A educação pelo outro: os sátiros e o papel pedagógico do coro no drama satírico

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A educação pelo outro: os sátiros e o papel pedagógico do coro no drama satírico Quando se estuda o coro dramático da Grécia Antiga, é necessário refletir, em primeiro lugar, que a poesia antiga (em especial aquela do período arcaico, mas também do clássico) se pauta por uma maneira de composição que não conta com gêneros muito bem estabelecidos ou leis prefixadas em tratados de teoria literária, mas sim se dando a partir da tradição e práticas culturais (RAGUSA, 2013: 15). Por isso, para a análise da literatura grega antiga, é imperativo observar questões tradicionais e tais práticas associadas a sua cultura específica; desta maneira, é preciso ponderar mais profundamente sobre o caráter pragmático desta poesia. Os gêneros literários em geral, como apontam as teorias formalistas, se desenvolvem se influenciando geralmente por dois fatores: (1) a apropriação e reagrupamento de antigos elementos de outros gêneros (ERLICH, 1973:633-4); e (2) a interação com elementos extra-literários, contando com sua apropriação e também reagrupamento destes. A partir disto, pode-se argumentar que um dado gênero literário se utiliza de elementos que são de seu contexto socio-cultural. No caso da literatura grega antiga, essa prerrogativa é mais evidente do que na literatura moderna, já que a maioria dos textos gregos clássicos e arcaicos era acessada por meio de uma performance, ou seja, a realização do mesmo em público. Isso é, diferentemente de um romance moderno, por exemplo, dificilmente haveria um outro momento de contato e reflexão do público em geral com tal literatura que não fosse seu momento de representação: na modernidade o contato acontece sem uma determinação de espaço ou momento específicos. Isso significa que grande parte dos gêneros antigos como o dramático, o lírico e o épico dependem da performance e de sua ocasião. Este aspecto pragmático acaba moldando, inclusive, as características linguísticas do texto (a métrica, a forma, a linguagem, por exemplo). Desta forma, as performances corais, especificamente aquelas do drama ático do séc. V a.C., dialogariam tanto com a tradição grega, a partir de sua relação com as narrativas míticas, mas também com os aspectos sociais e culturais nos quais se inseriam, especificamente os festivais cívico-religiosos no séc. V a.C.. Deste modo, o coro trágico geralmente representa um conjunto arquetípico mais comum, ou, para se utilizar de um termo aristotélico, homoíoi (Arist. Po. 1448a12) que interage com figuras mais altivas, beltíoi: os heróis e outras divindades da tradição épicomítica. Por meio destas relações, o coro é facilmente identificável com os theataí, aqueles que veem a representação, ou seja, os espectadores. O termo talvez seja melhor do que audiência, já que o público presente nas representações não só escutava a canção do coro, mas a olhava e, desta maneira, vislumbrava a si mesmo e a tradição por meio do mythos representado no palco. 1! de !14

Esta comunicação se estruturará de modo a argumentar como o coro, em sua relação ambivalente com a tradição épico-mítica e com o conjunto de espectadores, pode carregar uma função pedagógica tanto para os coreutas, que participavam de uma dada representação dramática ou lírica, quanto para quem os via nos festivais cívico-religiosos. Assim, pretendo elaborar como o drama satírico, o quarto representado nas tetralogias das Grandes Dionisíacas durante o séc. V, também se ocupa de uma certa função didática a partir da representação do coro, já que, mesmo sendo figuras que têm hábitos tidos como contra-exemplos daqueles de um bom cidadão, é plausível que o espectador se identifique com elas e, assim, por meio do contraste, seja ensinado da boa conduta cívica e militar.

1. A educação pelo coro: a identificação do coro e da audiência Sabe-se que, em meio à cultura oral marcante do mundo grego arcaico e clássico, a poesia era dependente essencialmente da performance. Isso compreende que a ocasião da representação juntamente com a presença de uma audiência específica dão as características e, consequentemente, as definições dos gêneros e subgêneros poéticos gregos. Como se observa em estudos recentes das duas últimas décadas, a mousiké (ou seja, os vários tipos de combinações verbais com ações cinéticas à presença instrumental) não somente era a instituição quintessencial da cultura da pólis grega mas também um componente decisivo na formação de um imaginário coletivo, especialmente aquele de Atenas (PEPONI, 2013: 3). Além disso, para os gregos, a mousiké era fundamental para a educação cívica (SWIFT, 2010: 1), funcionando inclusive como veículo principal para se disseminar ideais morais, políticos e sociais (RAGUSA, 2013: 13; INGALLS, 2000: 2). Neste ambiente, a choreia (as performances corais compostas de canto e dança representadas por homens e mulheres de várias faixas etárias diferentes) é uma instituição essencial da cultura cívica. Desde as poesias corais até as referências à choreia em fontes secundárias1, sabe-se que o canto e dança corais eram de importância acentuada para a formação do cidadão, ademais, tal prática era um meio fundamental da consciência social na maior parte das póleis gregas (PEPONI, 2013: 6). Ainda mais, a choreia também possuía uma função iniciatória, promovendo e controlando a passagem de classes etárias dos indivíduos na Grécia (PEPONI, ibid.), o que faz o entendimento desta instituição uma chave para se compreender as normas culturais e sociais dos ambientes das póleis. Assim, ao observar o coro dramático deste ponto de vista, Mastronarde em seu livro The art of Euripides (2010) argumenta no quarto capítulo como a voz daquele coro pode se alterar de uma

1 A maior

fonte a teorizar sobre a choreia é Platão, especificamente no diálogo Leis (SWIFT, 2010: 1). 2! de !14

posição intra-dramática para uma extra-dramática, ou seja, de um grupo de uma identidade e status ficcional específicos e com motivações psicológicas plausíveis a respostas emocionais imediatas em relação à ação dramática para de uma voz coletiva menos ligada a uma identidade específica, ficando mais alheia à ação. É desta maneira que o coro dramático cria a sua interação com a audiência, e assim tomando também sua função pedagógica. Para tal análise, tomo como base a diferenciação que o professor de Berkley faz das relações verticais e horizontais que o coro estabelece: a primeira referente à comunicação entre o coro e os seres sobrenaturais, como os deuses e heróis; a segunda, à comunicação entre os coreutas e os espectadores do teatro. Deste modo, o coro verticalmente, cantando em uníssono, faz clemências mais audíveis e poderosas aos deuses, e mais chamativo é a dança coreografada reforçaria os pedidos às divindades, pode-se dizer, ainda, que em certos casos à coreografia é inferida um certo poder místico, ou no mínimo um auditor simpatético. Isso pode ser visto, por exemplo, no párodo de Medeia de Eurípides, caso em que o coro dialoga diretamente com Zeus: ἄιες, ὦ Ζεῦ καὶ γᾶ καὶ φῶς, ἀχὰν οἵαν ἁ δύστανος µέλπει νύµφα; (E. Med. 148-50) Ouves - ó Zeus, Terra e Luz que som entoa a infeliz esposa? (trad. OLIVEIRA, 2006: 45)

E também no famoso párodo de Édipo Rei de Sófocles, em que há a invocação de diversos deuses, como se vê: Πρῶτά σε κεκλόµενος, θύγατερ Διὸς, ἀµβροτ' Ἀθάνα, γαιάχόυ τ' ἀδελφεὰν Ἄτεµιν, ἃ κυκλόεντ' ἀγορᾶς θρόνον εὐκλέα θάσσει, καὶ Φοῖβον ἑκαβόλον, ἰὼ τρισσοὶ ἀλεξίµοροι προφάνητέ µοι, εἴ ποτε καὶ προτέρας ἄτας ὕπερ ὀρνυµένας πόλει ἠνύσατ' ἐκτοπίαν φλόγα πήµατος, ἔλθετε καὶ νῦν. (S. OT. 159-166) Primeira invocação: Atena ambrósea; depois, sua irmã, guardiã-do-solo, Ártemis, trono augusto no círculo da praça, e Apolo, bom-na-lança. Defesa tripla contra Moira-Morte, vinde! Se outrora - a urbe em ruína lançastes longe do fogo da catástrofe, voltai de novo agora! (trad. VIEIRA, 2007: 46)

Em Ésquilo também é o caso, como se vê, por exemplo no párodo de Sete contra Tebas: 3! de !14

θεοὶ πολιάοχοι πάντες ἴτε χθονός, ἴδετε παρθένων ἱκέσιον λόχον δουλοσύνας ὕπερ· (...) ἀλλ ὦ Ζεῦ πάτερ παντελές, πάντως ἄρηξον δαΐων ἅλωσιν. (A. Th. 110-2/116-7) Deuses que tendes a cidade todos, vinde do chão. Contemplai a tropa de virgens súplice contra a escravidão. (…) Eia, ó Zeus, Zeus, pai perfectivo, afasta toda a captura por inimigos: (trad. TORRANO, 2009: 153).

Nos três casos dos tragediógrafos, vê-se o diálogo intermediado não somente por vocativos, como também pelo uso do imperativo. Então assim o coro se aproxima de certo ambiente divino, recontando um mito ou mesmo se dirigindo aos deuses diretamente e deste modo se assemelhando ao coro ideal: as filhas Délias lideradas por Apolo que se veem no hino homérico ao deus (h. hom. 3.156-64)2. Muitos estudos recentes dos últimos vinte e cinco anos apontam para os conteúdos pedagógicos e iniciatórios das canções corais na Grécia, por meio da invocação de divindades e aproximação a estas, fato bastante atestado na lírica arcaica, mas este fato também pode ser indicado no drama. Como argumentou Winkler (1992), o coro trágico geralmente é representado na cerâmica como composto por jovens adultos, o que o estudioso chama de ephebés, e a procissão que iniciava as Grandes Dionisíacas, o festival urbano de Atenas, contava com os ephebés levando uma imagem de Dioniso em direção ao teatro, colocando-os em uma posição aparente de acólito do deus (WINKLER, 1992: 37-8). Os jovens que compunham o coro dramático eram obrigados então a decorar as canções e a dança e, consequentemente, saber o mito que estava sendo narrado nas intervenções dos dramas, assim, errar a performance seria desagradar a deidade que está sendo invocada (INGALLS, 2000: 3). Platão em seu diálogo Leis desenvolve como o o coro contribuía diretamente para a educação moral, desenvolvendo que elementos da performance coral imitam o caráter (Lg. 655d-e), assim, para os garotos, saber os mitos e decorar a dança em conjunto significaria estar mais próximo de atitudes grandiosas (megaloprepés) e varonis (arrenópos) (Lg. 802e). No caso da lírica arcaica, como nos partênios de Álcman e os epinícios de Baquílides, o uso das narrativas míticas e das passagens gnômicas demonstram a função pedagógica, e, talvez, o mesmo possa ser dito em relação ao coro dramático no teatro clássico do séc. V em Atenas, dada a relação com questões sociais, políticas e culturais das tragédias e comédias interpretadas nos festivais cívico-religiosos da ática naquele século. 2

Sobre a estética do coro de Délias e uma discussão a respeito da passagem do hino, cf. PEPONI, 2009. 4! de !14

Em complementação a esta relação vertical, aquele horizontal estabelecida com os espectadores é condicionada pelo fato de que, em certo sentido, o coro é uma seleção que representa a comunidade e assim fala com autoridade pois compartilha certo valores com ela. Assim, como muito já se argumentou, o coro seria um tipo de audiência dentro do próprio drama (GRIFFITH, 2015: 28), servindo como um intermediário para os espectadores externos. Esta relação se daria, por exemplo, como um grupo selecionado de jovens militares, como é o caso do coro de Filoctetes de Sófocles, se conectaria diretamente com outros sentados na audiência, e assim, servindo como exemplo de conduta para quem os vê. Além disso, o coro é um grupo, em contraposição à individualidade dos heróis, assim também contrastando os espectadores (um outro grupo) com a ação dos indivíduos do drama. Adiciona-se a isso, o fato de que o coro sempre termina o enredo sobrevivendo à catástrofe trágica que se passa no drama, o que nem sempre é o caso para os protagonistas, que não podem retornar para suas vidas comuns, diferentemente dos participantes do coro, agindo, assim, de maneira semelhante aos espectadores que também se vão ao fim do drama escutando por último nos dramas versos do coro. Esta sobrevivência do grupo em contraposição ao indivíduo, para Griffith (2015: 28-9), carrega um peso ideológico para a democracia ateniense, assim, nas palavras de Mastronarde (2010: 95-6): A audiência grega, portanto, passaria então por uma ação delicadamente equilibrada, por um lado, admirando personagens heroicos e simpatizando com suas situações e, do outro lado, vendo alguns dos seus excessos como endêmicos à sua reivindicação de um status superior, tão diferente à ideologia democrática. (MASTRONARDE, 2010: 95-6)

Assim, em suma, é possível dizer que, se apropriando da tradição lírica e das relações sociais e políticas em geral, o coro dramático, em especial o trágico, como é aqui argumentado, toma um valor pedagógico importante, discutido desde a antiguidade. A bibliografia sobre o assunto é vasta, sendo que o tema ainda é bastante discutido, sabendo que ainda existem pontos a serem discutidos e dúvidas plausíveis não resolvidas. Apesar disso, considero que é possível interpretar que uma das funções do coro trágico seria a iniciação e educação tanto dos coreutas como dos espectadores, assim, partimos para o ponto central desta discussão: o drama satírico e sua composição coral.

A determinação e caracterização do coro satírico e a audiência do drama satírico No caso do drama satírico, mais do que a tragédia e a comédia, o problema inicial sempre é a escassez das fontes, já que os drama foram transmitidos em sua maioria em fragmentos curtos, contudo, O ciclope de Eurípides foi transmitido em sua completude. Juntamente a ele, há também um fragmento considerável de um drama satírico de Sófocles (Ichneutai, doravante Os farejadores) e um outro de Ésquilo (Dyktioulkoí, doravante Os pescadores); ambos apresentam passagens 5! de !14

interessante que podem também nos apontar a inferências sobre o funcionamento do gênero na Grécia Clássica, e também em seu aspecto pedagógico, dado que há a presença do coro nos três casos. O coro do drama satírico é um caso particular na dramaturgia grega, já que dele fazia parte não um grupo de cidadãos comuns, mas sim um de figuras semidivinas: os sátiros3. Tais seres se caracterizam no séc. V como servos do deus Dioniso, descritos com uma forma híbrida de homens e cavalos, posteriormente associados a cabras. Nos dramas satíricos, o coro de sátiros se apresenta em contraste com o mundo heroico, já que as figuras estariam mais próximas de uma caracterização burlesca. Isso se aproxima também pelo fato de que, apesar do coro sempre ser composto pelo mesmo grupo (SEIDENSTICKER, 2005: 102), em cada drama satírico, os sátiros se ocupam de atividades diferentes, mas, pelo que os textos apontam, são sempre comparáveis a ocupações burlescas e/ou risíveis: pescadores, em Ésquilo; farejadores, em Sófocles; pastores em Eurípides. Indicativo disto talvez fossem os figurinos dos sátiros, como se pode ler em seguinte passagem de O ciclope: “σὺν τᾶιδε τράγου χλαίναι µελέαι” (“com este maldito manto de cabra” - E. Cyc. 80). Assim, pode-se inferir que a indumentária e os acessórios dos sátiros provavelmente seria mudada conforme o enredo, indicando desta maneira a situação das figuras (em Esfinge de Ésquilo, por exemplo, vestiriam ricos mantos decorados e diademas preciosas). Vale apontar também que o coro de sátiros era composto geralmente por jovens e não velhos (S. Os Farejadores 154) , em oposição ao seu pai e líder Sileno, caracterizado como um velho (E. Cyc. 101). Das representações mais famosas do sátiro em contexto dramático, o vaso Pronomo (uma cratera de figuras vermelhas) se destaca. Nele é possível verificar um grupo de atores de algum drama satírico rodeando Dioniso e Ariadne, além de três figuras carregando máscaras de heróis e vestidas como personagens trágicas (uma delas, à direita do casal central, é Héracles); as outras, rapazes sem barba, carregam máscaras de sátiros e vestem um perízoma (uma espécie de tanga) com um rabo de cavalo4 e um falo ereto. No canto superior direito do vaso nota-se um ator barbado segurando uma máscara de barba branca, que seria Sileno, o pai dos sátiros (sua roupa cobre todo o seu corpo, e ele segura um cajado e veste uma pele de leopardo). As outras três figuras são o flautista Pronomo, o lirista Carino além de um poeta Demétrio. De maneira geral, quando se caracteriza o sátiro fisicamente pode-se apontar que eles geralmente vestem uma máscara barbada, ligeiramente calva 3

Talvez a presença de sátiros não fosse exclusividade dos dramas satíricos, já que há estudiosos que apontam para a presença das figuras em uma comédia de Cratino chamada Dionysalexandro (cf. BAKOLA, 2005; BARBOSA, 2010). 4

Exceto um deles no canto direito inferior que veste um chíton, assim, pode-se entendê-lo como o corifeu do drama representado pelo vaso. 6! de !14

com narizes e orelhas pontiagudas associadas a cavalos, mulas ou macacos (SEIDENSTICKER, 2005: 45); eles andariam descalços pela orquestra, cobertos somente pelo perízoma mais talvez alguma roupa ou acessório que indicasse a sua ocupação em um dado drama. Uma das associações físicas mais chamativas que podem ser analisadas é aquela aparente no diálogo O Banquete de Platão, quando Sócrates é comparado a um sátiro. A associação do filósofo com o drama satírico é sugerida em especial quando Alcibíades o compara a um sátiro que se vê em “oficinas de escultores” (Smp. 215a-b). Enquanto há este símile nesta passagem, pouco anteriormente, Diotima faz outro com Eros (Smp. 203c-d): ambos são descalços, duros, pobres e rústicos; mas são infinitamente bem preparados em sua busca pela beleza e sabedoria. Estas características aplicadas a Eros e a Sócrates são satíricas (USHER, 2002: 219). Ademais, deve-se lembrar que Diotima apresenta Eros como sendo nem mortal nem imortal, mas um híbrido, fator também comum aos sátiros, que, em última instância, servem para interpelar a comunicação de deuses com mortais, assim, o embaralhamento de meios, modos e objetos de vários gêneros parece ser uma questão característica das figuras, como aponta Barbosa (2012: 27). Desta maneira, há também uma comparação física da aparência do filósofo com os sátiros. Por um lado, a aparência de Sócrates é bem descrita no Teeteto (143e–144a): um nariz pontudo e olhos protuberantes, adiciona-se a isso a sua calvice. Além disso, pode-se apontar como a aparência de Sócrates também é alvo também na comédia aristofânica As Nuvens. Há uma aproximação da característica do estudante de filosofia no pensatório a um thér (Ar. Nu. 184), ou seja, a uma besta, mesmo termo também utilizado para caracterizar os sátiros, como se vê no drama satírico O ciclope de Eurípides (v. 624) e também no fragmentado de Sófocles Os Farejadores (v. 221). Da mesma maneira, uma característica do sátiro sugerida na comédia de Aristófanes em relação ao filósofo é a calvice, que se vê no verso 147: “δακοῦσα γὰρ τοῦ Χαιρεφῶντος τὴν ὀφτῦν/ἐπὶ τὴν κεφαλὴν τὴν Σωκράτους ἀφήλατο.” (“Mordida assim de Querefonte a sobrancelha/para sobre a cabeça de Sócrates pulou.”). Como argumentou Leão (1995: 338), a característica mais evidente de Sócrates em As Nuvens é a palidez da pele, uma marca que não coaduna com as atitudes do filósofo em Platão, dados os ambientes externos dos diálogos, mas a calvice certamente o aproximaria aos sátiros, já que na iconografia é muito comum ver as figuras, mesmo quando jovens, com tal característica. Em Platão, porém, Sócrates se assemelha a um schêma, ou seja, a uma estátua. Isto, segundo Alcibíades, acarreta que se se olhar no seu interior, ele estará cheio de sobriedade e de estátuas belas de ouro (Smp. 216d-217a). O mesmo é afirmado no Teeteto (143e), ao aplicar a ressalva da sabedoria à feiúra. 7! de !14

A comparação física de Sócrates se relaciona diretamente também aos hábitos descritos do filósofo. Alcibíades sugere a figura de um sátiro por semelhanças de uma natureza mista e complexa, já que seus discursos possuem altos e baixos, comparando-o com Mársias e Sileno. Tal aproximação dos discursos de Sócrates se dá também pela multifacetada natureza do sátiro, que por um lado é obcecado por sexo e por bebidas alcoólicas, inspirando o riso, e por outro é uma criatura semidivina que se diverte ao lado de Dioniso e sabe os segredos da vida5 . Como Sócrates, os sátiros são simultaneamente criaturas baixas e superiores (SHAW, 2014: 18). Além deste sumário de suas características físicas, é possível observar hibridismo de comportamento também nas ações dos sátiros, que unem elementos cômicos e burlescos a figuras elevadas da tradição épico-mítica (SEIDENSTICKER, 2005: 46-7), já que interferem constantemente na atuação e nos objetivos das personagens do repertório heroico por meio de ações cômicas e burlescas (GRIFFITH, 2002: 204-5): no encontro de Odisseu com o Polifemo (em O ciclope), os sátiros são cativos do ciclope e auxiliam o herói para que escapem do perigo; na criação da lira por Hermes e o roubo do gado de Apolo (em Os farejadores), os sátiros primeiramente se apresentariam para ajudar o segundo deus a achar seu gado roubado e, depois, para presenciar a criação da lira; no resgate de Dânae por Díctis (em Os pescadores), as figuras ajudariam-no no resgate e cuidado com a mãe de Perseu e, possivelmente, tentariam estuprá-la após o auxílio ao herói. Em O ciclope, Sileno e os sátiros se apresentam afastados de Dioniso há tempo, longe do deus (v. 63; 204), da dança e do canto (v. 25-6; 205) e do vinho (v. 140; 152); porém há uma devoção a esses elementos que permeiam todos os desejos das figuras. Sileno, por exemplo, ao beber o vinho de Máron trazido por Odisseu, adquire características dionisíacas: ele dança, canta (v. 156-7) e se lembre de questões sexuais (v. 169-70) apesar de seu corpo já não mais ser saudável como quando jovem. Apesar de uma faceta burlesca/cômica, os sátiros são seres paradoxais, já que as figuras apareceriam como sábios e habilidosos na tradição mítica. Mais importante para esta comunicação, sátiros mais velhos (como Sileno no mito de Midas e Mársias) podem ser associados a figuras de mentores de valores culturais e morais, como vimos por sua associação com o filósofo Sócrates feita em Platão. Em O ciclope, Sileno não se apresenta especialmente nesta faceta de sábio, mas em suas partes nos diálogos se pode notar algumas construções gnômicas, como “ἦ γὰρ γεῦµα τὴν

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cf. Plut. Moralia 115b: Sileno diz ao rei Midas que a melhor coisa é nunca ter nascido e a segunda melhor é morrer

jovem, um tópico comum das γνώµαι da poesia grega, além de, notoriamente, aparecer em Heródoto (1.29-33). 8! de !14

ὠνὴν καλεῖ” (v. 150) e “ὡς ὅς γε πίνων µὴ γέγηθε µαίνεται” (v. 168), além de seus filhos também conhecerem encantamentos órficos (v. 646). Em uma das sequências de O ciclope, vê-se Sileno ensinando Polifemo como se comportar e beber durante um banquete, como se lê: {CIC} Serve-o [o vinho], e enchendo o esquifo, só me dá. {SIL} Então como ele está misturado? Vem, examinemos. {CIC} Arruinarás: dá-mo assim. {SIL} Não, por Zeus, não antes que te veja levando uma guirlanda e eu tenha provado mais. {CIC} Copeiro injuriador. {SIL} Não, por Zeus! Porém o vinho é doce. Mas é preciso te limpares para que possas beber. {CIC} Pronto, estão limpos os lábios e minha barba. {SIL} Agora, posiciona o cotovelo dignamente e beba, assim como me vês bebendo; e assim como não. (E. Cyc. 556-64)

Sileno indica ao ciclope não somente a posição reclinado que ficam os simposiastas em um banquete, mas também o indica a misturar o vinho antes de bebê-lo, a se limpar para ter uma boa aparência e também como se vestir, colocando uma guirlanda. Assim, pode-se dizer que o pai dos sátiros faz um papel de professor (aqui do não-civilizado Polifemo), ocupação comum dos sátiros em outros mitos. Desta maneira, muitos estudiosos concordam que o drama satírico também poderia carregar um tom didático por meio da representação coral6. Isso se daria, porém, de maneira diferente da tragédia pois o coro satírico, na verdade, representaria não somente algo positivo do que deveria ser feito e valorado na sociedade, mas também, e em evidência em primeiro plano, um exemplo por contraste, já que os sátiros majoritariamente representavam uma indisciplina, covardia e certo egoísmo. Vale observar e analisar a passagem que se inicia no verso 590 de O ciclope de Eurípides para o argumento. Odisseu primeiramente pede que os sátiros lhe ajudem, inclusive indicando no verso 594: “vê se sois homem!”, ao que as figuras respondem: Teremos um ânimo de pedra e aço. Avança para a casa antes de meu pai sofrer algo desonesto, já que aqui está tudo pronto para ti. (E. Cyc. 596-8)

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cf. WINKLER, 1985, 1990; LISSARRAGUE, 1992; 1993; BAKOLA, 2010; BARBOSA, 2010; GRIFFITH, 2015. 9! de !14

Logo após se inicia uma intervenção coral festiva que invoca o deus Dioniso e Máron, o homem que deu o vinho que embebedou o ciclope a Odisseu. Ao retorno do herói, vemo-lo urgindo aos sátiros tomar o tição ardente para queimar o olho de Polifemo, ordem que é seguida com a seguinte passagem: {CO} Então não alinharás quem deve estar na frente para, tendo pego a barra ardente, incender o olho do ciclope, para que partilhemos desta sorte? {SEMICORO A} Nós aqui estamos parados muito longe da porta para empurrar o fogo em sua vista. {SEMICORO B} Mas cá nós de pronto ficamos coxos. {SEMICORO A} Então isso que sofrestes ocorre comigo: os pés, parados, torcemos não sei de que jeito. {OD} Torcestes parados? {SEMICORO A} Sim, e também os olhos meus estão cheios de poeira ou cinzas dalgum lugar. {OD} São homens vergonhosos e comparsas de nada. {CO} Só porque tenho dó das costas e da lombar e também não quero perder os dentes apanhando o que faço é uma vergonha? Mas sei um encantamento órfico lindo demais para que, ao crânio o tição autonomamente investindo, incendeie o filho caolho da terra. (E. Cyc. 632-48)

Observando com cuidado a passagem, está presente claramente uma covardia por parte dos sátiros no momento de ajudar Odisseu a queimar o olho do ciclope, inclusive com uma referência a uma certa formação linear que indica um âmbito militar. Ou seja, é possível que o espectador, assistindo a tal sequência, seria lembrados de suas próprias responsabilidades e potencial cívicos e militares (GRIFFITH, 2015: 18), por contraste, sendo que os sátiros são alvo de ridicularização do herói. Contudo, os sátiros também trabalham em comum acordo com o personagem heroico/divino do drama para que alcancem um final feliz: a liberdade, a reconciliação com Dioniso, com o vinho e com a dança (mesmo que primariamente os sátiros mudem de aliança, como em Os pescadores). Na passagem lida anteriormente, as figuras oferecem a ajuda a Odisseu por meio de um encantamento órfico, que promete levantar o tição e incendiar o olho do ciclope. Tal conhecimento, novamente, indica também esta faceta ambígua de sabedoria dos sátiros.

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Tal desejo do final feliz talvez fosse querido aos espectadores, o que aproximaria as figuras do teatro que as assistia: eles também faziam parte de uma comunidade específica, simpatética ao herói/divindade e sofriam dos mesmos medos e desejos: como argumenta Nagy: A audiência, através do coro, reage subjetivamente à experiência do herói, e essa reação é traduzida para uma experiência pessoal de um indivíduo ao trazer o mundo dos heróis em sincronia com o mundo da sociedade presente do indivíduo. (NAGY, 1995: 50)

Contudo, é curioso que, mesmo sendo figuras que representam as características que não deveriam ser copiadas em maioria, os sátiros nunca são punidos (em oposição aos centauros, por exemplo), mas no fim são agraciados com a liberdade, o vinho e a reaproximação com Dioniso. Apesar disso, Nagy (op. cit. 49) argumenta que os membros do coro do drama ático comumente podem ser interpretados como cidadãos-aprendizes (citizens-in-the-making), já que, no momento da performance, os coreutas representam seres marginais da sociedade, como velhos, mulheres jovens, prisioneiros de guerra e, no caso do drama satírico, sátiros: figuras definitivamente não-civilizadas, rústicas que evocam um sentimento bucólico pelos temas suscitados pelo coro. Em certo sentido, os sátiros representados no drama satírico também personificam comunidades marginais da sociedade grega, indicado, inclusive, por meio do figurino do coro de sátiros. Ao fim de O ciclope veem-se os sátiros saindo da ilha de Polifemo em direção ao reencontro com Dioniso (v. 708-9), ou seja, algo pode ser interpretado, no caso dos coreutas em fim de uma representação de uma tetralogia, uma iniciação ao deus Dioniso, após uma breve aventura que envolve os elementos básicos do deus como a dança, o canto e o vinho. Em suma, se os sátiros podem ser associados a figuras sábias, certamente há um ponto positivo a ser tomado por sua representação, porém, também é evidente como em certos momentos, a audiência deveria ser lembrada dos seus direitos e deveres cívicos pelo contraste com a covardia e a ânsia viciosa das figuras. Deste modo, os espectadores são lembrados também de sua ambiguidade: um desejo pelos vícios dionisíacos como o sexo, a bebida e a liberdade de ações em folia, mas também um dever cívico repleto de intimidade com a sabedoria.


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