A elaboração da espiritualidade do Brasil Colônia: o problema do sincretismo

Share Embed


Descrição do Produto

SONIA A. SIQUEIRA

A ELABORAçÃO DA ESPIRITUALIDADE DO BRASIL O PROBLEMA DO SINCRETISMO

ffi S'eparata dos

ANAIS DO MUSEU PAULISTA Tomo XXVI

São Paulo 1975

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

COLÔNTA:

A

DA ESPTRTTUALIDADE DO BRASIL COLÔNIA: O PROBLEMA DO SINCRETISMO

ELABORAÇÃO

Sonia A. Siqueira

Na modelagem da Colônia colaboravam indígenas e alienígenas. Alicerçavam-se o novo mundo num amálgama biológico e social de etnias diferentes.

A Cultura branca infiltrava-se pela nativa, não sem contagiar-se das cores e valores locais. lnstilavam-se na mente gentia as idéias religiosas do Catolicismo que, coadas através do crivo de um entendimento grosseiro, depositavam nele resíduos vagos da espiritualidade cristã. O esforço índio para a apreensão do que era ensinado levava à busca de correspondências em experiências pretéritas. E, inevitavelmente, à conjugação de elementos de ambas as culturas. Configurava-se dest'arte o sincretismo religioso, que se repetia mil vezes, com nuanças diferenciadas em lugares diversos sob o impulso de variadíssimos estímulos. A aculturação realizavase no campo da espiritualidade mas era fenômeno de impossível localizaçáa. Processamento gradual até o momento em que os indÊ genas se fundiam totalmente na população branca pela diluição étnica e biológica. Diluição que implicava, no entanto, em aportações culturais.

À compreensão limitada dos naturais da terra escapavam os fundamentos da doutrina ensinada, mas fixavam-se em suas memórias facilmente, as exteriorizações rituais e litúrgicas. A rigor, frustrava-se o ideal de aquisição de novas almas para a lgreja, porque os néo-convertidos iniciavam uma vida religiosa pontilhada de todos os defeitos que a lgreja da Reforma Católica combatia. Fugiam, esses novos cristãos, do essencial e se agarravam às exterioridades era o início da reorientação da espiritualidade indígena. O pro-blema da catequese não era apenas substituir um valor religioso por outro, e sim, fazer os catecúmenos assumirem diante do sobrenatural atitudes essencialmente diversas. Trabalho moroso. Na verdade o verniz do Cristianismo que envolvia o índio mal afetava seu sistema de crenças. lnfiltravam-se os conceitos e valores do Cristianismo no conceito do mundo e da vida que possuíam os sel211

vícolas, sempre a partir do conjunto de concepções aborígenes. À proporção que se passavam os anos principalmente à medida que se sucediam as gerações notava-se gradual dos - indígena. lncentivosafirmação valores do Catolicismo na mente havia e mui' tos. O principal era a obtenção de um "status" social mais elevado. Estímulo psicológico: desejo de nivelamento com o branco. O fato é mais sensível nos mestiços. Aceitavam-se os valores da religião dominante, mas reinterpretados, escondendo no âmago um sentido consentâneo com as crenças nativas. De tempos em tempos surgiam reações anti-aculturativas. Resistências ao domínio branco, à sua cultura, aos valores sócio-econômicos. Esses movimentos tiveram um caráter messiânico, levaram a agrupamentos em torno de um líder carismático (1), que oferecia a perspectiva de uma ordem nova, de uma "idade de ouro" para seus seguidores. Cá e lá tais fenômenos aparecem marcados pelo Cristianismo que tinha sido por muitos assimilado em suas idéias, práticas e instituições. Defrontamo-nos então com fenômenos sincréticos. Como o sistema de crenças é o último reduto de resistência à aculturação, o líder messiânico que visa à recuperação cultural toma-a como centro de seu movimento. Quando esse próprio líder possui uma religião híbrida, fruto da superposição de elementos cristãos sobre um fundo animista do paganismo, estamos diante de um fenômeno religioso sincrético. Urn exemplo característico foi a Santidade do Jaguaripe (2).

"Há cinco ou seis anos pouco mais ou menos se alevantou nesta Capitania entre os indios pagãos e cristãos, abusão e idolatria chamada Santidade" (3). Palavras semelhantes a estas foram

(1) O messias "tem tal status não porque possui uma posição dentro da ordem estabelecida, e sim porque suas qualidades especiais extraordinárias, provadas por meio de Íaculdades mágicas ou estáticas, lhe dão au'O messianismo no Brasil e toridade". Per,eira de Queiroz, Matia Isaura - da figura do rnessias e seus no mundo" (S. Paulo, 1965), pg. 5. A respeito dotes carismáticos, ver principalmente os trabalhos de Max \&eber - "f,ss' sur nomia y Sociedad" (México, lg44), I, e de Paul Alphandéry "Noües le messianisme médiéval latin", in "Füapports Annuels de la Section de Scien' ces Religieuses" (Paris, 1898-1914).

D Ver sobre o assunto: Calazans, José - rA Santidade do Jaguaripe" (Bahia, 1952). (3) Denúncia de Pedro de Moura. Denunciações da Bahia (1591), in "Primeira Visitaçáo do Santo OfÍcio às Partes do Brasil", Denunciações da Bahia (São Paulo, 1925), pg. 212

567.

repetidas inúmeras vezes ao primeiro Visitador do Santo Ofício quando esteve na Bahia, €ffi 1591, registrando um fato sucedido c. 1585 (4). Um índio, Antonio, educado pelos jesuítas em Tinharé, reuniu em torno de si um grupo grande de adeptos indígenas e cristãos. Os mais importantes formavam uma corte de santos, santas, bispos, sacerdotes e sacristãos. A Santidade formara-se no interior baiano, ho "sertão do campo grande" (5) rincão parte da Serra de Orobó (6) no local denominado Frio- Grande royguaçu, em tupi. Ali se- congregaram os adeptos em torno de-um líder, adoraram um ídolo de pedra, beberam fumos, tocaram maracás, esperaram que as plantações crescessem sozinhas. "Tinham um ídolo de pau em uma casa ao modo de igreja na qual estava uma pia de batizar onde os mesmos índios se batizavam uns aos outros e outra pia de água benta com seu hissope, e um altar com seus castiçais de pau e uns livros de folhas de tábuas de pau com certas letras escritas, porque eles, a seu modo, liam e com uma cadeira feita de um só pau inteiro em que eles como em confissionário, confessavam as fêmeas arremedando e contrafazendo os usos e cerimônias que se costumam Íazer nas igrejas dos cristãos, mas tudo contrafeito a seu modo gentílico e despropositado" (7). A Santidade de Royaguaçu apresentava, em certo sentido, o mesmo tonus das anteriores: reativação de um mecanismo de defesa da cultura e principalmente da religião indígena. Voltavam-se os nativos contra os brancos que os esmagavam com a prepotência de seus costumes e de suas crenças. Uma de suas promessas traduzia todos esses ressentimentos acumulados: " a gente branca havia de se converter em caça para eles comerem " (8). Apregoavam os adeptos da erronia que viria logo o seu

(4) V. Southey, R. "História do Brasil", If, pg. ?; Leite, Pe. Se. rafim (S. I.) - "História da Companhia de Jesus no Brasil", (Lisboa. 1938), I, pg. 23. (5) Confissão de Braz Dias, Confissões Bahia (1591), pg. 22. (6) O sertão do campo grande era uma da zona imprecisamente determinada a oeste da aldeia dos maracás, na Serra de Orobó, segundo Felisbelo Freire in "História Territorial do Brasil" (Flio de Janeiro,, 1906), I, pg. 4044. Ïlt" Çapistrano, estava localizado entr,e o rio Real e o Paraguassú. Ct. prefácio às Confissões da Batria (1b91), pg. 18. (7) Denunciações da Bahia, Denúncia de Diogo Dias, pg. 478-4. (8) Confissão de Luíza Barbosa. Confissões da Bahia (1591) in

"Pri-

ry9\tà Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil, Confissões da Bahia

(1591-1593)" (S. Paulo, 1935), pg. 65.

213

deus a " livrá-los do cativeiro em que estavam e fazê-los senhores da gente branca, e que os brancos haviam de ficar seus cativos" (e). Evasão da realidade. Rejeição de valores instalados pelos brancos. Rejeitavam o status em que eram mantidos, mostravam desejo de liderança social. Reivindicação de liberdade. Repudiavam o trabalho a que eram obrigados: " era um deus que eles tinham que lhes dizia que não trabalhassem porque os mantimentos por si próprios haviam de nasceÍ" [10;. No movimento da serra de Orobó são nítidos os elementos que caracterizam os surtos messiânicos: fuga de um certo estado de coisas, busca de uma ordem nova, esperança de uma " idade dou' rada" para os índios. Oposição da consciência indígena aos civilizados é seu caráïer essencial. Seu epicentro, o sistema de cren' ças. Diziam seus adeptos estarem de posse da verdadeira Santidade e concitavam todos a deixarem a lei dos cristãos que era a Santidade falsa. Os que teimassem seriam convertidos em peixes, pássaros. Os que os seguissem haveriam de voar para o céu. Mas antes, na vida terrena, teriam abundância de mantimentos, comeres e beberes. Seus legumes cresceriam mais que os outros e nunca faltariam. Os escravos converter-se-iam em senhores (11). Na busca de seu eden congregaram-se em torno de um líder carismático, Antonio, e de outros feiticeiros por ele dominados, que se apresentavam aos demais como seres eleitos que haviam de voar para o céu, que não temiam as espadas porque o ferro se converte' na em cera ao tocar seus corpos 1t21. Aferravam-se às tradições, principalmente àquelas de caráter mítico: Antonio, diziam, ficara do dilúvio de Noé e escapara no olho de uma palmeira (13). ldentificavam, pois, o elemento principal da Santidade com o herói civilizador, portador de importantes elementos de cultura.

Herói redentor que salvarta a cultura selvícola da avalanche branca. Processo revivalista no seu substratum. Crise messiânica, indiscutivelmente. Distanciamento de realidade: os brancos seriam extintos. Defendiam os naturais da terra seus costumes, seus nomes, seus líderes. Ânsia de reorganizaçáo social de acordo com os antigos padrÕes valorativos. Falavam língua própria que não era nem a

(9) Confissão de Gonçalo Fernandes in proc. n.o 10.?76 da Inquisição ANTT). de Lisboa (Arquivo Naciohal da Toire do Tombo (10) Confissão de Luíza Barbosa in Confissões- da Bahia (1591), pg. 65. (11) Denúcia de Álvaro Rodrigues in proc. 10.776, cit.

OD

Confissão de Álvaro Rodrigues in proc. de Fernão Cabral de Ataíde, ANTT, Inquisição de Lisboa, proc. np 17.065. (13) Denúncia de Belchior da Fonseca, in Denunciações da Bahia (1591),

pg.

276.

214

nativa, nem a dos brancos. Adoravam um ídolo "que não tinha fi' gura humana, e que chamavam Santidade" [14). ldolatravam também Tomacaúna, que contou ter-se posto de joelhos diante dele três vezes e ter-lhe ofertado facas e anzóis (16). Durante as reverências os crentes davam gritos e faziam grande alarido (17). Defumavamse e bebiam fumos de ervas consideradas sagradas até caírem bêbados, dizendo que com aquele fumo lhes entrava o espírito da Santidade (18). " Bebamos o fumo que ele é nosso deus que vem do Paraíso" concitava Vicente de Moura aos seus companheiros (1e). Tangiam e tocavam os maracás durante suas cerimônias, e cantavam em língua nativa (20). Regeitavam os nomes cristãos, trocan' do-os pelos indígenas: Antonio, o chefe, era Tamandaré (21), Luís, €s' cravo de Gaspar Francisco, de ltaparica, era Unduari (22), Domingos, tacheiro da Íazenda de Fernão Cabral passou a ser Bijuri e Gristóvão, morador na mesma Íazenda, recebeu o nome de Cão Gran' de Juguareté 1za;.

-

Vencidos estavam os indígenas na sua ânsia de perpetuidade. A Santidade do sertão de Orobó oferecia apreciável contingente de

(lD Confissão de D. Margarida da Costa, in Confissões da Bahia (1591), pg. 79. São curiosas as descrições do í
Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.