A Educação pelo Mal (Ou para que servem as narrativas de horror?)

July 5, 2017 | Autor: Julio França | Categoria: Gothic Literature, Horror Literature, Gótico
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A Educação pelo Mal (Ou para que servem as narrativas de horror?) Júlio França (UERJ - Brown University/CAPES) A ficção de horror é uma apologia do Mal? Desde 2007, quando dei início à pesquisa sobre o medo como um efeito estético produzido por determinadas obras literárias1, tenho me deparado, nas reflexões de teóricos, críticos e escritores do gênero, com um par recorrente de questões: (i) se sentir medo é uma experiência desagradável, por que narrativas que produzem o medo atraem as pessoas? E (ii) por que, em um mundo tão repleto de horrores reais, criar horrores ficcionais? Ambos questionamentos inquirem as estéticas do medo (o gótico, o sublime, o grotesco, o art-horror etc.) sob uma perspectiva predominantemente moral: quem são aqueles que se deixam atrair pela narração e descrição de eventos horrendos? E quem são aqueles que produzem tais narrativas e descrições? Implícita nessas interrogações está a suposição de que a atração por tais temas parece indicar algum tipo de desvio moral – o interesse por práticas, eventos e indivíduos que, de um modo ou de outro, se relacionam com manifestações do Mal não parece ser um comportamento são. Nas palavras de David Aylward: Para aqueles que não as leem, as narrativas de horror são um tipo de pornografia, que provoca calafrios ao invés de ereções. E o leitor que parece ter prazer com tais sensações – bem, esse não passaria de um masoquista emocional, o escravo de uma droga maligna, um animal psicótico e decadente. (Apud Hartwell, 1987, pp.5-6. Tradução minha.)

Seria, afinal, a ficção de horror, de fato, uma apologia do Mal? As raízes dessa dúvida encontram-se fincadas em dois dos mais antigos modelos de compreensão da literatura no Ocidente: por um lado, a crítica moral de Platão, na República, às consequências danosas dos efeitos das obras literárias; por outro, o reconhecimento de                                                                                                                 1

Para uma discussão mais ampla do termo “medo-artístico” ver FRANÇA, Júlio & CABRAL, Luciano. A Preface to a Theory of Art-Fear in Brazilian literature. In: Revista Ilha do Desterro. No. 62. Florianópolis: UFSC, 2012.

 

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Aristóteles, na Poética, dos aspectos formativos e terapêuticos dos efeitos de recepção – mesmo os do phóbos, é bom lembrar. Trata-se, portanto, de uma questão que simplesmente perpassa toda a tradição dos estudos literários ocidentais. O objetivo desse ensaio não é fazer a recensão dessa tradição, mas oferecer uma resposta possível a essas questões, fundada em uma perspectiva de estudo do medo-artístico como efeito de recepção. Não é dos empreendimentos mais simples defender a ficção do medo – trata-se, quase que literalmente, de atuar como o advogado do diabo. Afinal, seus detratores são muitos, e atacam-na a partir das mais diversas perspectivas, tanto éticas quanto estéticas. Tentarei aqui fazer coincidir ambas as perspectivas, de forma a demonstrar que a justificativa moral da literatura do medo funda-se exatamente em seus, tantas vezes negados, atributos artísticos. “O único horror autêntico nessas obras é o horror do mau-gosto e da má arte” Reduzida, muitas vezes, à condição exclusiva de um gênero de mercado – pois não há dúvidas de que o medo-artístico deu ensejo a pelo menos um muito bem sucedido bestselling genre (cf. McCracken, 1998:22), o Horror –, a literatura do medo raramente consegue ser compreendida para além dessas fronteiras redutoras. Os clichês, que são a espinha dorsal não apenas dela, mas de qualquer gênero comercial, são em geral os únicos atributos percebidos pela crítica literária institucionalizada. A história da narrativa de horror como um gênero de entretenimento descartável confunde-se com a própria história da divisão entre “alta” e “baixa” literatura. Coube à crítica da primeira metade do século XX estabelecer alguns parâmetros que norteariam o destino da narrativa de horror dentro dos estudos literários. Tomemos, como exemplo, o à época influente artigo de Edmund Wilson, “A treatise on horror tales”, de 1944, onde se promove o rebaixamento da ghost story2 do século XIX, que teve entre seus cultivadores                                                                                                                 2

No contexto do ensaio de Wilson, ghost story referia-se às narrativas de horror sobrenatural do século XIX e aos desdobramentos da literatura gótica que se espraiaram até o início do século XX, com Robert Louis Stevenson, Bram Stoker, Algernon Blackwood e M. R. James.

 

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escritores de amplo reconhecimento como Charles Dickens, Guy de Maupassant e Henry James. A primeira censura de Wilson – e, por extensão, de grande parte da crítica literária tradicional – dirigia-se ao suposto arcaísmo da narrativa de horror. Ele manifestava surpresa ante a sobrevida do gênero no moderno século XX: Alguém supôs que a história de fantasmas fosse já uma forma obsoleta; que tivesse sido morta pela luz elétrica. Foi apenas na era da luz de vela que a estirpe dos fantasmas floresceu (…). Mas a partir do momento que você pode esticar o braço até um botão e encher de luz cada canto de um cômodo, o espectro, deixado nu em seus vapores, (…) não tem mais muitas chances de nos assombrar. (Wilson, 1962[b]: 172. Tradução minha.)

Wilson propõe – um tanto literal, um tanto metaforicamente – que a “luz” do conhecimento científico e os avanços tecnológicos teriam mandado para o trevoso passado da ignorância as possibilidades de existência da narrativa de horror sobrenatural. Tal crítica ignora, porém, um dos muitos paradoxos que envolve o gênero: o de que o florescimento da literatura gótica, em fins do século XVIII, se deu concomitantemente ao auge do Iluminismo... Como grande leitor do trabalho de Freud, Wilson poderia ter levado em consideração o que o médico vienense dissera sobre serem as experiências relacionadas à morte as principais fontes do medo – ela em si mesma, o que há para além dela e temas afins, como cadáveres, suposto retorno dos mortos, espíritos etc. Dizia ele: “Dificilmente existe outra questão (...) em que as nossas ideias e sentimentos tenham mudado tão pouco desde os primórdios dos tempos (...) como a nossa relação com a morte” (Freud, 1996:258). Ao contrário do que acreditava Wilson, não fora inventada ainda a lâmpada que iluminasse o denso nevoeiro que cerca os temas da morte. A combinação entre “a força da nossa reação emocional original à morte e a insuficiência do nosso conhecimento científico a respeito dela” (ibid.) garantem a sedução das narrativas sobrenaturais. Afinal nenhum ser humano realmente compreende a morte. Diz Freud (ibid.:259): como “todos nós ainda pensamos como selvagens acerca desse tópico, não é motivo para surpresa o fato de que o primitivo medo da morte é ainda tão intenso dentro de nós e está sempre pronto a vir à superfície por qualquer provocação”. As narrativas relacionadas à morte são gatilhos

 

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perfeitos para ativar nossas crenças primitivas reprimidas, daí sua persistência e sua atração para além dos avanços tecnológicos. A segunda crítica de Wilson – e, se continuarmos a pensar metonimicamente, uma segunda crítica geral ao horror – associa o interesse pela narrativa de horror sobrenatural à demanda por experiências místicas, característica de épocas socialmente confusas e de pouco progresso político. O horror ficcional funcionaria assim como uma espécie de vacina que amenizaria as dores dos horrores reais e que (…) [nos inocularia] com injeções de horror imaginário contra o pânico que aflora diante dos horrores reais soltos na Terra (…), para nos tranquilizar com a ilusão momentânea de que as forças da loucura e do assassinato podem ser domadas, e compelidas a nos fornecer um mero entretenimento dramático. (Wilson, 1962[b]:173. Tradução minha. )

Wilson não tem em mente a potência terapêutica do horror, implícita no conceito aristotélico da catarse. Se mantivermos o campo semântico medicinal, poderíamos dizer que, para o crítico americano, tais narrativas funcionam muito mais como opiáceos, que entorpecem e alienam seus usuários. Wilson entende que a narrativa de horror sobrenatural falha justamente por não levar o leitor a uma reflexão sobre os terrores profundos e reais que habitam a mente humana. Em outras palavras, ele sugere que a moderna história de horror deveria produzir seu efeito característico não através da transposição para o mundo contemporâneo das “fantasmagorias dos contos de fadas”, mas por meio “da investigação das cavernas psicológicas” onde as obsessões são engendradas. (cf. Ibid.:175) Transparece em Wilson uma demanda por uma literatura comprometida com o real – ou, deveríamos dizer, com uma certa compreensão do que é real, e de quais aspectos da realidade devem ser privilegiados pela literatura – mais ou menos disseminada na crítica norte-americana, bem como na brasileira. Ele considera que a pressão de época por uma ficção naturalista, e que fosse capaz de dar conta dos assuntos sociais relevantes, foi o que tornou autores como Joseph Conrad, Rudyard Kipling ou Henry James muito mais intensos e substanciais do que um escritor como Robert Louis Stevenson, que “raramente escreveu algo além de contos de fadas” (ibid.:176). É nesse sentido que Wilson vê em Franz Kafka e seu “horror moral” o grande mestre moderno do gênero:

 

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Como artista do horror, Kafka está entre os maiores. Tendo vivido a era de Freud, ele atingiu diretamente as morbidades da mente humana sem necessidade dos fantoches diabólicos e espectrais que os escritores de outrora manipulavam. (ibid.:182. Tradução minha.)

A despeito da pertinência ou impertinência das críticas de Wilson, é importante ressaltar que ele produz uma análise de orientação estética, isto é, busca avaliar a narrativa de horror pelo que ela pretende fazer: horrorizar o leitor. Contudo, muito de suas conclusões são, inevitavelmente, moduladas por um acentuado juízo de gosto, inequívoco na frase que escolhi para nomear esse tópico: “O único horror autêntico nessas obras é o horror do mau-gosto e da má arte” (Wilson, 1962[a]:188), proferida em outro ensaio, ainda mais demolidor, sobre H. P. Lovecraft. Não há muito sentido em contrapor um juízo de gosto a outro juízo de gosto. Mais ainda, é importante reconhecer que se é verdade que a apreciação de Wilson sobre o valor artístico da narrativa de horror é particular, ela reflete também um cenário crítico da época, uma vez que ele foi reconhecido como um dos maiores críticos literários dos Estados Unidos no século XX – se não o maior. Proponho então um aprofundamento de seus argumentos, para avaliar se a narrativa de horror pode ou não aspirar ser algo mais do que um entretenimento descompromissado, quando não nocivo. Arte, horror e as amarras do gênero Naquele que é um dos mais sólidos e bem sucedidos esforços de compreender o funcionamento formal do gênero de horror, The Philosophy of Horror or Paradoxes of Heart, Noël Carroll reconhece que, no gênero do horror, os enredos são repetitivos e previsíveis, sendo muito limitado o repertório de estratégias narrativas. Dando corpo a essas observações, Carroll consegue abstrair as duas principais estruturas de enredo do horror: o “enredo de descobrimento complexo” e o “enredo do extrapolador”. Não me interessam, no presente ensaio, as especificidades de cada uma delas, mas um elemento bastante recorrente em ambas: o drama da prova. Nas ficções de horror que se desenrolam como peças de mistério, o leitor acompanha o longo processo de revelação do monstro, paralelamente às personagens

 

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descobridoras. Já naquelas que evoluem como enredos de suspense, o leitor toma conhecimento rapidamente da ameaça, e é colocado ao lado das personagens descobridoras – aquelas que primeiro tomam conhecimento da existência de um monstro, e que precisam convencer as céticas da ameaça –, o que dá a ele a impressão de estar em uma posição superior aos contraditores, em geral, figuras de autoridade – pais, policiais, governantes etc. Nos dois casos ocorre o que Carroll (1990:102) chamará de o “drama da prova”, um movimento de enredo que contribui decisivamente para um dos prazeres inerentes à narrativa de horror: o prazer cognitivo que o leitor experimenta com a apresentação e/ou descrição dos atributos da monstruosidade. Pode parecer inusitado defender que a narrativa de horror trate de prazeres epistemológicos 3 . Entretanto, é importante considerar que todo monstro ficcional é, sobretudo, uma ameaça cognitiva (cf. Carroll, 1990; Cohen, 1996; Douglas, 1966), um constructo em que se corporificam, metaforicamente, os medos, desejos, ansiedades e fantasias de uma sociedade. Ele funciona como um desestabilizador das categorias e das taxonomias através das quais compreendemos o mundo. Nesse sentido, a narrativa de horror, tendo o monstro como seu principal elemento de composição, é um artefato cultural que envolve prazeres cognitivos. Saber demais, saber de menos: enquanto os “enredos do extrapolador” punem a hybris do cientista, o desejo de tudo saber, os “enredos de descobrimento complexo” repreendem justamente o oposto – a complacência e o ceticismo desmedidos em relação ao que é desconhecido. O horror artístico é gerado, ao menos parcialmente, pela apreensão de algo que desafia nossos esquemas conceituais. O conflito interpretativo atrai o público para o que Carroll (ibid.:184) chama de uma imitação estética da argumentação. A ficção de horror está intimamente relacionada a uma técnica amplamente utilizada nas formas mais básicas do ato de narrar: a narração erotética (ibid.:130). Uma narrativa erotética tem seu enredo estruturado como perguntas que serão respondidas em seguida, isto é, as cenas, as situações e os acontecimentos que aparecem mais cedo na ordem de exposição de uma história estão relacionados com cenas, situações e                                                                                                                 3

 

Para uma defesa filosófica do valor epistemológico do horror artístico ver Nickel (2012).

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acontecimentos posteriores, do mesmo modo que perguntas estão relacionadas a respostas. Não se trata, porém, de uma mera relação de causalidade: as cenas anteriores delimitam as possibilidades do que pode acontecer em seguida, havendo, portanto, um número limitado de respostas possíveis às perguntas colocadas pela narrativa. Carroll defende que os enredos de horror podem ser analisados com base nesse modelo erotético. Obviamente, a criação de expectativas no leitor – que espera pelos desfechos das situações criadas pelo enredo – não é uma exclusividade da narrativa de horror: é, por exemplo, a engrenagem principal do folhetim e dos page-turners, que fazem o leitor virar compulsivamente as páginas em busca de respostas às sucessivas perguntas propostas pela narrativa. A narração erotética está também intimamente ligada à construção do suspense: o leitor fica em um estado emocional de suspensão até que um dos resultados alternativos se realize. O exemplo já clássico de suspense narrativo é o da heroína amarrada aos trilhos da ferrovia: será ela salva ou esmagada pela locomotiva? Falar da estrutura do suspense narrativo permite que se comece a estabelecer o vínculo entre o nível estético e o ético do horror. O suspense, ainda segundo Carroll, é erigido quando uma pergunta bem estruturada, com alternativas nitidamente contrapostas, surge da narrativa. Tais perguntas têm duas respostas possíveis e opostas, com classificações específicas no que se refere à moralidade e à probabilidade. No suspense de horror tradicional, a expectativa do leitor volta-se para o desfecho que é moralmente certo, porém improvável de ocorrer, enquanto que o desfecho provável é normalmente o maléfico. Alfred Hitchcock (1949), em uma reflexão sobre o prazer do medo, entendia haver uma regra fundamental na narrativa de terror – ele não utiliza o termo horror. Comparando o filme de terror a uma montanha-russa, o cineasta inglês propunha que a plateia precisaria estar absolutamente convicta de que “não pagaria o preço”, ou seja, por mais aterradora que fosse a história, ou o percurso do carrinho na montanha-russa, o espectador precisaria estar certo de um desfecho seguro. Obviamente, o leitor de obras ficcionais está fisicamente a salvo. Contudo, Hitchcock entendia que as personagens com quem os leitores se identificam não poderiam tampouco correr riscos. Novamente estamos diante de uma situação paradoxal, pois a

 

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segurança do espectador precisa ser completamente inconsciente, como Hitchcock exemplifica com uma cena de seu filme The 39 steps (1935): O espectador precisa saber que os espiões jamais conseguirão jogar Madeleine Carroll da London Bridge, e precisa ser induzido a esquecer o que sabe. Se ele não soubesse, iria ficar realmente preocupado; se não esquecesse, ficaria entediado. (Hitchcok, 1949:243. Tradução minha.)

Na concepção de Hitchcock, a plateia esperaria que uma vez estabelecida a ligação empática entre ela e o protagonista, o último estaria como que protegido por um manto invisível, uma espécie de acordo tácito entre espectador e autor. O escritor que violasse essa crença do leitor poderia obter resultados desastrosos. O cineasta utiliza como exemplo outro filme seu, Sabotage (1936), em que um garotinho anda por Londres com o que pensa ser uma lata, mas que o público sabe se tratar de uma bomba-relógio. Para a plateia, o vínculo empático que se estabeleceu entre ela e o menino seria a garantia – inconsciente – de que ele estava seguro, apesar do risco de explosão iminente. Nessas circunstâncias, o garoto deveria estar protegido da explosão prematura da bomba pelo “manto invisível”, o mencionado contrato implícito. No filme, contudo, a bomba explode, mata o garoto e outros passageiros de um ônibus. Para Hitchcock, ter desrespeitado o código do suspense foi o que ultrajou muitos dos que assistiram ao seu filme. Mas há toda uma zona cinzenta entre essas possibilidades antitéticas – o moralmente certo, porém improvável de ocorrer, e o imoral, de desfecho provável. Por um lado, pode ocorrer um desvio comum da fórmula do suspense nas ficções de horror: quando, no confronto com o monstro, o público começa a sentir o que Carroll (1990:142) chama de Sympathy for the Devil, e a se sensibilizar com sua condição de proscrito. Algo semelhante já se fazia presente no Frankenstein (1818), de Mary Shelley, desde que entendamos que a criatura, e não Victor, é, de fato, o monstro da narrativa. Por outro lado, grande parte da ficção de horror contemporânea, com sua exploração quase pornográfica de tortura, sangue e corpos dilacerados, parece não apresentar nenhuma motivação ou justificativa moral para além da própria contemplação dessas imagens. Esses dois exemplos colocam tanto o modelo de Carroll quanto o de Hitchcock como paradigmas insuficientes.

 

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As questões morais relacionadas às narrativas de horror são, no entanto, mais complexas do que aparentam ser. Uma literatura sobre o mal, uma literatura contra o mal A narrativa de horror sofre cada vez mais críticas, indubitavelmente relevantes, quanto a sua suposta ausência de valor, tanto ético quanto estético. Uma percepção bastante disseminada é que especialmente o horror-artístico contemporâneo realiza-se em obras cujo “caráter de diversão sensível supera o questionamento moral e a transmissão de conhecimento”, ou apela para um moralismo banal, como afirma João Gabriel Lima (2014:18). Para ele, a narrativa de horror contemporânea teria perdido sua função pedagógica, paidêutica, presentes nos mitos e na literatura grega: Sendo uma espécie ancestral de horror artístico, o horror paideico é definido em função de uma exigência ética: o “horror” despertado pelos mitos jamais existe sem o intuito de transmitir os fundamentos da cultura, inscrevendo ou consolidando a ética em sua forma narrativa. (ibid.:12)

No artigo “Through a mirror, darkly; art-horror as a medium for moral reflection”, Philip Tallon (2012:35) reflete sobre as acusações de que a narrativa de horror moderna teria se convertido, pelo menos desde The Texas Chainsaw Massacre (1974), de Tobe Hopper, em algo aleatório e sem sentido. Contudo, se o destino dos jovens que cruzam com Leatherface e sua família de canibais é violento, cruel e fortuito, assim também o é o destino de João e Maria no conto de fadas homônimo. Tal semelhança permite-nos lembrar que o medo, como um elemento-chave de incontáveis expressões míticas, ficcionais e artísticas, antecede, e muito, a moderna literatura gótica ou o gênero contemporâneo do horror. Nas palavras de Philip Nickel: (...) algumas das mais populares e criticamente aclamadas obras de arte e de entretenimento contêm elementos de horror. Isso pode ser comprovado não apenas no cinema contemporâneo mas em toda a história da arte literária e representativa (no Inferno de Dante, nas tragédias shakespearianas, nas pinturas de Caravaggio e de Goya, apenas para mencionar alguns exemplos óbvios. (NICKEL, 2012:15. Tradução minha.)

 

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Gostaria de me apoiar nessa evidência para sugerir que as manifestações do medoartístico nas narrativas ficcionais seriam melhor apreendidas se pensadas fora dos limites do gênero. O sucesso comercial e o culto pop em torno de algumas obras do gênero de horror ofuscam, muitas vezes, o que há de mais profundo e intrincado na relação entre a emoção do medo e o ato primordial de narrar. Ao responder à questão Para que serve a narrativa de horror?, portanto, o primeiro passo seria inverter seus termos, e recolocar o problema da seguinte forma: Para que serve o horror nas narrativas? Um primeiro ponto a se considerar é compreender que o medoartístico contempla uma dimensão fundamental da arte narrativa: provocar reações emocionais. O que torna os objetos literários tão fascinantes é justamente o modo pelo qual sua forma e seu conteúdo estimulam tanto a mente quanto os sentidos do leitor. No caso específico do horror nas narrativas ficcionais, ele é capaz sim de ultrajar o leitor, causar-lhe medo e repulsa, mas também de obrigá-lo a repensar seus modos de encarar o mundo. Nos últimos anos, um novo paradigma vem sendo desenvolvido nos estudos de narrativa: as chamadas unnatural narratives 4 – que aqui traduzi por narrativas antinaturais. Os mundos ficcionais antinaturais podem ser resultados de temporalidades reversas, mundos logicamente impossíveis, mentalidades não tipicamente humanas de personagens ou atos de narração não naturais. Os teóricos da narrativa antinatural (NA) entendem que as definições do termo “narrativa” são excessivamente influenciadas por teorias miméticas, que tomariam textos realistas como as manifestações prototípicas da narração. Ainda que grande parte das narrativas sejam sim baseadas no mundo factual, eles ressaltam que muitas narrativas ficcionais são repletas de elementos não-naturais, que desafiam as noções paradigmáticas de narrativa e as concepções mais ou menos consensuais de mundo real, indo em direção aos mais remotos territórios das possibilidades conceituais. Um objetivo claro dos teóricos da NA é questionar o que eles chamam de reducionismo mimético, i.e., o argumento de que todo e qualquer aspecto de uma narrativa pode ser explicado com base em nossos parâmetros cognitivos de conhecimento do mundo                                                                                                                 4

Minha breve descrição das teorias das narrativas antinaturais baseou-se fundamentalmente no artigo de Jan Alber, Stefan Iversen, Henrik Skov e Brian Richardson (2010).

 

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real. Para eles, perde-se muito na leitura de textos ficcionais quando se toma as narrativas naturais como modelos de toda e qualquer história, e se assume, por exemplo, que as mentes de personas ficcionais funcionam de maneira idêntica às de pessoas reais. Nas teorias da NA, a narrativa ficcional é interessante exatamente por ser capaz de representar eventos que vão além, estendem ou desafiam nosso conhecimento de mundo. Ao violarem parâmetros do realismo tradicional, ou as convenções da narrativa natural, as unnatural narratives podem modificar a concepção geral sobre o que é e o que pode fazer uma narrativa. Tomá-las como antinaturais pode permitir, portanto, entender como elas se desviam da moldura do mundo real, e, então tentar entender esses desvios5. O que proponho, pois, fazendo valer a distinção proposta por Barthes (1973) entre plaisir e jouissance, é que apesar do horror ficcional ser comumente visto como um tipo de texto de plaisir, em que o prazer da leitura emerge de sua estrutura convencional e de uma consequente prática confortável de leitura, ele pode também ser lido como um texto de jouissance, que quebra com a identidade do leitor e gera uma sensação de desconforto similar ao do texto que produz estranhamento. Philip Tallon (1992:26) concorda que uma das potências do horror está exatamente na capacidade de iluminar os modos pelos quais vemos a nós mesmos, mostrando-nos de uma maneira muito mais sombria do que estamos acostumados a ver. Ao revelar nossa intrínseca fraqueza moral, o horror nos faz encarar de modo muito mais sério a realidade moral do Mal. (...) [a narrativa de horror] nos pressiona a avaliar nossas convicções morais mais profundas. Ao criticar os altivos valores iluministas, ele também lança dúvidas sobre nossas mais elevadas intenções morais. O horror força-nos a avaliar as trevas em nossa própria natureza, que não podem ser superadas por feitiços tecnológicos. A bem da verdade, o oposto é que é frequentemente verdadeiro, como o século XX (e suas histórias de horror) cruelmente atesta. (Tallon, 1992:40)

Ao contrário, pois, do que pensava Edmund Wilson, o horror não precisa ser um mero escapismo. Ele é capaz de trazer à tona aquilo que o discurso realista muita vezes reprime: a expressão da tensão existente entre as normas sociais e os desejos inconscientes                                                                                                                 5  A

noção de desvio nas teorias da narrativa antinatural aproxima-se bastante do conceito de Ostranenie (ou desfamiliarização) proposto por Victor Chklovsky (1998).  

 

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(cf. Wood, 2002), e sua consequente crítica subversiva. E o sobrenatural, longe de ser uma tolice pueril, pode ser o catalisador desse potencial. Referências bibliográficas ALBER, Jan, IVERSEN, Stefan, SKOV, Henrik, RICHARDSON, Brian. Unnatural narratives, unnatural narratology: beyond mimetic models. Narrative. Volume 18, Number 2, May 2010, pp. 113-136. BARTHES, Roland. Le Plaisir du texte. Paris: Seuil, 1973. CARROLL, Noël. The philosophy of horror or the paradoxes of heart. Nova York, NY: Routledge, 1990. CHKLOVSKI, Viktor. Art as Technique. In: RIVKIN, Julie, RYAN, Michael. Literary Theory: an Anthology. Ed. Julie Rivkin and Michael Ryan. Malden: Blackwell, 1998. COHEN, Jeffrey Jerome (org.). Monster theory. Reading culture. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1996. DOUGLAS, Mary. Purity and danger: an analysis of the concepts of pollution and taboo. Nova York: Routledge & Kegan Paul, 1966. FREUD, Sigmund. O estranho. In:_____. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Tradução de Eudoro de Souza. Rio de Janeiro: Imago, 1996. pp. 233-269. HARTWELL, David. Introduction. In:___., ed. The Dark Descent. New York: TOR Books, 1987. (p. 1-11) HITCHCOCK, Alfred. The enjoyment of fear. In: Good Housekeeping. Vol. 128, n.2, p. 39-243. February 1st, 1949. LIMA, João Gabriel. Horror e Paideia. In: Ensaios sobre literatura do medo. Dísponível em: http://sobreomedo.files.wordpress.com/2013/09/14092013.pdf. Acessado em: 13 de abril de 2014. MCCRACKEN, Scott. Pulp; reading popular fiction. Manchester: Manchester University, 1998. NICKEL, Philip. Horror and the idea of everyday life; on skeptical threats in Psycho and The Birds. In: FAHY, Thomas, ed. The Philosophy of Horror. Kentucky: University of Kentucky Press, 2012. Pp. 14-32. TALLON, Philip. Through a mirror, darkly; art-horror as a medium for moral reflection. In: FAHY, Thomas, ed. The Philosophy of Horror. Kentucky: University of Kentucky Press, 2012. Pp. 33-41. WILSON, Edmund. Tales of the marvelous and the ridiculous. In:___. Classics and Commercials; a Literary Chronicle of the Forties. New York: Vintage Books, 1962[a]. Pp. 286-290.

 

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_____. A treatise on tales of horror. In:___. Classics and Commercials; a Literary Chronicle of the Forties. New York: Vintage Books, 1962[b]. Pp. 172-181. WOOD, Robin. The American nightmare: horror in the 70’s. In: JANCOVICH, Mark, ed. Horror: the film reader. Londres: Routledge, 2002. Pp. 25-32.

 

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