogo com alguma concepção de educação intercultural. A pesquisa ocorreu na rede estadual de ensino médio de Niterói, Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Tal rede foi escolhida em razão de sua maior quantidade de estabelecimentos escolares e, logo, de professores de Sociologia no citado município: trinta e duas escolas públicas estaduais, nas quais atuam cinquenta e um professores de Sociologia – dados fornecidos pela Coordenadoria “Baixadas Litorâneas” da Secretaria de Estado da Educação do Rio de Janeiro – SEEDUC/RJ. A despeito desses quantitativos, nenhum dos recentes estudos e pesquisas empreendidos em vista do ensino de Sociologia baseou-se nas realidades escolares niteroienses. Realizou-se a pesquisa naquele município devido a essa lacuna. Foram selecionados a participar da pesquisa professores/as de Sociologia que fossem licenciados/as em Ciências Sociais e se dedicassem ao magistério da disciplina de Sociologia em escolas públicas estaduais de Niterói há pelo menos dois anos, condições identificadas mediante a aplicação de ficha de dados. Justificam-se estas opções de acordo com a suposta maior capacidade dos cientistas sociais no trato do conhecimento sociológico do que outros profissionais que exercem o ensino de Sociologia na rede estadual; e um tempo mínimo de atuação docente na escola básica que permitisse aos/às professores/as a discutir aspectos da cultura escolar. Considerando que a questão de pesquisa envolve um universo de impressões e opiniões compartilhadas pelos sujeitos selecionados, empregaram-se estratégias metodológicas qualitativas, como a triangulação de dados (Triviños, 1987), a entrevista individual semiestruturada e a análise documental (Cellard, 2008). Buscando abarcar a maior quantidade de dados possível em vista dos objetivos de pesquisa, articularam-se as normas e prescrições curriculares federais e estaduais relativas ao ensino médio e à disciplina de Sociologia, os depoimentos dos sujeitos entrevistados e os referenciais teórico-conceituais favoráveis à educação intercultural delineados na seção anterior. Foram realizadas entrevistas individuais porque grande parte das escolas estaduais niteroienses conta com somente um professor de Sociologia, e não houve meios de reuni-los em entrevistas coletivas. Segundo, optou-se por entrevistas semiestruturadas em face de sua natureza pouco diretiva, em que é possibilitado ao/à entrevistado/a a liberdade de explorar, em maiores ou menores detalhes, os temas expostos pelo entrevistador que julgasse mais relevantes de comentário.

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As entrevistas foram dirigidas por um roteiro composto pelos seguintes blocos temáticos: (1) Experiência Profissional; (2) Pensamento Sociológico; (3) Conhecimento Escolar e (4) Currículo. Ao invés de perguntas previamente estabelecidas, cada um destes blocos abrangeu tópicos de debate correlacionados ao histórico dos sujeitos entrevistados como estudantes de Ciências Sociais e professores de Sociologia na educação básica, e os significados que construíram neste processo sobre conhecimento sociológico, diversidade cultural, interações entre culturas e a construção do saber sociológico escolar em meio a estes termos. A abordagem aos sujeitos de pesquisa se deu inicialmente por caminhos burocráticos, quando o ingresso aos estabelecimentos escolares e, por conseguinte, as abordagens dos sujeitos da pesquisa aconteceram sob a autorização das autoridades educacionais competentes – da SEEDUC/RJ e das escolas. Desta maneira, foram realizadas três entrevistas. Em função da mais recente greve do professorado estadual, decorrida entre meses de agosto e outubro de 2013, foi preciso percorrer outras vias de abordagem dos sujeitos docentes, através de contatos diretos ou indiretos com os docentes e sem quaisquer negociações com as citadas autoridades. Por este caminho, foram empreendidas mais oito entrevistas. Por outro lado, seguindo o modelo proposto por Cellard (2008), procedeu-se à análise dos seguintes documentos: (1) as Diretrizes Curriculares Nacionais ao ensino médio – DCNEM (Brasil, 1998); (2) os Parâmetros Curriculares Nacionais ao ensino médio – PCNEM (Brasil, 1999); (3) as Orientações Curriculares Nacionais ao ensino médio – OCNEM (Brasil, 2006); e (4) o Currículo Mínimo de Sociologia da SEEDUC/RJ (Rio de Janeiro, 2012). Com efeito, foi identificado um significativo conjunto de recorrências e lacunas nos depoimentos e nos documentos no que se refere à promoção da educação intercultural no conhecimento sociológico escolar, ponto a se explorar na próxima seção.

A Construção Intercultural do Saber Sociológico Escolar: Depoimentos Docentes, Desafios e Apostas Nesta seção, serão analisados os depoimentos concedidos pelos sujeitos da pesquisa, procurando identificar as suas representações sobre as possíveis interfaces entre a construção do conhecimento sociológico escolar e a educação intercultural. A partir disso, problematizam-se desafios e apostas compatíveis com esse projeto.

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O rol dos sujeitos da pesquisa é composto majoritariamente por pessoas do sexo feminino (sete entrevistadas), de cor branca (seis), com idade entre vinte e seis e trinta anos (cinco), renda mensal de até três salários mínimos (três), diploma de pósgraduação (nove) e atuação docente em escolas estaduais niteroienses até seis anos (sete), sem nelas ter ocupado qualquer cargo diretivo (nove). Sete sujeitos atuam escolas da região central de Niterói (denominada pela Prefeitura municipal como “Praias da Baía”) e quatro, na região Norte do município. No começo das entrevistas, os/as professores trataram sobre suas inclinações ao exercício do magistério escolar em Sociologia. Por um lado, cinco professores/as justificaram a opção pela docência escolar por considerá-la um espaço de transformação social; por outro, outros/as cinco entrevistados/as viram no magistério da educação básica uma opção de sustento. Foi também solicitado aos/às entrevistados/as que descrevessem, se possível detalhadamente, a/s escola/s em que trabalham, as relações e os atores docentes e discentes que a/s compõem. Neste sentido, em dez entrevistas, foram abordadas as relações políticoadministrativas que marcam o cotidiano escolar e afetam a carreira docente. Neste particular, para oito sujeitos a burocracia escolar tem limitado a autonomia profissional docente. Por outro lado, sete entrevistados/as relataram que trabalham em escolas em estado precário de conservação, o que, segundo eles/as se configura em outro empecilho a um exitoso exercício do magistério. Nas descrições dos atores escolares discentes, todos os sujeitos entrevistados consideraram seus estudantes como atores de baixo nível socioeconômico e moradores de comunidades suburbanas ou periféricas, sejam eles adolescentes ou trabalhadores em idade madura que cursam a modalidade EJA. Quanto às identidades culturais dos estudantes, registraram-se diferentes percepções de marcadores de diferença e identidade cultural, bem como de interações conflituosas nas escolas por eles causadas, conforme aponta a Tabela nº 1, anexada ao artigo após as Referências Bibliográficas. Nos depoimentos, identificam-se menções mais recorrentes às pertenças raciais, aos referenciais decorrentes da socialização em comunidades locais e/ou regionais, a gênero e a religião. Foram citações mais escassas aquelas relacionadas aos marcadores culturais geracional e sexual. E não houve menções a marcadores culturais referentes a grupos indígenas e de portadores de deficiência física (surdos, cegos etc.).

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Nesse cenário, todos os professores consideraram imprescindível à educação básica a contextualização do saber escolar ao cotidiano discente. Para dez entrevistados considerar isto significa compreender e respeitar cada educando em suas diferenças culturais no processo de construção do conhecimento escolar, diferenças estas construídas em meio às suas vivências, saberes, interesses, presentes em sala de aula, produzindo um ambiente educativo propício a aprendizagens. Um ambiente onde conflitos existem, mas são negociados em vista das aprendizagens. Porém, somente quatro sujeitos abordaram detalhadamente experiências pedagógicas interculturais que tem desenvolvido. Experiências nas quais se tentou levar ao conhecimento escolar artifícios que conseguissem despertar olhares de atenção e valorização à diversidade cultural, e de disposição ao diálogo intercultural. Neste sentido, Julianai, professora atuante na Região Norte de Niterói, afirma:

A gente falava de relações sociais através da música. (...) e eles viam que aquelas músicas que eles ouviam alguma coisa dizia para eles. (…) Sempre tem um ‘debochinho’ (sic): “isso é música de preto”. Mas a gente tem que tá (sic) ali pra dizer: ‘não, não é assim, vocês tem que pensar, olha a cor de vocês, cada um é diferente, vocês são coloridos’ (...) Eles cantam junto. Eles brigam: as meninas brigam por causa de namorado (...) mas na hora de cantar, cantam, gostam (...) – Juliana.

Davi, que atua em duas escolas na Região Norte de Niterói, enuncia:

Trabalho em atividades na sala que eles possam interagir (...) Muitas vezes, eu determino os grupos aleatoriamente que vão trabalhar: para tirar um pouco aquela coisa da ‘afinidade’” (...) Já consegui, por exemplo, de pessoas que não se davam muito bem elas se acabarem se relacionando (...) muitas vezes quando eu to trabalhando um conceito relacionado ao preconceito social (...) esquecem que ela é lésbica ou que ele gay (...) – Davi.

Ana Maria, que trabalha na mesma região que Juliana e Davi, acrescenta: “Eu fui o ano passado com um vestido que eu tenho, e uma aluna falou: ‘parece que é de macumba, a Srª é macumbeira?’ (…) eu comecei a falar: “por que essa roupa simboliza para algumas pessoas ‘macumba’?” ‘E o que é ‘macumba’?’ Então, dali eu já vou ‘puxando’ os temas de respeito pelo outro, pela religião alheia, você não prejulgar ninguém (...) que eles entendam que essas variedades existem, fazem parte do cotidiano deles, podem não fazer parte da intimidade deles, mas cercam a vida deles, irão cercar e eles tem que aprender a respeitar, conhecer pra entender’ (...) eu trabalho com pessoas evangélicas e não veio reclamação (...) Caiu muito o nível de briga na sala de aula entre alunos porque eu buscava esse diálogo – Ana Maria.

E Ester, professora de Sociologia na EJA na Região das Praias da Baía, relata:

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Eu estava um dia (...) passando pelo conceito de cidadania. Aí, eu costumo falar que mesmo diferentes, homens e mulheres tem direitos igualmente garantidos. (...) O problema é que os homens não aceitam esse tipo de ‘conversa’. Alguns se exaltam e falam: ‘lugar de mulher é na cozinha’, ‘elas arrumam a casa e a gente paga a conta’ (sic) (...) As mulheres se defendem dizendo que trabalham o mesmo que eles e, por isso, tem que ter os mesmos direitos. (...) Quer dizer, um ‘monte’ (sic) de estereótipos de senso comum (...) Eu já ouvi alunos meus e estagiários que trabalham comigo dizerem que os alunos, em casa, começam a questionar reportagens que vêem na TV e levam pra discussão com familiares, ou mesmo fora de casa, as aulas que tiveram comigo – Ester.

Os relatos acima expostos informam a ocorrência de práticas pedagógicas propositivas (Queiroz, 2012) em que se buscou problematizar diferenças raciais, religiosas, de gênero e de sexualidade, e sua convivência dialógica no espaço escolar. Expedientes

pedagógicos

semelhantes

àqueles

relatados

acima

podem

desestabilizar os padrões ordinariamente conhecidos e disseminados quanto a variadas formas de identidade cultural, colocando em pauta os preconceitos e as práticas discriminatórias que decorrem desses padrões – vide os significados contidos em termos ou expressões como “macumba”, “isso é música de preto” e “lugar de mulher é na cozinha”. Esses expedientes podem alargar a compreensão dos estudantes sobre as culturas, e que é um dos princípios do ensino de Ciências Humanas no ensino médio, conforme determina o inciso III do Art. 10 das DCNEM, e reiterado pelas OCNEM de Sociologia (Brasil, 2006: p. 105) e o Currículo Mínimo estadual (Rio de Janeiro, 2012). A visibilização das culturas permite valorizar a diversidade cultural, convivendo com esta “de forma plena e positiva”, como assinalam os PCNEM de Sociologia (Brasil, 1999, p. 39). Permite compreender que de nenhuma maneira diferenças culturais podem ser objeto de hierarquizações, já que nenhuma é autossuficiente e pode declarar suas ideias como superiores às ideias originadas em outras culturas. Todas as culturas elaboram perspectivas específicas da realidade, e em todas estas podem contribuir à justiça. E só ao atribuir tal significado às culturas que se pode aprender com elas, ensinar a elas, e construir com elas um futuro comum justo. Entretanto, diante do exposto há algumas considerações a registrar. Em primeiro lugar, não há evidências de que as práticas pedagógicas interculturais narradas podem ser compreendidas como resultantes de um ou mais fatores como região municipal, turno escolar, arranjo escolar ou perfil específico de Licenciado em Ciências Sociais. Nem todos os quatro sujeitos que detalharam a realização dessas práticas apresentam os mesmos dados quanto a qualquer uma dessas categorias.

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A despeito dos documentos analisados, os/as professores/as entrevistados/as não trataram da visibilização e da valorização de todas as identidades culturais no âmbito do conhecimento escolar. Ora algumas eram consideradas como significativas, ora outras eram silenciadas em seus discursos, como tradicionalmente se produz no âmbito dos currículos escolares. Apenas foi unânime entre eles a percepção do marcador socioeconômico e a necessidade de sua abordagem no ensino de Sociologia. Outra significativa recorrência é a identificação do conhecimento sociológico, fundamento importantíssimo do saber escolar, com as teorias sociais ocidentais modernas, que, não raramente, são eurocêntricas. Este entendimento foi comum em todos os depoimentos. Os PCNEM apontam à mesma direção quando concebem as Ciências Sociais como produtos exclusivos da modernidade ocidental, criadas de acordo com os paradigmas epistemológicos e os problemas sociais ocidentais (Brasil, 1999, p. 36). Os outros documentos analisados sequer se pronunciam sobre essa questão. Frente ao exposto, a visibilização e a valorização das diferentes culturas no ensino escolar de Sociologia emergem como desafios, em formas de construção do conhecimento escolar que abranjam todas as instâncias e momentos da construção curricular, procurando, inclusive, o despertar do pensamento crítico discente. Por certo, a proposta acima defendida não será exitosa em escolas onde professores não tem autonomia profissional e contam com precários recursos materiais, fazendo-se necessária a garantia de condições escolares inversas a estas. É verdadeiro, ademais, que foi apontado por alguns entrevistados que não há garantias de que a educação intercultural venha a mudar a forma pela qual os educandos concebem a diversidade cultural e se posicionam diante dela em outros espaços. Muitos preconceitos, conflitos e violências culturais persistem nestas instâncias. Possivelmente, a interculturalidade, processo construído necessariamente em caráter voluntário, enfrente a oposição de interesses contrários à justiça social que se estendem nas sociedades contemporâneas e, sobretudo, a força coercitiva que eles exercem sobre as escolhas dos sujeitos em seus contextos de socialização. Neste problema reside o maior desafio do projeto da educação intercultural e dos educadores com ele comprometidos.

Considerações Finais A construção intercultural do saber sociológico escolar é ainda uma meta por se desenvolver e que certamente impõe uma série de desafios e apostas aos educadores.

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Identificados estes termos, é necessário desenvolver estratégias de viabilização da educação intercultural. O escopo da pesquisa relatada neste trabalho foi limitado e há muito mais a estudar e discutir nas confluências entre conhecimento escolar, ensino de Sociologia e educação intercultural. Nesse sentido, penso que os processos de formação de professores da disciplina devem ser considerados como significativos contextos de pesquisa. Não se pode negar o caráter monocultural da formação docente em Ciências Sociais em vigor no país, representado tanto por proposições identificadas nos PCNEM quanto pelos posicionamentos dos sujeitos da pesquisa quanto à seleção de conteúdos curriculares. Diante disso, por que não desenvolver pesquisas que venham a interferir na formação e no exercício da docência no sentido da educação intercultural, ao mesmo tempo em que possam propiciar relevantes achados à pesquisa educacional? Um caminho futuro possível e desejável é, então, o estudo da formação de professores em Ciências Sociais em face dos aspectos abordados neste artigo.

Referências BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ciências Humanas e suas tecnologias. Brasília: MEC/Secretaria de Educação Básica, 1999. _______. Orientações Curriculares Nacionais: Ciências Humanas e suas tecnologias – Conhecimentos de Sociologia. Brasília: MEC/Secretaria de Educação Básica, 2006. CANDAU, V. M. MOREIRA, A. F. B. Currículo, Conhecimento e Cultura. In: Indagações sobre Currículo. Brasília: MEC/Secretaria de Educação Básica, 2008. CELLARD, A. A análise documental. In: POUPART, J. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Petrópolis: Vozes, 2008. LIBÂNEO, J. C. O Dualismo Perverso da Escola Pública Brasileira: escola do conhecimento para os ricos, escola do acolhimento social para os pobres. In: Revista Educação e Pesquisa. São Paulo, v. 38, n° 1, 2012. QUEIROZ, P. P. A Pesquisa e o Ensino de História: espaços/processos de construção de identidade profissional. In: NIKITIUK, S. (Org.) Repensando o Ensino de História. 8ª ed. São Paulo: Cortez, 2012. QUEIROZ, P. P. NEVES, F. H. Conhecimento Sociológico Escolar e Educação Intercultural: dilemas e problematizações. In: Revista ALEPH/UFF, n° 20, dez/2013. RIO DE JANEIRO (Estado). Currículo Mínimo: Sociologia. Rio de Janeiro, Secretaria de Estado da Educação, 2012. SANTOS, B. S. Para uma Pedagogia do Conflito. In: SILVA, L.H. AZEVEDO, J.C. SANTOS, E. S. (Orgs.) Novos mapas culturais, novas perspectivas educacionais. Porto Alegre: Sulina, 1996.

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_____________. Para uma Sociologia das Ausências e uma Sociologia das Emergências. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, 2002. Disponível em < www.boaventuradesousasantos.pt >. Acessado em 15 de agosto de 2012. TRIVIÑOS, A. Introdução à Pesquisa em Ciências Sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987. YOUNG, M. O Futuro da Educação em uma Sociedade do Conhecimento: o argumento radical em defesa do currículo centrado em disciplinas. In: Revista Brasileira de Educação, v.16, n º 48, set/dez 2011.

Tabela nº 1: Marcadores culturais mencionados e os conflitos a eles relacionados Marcador de diferença e identidade cultural

Menções

Conflitos

Racial

7

5

Comunidade de Referência

5

5

Gênero

5

5

Religião

4

4

Geração

2

ZERO

Sexualidade

2

1

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A INTERCULTURALIDADE EM QUESTÃO: REFLEXÕES A PARTIR DO ENSINO DA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR

SANTOS, Ana Paula da Silva Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/RJ SILVA, Rita de Cassia de Oliveira e Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/RJ

Resumo A Educação Física, enquanto prática pedagógica, vem assumindo os desafios impostos pela diferença no âmbito educacional. Propostas classificatórias e excludentes não mais atendem à demanda deste componente curricular frente a tais desafios. Neste contexto, apesar de possibilitar aos indivíduos interagir entre si, relacionando-se através da expressão do movimento, a Educação Física também pode ser responsável por reproduzir visões hegemônicas de conteúdos que privilegiam modelos homogeneizados de corpos, atitudes e comportamentos. Neste sentido, este estudo teve como objetivo compreender como a diferença é tratada e questionada nas aulas de Educação Física em uma turma de 5º ano do Ensino Fundamental de uma escola pública e como a formação de professores/as está impregnada (ou não) pelas demandas advindas desta prática pedagógica. Como instrumentos metodológicos utilizamos entrevista coletiva com os/as alunos/as, entrevista semi-estruturada com o professor, observação destas aulas, as anotações das narrativas e comportamentos considerados significantes e a observação das aulas de um curso de formação de professores. Como descoberta relevante evidenciamos que a diferença, embora de forma tênue, já começa a adentrar os espaços da prática pedagógica da Educação Física, assim como os cursos de formação.Assim, acreditamos que relacionar a perspectiva intercultural ao ensino de Educação Física, seja na prática pedagógica ou nos cursos de formação inicial, possibilita refletir sobre as desigualdades presentes no espaço escolar e construir propostas de intervenção que viabilizem a superação de preconceitos e discriminações. Um ensino que considere o universo cultural dos estudantes, abrindo espaço para a diversidade de gênero, etnia, classe social e raça presentes na sociedade contemporânea. Palavras-chave: Educação Física, Diferença e Interculturalidade

Introdução A questão da diferença vem apresentando na nossa sociedade cada vez mais visibilidade e se manifesta de diversas formas, desde as questões étnicas, de gênero, orientação sexual e classe social, até mesmo as questões religiosas, modos de expressão e saberes. As problemáticas são múltiplas, especialmente visibilizadas por grupos considerados desprestigiados culturalmente que buscam a sua legitimação através da

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denúncia de injustiças, discriminações e desigualdades reivindicando igualdade e reconhecimento político e cultural. Neste universo, a educação estabelece uma relação profunda com a cultura, não podendo ser analisada sem que haja uma profunda relação. Corroborando com tal proposição, Candau (2008, p.13) afirma: [...] não há educação que não esteja imersa nos processos culturais do contexto que se situa. Neste sentido, não é possível conceber uma experiência pedagógica ‘desculturizada’, isto é, desvinculada totalmente das questões culturais da sociedade (CANDAU, 2008, p. 13).

A referida autora destaca também que, em tempos atuais, a consciência do caráter homogeneizador e monocultural da escola é cada vez mais profundo, assim como, de uma forma até contraditória, a consciência da necessidade de romper com esta e construir práticas em que as questões relacionadas à diferença e ao multiculturalismo sejam reconhecidas. A Educação Física como campo de conhecimento, apesar de possibilitar aos indivíduos interagir entre si, relacionando-se através da expressão do movimento, também pode ser responsável por reproduzir visões hegemônicas de conteúdos que privilegiam modelos homogeneizados de corpos, atitudes e comportamentos que colaboram para silenciar as vozes de grupos discriminados historicamente. Deste modo, os indivíduos se apropriam de um repertório gestual que caracteriza a cultura corporalii na qual estão inseridos, onde a brincadeira, o jogo, o esporte, a dança, a luta e a ginástica podem ser entendidos como elementos constitutivos da identidade cultural de seus praticantes (NEIRA, 2011). Reconhecendo a importância pedagógica e política do comprometimento em formar identidades culturais abertas e sensíveis à diferença (CANEN, 2008), é fundamental pensar na construção de currículos no campo da Educação Física que rompam com princípios tradicionais da área caracterizados por serem elitistas, excludentes, classificatórios e monoculturais. Desta forma, como salienta Neira (2011), com aulas focadas nas habilidades motoras, na aprendizagem do gesto esportivo ou nas visões monoculturais de saúde e cuidados com o corpo, dificilmente o currículo possibilitará a construção de subjetividades abertas à diversidade cultural. Dentro deste contexto, algumas questões nos parecem urgentes para a prática pedagógica da Educação Física: por que ainda nos deparamos com propostas

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competitivas e excludentes? Por que as questões relacionadas à diferença e diversidade cultural ainda são tão incipientes no campo? De que forma os/as professores/as podem promover em suas práticas, oportunidades inclusivas, transformadoras, valorizadoras da diferença e que desnaturalizem e questionem preconceitos e discriminações? Como a formação de professores/as pode contribuir para uma futura prática pedagógica sensível para as questões culturais? Para tanto, foram analisadas duas propostas: a prática pedagógica de um professor de Educação Física atuante na Rede Pública de Ensino do Rio de Janeiro e um curso de formação de professores/as de Educação Física, localizado na mesma cidade. Procuramos a partir destes dados, compreender como a diferença é tratada e questionada nas aulas da referida disciplina em turmas de 5º ano do Ensino Fundamental e como a formação de professores/as é impregnada (ou não) pelas demandas advindas desta prática pedagógica. Educação Física e tendências pedagógicas: onde fica a “diferença”? Entendendo a Educação Física como integrante da educação geral de todo/a educando/a desde a Educação infantil até o Ensino médio, acredita-se que ela tenha características diferenciadas dos outros campos do conhecimento, pois em suas aulas, os indivíduos parecem estar mais livres das limitações impostas pelas carteiras, cadeiras, mesas e salas escolares. Entretanto, se, por um lado, a Educação Física representa este espaço potencialmente transformador e diferenciado na educação escolar, por outro, tem sido estruturada por uma visão competitiva, construída historicamente, deixando-se, não raro, penetrar por perspectivas hegemônicas de uma sociedade que privilegia modelos padronizados de corpo, êxito e individualismo. No Brasil, a Educação Física apareceu associada aos ideais eugênicos de regeneração e embranquecimento da raça. Tal concepção foi sendo difundida em congressos médicos, propostas pedagógicas e em discursos políticos, tornando-se, assim, um poderoso instrumento nas mãos da burguesia para justificar seu domínio de classe em busca do progresso. A explicação biológica aprisionava o indivíduo em determinados espaços de classe e papéis sociais, garantindo-se, deste modo, a ordem social vigente. Os discursos presentes nestes currículos enfatizavam padrões de feminilidade, masculinidade, classe social e etnia desprezando qualquer outra possibilidade (NEIRA, 2011, SOARES, 2012).

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De acordo com Ghiraldelli Jr (1992), o viés higienista da Educação Física é fortemente evidenciado nos anos finais do Império até a primeira república. Esta tendência defendia a ênfase na questão da saúde, ou seja, a ginástica, o jogo, os esportes em geral, tinham o objetivo de disciplinar os hábitos das pessoas no sentido de levá-las a se afastarem de práticas que pudessem deteriorar sua saúde e também os aspectos morais, comprometendo assim a “vida coletiva”. A Educação Física militarista (década de 1930 e meados da década de 40), segundo Ghiraldelli Jr (1992), destacava o seu papel na formação do homem obediente e adestrado. A ideia central de tal concepção era o “aperfeiçoamento da raça” seguindo as determinações impostas pela “biologia nazifascista”, daí a Educação Física funcionar como atividade aceleradora do processo de seleção natural. Até hoje vemos práticas que nos remetem ao militarismo: a formação dos/as alunos/as em filas, o uso do apito, a defesa da bandeira do país em jogos internacionais, são exemplos desta influência. No período pós-guerra (1945 a 1964) surge a chamada Educação Física Pedagogicista que inaugura formas de pensamentos que modificam a prática da Educação Física: instauração da apologia da Educação Física enquanto “centro vivo” da escola pública, ou seja, professores/as de Educação Física são, desde então, responsáveis pelas particularidades educativas das quais as outras disciplinas, as chamadas “instrutivas” não poderiam cuidar (GHIRALDELLI JR, 1992). Pode-se encontrar esta prática até hoje em escolas públicas e privadas, causando um esvaziando e até menos a “menos valia” dos conteúdos específicos da área de Educação Física. A Educação Física nos anos 70 ganha um viés competitivista, vinculado ao grande avanço científico nas áreas ligadas ao campo biomédico. Com isso, a Educação Física foi utilizada para eliminar as críticas internas e para forjar o clima de prosperidade, desenvolvimento e tranquilidade (GHIRALDELLI JR, 1992). Romper com a lógica biológica e naturalizada se constitui como o grande desafio da área a partir da década de 1980, época em que os primeiros sinais de resistências e subversão a esse modelo hegemônico começam a surgir, impulsionados principalmente pelos movimentos sociais e as teorias críticas. As chamadas abordagens de Educação Física escolar surgiram com objetivo de combater o viés competitivista e excludente presente até então. Mas e a “diferença”, onde fica nesta história? Para Neira (2007), a prática pedagógica do campo da Educação Física tem apresentado um grande vínculo com interpretações instrumentais para o movimento humano o que caracterizaria seu ensino

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pela transmissão e reprodução de padrões preestabelecidos, retirados de elementos culturais específicos (esportes), o que desencadeia a rejeição pelas diferenças técnicas dos/as alunos/as ou ainda, o desenvolvimento de habilidades motoras (educação do movimento) e perspectivas (educação pelo movimento), voltadas para o desempenho, para o mérito e para o lazer funcional. Concordamos com Daólio (2004) ao afirmar que a Educação Física pode e deve ampliar seus horizontes, abandonando de vez a premissa de investigar o movimento humano, o corpo físico ou o esporte na sua dimensão técnica, para tornar-se um campo de atuação que considere o ser humano como ator cultural e social. Neira (2007) adiciona que, como componente curricular, a Educação Física precisa proporcionar aos/às alunos/as algo que lhes permita superar o saber construído e vivido para além dos muros escolares. Ela tem de contribuir para a existência do questionamento acerca dos saberes e a consolidação de um projeto de vida. O mesmo autor vai além, sinaliza que a prática da Educação Física, em uma abordagem cultural, visa proporcionar aos sujeitos da educação a oportunidade de conhecer mais profundamente o seu repertório de cultural corporal ampliando-o e compreendendo-o. além disso, visa também fornecer acesso a alguns códigos de comunicação de diversas culturas, por meio da variedade de formas de manifestações corporais. Em se tratando da formação dos/as professores/as de Educação Física em uma perspectiva multicultural, estudos indicam (OLIVEIRA e SILVA, JANOÁRIO & CANEN, 2007), a importância da formação inicial e continuada nas construções teóricas e nas práticas pedagógicas dos/as professores/as que, segundo uma perspectiva multicultural, podem implicar na sensibilização para a diversidade cultural de raça, gênero, classe social e etnia. Interculturalidade: uma luz no fim do túnel? Segundo Candau e Russo (2011), a interculturalidade é concebida como uma estratégia ética, política e epistêmica. Nesta perspectiva, através dos processos educativos questiona-se a colonialidadeiii presente na sociedade e na educação, desvelase o racismo e a racialização das relações, promove-se o reconhecimento de distintos saberes e consolida-se o diálogo entre diferentes conhecimentos, combate-se as diferentes formas de des-humanização, estimula-se a construção de identidades culturais e o empoderamento de pessoas e grupos excluídos, favorecendo processos coletivos no que diz respeito a projetos de vida pessoal e de sociedades “outras”.

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A educação intercultural é confrontada com as visões diferencialistas que visam processos radicais de afirmação de identidades culturais específicas. Procura superar a versão essencialista das mesmas e parte da afirmação de que na nossa sociedade, os processos de hibridização cultural são intensos e geradores da construção de identidades móveis, abertas e em permanente construção. É ainda consciente dos mecanismos de poder que permeiam as relações culturais e não desvincula as questões da diferença e da desigualdade presentes na realidade contemporânea (CANDAU, 2010). Para Oliveira &Daólio (2011), a educação intercultural trata-se de um movimento em prol do aprender com o diferente e com ele produzir de forma coletiva. Não para descartá-lo, nem para supervalorizar determinada cultura, inferiorizá-lo ou subjugá-lo, mas para a efetivação de um diálogo igualitário, no qual diferentes vozes sejam ouvidas. Adicionam que a possibilidade de enfrentamento das desigualdades de oportunidades, estereótipos, preconceitos e sectarismos, ainda diluídos nos cotidianos escolares, dado pela perspectiva intercultural de educação, aponta para outro tipo de relação social escolar: o compartilhar democrático, pautado pelo diálogo mútuo entre diferentes perspectivas. Considerando a diversidade cultural como fator importante a ser pensado e trabalhado para a concretização de uma educação de qualidadeiv, acreditamos que a educação intercultural proposta com Candau (2010) nos possibilite enxergar o “outro” em todas suas nuances e construções identitárias. Contudo, trata-se de uma perspectiva que não pode ser vivenciada de forma estanque e apenas quando situações de preconceito e discriminação ocorram. Necessita afetar todas as instâncias da educação, favorecendo o constante diálogo entre os diferentes grupos, horizontalizando as relações. Defendemos a educação intercultural como a perspectiva que pode nos oferecer pistas e respostas para a realização de um processo educativo que contemple todos e todas os/as discentes, respeitando suas identidades, dando possibilidades para um diálogo verdadeiramente igualitário e inclusivo, permitindo assim que a escola possa ser construída como um espaço de cruzamento de culturas e não como mantenedora de desigualdades e silenciadora de identidades. Pensando a diferença em “diferentes” contextos Inspiradas na metodologia da pesquisa-ação, analisamos a prática pedagógica de um professor de Educação Física e as aulas de uma turma de 5º ano em uma escola

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pública do Rio de Janeiro. Os principais instrumentos metodológicos utilizados foram entrevista coletiva com os/as alunos/as, entrevista semi-estruturada com o professor, observação das aulas e as anotações das narrativas e comportamentos nas aulas considerados significantes. Para Thiollent (2011) a pesquisa-ação é uma estratégia metodológica da pesquisa social que além de ter uma ampla interação entre pesquisadores e pesquisados caminha no sentido de promover ações concretas para solucionar os problemas detectados no contexto em questão e aumentar o nível de consciência de todos os envolvidos. Foi realizada também a técnica da observação, por um período de 2 semestres letivos, das aulas de 5 disciplinas que compõem um curso de formação de professores/as de Educação Física, localizado na cidade do Rio de Janeiro. Procuramos refletir sobre aspectos importantes do que Roberto Cardoso de Oliveira (2006) chama de “O Trabalho do Antropólogo”: olhar, ouvir e escrever. Oliveira (2006) argumenta que o olhar e o ouvir não podem ser tomados como faculdades

totalmente

independentes

no

exercício

da

investigação.

Ambas

complementam-se e auxiliam ao/à pesquisador/a a tomar conhecimento da realidade estudada. Assim como o olhar, o ouvir deve estar preparado para eliminar todos os “ruídos” que lhe pareçam insignificantes, isto é, que não façam sentido para os fins da pesquisa, dentro do corpo teórico da disciplina formadora ou para o paradigma no interior do qual o/a pesquisador/a foi treinado. A prática pedagógica do professor de Educação Física O professor de Educação Física pesquisado é recém-formado e com um ano de experiência na educação básica, mostrou-se interessado e motivado em atuar como sujeito participante do estudo. Através de uma conversa inicial percebemos em sua fala que as relações entre os gêneros apareciam como mais marcantes no que se refere a questão da diferença no espaço da aula e,a seu ver, a turma apresentava uma nítida separação entre os gêneros: “No momento em que eles vem para aula você percebe nitidamente o grupo das meninas e dos meninos...conversando...separadamente. E isso prossegue até o momento que você intervém...se você deixar eles vão assim até o final da aula...poucos são os meninos e as meninas que tentam interagir em outros grupos”.

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Sobre este fato, Louro (2003) afirma que a separação de meninos e meninas é, muitas vezes, estimulada pelas atividades escolares que dividem grupos de estudo ou propõem competições. Ao ser perguntado sobre a importância de tratar de assuntos ligados as questões de gênero na prática pedagógica, o referido professor percebe a escola como espaço de formação de valores mais igualitários entre homens e mulheres: “A escola tem um papel muito importante, pois pode possibilitar a participação de meninos e meninas em atividades em conjunto...e o professor acaba tendo um papel crucial pois ele vai ser o mediador desta situação”. A escola é considerada umas das instituições reprodutoras de ideologias sexistas. De acordo com Louro (2003, p.61): “gestos, movimentos, sentidos são produzidos no espaço escolar e incorporados por meninos e meninas, tornando-se partes de seus corpos”. Porém, esta mesma escola que reproduz, pode contribuir para a superação e transformação de concepções preconceituosas e discriminatórias com relação às diferenças de raça, etnia, classe social e gênero. Em relação à prática pedagógica da Educação Física, a organização do presente estudo englobou 10 aulas com 2 tempos de 50 minutos cada,totalizando 20 tempos de aulas, que tiveram como participantes o professor de Educação Física, a turma de 5º ano e, nós pesquisadoras. Dentre estas aulas, destacamos as referentes à temática futebol como aquelas em que a diferença a partir da categoria gênero, teve grande relevância. Nestas aulas, tivemos como objetivo identificar e superar preconceitos relacionados ao gênero. Dentre as palavras e expressões citadas pelos/as alunos/as, algumas nos despertaram interesse por estarem vinculadas à questão de gênero como “futebol é coisa de homeme as meninas não sabem jogar futebol porque elas são fracas”. Argumentamos

que

tais

afirmações

eram

pautadas

em

construções

preconceituosas sobre o que é ser homem e o que é ser mulher na sociedade e que cabia aos sujeitos escolherem suas práticas corporais sem que por esse motivo pudessem sofrer algum tipo de preconceito ou discriminação. Após sucessivas mediações, grande parte da turma aceitou participar em conjunto na aula o que possibilitou discussão, reflexão e ressignificação de atitudes e comportamentos nas relações entre os/as estudantes.

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O relato do professor de Educação Física mostrou a importância atribuída a intervenções pedagógicas sensíveis a questão da diferença: “É importante trabalhar as questões de gênero nas aulas de Educação Física, pois mesmo havendo resistência por parte dos alunos, eles apresentam a consciência sobre o respeito às diferenças e à diversidade. A intervenção do professor é fundamental, pois se o professor não intervir nos momentos de conflito haverá a perpetuação do preconceito e da divisão por gênero, pois estão coisas que já estão enraizadas na sociedade”. A formação dos/as professores/as de Educação Física A partir da observação realizada acerca de cinco disciplinas que compõem o curso de formação em questão, podemos perceber alguns aspectos importantes para a reflexão acerca da diversidade cultural. Dentre as cinco disciplinas observadas, 2 são eminentemente teóricas e 3 apresentam aulas teóricas e práticas. As duas disciplinas teóricas são lecionadas pelo mesmo professor. São atores deste momento da pesquisa: 3 mulheres e 1 homem. São 4 disciplinas obrigatórias e 1 eletiva para o curso de licenciatura em Educação Física. Cabe salientar que a instituição também oferece o curso de graduação/bacharelado em Educação Física e sendo assim, as disciplinas observadas também contam com a participação de alunos/as deste curso, não tendo o professor ou professora qualquer controle quanto à procedência acadêmica do curso. As disciplinas são em sua maioria, oferecidas a alunos/as que estejam cursando a partir do 4º período e uma delas é oferecida já no 1º, porém os/as alunos/as podem cursá-las a qualquer momento do curso uma vez que as mesmas não apresentam pré-requisitos para sua participação. Conteúdos ligados a diversidade cultural (diferença, pessoas com deficiência, gênero e raça) são apresentados oficialmente em 2 disciplinas, a partir dos programas oferecidos pelas professoras, aos/às educandos/as, embora as ementas das disciplinas, presentes no site da instituição, não contemplem a temática. Embora as disciplinas teóricas não contemplem oficialmente estas questões, elas surgem cotidianamente nos debates acerca da formação destes/as futuros/as professores/as e principalmente quando se discute a prática pedagógica dos/as educadores/as físicos/as. O professor que ministra duas disciplinas, entre as observadas, afirma que “o professor de Educação Física não sabe e não está preparado para lidar com a diferença na escola, ele às vezes até piora a situação”. Esta fala vai ao encontro do que Faria

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Júnior (PIRES, 2006) salienta ao observar que o currículo de Educação Física teve sete anos de atraso com relação à legislação e trinta anos às demais licenciaturas, no que diz respeito à inserção das disciplinas pedagógicas efetivamente. Isso nos parece suficiente para compreender uma possível dificuldade dos egressos dos cursos de Licenciatura em Educação Física, em lidar com as diferentes realidades encontradas nas escolas, principalmente, nas instituições públicas de ensino. Embora as questões ligadas à diferença e à diversidade não sejam contempladas oficialmente em todas as disciplinas observadas, nas aulas práticas conflitos e discussões surgem. Em todas as disciplinas observadas, pelo menos em uma de suas aulas práticas questões multiculturais surgem. São questões ligadas ao tema “gênero”,“Ah, mas as meninas não tem habilidade pra isso”,“Os meninos têm mais força, então não vai valer”, até discussões acerca do tema “raça”: “Não pega a bola preta não, senão na hora de dar o nó você vai prender e nem vai ver mais seu próprio dedo”, “Marca o Neguebav”, “o Negueba tá livre”. Uma das disciplinas contempla de maneira ampla a preocupação com as pessoas com deficiência, embora haja no curso uma disciplina que tem como objetivo discutir e fornecer elementos para aulas direcionadas para este grupo. Temas como “orientação sexual” são silenciados nas aulas, mas estão presentes nos espaços informais da instituição, como corredores: “Não entendo bissexualidade, não entendo isso, ou gosta de uma coisa, ou gosta de outra; “Enquanto elas faziam escondidinho tava bom”. Percebemos a partir das aulas observadas que as questões ligadas à diferença e à diversidade cultural, embora de maneira tímida, estão presentes no curso de formação e precisam ser mais amplamente explicitadas e discutidas, para que não sejamos responsáveis pela manutenção do status quo. Muita ainda precisa ser feito, mas percebemos que a preocupação com a diferença e a diversidade cultural já se encontra presente na formação inicial de professores/as de Educação Física. Algumas Considerações Evidenciamos neste estudo que a diferença, embora de forma tênue, já começa a adentrar os espaços da aula de Educação Física, seja como momento de questionamento e reflexão, ou como momento de reafirmação de identidades. Em sua prática, o professor de Educação Física mostrou preocupação em propor intervenções pedagógicas

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pautadas na questão da diferença quando deparou-se com conflitos ocasionados pelas relações entre os gêneros e as marcas da desigualdade que as imperam. Em relação a análise das disciplinas do curso de formação em questão, entendemos que a diferença também é abordada de forma incipiente, necessitando de maior discussão e reflexão contribuindo para formar futuros/as professores/as de Educação Física com sensibilidade para as questões relacionadas à diversidade cultural. Dentro do exposto, acreditamos que relacionar a perspectiva intercultural ao ensino de Educação Física, seja na prática pedagógica ou nos cursos de formação inicial, possibilita refletir sobre as desigualdades presentes no espaço escolar e construir propostas de intervenção que viabilizem a superação de preconceitos e discriminações através do reconhecimento, problematização e enfrentamento de desigualdades e estereótipos presentes de forma naturalizada na escola e, especificadamente, nas aulas de Educação Física. Uma prática intercultural da Educação Física caminha em direção a um ensino que considera o universo cultural dos estudantes, abrindo espaço para a diversidade de gênero, etnia, classe social e raça presentes na sociedade contemporânea. Referências CANDAU, V. M. Multiculturalismo e educação: desafios para a prática pedagógica. In: MOREIRA, A. F; CANDAU, V. M.(Org.) Multiculturalismo: Diferenças Culturais e Práticas Pedagógicas. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. Cap. 1, p. 13-37. ______. (Org). Sociedade, educação e cultura(s): questões e propostas. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 2010. 284p. CANDAU, V. M.; RUSSO, K. Interculturalidade e educação na América Latina: uma construção plural, original e complexa. In: CANDAU, V.M. (Org). Diferenças culturais e educação: construindo caminhos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011. 215p. CANEN, A. O multiculturalismo e o papel da pesquisa na formação docente: uma experiência de currículo em ação. Currículo sem Fronteiras, v. 8, n.1, p. 17-30, jan/jun/2008. DAOLIO, J. Educação Física e o conceito de cultura. Campinas: Autores Associados, 2004. 77 p. GHIRALDELLI JR, P. Educação Física progressista: a pedagogia crítico-social dos conteúdos e a Educação Física brasileira. 4. ed. São Paulo: Loyola, 1992. LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação. 5ª ed. Petrópolis: Vozes, 2003. NEIRA, M. G. Teorias pós-críticas da educação: subsídios para o debate curricular da Educação Física. Dialogia, São Paulo, n.14, p. 195-206, 2011. __________. Ensino de Educação Física. São Paulo: Thomson Learning. 2007. 210 p. NEIRA, M. G; NUNES, M. L. F. Pedagogia da Cultura Corporal: Crítica e alternativas. São Paulo: Phorte, 2006. OLIVEIRA, R. C. O trabalho do Antropólogo.2ª ed. Brasília: Paralelo 15; São Paulo: Editora Unesp, 2006, 222p.

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“SEU CABELO NÃO NEGA”: QUANDO A DIFERENÇA É COLOCADA EM QUESTÃO NAS AULAS DE ARTE

SILVA JUNIOR, Paulo Melgaço da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ CANEN, Ana Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ

Resumo Trabalhar com periferias urbanas abre possibilidades de conhecer como determinados discursos e conceitos que circulam nos grandes centros são apropriados e reinventados. As relações de vizinhança persistem muito mais do que em bairros de classe média ou alta. As necessidades básicas, os espaços de sociabilidade, fazem com que sejam redesenhadas novas formas de perceber o mundo social O presente artigo aborda alguns modos pelos quais os alunos do 6º ano constroem suas identidades culturais, de raça e gênero e como estas são vivenciadas no ambiente escolar. Neste aspecto, buscamos captar como as/os jovens da periferia de Duque de Caxias se constroem como sujeitos criando novos significados para discursos legitimados pelo senso comum. Baseamos em Sommerville (2000) e Barnard (2004), que entendem que as questões de raça, sexualidades, gênero e classe social devem ser vistas como interseccionadas, ou seja, não podem ser dissociadas, uma vez que se deve olhar para o sujeito social como um todo e não apenas por um ângulo de suas subjetividades Para tal, realizamos uma pesquisa ação (FRANCO, 2005) durante as aulas de arte, realizadas ao longo do ano.. Além das aulas, os principais instrumentos para geração de dados foram a observação do cotidiano escolar e as anotações de conversas informais consideradas significantes. Propusemos trabalhar temas que propiciassem a discussão e desestabilização de conceitos e visões essencializadas durante as aulas de arte. Tal processo evidenciou que, ainda que nem todos tenham chegado ao nível de reconhecimento e valorização das diferenças, nossos estudantes aprenderam a respeitar o outro, a pensar neste como ser humano. Palavras chaves: Raça, Cotidiano Escolar e Interculturalidade

Introdução Este estudo aborda alguns modos pelos quais alunos/as do 6º ano de uma escola da periferia de Duque de Caxias/RJ constroem suas identidades de culturais, de raça e gênero e como estas são vivenciadas no ambiente escolar. De acordo com Sodré (1999), Quijano (2001) Wilchins (2004) e Barnard (2004) a raça é uma abstração, uma fantasia móvel que não tem nada a ver com o determinismo biológico. Ao mesmo tempo que Sommerville (2000) e Barnard (2004), que entendem que as questões de raça,

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sexualidades, gênero e classe social devem ser vistas como interseccionadas, ou seja, não podem ser dissociadas, uma vez que se deve olhar para o sujeito social como um todo e não apenas por um ângulo de suas subjetividades. De fato, como o primeiro autor é professor, pai e homem negro devemos revelar que as questões raciais influenciam diretamente as questões de gênero, sexualidades e masculinidades, e vice-versa. Cabe salientar a complexidade da questão racial no Brasilvi: se por um lado, no senso comum, o/a negro/a tem sua identidade social construída de maneira negativa e subalternizada, por outro vê sua sexualidade explorada, exaltada e hipervalorizada. Ao longo da história da civilização brasileira, o/a negro/a vem sendo marcado/a, tendo suas subjetividades construídas por meio de estigmas e mitos, principalmente de maneira essencializada, fazendo com que muitos sujeitos tenham dificuldade de se aceitar como pertencentes à raça. Uma reflexão atenta sobre esta questão nos mostra que a educação e a escola podem tanto contribuir para a perpetuação do racismo e a manutenção do status quo inferiorizante do/a negro/a em nossa sociedadevii, como, também, pode ser de agente de transformação social e de luta contra o racismo. Acreditamos que a escola pode oferecer uma grande contribuição, problematizando a visões essencializadas de identidades raciais e de gênero e, com isso, colaborar para que os/as estudantes reconheçam quão injustos são os sentimentos e atitude de racismo e sexismo Apropriamos do campo do multiculturalismoviii, entendido como a possibilidade de promover uma educação para o reconhecimento do outro, para o diálogo entre os diferentes grupos sociais e culturais (CANEN 2007, 2008; CANDAU, 2008, 2009, WALSH, 2009) que pode contribuir para discutir a escola e seus diversos e complexos atravessamentos culturais para problematizar as maneiras como estes/as jovens constroem e revelam suas subjetividades no cotidiano escolar. O objetivo central da pesquisa foi passar dos limites, desconfiar do que está posto e olhar de mau jeito o que está posto; colocar em situação embaraçosa o que há de estável naquele corpo de conhecimentos (LOURO 2004). Com isso, problematizar e de tentar promover mudanças nas maneiras de conceber as possibilidades de se construir como sujeitos sociais, trazendo à tona a necessidade de reconhecimento do “outro” como sujeito. Fabrício e Moita Lopes (2010) destacam a importância da realização de pesquisas na área educacional que se transformem em atividades relevantes e em oportunidades de aprendizagem. Assim, a pesquisa se constitui em uma tentativa de contribuir para

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conceber e investigar o repertorio de significados e conceitos construídos a partir do senso comum e, com isso, (tentar) desestabilizar visões congeladas de gênero e raça. O artigo está estruturado da seguinte maneira: no primeiro momento as reflexões iniciais. Logo após propomos uma breve reflexão sobre Escola, Periferia Urbana, culturas e interculturalidade. Ao final, destacamos o contexto em que se desenvolveu o trabalho que serviu como instrumento para esta pesquisa e, por fim, apresentamos as considerações.

Reflexões iniciais Muitos/as autores/as têm se debruçado a abordar a natureza reflexiva da contemporaneidade. São apresentadas novas maneiras de viver e de se relacionar socialmente. Com isso, antigos valores sociais perdem seus status. Surge agora um sujeito fragmentado, múltiplo, contraditório em constante mutação. É a modernidade reflexiva (GIDDENS, BECK & LASH, 1997) caracterizada pela busca, pela reflexão e o repensar sobre quem somos e em quem poderemos nos tornar. Neste sentido, a modernidade reflexiva, também, tem sido caracterizada por uma explosão de identidades políticas centradas na ascensão do feminismo, nas identidades gays, lésbicas e negras, na migração de antigas colônias dos países pobres para os países ricos. Nesta pluralidade de vida social me interessa refletir sobre corpos negros, como sujeitos que foram apagados pela modernidade e que sempre são apontados nos censos e pesquisas como em situação de inferioridade. É lugar comum afirmar que no que se diz respeito à raça, a sociedade brasileira é constituída pelos discursos da escravidão, da abolição, da Ciência da Raça, da Democracia Racial, da Miscigenação e da Negritude; além disto, os efeitos semânticos de tais discursos podem ser percebidos em contextos distintos do país, respeitando as particularidades de cada região. Com base neles e no racismo, muitos ainda constroem negros/as como marginais, bandidos, não confiáveis, feios, não competentes, incapazes para atividades intelectuais etc. (MELO, ROCHA e SILVA JUNIOR, 2013). A nossa proposta é voltar o olhar para a escola e suas relações cotidianas de raça, sexualidades, gênero e classe social. Esse local detém significativa importância na construção das identidadesix dos/as estudantes. A escola constitui o primeiro centro social fora do núcleo familiar, onde a criança poderá colocar em questionamento ou confirmar todas as informações e visões de mundo ensinadas pelos familiares.

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Conforme Moita Lopes (2002, p. 91) “as escolas, por exemplo, determinam em grande parte não somente o que as pessoas fazem como também quem são, serão e podem ser”, tendo também a função de “legitimar ou recusar essas identidades, entre outros significados previamente construídos” (p. 204). No que diz respeito à raça, é na escola que se aprende que a cor da pele negra é um problema. Nesse espaço, meninos e meninas ouvem brincadeiras, xingamentos e críticas, e são excluídos de diversas práticas sociais devido ao marcador corporal. Tais ações acontecem de diversas maneiras: por um lado, o silêncio que invisibiliza a desigualdade racial, desencorajando alunos/as de se posicionarem como negros/as. Por outro lado, nos bancos escolares deparamo-nos com discursos que essencializam binarismos que podem inferiorizar ou erotizar o/a negro/a. Nessa perspectiva, a discussão sobre cabelos, para a aluna negra, serve como um claro exemplo de questões que fazem parte do cotidiano escolar: eles devem ser alisados ou permanecer naturais? Para Costa de Paula (2010), esta lógica binária – alisar ou não – acaba por desvalorizar a mulher negra porque o que está em jogo aqui é a comparação com o padrão de referência mulher branca. Ao propor estas duas alternativas não se está considerando o direito de a mulher negra buscar sentir-se bonita do jeito que melhor lhe convier. Já para o aluno negro, seus traços físicos (formato de rosto, nariz e o próprio cabelo) são motivos de piada. Contudo, este mesmo corpo negro se torna um fetiche e é visto como forma de sexualidade, sensualidade, vigor e força na prática de esportes.

Escolas, Periferias Urbanas, Culturas e interculturalidade Vivemos atualmente em um cenário sócio-político-ideológico e econômico bastante complexox, no qual o campo educacional (a escola) precisa problematizar as práticas e discursos internalizados que produzem a subalternização de pessoas e grupos culturais. Além disso, urge que a educação busque meios de provocar mudanças nas interações cotidianas nas escolas e sociedades. Neste sentido, acreditamos que a educação formal deva estar conectada às possibilidades de educação para a vida, o conviver, o reconhecimento da natureza e dos saberes ancestrais como forma de conhecimento escolar. Determinados conceitos e discursos disseminados nos grandes centros urbanos são reinventados, reconstruídos e readaptados nas periferias urbanas. As relações de vizinhança e as redes sociais de apoio mútuo são características que marcam e que

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buscam driblar a precariedade de trocas humanas nas periferias urbanas. Com isso, as necessidades básicas fazem com que sejam redesenhadas novas formas de perceber o mundo social, muito presentes em um específico centro urbano periférico na região metropolitana do Rio de Janeiro. Nessa perspectiva, a educação multi/ intercultural se configura como um campo de estudos que visa reconhecer a educação para a alteridade, valorizando o outro como sujeito social e construtor de diversos saberes. Ao mesmo tempo, abre também possibilidades para abordar as questões sócio-econômico-político-sociais e reconhecer as diferenças (gênero, sexualidades, raça, classe social), buscando problematizá-las e integrá-las ao contexto educacional, impedindo seu silêncio, hierarquização ou anulação. Como há uma grande polissemia em relação à expressão intercultural. Desse modo, e de acordo com Walsh (2009), podemos destacar três perspectivas da interculturalidade: relacional, funcional e crítica. A perspectiva relacional propõe o contato e o intercâmbio entre culturas, pessoas, práticas e saberes, e pode se dar em condições de igualdade ou desigualdade. Esta vertente assume que a interculturalidade sempre existiu no continente, pelas constantes relações entre índios e afrodescendentes com as diversas raças. Já a perspectiva da interculturalidade funcional, ainda segundo Walsh (2009), se preocupa com o reconhecimento da diversidade cultural com o objetivo de realizar a inclusão desses sujeitos na estrutura social estabelecida. Aqui se busca promover o diálogo, a tolerância, o respeito mútuo e a convivência pacífica entre os diferentes. É relevante levar em consideração que esta perspectiva filosófica acabou sendo incorporada pelas políticas públicas, porque sua proposta orienta a inclusão de indivíduos e grupos sociais marginalizados e excluídos. Daí derivam as preocupações com as políticas e ações afirmativas. A terceira perspectiva, a interculturalidade críticaxi, questiona a lógica do capitalismo; seu foco central é a estrutura de poder, seu padrão de racialização e como a diferença tem sido construída em função deste. Esta vertente busca fortalecer a construção de identidades dinâmicas, abertas e plurais, assim como potencializar processos de empoderamento de sujeitos inferiorizados e subalternizados e a construção da autoestima e autonomia em um horizonte de emancipação social (CANDAU; RUSSO, 2011). Aqui a diferença está associada ao processo de colonização, sendo

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denominada diferença colonial, ou seja, o espaço que se desdobra a partir da colonialidade do poder. Nas palavras de Mignolo (2003, p. 10),

[...] a diferença colonial é o espaço onde histórias locais que estão inventando e implementando os projetos globais encontram aquelas histórias locais que os recebem; é o espaço onde os projetos globais são forçadas a adaptar-se, integrar-se ou onde são adotados, rejeitados ou ignorados (MIGNOLO, 2003, p. 10).

Para esse autor, este espaço pode ser físico ou imaginário, e nele atua a colonialidade do poder que configura historicamente uma geopolítica do conhecimento, na qual se destaca o privilégio de indivíduos localizados em determinados lugares geohistóricos do globo. A colonialidade é parte constitutiva da modernidade, é seu lado sombrio, oculto e silenciado (MIGNOLO, 2003). Ela determina a subalternização e a dependência, processo que pode ser compreendido a partir de quatro eixos: do poder, do ser, do saber e da mãe natureza. A matriz da colonialidade ocupa um lugar central nos processos de dominação/ subordinação relacionados a raça, gênero e sexualidade, bem como nos processos de construção das masculinidades (levando em conta tanto a estrutura do patriarcado quanto o fetiche criado a partir do corpo negro). Daí a necessidade de se problematizar a diferença colonial (MIGNOLO, 2003) produzida desde a colonização até os dias atuais.

As noções de identidades de raça e de gênero em questão: metodologia, desafios, contextos e realizações A escola Experimentalxii, onde os dados do presente estudo foram gerados, está localizada em um bairro da periferia da cidade da Baixada Fluminense - Duque de Caxias - e oferece desde a educação infantil ao segundo segmento do ensino fundamental. A escola possui cerca de 700 alunos/as, provenientes de classe trabalhadora e de baixa renda. A turma na qual a pesquisa foi desenvolvida estuda no segundo turno, que funciona das 11:00 às 15:00 horas. Para o desenvolvimento de tal proposta, optamos pela pesquisa-ação que permite “caminhar junto quando se pretende a transformação da prática” (FRANCO, p.495, 2005). A autora nos diz que a pesquisaação deve partir de uma situação social concreta a modificar e mais do que isso deve se inspirar nos elementos novos que surgem durante o processo e sob a influência da pesquisa.

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Os temas eram introduzidos, pelo professor/ pesquisadorxiii, a partir de textos, filmes e músicas em geral, que permitissem provocar discussões a fim de desestabilizar visões essencializadas. Destacamos que os encontros foram gravados e transcritos. De acordo com o programa da disciplina de Arte elaborado para o 6º ano, o estudo da cor deve acontecer ao longo do 3º bimestre. Programamos então, em conjunto com a orientadora educacional, as atividades do bimestre incluindo vídeos, músicas e a teorização sobre cores. Para iniciar as discussões, no dia 31 de julho propusemos a apresentação do vídeo Vista minha pelexiv. Estavam presentes na sala 18 meninos e 10 meninas. Como era o retorno das aulas (literalmente, o primeiro dia de aula após um curto recesso), procuramos deixar a turma bem à vontade, pedimos para fazerem pipoca, levei refrigerantes, tentamos reproduzir uma sala de cinema. Antes de começarmos fizemos o convite para assistirem ao filme e destacamos que ele apresentava questões raciais muito interessantes, às quais os/as alunos/as deveriam prestar atenção. Iniciou-se o filme, e logo sentimos um certo estranhamento por parte da turma: risinhos, alguns meninos se movimentando excessivamente nas cadeiras. Contudo, ninguém se levantou ou saiu da sala durante a exibição. Não ouvimos piadas ou comentários ao longo dos 25 minutos aproximados de apresentação. Apenas destacamos no diário de notas que, durante a exibição, “os meninos ficaram mais inquietos e agitados do que as meninas, que permaneceram em silêncio durante todo o vídeo”. Ao terminar a exibição, o aluno Endison comentou: “Nossa é muito estranho ver um filme assim, só negro”. Consideramos este momento um instante de desestabilização do grupo, que não estava acostumado a ver filmes com protagonismo negro. Os/as aluno/as não têm contato, em seu cotidiano, com negros/as em posição dominante. No convívio diário eles/as assistem a negros/as recebendo ordens e trabalhando como empregados em funções subalternas. Talvez os/as negros/as melhor posicionados socialmente sejam os/as professores/as da escola. Contudo, antes que pudéssemos disser algo, o aluno Andrew falou: “Você está sendo preconceituoso, tem que saber respeitar”. Dalila rapidamente interveio: “É que.... é diferente, a gente não tá acostumada a ver filme assim”. Para reforçar nossa opinião, perguntamos: “Assim como?” Por um minuto, silêncio na turma; depois de algum tempo, Vitória se posicionou e disse: “Com negros fazendo papeis de ricos... e só com eles tendo dinheiro ...olha as novelas em malhação e na avenida Brasil só são empregados... Só uma negra faz papel principal e mesmo assim é empregue-te”xv. A fala desta aluna reforçou minha linha de pensamento acima, de que os/as alunos/as não

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possuem referencial de negros no poder, principalmente no que se refere a intelectuaisxvi. A aluna Vitória destacou: “Mas eu acho que o vídeo também é preconceituoso porque só mostra a maioria de negro. Não resolve deste jeito. Tem que ter os dois vivendo iguais... com dinheiro e situação”. Este foi um ponto relevante, em que a aluna buscava a valorização do convívio entre raças diferentes, uma discussão muito presente nas vertentes multiculturais pós-coloniais, interativas, críticas e interculturais (CANDAU, 2008,2009; CANEN, 2007, 2008, 2009). Entretanto, o aluno Wallace entrou na conversa e citou um outro aspecto do vídeo: “As meninas são todas com cabelo durão, não são bonitas”. Trata-se de um tema tabu entre as adolescentes negras, pois as questões relativas ao cabelo fazem parte do cabedal de discursos das mulheres negras. Todo o processo de colonização valorizou os modelos de beleza da mulher branca; em consequência, o modelo de cabelo desejado é o comprido liso. Argumentei, então, que ele não achava as meninas bonitas porque somos regidos pelos padrões de beleza do modelo branco europeu. Conforme mostra Costa de Paula (2010), a mulher negra pode se mostrar insegura em relação à própria imagem por causa do cabelo. De fato, a aluna Joyce comentou: “É por isso que temos que alisar os cabelos, senão todo mundo acha feio”. Iara se defendeu: “Eu não gosto de cabelo escorrido, gosto do meu cacheado igual da Penhaxvii, não me importo com o que os outros falam.” “Mais você alisa do mesmo jeito, Iara seu cabelo é ruim e o dela é implante”, comentou Natalia. A partir daí, os comentários sobre cabelos tomaram uma grande proporção, com cada uma destacando como alisa o cabelo e a vantagem que algumas brancas têm em ter cabelo liso. Entendemos que, no caso do cabelo, a mulher negra e pobre sofre ainda mais que aquelas que possuem mais recursos econômicos que permitem se submeter a tratamentos de beleza e a trabalhar a autoestima. A maioria dos meninos não se interessou em participar da discussão. Apenas as vozes de Wallace, Mauro, Endison e Andrew aparecem na gravação, mesmo assim na forma de risos. Um dos poucos momentos em que se ouve a voz do Wallace é para dizer que “pegar em cabelo liso é mais gostoso... é bom para ficar...” e fez o gesto como se estivesse beijando e passando as mãos nos cabelos da outra pessoa. É lógico que uma fala dessas, vinda de um menino considerado bonito, desestabiliza e inferioriza as meninas negras.

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Aproveitamos a discussão para problematizar o conceito de beleza da mulher e as razões por que cabelo liso é considerado cabelo bom. Resolvemos perguntar-lhes quais os adjetivos atribuídos a um cabelo considerado duro, e fomos listando as respostas no quadro. Apareceram na relação, entre outros: “Cabelo bombril, ruim, espeto do inferno, cabelo do diabo, sarará crioulo, nega maluca, coisa ruim, carapicho, ...” – todos negativos e refletindo as formas como negros e negras foram construídos ao longo dos anos. Aqui a proposta era problematizar os discursos essencializados sobre raça (SOMERVILLE, 2000; SULLIVAN, 2003; BARNARD, 2004;) e trazer à tona que determinadas características são traços das múltiplas identidades de raça (CANDAU, 2008; CANEN, 2009). Por isso, solicitamos à turma que refletisse sobre todos aqueles nomes escritos no quadro, e sobre como eles depreciavam e subalternizavam o outro. Observamos que, desde o processo de colonização, o negro veio sendo construído como inferior, e que as diferenças foram marcadas em relação ao branco (MUNANGA, 1986; WALSH, 2009). Mostramos que enquanto ser branco significa ser bonito, ser negro corresponde a ser feio; que o cheiro do branco é bom, ao passo que o do negro fede, entre outras comparações que quem é negro conhece muito bem, incluindo todos aqueles atributos relativos ao cabelo, especialmente quando atribuídos à mulher negra. Naquela ocasião, o objetivo era mostrar como o/a colonizado/a foi marcado/ pelas relações de poder que o/a construíram (QUIJANO, 2007) e como nós, negros e negras, carregamos esses discursos que se acomodam no corpo e que causam um sentimento de inferiorização. Chamamos atenção para o fato de que já era hora de repensarmos as formas como fomos historicamente construídos. Convocamos a turma a pensar na história do Brasil desde a chegada dos portugueses, tentando trazer à tona a questão da diferença colonial (MIGNOLO, 2003). Destacamos como o/a negro/a foi identificado/a e subalternizado/a ao longo dos anos, e como era importante pensarmos nestas questões para criarmos/ desenvolvermos maneiras positivas de identificação (SOMMERVILLE, 2000; BARNARD, 2004). A proposta era a de buscar reconhecer que todos aqueles adjetivos citados no início da conversa serviam para desqualificar e inferiorizar uma raça, atacando diretamente a autoestima das pessoas. Era então necessário realizar a desidentificação, ou seja, livrar-nos dessas formas pejorativas com que fomos comparados e nomeados enquanto negros e negras. Enfatizamos que, apesar de estarmos falando principalmente de cabelos, nossa fala se estendia a todas as condições que reduzem os/as negros/as ao inferior em diversos aspectos de suas subjetividades; e, finalmente, que na realidade nos estávamos experimentando novas

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formas de identificação que não fossem as relacionadas aos processos de determinismo biológico ou social ( SOMMERVILLE, 2000; BARNARD, 2004). A turma ouviu em silêncio. Reafirmamos nossa fala, salientando que se tratava de uma questão cultural e que o vídeo mostrava isso. Lembramos que, se vivêssemos naquela sociedade apresentada no filme, certamente os padrões de beleza seriam diferentes daqueles que estávamos discutindo no momento; e que as relações de poder seriam outras, sob as quais todas as diferenças seriam postas de maneira que a raça negra seria vista como superior: mais inteligente, mais bonita etc. Retomamos a discussão dos cabelos. Falamos sobre algumas mulheres negras famosas que não os alisavam – como as atrizes Sheron Menezes e Luci Ramos e a cantora Luciana Melo – e como o público, de um modo geral, as achava lindas. Ao mesmo tempo mostramos que havia outras que alisavam os cabelos e que as pessoas também achavam lindas – como a jornalista Gloria Maria e as atrizes Camila Pitanga e Thais Araújo –, e ainda como as que usavam belos apliques – como a atriz Cris Vianna, que todos conheciam por ter sido madrinha de bateria da escola de samba da cidade. Com isso, reforçamos a importância de se valorizar as diferenças e a beleza da mulher negra, destacando que a preocupação com os cabelos é geral entre as pessoas, uma vez que eles marcam nossa aparência e funcionam como um cartão de visitas. No caso das meninas, com base em Costa de Paula (2010), afirmamos que a inquietação com os cabelos é comum a todas as afrodescendentes: algumas preferem alisá-los, outras os deixam cacheados ou naturais, outras os raspam; no entanto, o que todas querem são cabelos bonitos que as agradem e as façam se sentir seguras e lindas com a própria aparência. Nesse dia conseguimos chamar atenção da turma para as questões raciais e mostrar outras possibilidades de se constituir uma sociedade, independente de sermos negros ou brancos.

Algumas considerações A proposta do presente estudo era mostrar como as marcas culturais influenciaram nossas formas de agir e pensar, podendo inferiorizar algumas identidades, propondo uma visão multicultural como caminho de viabilização da valorização identitária. A questão foi retomada em outros momentos, tentando reforçar a importância de identificar as formas negativas que marcam o outro, e como estas dadas

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características foram/ são utilizadas como possibilidades de subalternizar ou enaltecer uma raça. Essas discussões confirmaram a relevância de trazer, para a sala de aula, questões relativas a gênero, raça e classe social. Neste sentido, o tema cabelo está diretamente relacionado à construção do gênero feminino e à raça negra uma vez que, no caso específico desta turma, os garotos negros não apresentaram nenhuma preocupação com essa questão. Com isso, estamos certos que plantamos uma semente. Colocamos em xeque visões essencializadas e congelamentos identitários, trouxemos o diferente, o colonizado para a sala de aula e propusemos o diálogo entre as diferenças.

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Notas i

Foram atribuídos nomes fictícios aos onze sujeitos entrevistados, em razão da garantia de anonimato feita a eles no ato das entrevistas. ii À cultura corporal são atribuídas as diferentes manifestações do esporte, do jogo, da ginástica, da dança e da luta, cada uma dessas manifestações terá uma identidade cultural, sentido e significado diferentes na cultura na qual ocorrem (NEIRA& NUNES, 2006). iii A colonialidade se refere a um padrão de poder que emergiu como resultado do colonialismo moderno, porém, ao invés de estar limitado a uma relação formal de poder entre os povos ou nações, refere-se à forma como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se articulam entre si através do mercado capitalista mundial e a ideia de raça. Ainda que o colonialismo tenha precedido à colonialidade, esta sobrevive após o fim do colonialismo. A colonialidade se mantém viva nos manuais de aprendizagem, nos critérios para os trabalhos acadêmicos, na cultura, no senso comum, na autoimagem dos povos, nas aspirações dos sujeitos e em tantos outros aspectos da experiência moderna. Enfim, respira-se a colonialidade na modernidade cotidianamente (MALDONADO-TORRES apud OLIVEIRA, 2010). iv Aqui entendemos educação de qualidade como aquela que apresenta como pano de fundo a diversidade cultural (CANDAU, 2010). v A palavra “Negueba” faz referência a um jogador de futebol negro e é utilizada como apelido dado a um dos alunos da turma que tem a pele escura. vi No senso comum, encontramos ideias do determinismo biológico e do mito da democracia racial. O primeiro mostra as características biológicas da raça negra: nasceu para as atividades que exigem força e habilidades físicas. O segundo informa que em nosso país não existe racismo, que as oportunidades são iguais para todos/as. Contudo, nesta investigação, compreendo que somos marcados e apontados diariamente, seja pela falta de oportunidades seja pelo fetiche corporal. Exemplos são a letra da música do grupo Rappa, “todo camburão tem um pouco do navio negreiro”; e a fala – muito popular entre meus/minhas alunos/as das comunidades em que trabalho – de que “todo policial, porteiro ou segurança sabe muito bem quem é negro/a e quem não é”, que desfazem o mito da igualdade racial

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vii

Aqui abrimos um parêntese para destacar que muitos/as professores/as, no desejo de atender às exigências da Lei 10.639/03 (que inclui a história e acultura da África nos currículos), acabam reforçando o papel do negro como escravo liberto que tem eterna gratidão à Princesa Isabel, ou visões essencializadas do que é ser negro. Tais atividades pouco contribuem para a autoestima dos/as alunos/as negros/as viii Referimos aqui ao multiculturalismo e suas múltiplas vertentes, ou seja, o interculturalismo e a decolonidade (uma vertente da interculturalidade crítica). ix O termo identidade está sendo utilizado segundo a indicação de Silva (2000): sob rasura. Não me refiro a uma identidade essencializada, e sim em momento constante, em fluxo. x Temos presenciado lutas de grupos sociais pelos seus direitos, ao mesmo tempo em que a globalização provoca uma homogeneização de pensamentos, sonhos e culturas, com a mídia repetidamente exibindo novas formas e possibilidades de sociabilidades; há ainda o plano econômico alargando, a cada dia, as fronteiras entre os mais ricos e os pobres. xi Segundo Walsh (2009), essa perspectiva não parte do problema da diversidade ou da diferença, não se preocupa com tolerância ou inclusão. xii O nome da escola e dos/das alunos/as são fictícios. O primeiro autor atua como professor de arte nesta escola. xiii A pesquisa foi desenvolvida pelo primeiro autor sob a orientação da segunda autora. xiv Trata-se de um vídeo de 2003, disponível na internet e patrocinado pelo CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), com roteiro de Joel Zito Araújo e Dandara e direção do primeiro. A produção destina-se à discussão das questões raciais e apresenta uma inversão de papéis. Aqui os negros são a classe dominante e os brancos são ex-escravos, assim como os países pobres são Alemanha e Inglaterra, enquanto Moçambique é um país rico. xv A aluna se referia à novela Cheias de Charme, da Rede Globo. xvi Temos consciência que cabe a nós, professores/as, ampliar este repertório discente, mostrando diversos/as intelectuais negros/as e desestabilizando as expectativas de papéis sociais para negros e negras. Como professor negro, o primeiro autor acredita que pode se considerar como um exemplo de desestabilização, dados os meios nos quais circula e nos quais tenta criar possibilidades para sua circulação. xvii Personagem vivido pela atriz Thais Araújo na novela Cheias de Charme.

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