A ELETRICIDADE COMO AGENTE DE MUDANÇA NA COMUNIDADE INDÍGENA FLEXAL EM RORAIMA

May 23, 2017 | Autor: Antonio Weliton | Categoria: Etnologia Indígena, Cultura Organizacional E Mudança Cultural, Macuxi
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SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RORAIMA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA

ANTONIO WÉLITON SIMÃO DE MELO

A ELETRICIDADE COMO AGENTE DE MUDANÇA NA COMUNIDADE INDÍGENA FLEXAL EM RORAIMA

RECIFE – 2013

ANTONIO WÉLITON SIMÃO DE MELO

A ELETRICIDADE COMO AGENTE DE MUDANÇA NA COMUNIDADE INDÍGENA FLEXAL EM RORAIMA

Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Antropologia da Universidade Federal do Pernambuco, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre. MINTER UFRR/UFPE. Orientação do Professor Dr. Peter Schröder.

RECIFE – 2013

Catalogação na fonte Bibliotecária, Divonete Tenório Ferraz Gominho. CRB-4 1291 M528e

Melo, Antonio Wéliton Simão de. A eletricidade como agente de mudança na comunidade indígena Flexal em Roraima / Antonio Wéliton Simão de Melo. – O autor : Recife, 2013. 122 f. il. ; 30 cm Orientador: Prof. Dr. Peter Schröder. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Pernambuco, CFCH. Programa de Pós-Graduação em Antropologia, 2013. Inclui referência e anexos. 1. Antropologia. 2. Índios Macuxi. 3. Eletricidade. 4. Cultura – mudança social. I. Schröder, Peter. (Orientador). II. Título.

301 CDD (22.ed.)

UFPE (BCFCH2013-162)

Aos meus pais, esposa e filha que são minha fonte de inspiração e de busca da superação em todos os momentos.

AGRADECIMENTOS

Ao autor de minha fé pela existência e força sempre presente. Ao povo Macuxi, especialmente à Comunidade Flexal pelas lições de vida transmitidas. À minha família pelo apoio e compreensão. Aos professores do PPGA-UFPE pela receptividade e disposição em compartilhar suas experiências na construção do conhecimento, especialmente ao professor Peter pelas observações e orientações sempre objetivas. Ao professor Carlos Cirino pelo apoio prestado e sugestões sempre válidas. Aos professores Marcos Pellegrini e Carmem Lúcia pela confiança transmitida. Aos colegas do MINTER que constituíram uma relação familiar. Aos técnicos do PPGA-UFPE pela atenção e disposição. Aos bolsistas do NUHSA pela solicitude. Ao Governo de Roraima que através da Secretaria de Planejamento – SEPLAN viabilizou o recurso para a concretização deste programa de mestrado. À Companhia Energética de Roraima, na pessoa de seus diretores, pelo préstimo e incentivo dado a minha pessoa. E a todos que de alguma forma contribuíram para a realização deste trabalho.

“... mas melhorou muito com a energia e a TV, às vezes o Kanaimé entra e quem tá assistindo pensa que é uma pessoa comum pra assistir TV”.

Caetano Barbosa

RESUMO O propósito deste trabalho é apresentar a eletricidade como responsável direta e indiretamente por diversas mudanças culturais numa comunidade indígena. Através de um estudo de caso na Comunidade Flexal, em Roraima, procurou-se descrever algumas dessas mudanças onde o uso da energia elétrica se apresenta como delineador de um novo panorama local. Destacou-se que para a eletricidade efetivar-se é necessária a disposição de um conjunto de infraestruturas que contribuem generosamente para o resultado dessas mudanças. E neste contexto, percebeuse que muitas relações políticas e sociais são instituídas ou reformuladas, corroborando com um cenário dinâmico onde os membros da comunidade participam efetivamente do processo revelando criatividade nas adaptações a uma nova realidade. Na análise desse processo, constatou-se que mesmo implicando em mudanças, a disponibilização da eletricidade nesta comunidade contribuiu para a noção de inclusão social com maior evidência nos temas: entretenimento, educação e saúde. Enfim, diante das influências externas, e ao mesmo tempo dispostos a manter sua cultura enriquecida com novos valores, a Comunidade Flexal - e o povo Macuxi -, tem demonstrado que este diálogo intercultural se tornou a semente necessária para a reconstrução de uma história rica em elementos internos e complementada com arranjos filtrados de outras culturas, sejam elas de seus parentes étnicos da região circum Roraima ou dos não indígenas com quem se relacionam.

Palavras-chave: Macuxi. Flexal. Eletricidade. Mudanças Culturais.

ABSTRACT The purpose of this paper is to present electricity as directly and indirectly responsible for various cultural changes in an indigenous community. Through a case study in Flexal Community in Roraima, we tried to describe some of these changes where the use of electricity is presented as a lead to a new local view. It was emphasized that the electricity, to become effective, requires the provision of a set of infrastructure that contribute generously to the result of these changes. And in this context, it was noted that many political and social relations are established or amended, corroborating with dynamic environment where community members participate effectively in the process revealing criativity in the adaptations to a new reality. In the analysis of this process it was found that even implying changes the disponibility of electricity in this community contributed to the notion of social inclusion with most evidence in the topics: entertainment, education and health. Anyway, in the face of external influences while willing to keep their culture enriched with new values, the Flexal Community - and Macuxi people - has shown that this intercultural dialogue has become the seed needed for the reconstruction of a history rich in internal elements and supplemented with arrangements filtred from cultures, whether of their ethnic kin in region near Roraima or non-indigenous people with whom they relate.

Keywords: Macuxi. Flexal. Electricity. Cultural Changes.

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AIS – Agente Indígena de Saúde CERR – Companhia Energética de Roraima CHEA – Centrais Hidrelétricas da Amazônia CINTER - Conselho Indígena do Território Federal de Roraima CIR – Conselho Indígena de Roraima DSEI – Leste – Distrito Sanitário Indígena – Leste de Roraima DSEI – Yanomami – Distrito Sanitário Indígena Yanomami e Ye’kuana FIFA – Fédération Internationale de Football Association FUBRA - Fundação Universitária de Brasília FUNAI – Fundação Nacional do Índio FUNASA – Fundação Nacional de Saúde IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística KVA – Kilo Volt Amper KW – Kilo Watts MCH – Micro Central Hidrelétrica MEVA – Missão Evangélica da Amazônia MME – Ministério de Minas e Energia MPF – Ministério Público Federal OIT – Organização Internacional do Trabalho OXFAM - The Oxford Committee for Famine Relief PF – Polícia Federal PLPT – Programa Luz para Todos QG – Quartel General SEAAB - Secretaria Estadual de Agricultura e Abastecimento SEI - Secretaria Estadual do Índio SECD – Secretaria de Educação Cultura e Desporto SESAI – Secretaria Especial de Saúde Indígena SODIUR – Sociedade de Defesa dos Índios Unidos do Norte de Roraima STF – Supremo Tribunal Federal TCLE – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido TI – Terra indígena

TIRSS – Terra Indígena Raposa Serra do Sol UFRR – Universidade Federal de Roraima UnB - Universidade de Brasília UNIVIRR – Universidade Virtual de Roraima UTE - Usina Termelétrica

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 12 1.1 O início de uma relação e suas fases .................................................................................. 13 1.2 Procedimentos metodológicos e estrutura do trabalho ....................................................... 23

2 CAPÍTULO I - UMA REFLEXÃO SITUACIONAL SOBRE A COMUNIDADE FLEXAL .................................................................................................................................. 29 2.1 A eletricidade como fator de mudanças em uma comunidade indígena ............................ 30 2.2 Um “marco” de mudança ................................................................................................... 39 2.3 Como é a comunidade Flexal ............................................................................................. 44 2.4 Perspectivas e desolações ................................................................................................... 47

3 CAPÍTULO II - O FLEXAL: UM POUCO DE UMA HISTÓRIA MACUXI PECULIAR ............................................................................................................................. 52 3.1 Seu modo de ser e ver-se diferente ..................................................................................... 60 3.2 O efeito “esponja” ou uma “revoada” de retorno ............................................................... 69

4 CAPÍTULO III - DISCUTINDO AS RELAÇÕES NA COMUNIDADE DO FLEXAL.. ................................................................................................................................ 77 4.1 Trabalho e sustentabilidade em perspectivas ..................................................................... 78 4.2 A experiência sócio-religiosa Macuxi ............................................................................... 82 4.3 Uma ideia negativa ou um empreendimento fantasmagórico ............................................ 91 4.4 Organização política Macuxi em contexto de mudança ..................................................... 96 4.5 O esporte e o entretenimento numa comunidade indígena ............................................... 102 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 106 6 REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 110 ANEXOS ............................................................................................................................... 117

1 INTRODUÇÃO

Desde que o homem dominou a força da eletricidade, transformando um fenômeno da Natureza em um bem de consumo, a cada dia cresce a dependência da sociedade em relação à energia elétrica, seja para maximizar a produção ou para proporcionar conforto e/ou qualidade de vida. Além disso, como a maioria das invenções tecnológicas, em que o uso iniciou-se em restrita classe social dominante, com a eletricidade não foi diferente. No Brasil, o acesso à eletricidade pelas classes sociais de menor poder econômico é algo razoavelmente recente. E somente a partir das políticas de privatização do setor elétrico brasileiro, iniciado nos anos 1990, foi possível permitir que comunidades em locais que outrora jamais se pensava em ter disponível o uso da eletricidade passaram e ter acesso a este bem. E esta dependência da eletricidade se estende atualmente não apenas à sociedade envolvente, mas, podemos incluir entre outras as ribeirinhas, as comunidades indígenas, as quilombolas etc. Contudo, há um custo social que o acesso à energia elétrica trouxe para estas comunidades conhecidas por “tradicionais”, assim como também para os assentamentos rurais que possuíam restrições de acesso e uso. Não se trata apenas da fatura mensal, ou custo financeiro que obviamente passou a fazer parte do orçamento familiar, mas das mudanças nas rotinas e, consequentemente, nos costumes dessas comunidades. Ou seja, os inevitáveis impactos sociais e culturais. Pensando um pouco sobre estas mudanças decorrentes do acesso à eletricidade em comunidades indígenas, pretendemos neste estudo de caso apresentar algumas implicações que o uso da energia elétrica - e outros fatores de caráter infraestruturantes, como estradas, telefone, etc. - trouxe à Comunidade Indígena Flexal na Terra Indígena Raposa Serra do Sol (TIRSS) no Município de Uiramutã, Roraima. Embora seja perceptível uma teia de relações que determinam a realidade comunitária, o acesso à eletricidade e, consequentemente, de bens de consumo, possui sua contribuição marcante no processo de reorganização. A relação com esta comunidade foi decorrente do trabalho desenvolvido junto à Companhia Energética de Roraima (CERR) e deu-se de forma gradual e esporádica. Momento em que vislumbramos a possibilidade de um estudo acerca da influência da eletricidade como parte de um diálogo intercultural entre a Comunidade Flexal e as instâncias de governos, contribuindo assim com a diversificação das relações dessa comunidade com a sociedade envolvente e com outras comunidades do entorno, seja do mesmo ou de outro grupo étnico,

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principalmente na organização comunitária e suas relações com a classe política das esferas estadual e municipal. Contudo, minha aproximação com as questões indígenas não foi iniciada entre os Macuxi. Ainda no ano de 2004, como acadêmico do Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Roraima (UFRR) realizei um estágio em Antropologia na Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), especificamente na sede do Distrito Sanitário Indígena Yanomami e Ye’kuana (DSEI-Yanomami). Depois de um ano como estagiário, fui contratado, por mais de um ano, como agente administrativo pela Fundação Universitária de Brasília (FUBRA), organização ligada à Universidade de Brasília (UnB), que mantinha a celebração de um convênio de atendimento à saúde com a FUNASA, em substituição a outra organização URIHI - Saúde, para atender aos Yanomami e Yekuana em Roraima e aos Xavante em Mato Grosso do Sul. Na oportunidade, pude em situações pontuais participar de eventos como: assembleias de conselhos locais e distritais de saúde, etapas locais, distrital e nacional da Quarta Conferência Nacional de Saúde Indígena, e outras ocasiões tanto na cidade quanto nas aldeias.

1.1 O início de uma relação e suas fases

No dia 23 do mês de fevereiro de 2009, por volta das 16 h, a serviço da CERR, cheguei pela primeira vez na Comunidade Flexal na TIRSS no Município de Uiramutã. Era a primeira vez também que eu ia naquele município. Em uma equipe de três pessoas, estávamos realizando o levantamento patrimonial da Companhia e visitamos todas as localidades onde havia algum patrimônio da empresa, quer fosse máquinas ou redes. Já tínhamos um conhecimento superficial acerca daquela comunidade somente do trabalho desenvolvido pela empresa que represento ou ainda pela mídia daquela comunidade e de suas lideranças, principalmente, da ação de resistência contra a demarcação em área contínua da TIRSS. E como estudante de Ciências Sociais na UFRR acompanhava as discussões em torno da questão, ainda sem compreender as dimensões do conflito. Naquele período, o processo de homologação da TIRSS teve sua última manifestação por parte do Supremo Tribunal Federal (STF), e também corria o prazo estipulado para a saída voluntária dos posseiros que moravam na Terra Indígena (TI). Na mídia local e principalmente nos discursos dos políticos governantes do estado, era elogiada a atitude das lideranças da Comunidade Flexal depois que mantiveram, pelo período de nove dias, quatro

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agentes da Polícia Federal (PF) em uma cabana no centro da comunidade em abril de 2005, em protesto pelo encaminhamento da homologação da TIRSS em área contínua. Estes conflitos que incluíam a resistência contra a desintrusão da TI com a colaboração de muitos indígenas mobilizaram algumas operações da PF denominadas Upatakon, que na língua Macuxi significa “nossa terra”, e teve por objeto conter eventuais ânimos na região. Nesta viagem fomos por duas vezes parados por membros da Força Nacional de Segurança na referida operação para nos identificar, o que demonstrou o clima de tensão em que todos os envolvidos estavam naquela ocasião. Logo na chegada à Comunidade Flexal, encontramos o ex-Tuxaua Lauro Barbosa, que nos recebeu com entusiasmo, no entanto estava preocupado, pois a CERR não correspondia com sua missão institucional porque o motor que gerava energia à localidade, estava quebrado há três dias. Fomos atendidos com presteza pelo colega funcionário da CERR, o operador de Usina Termelétrica (UTE) Sr. Oséas, que nos forneceu informações referentes à rede e ao próprio grupo gerador, em seguida paramos um pouco na casa da liderança da comunidade que se encontrava na varanda de sua residência, em companhia de outros pais de famílias, alguns jovens e poucas mulheres e crianças. Era um momento de descontração em que bebiam caxiri1, tradicional bebida indígena. Foi-nos oferecida pelo anfitrião uma porção da bebida tradicional numa cuia de cabaça, por sinal, cheia para experimentar, como já havia percebido logo que chegamos ao ambiente. A prática de beber dava-se de forma coletiva – alguns sentados outros acocorados em forma de círculo e no meio um recipiente maior com a bebida, enchiam a cuia e cada um bebia um gole até esvaziar, sendo cheia novamente e prosseguindo na rodada. Educadamente, mesmo com dúvida das condições sanitárias de produção, - que caracteristicamente, aos olhos preconceituosos de um não índio pouco acostumado com aquela relação, com a memória cheia de histórias e estórias sobre o assunto pode até desprezar a oferta, - aceitei e tomei um gole passando adiante a cuia. Um dos que estavam comigo também ingeriu uma quantidade, este acostumado na região e amante de um tempero etílico no sangue. O motorista dispensou a bebida alegando prudência para dirigir na única estrada entre serras e vales que dão acesso à comunidade, o que exigia boa lucidez. Logo percebi que falavam em português, mesmo carregado de um sotaque Macuxi, com algumas expressões em língua indígena. Tentamos uma conversa em prosa com os

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Bebida feita do beiju de mandioca que depois de fermentado é servido. Possui um sabor característico e, dependendo de sua fermentação, seu razoável teor alcoólico pode embriagar aos que beberem além de seu limite de resistência aos etílicos.

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presentes sobre produção e política. Principalmente os questionamentos judiciais da legalidade da homologação da TIRSS que havia sido definida pelo STF, eram os assuntos que não faltavam em qualquer conversa. Entre uma diálogo e outro, um pouco de caxiri temperava os ânimos e unia os discursos. Depois compramos poucos quilos de feijão jaula, uma vez que na região a plantação dessa vagem é bastante próspera. E, por volta das 17h30min, nos retiramos com a sensação de uma boa receptividade na mais longínqua localidade a ser visitada naquela viagem. Na ocasião me chamaram atenção as perspectivas de produtividade

na

fala

das

lideranças

presentes.

Pareciam

mais

desejosos

pelo

‘desenvolvimento econômico’ do que em outros locais que havíamos passado. No final daquele ano, por iniciativa da Secretaria Estadual do Índio (SEI), na CERR foram elaborados dois projetos de construção de duas Micro Centrais Hidrelétricas (MCH). Uma na Cachoeira do Puraquê no rio Surumu TI São Marcos e outra na Cachoeira da Andorinha no rio Ailã na TIRSS. A ideia da MCH Andorinha foi abraçada pela liderança da Comunidade Flexal, na pessoa do Sr. Abel Barbosa, o qual na época exercia a função de 1º Secretário da Organização indígena Sociedade dos Índios Unidos do Norte de Roraima (SODIUR)2 e por outras lideranças na região. Já percorridos alguns meses de debates e discussões, no mês de outubro de 2010 fui incluído na equipe que deveria acompanhar as discussões do assunto por parte da CERR. Assim, no mês de dezembro daquele ano foi realizada uma Assembleia Geral da SODIUR na Comunidade Flexal com o intuito de apresentarmos às lideranças envolvidas e às comunidades o anteprojeto elaborado, em processo de apreciação para posterior aprovação pela Coordenação Nacional do Programa Luz para Todos (PLPT). Por conta disso, retornamos à Comunidade Flexal uma vez mais como técnico da CERR. Mas, como cientista social tinha uma leitura diferenciada da situação e as discussões estavam avançadas. Dessa forma, nos dias 17 a 19 estivemos no Flexal acompanhando uma mobilização em torno do projeto da MCH percebemos um interesse além de nossas perspectivas. Havia uma ansiedade otimista por uma energia abundante na comunidade que atendesse as mais diversas ideias de produção, comercialização, educação e saúde. Percebemos que as lideranças locais abraçavam aquela ideia como uma solução definitiva para a sua condição de isolamento. Independentemente de qualquer membro da comunidade com o qual falávamos acerca do assunto da energia, a aceitação era algo generalizada sem quase nenhuma restrição

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Sobre a história das organizações indígenas de Roraima, ver REPETTO, 2008.

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ou divergência de ideias. Não havia questionamentos sobre impactos provocados pela possível nova realidade local proporcionada com a chegada de uma energia abundante. Ao comparar a realidade observada na primeira visita, percebi que a organização da comunidade parecia inalterada. Contudo, constatamos que havia sido implantado um pequeno comércio e a movimentação de pessoas parecia maior e mais frequente que da outra vez que estivemos ali. Havia sido inaugurada há pouco tempo uma escola modelo com cinco salas de aulas, sala de informática e refeitório. O posto de saúde estava com sua reforma em andamento e dava uma maior visibilidade ao prédio isolado próximo à cabeceira da pista de pouso. A palhoça que havia servido de abrigo “forçado” aos agentes da PF quando estiveram restritos de liberdade na comunidade estava sendo utilizada como depósito de milho. O campo de futebol havia sido roçado com roçadeira de grama mecânica, ou seja, com o trator. O número de crianças parecia mais acentuado e até o número de adultos parecia maior. Estava prevista a presença do Governador do Estado na reunião, e isto mobilizou uma maior presença de indígenas de outras comunidades vizinhas. Mas por outros compromissos políticos, esteve presente apenas o titular da pasta SEI, o Sr. Hiperion Oliveira, como representante do Executivo estadual. A Fundação Nacional do Índio (FUNAI) também deveria fazer parte na reunião, no entanto, por questões de logística o Chefe de Posto que atende a região estava com o veículo quebrado a 60 quilômetros da comunidade. Também foram convidados o Procurador e um antropólogo do Ministério Público Federal (MPF) e um representante do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), mas nenhum desses esteve presente. Mesmo assim, a reunião transcorreu3 com a presença de 28 lideranças de 24 comunidades distintas, o Secretário de Estado da SEI, a presidente e alguns funcionários da CERR e de uma equipe da empresa de assessoria e projetos Centrais Hidrelétricas da Amazônia (CHEA)4. Em nossas experiências de outras reuniões em comunidades indígenas sempre havia no início um culto ou uma meditação religiosa dirigida por quem de fato lidera o campo religioso na comunidade. E no Flexal, naquela ocasião, percebemos um pouco de sincretismo ao serem entoados cânticos da Harpa Cristã, do Cantor Cristão em português e em Macuxi, e por fim, o aleluia, cântico tradicional da região. Logo após, foi feita uma meditação numa passagem bíblica ministrada por Getúlio Barbosa. Na maioria das comunidades da TIRSS há uma predominância da religião cristã, com a especificidade do catolicismo romano, mas em 3

O resultado da reunião não é o foco desta discussão, mas apenas o contexto de nossa presença na comunidade Flexal. 4 Empresa de construção e consultoria paraense contratada pela CERR para realizar os levantamentos e elaborar os projetos das MCH em colaboração com os técnicos da CERR.

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Flexal percebi que o protestantismo tradicional da Igreja Batista e Adventista do 7º dia tem seu espaço majoritário. Na ocasião, chamou-nos a atenção o fato das denominações religiosas ocuparem o mesmo espaço, ou seja, não havia dois templos específicos: as duas denominações utilizavam a mesma casa em momentos distintos. A reunião ocorreu em um espaço próprio para as reuniões perto da casa do 1º Tuxaua. Era um barracão medindo aproximadamente 8 m de largura por 12 m de comprimento, com cobertura de telha de fibrocimento. Foram utilizadas as cadeiras da escola como assento aos participantes. Logo pela manhã, alguns homens da comunidade foram em um trator buscar um boi abatido para a alimentação numa comunidade vizinha, enquanto todos os membros da comunidade possuíam alguma atividade previamente estabelecida pelo 1º Tuxaua. Com todos os atrasos, principalmente no aguardo dos representantes dos órgãos federais, a reunião só teve início às 11 h. Foi interrompida às 13 h para o almoço e às 14 h foi reiniciada e encerrada às 17h30 min. Como o número de participantes presentes na reunião de dezembro de 2010 foi pequeno e os órgãos oficiais como FUNAI, IBAMA e MPF não puderam estar presentes, o Conselho Indígena de Roraima (CIR), organização indígena que possui maior influência na região, se negou a participar por questões de desentendimento de ideias. Assim, foi marcada nova assembleia da SODIUR para mesmo local no período de 23 a 25 de janeiro de 2011, com maior planejamento para abrigar um maior público, principalmente atuante que atendesse as expectativas dos organizadores da reunião. Fizeram uma reestruturação do local, construíram um novo ambiente para o evento, agora mais amplo medindo 18 m de comprimento e 10 m de largura com cobertura de telha de fibrocimento e piso cimentado. Prepararam alimentação, bebida e outros suprimentos para uma reunião, mas o evento foi outro “fracasso” no que diz respeito ao resultado. Os órgãos oficiais outra vez não estiveram presentes, o CIR desta feita enviou um despacho no verso do convite discordando com a iniciativa e demonstrando total reprovação da ideia do projeto da MCH. Para esta reunião fomos mais uma vez destacados a estar presente e foi requerido para que atuasse como secretário ad hoc da reunião em nome da organização SODIUR. O nosso deslocamento ocorreu no dia 22, enquanto a reunião de fato ocorreu no dia 24. A quantidade de participantes presentes foi maior. Enquanto na reunião anterior havia representação de 24 comunidades do entorno, todas com interesse sobre o assunto, dessa vez haviam lideranças de 40 comunidades motivadas pelo projeto e, além dessas, algumas autoridades estaduais, como o próprio Governador, o Secretário do Índio e autoridades municipais, além da presidente e técnicos da CERR e da CHEA.

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No dia seguinte da reunião, quando já estávamos finalizando as atividades para retornarmos para Boa Vista, fui experimentar uma damurida5, a mais ardente que já provei. Estávamos atrasados e chegava próximo ao meio-dia quando fomos convidados a comer alguma coisa na casa do operador da CERR. Chegando ao ambiente os presentes, o dono da casa e outros visitantes, estavam comendo damurida com biju6, logo percebi que comiam o peixe com o biju sem umedecê-lo no caldo da damurida, mas como em outras ocasiões que eu havia provado, não dispensei o caldo para umedecer o biju. Assim, mesmo percebendo que havia uma alteração no hábito alimentar, me aventurei em umedecer um pedaço de biju na damurida. Não foi boa surpresa, parecia que haviam moído a pimenta e colocado pura, sem água, para cozinhar o peixe. Mesmo acostumado a consumir pimentas desde minha infância, não é que consumo em quantidades maiores, mas não tenho dificuldade em consumir cinco pimentas “malagueta” como mistura de um prato de comida numa refeição, mas aquela damurida me fez lagrimar. Comi o pedaço de biju por capricho e sem querer tornei-me motivo de chacota e graçinhas dos mais próximos. Tentando minimizar o tormento, bebi um pouco de refrigerante com o propósito de diminuir o ardor da pimenta, mas na verdade o procedimento que tomei potencializou a ardência por conta do gás do refrigerante. Compreendo após essa experiência que houve um descuido que me parecia ampliar com o gás do refrigerante. Foi um descuido que me ensinou a observar melhor o diferente. Aquele acontecimento, mesmo num momento de despedida, me fez sentir-me parte de um grupo local e determinava como um batismo junto à comunidade Flexal. Estes encontros preliminares com a comunidade do Flexal despertaram a curiosidade por entender a relação das comunidades indígenas com a eletricidade. Com o processo de seleção do Curso de Mestrado em Antropologia às portas, deparei-me com a necessidade de escolher um exemplo clássico da relação de comunidades indígenas com a eletricidade. Foi então que numa dada ocasião me encontrei com o Tuxaua Abel Barbosa, relatei-lhe o meu propósito de descrever e analisar um exemplo de eletrificação em uma comunidade indígena e que pensávamos em estudar a comunidade Flexal, enfatizando as implicações da eletricidade naquela comunidade. Neste sentido, informei que precisaria ir até lá, não como técnico da CERR, mas como estudante, com uma visão crítica e uma postura de aprendiz a fim de estudar aquela 5

Cozido de peixe com pimenta “dedo de moça”. Comida típica dos indígenas Macuxi. Podem utilizar peixe, carne, “miúdo de gado bovino”, etc. 6 Massa de mandioca ralada, assada ao forno de lenha, possuindo o formato de uma massa de pizza. É preparada e cosumida como base da alimentação. Muito apreciado com caldo. Também é utilizada para fermentação e base no preparo do caxiri e pajuarú.

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comunidade. Ele concordou, mas para isso eu precisaria participar de numa reunião local e informar aos membros da comunidade o meu propósito. Neste sentido fui convidado a participar como estudante de uma reunião na comunidade no mês de janeiro de 2012. No entanto, por motivo de um acidente doméstico não pude seguir naquela oportunidade. Mas como essas reuniões locais ocorrem uma vez por mês, marquei para o mês seguinte. Desse modo, no dia 5 de fevereiro de 2012, estive na comunidade pela quarta vez, agora não propondo uma melhoria de infraestrutura em nome da Concessionária de Energia de Roraima, mas como um curioso em perceber as implicações diretas e indiretas da eletricidade na comunidade. Cheguei lá por volta das 7 da manhã, visto que havia dormido na sede do município de Uiramutã, onde havia chegado por volta das 21 h. Na chegada, fui recepcionado pelo Tuxaua Abel e seu irmão Getúlio, sentamos um pouco e conversamos sobre o meu propósito, deixando claro que não visava reconhecimento político nem dava garantia de que mudaria o processo de fornecimento de energia na comunidade, mas que minha ideia era entender como se deu a implantação da eletricidade e as consequências, enfatizando as mudanças e adaptações que a comunidade conviveu em decorrência da chegada da eletricidade e seu uso. Como a minha ida era rápida e devia estar de volta a Boa Vista no dia seguinte, uma equipe técnica da CERR me deixou na comunidade e me buscou no final da tarde. Às 8h30min deram início à reunião, e o andamento e a organização não tinham o rigor das assembleias que eu havia participado antes, principalmente na distribuição das atividades. Foi apresentada a pauta de discussão que tratava de assuntos internos e o meu assunto foi inserido e apresentado como último item a ser tratado. Durante a reunião procurei estar presente sem dar nenhuma opinião, mas acompanhando diretamente as discussões e logo vi que mesmo tendo discórdias e discussões acaloradas prevaleciam o respeito e uma ordem invejável: reclamações sobre o comportamento do Tuxaua, sobre comportamentos de jovens desrespeitando seus pais, avaliação das ações da liderança no ano anterior, referendo se fariam ou não uma eleição de outro tuxaua etc. Às 12 horas foi suspensa a reunião para o almoço, e cada um foi para sua casa com o compromisso de retornar às 13 horas para dar continuidade. Ao reiniciar a reunião, a pauta de discussão foi modificada e o item sobre a minha pesquisa foi antecipado. Concederam-me a palavra para expressar o propósito de minha presença. Procurei ser claro e objetivo sobre a ideia do projeto de pesquisa, detalhando os incômodos da minha presença, a necessidade de autorização da FUNAI para que pudesse realizar aquele trabalho, que não estava ali representando a CERR como nas ocasiões anteriores, mas como estudante com uma questão a responder sobre as implicações da

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eletricidade naquela comunidade. Procurei deixar claro que não prometia estar mudando ou intervindo nas modalidades de consumo nem no uso racional da energia, muito menos vigiando os atos lícitos ou eventualmente ilícitos do operador: enfim, era um visitante alheio às questões técnicas da eletricidade naquela comunidade. Por fim, após alguns questionamentos e explicações, solicitei que me autorizassem passar um período de 30 dias entre eles com as condições comportamentais apresentadas antes. Foi concordado pelos presentes, como também se poderiam me conceder o Termo de Consentimento Coletivo me autorizando a realizar a pesquisa. Na mesma ocasião propus que o cronograma da pesquisa de campo ocorresse no mês de outubro de 2012, devido uma programação pessoal que coincidia com as minhas férias do trabalho. Por volta das 15 h foi encerrada a minha participação na reunião e continuei nos arredores observando como prosseguiam as discussões internas. Na manhã seguinte, logo ao chegar, percebi um novo entretenimento que havia sido implantado na comunidade. Tratavase de uma televisão de 24 polegadas fixada no galpão menor de reuniões. Como a reunião já estava programada para ocorrer durante todo o dia no outro galpão, e combinaram com o operador da CERR para que o motor funcionasse desde cedo. Antes de a reunião começar, vi que um grupo de aproximadamente 20 crianças estava atento a uma programação infantil de um canal aberto. E durante o dia enquanto a reunião ocorria ali ao lado, alguns jovens e adolescentes estavam atentos ao programa esportivo, posteriormente nos programas de auditório algumas senhoras mantinham a frequência na programação televisiva. Em um momento do intervalo, tive uma conversa espontânea com o Tuxaua Abel sobre alguns assuntos e, entre estes, questionei se aquele aparelho de televisão estaria ou não provocando algum comportamento negativo na comunidade. Ele foi muito enfático afirmando que sim, especialmente pelo fato do mesmo ter sido instalado no principal espaço público, e sua utilização livre para todos, o que fazia as crianças adotarem maus exemplos dos programas assistidos, mas que era algo em discussão nas reuniões comunitárias para minimizar as dissensões sobre o uso do equipamento, o qual se destaca por ser o único na comunidade de acesso livre, uma vez que há alguns particulares, da equipe da saúde e da escola. Por volta das 16 horas, a equipe que havia me levado retornou para virmos para Boa Vista. Os contatos com a comunidade foram interrompidos até os dias próximos do meu retorno para a pesquisa. Como havia proposto na reunião em que apresentei o projeto de pesquisa para a comunidade, no dia 11 de outubro me dirigi ao Flexal com a mente aberta e a curiosidade aguçada, permanecendo ali até o dia 6 de novembro como observador de suas rotinas e

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interessado de suas vidas. Procurei interagir o máximo que minha timidez permitiu. Nestes dias, abrigado em uma cabana que outrora fora residência do tuxaua da comunidade, foi possível verificar uma rotina comunitária privilegiada. O local ficava bem ao lado de uma casa de farinha, do galpão de uso coletivo, e de um banheiro, por onde circulava grande número de pessoas. Sem dizer que o grupo-gerador ficava a 250 metros do ambiente e ao lado passava um caminho com acesso ao igarapé e roçados. O trajeto para a comunidade foi criativo: fui de carona em um caminhão-pipa de transporte de combustível até a sede de Uiramutã. Saí de Boa Vista às 11 h e chegamos à sede do Uiramutã às 20 h. Ali fiquei o dia seguinte procurando uma oportunidade de baixo custo para chegar ao Flexal, pois não havia rota de veículo regular. Ao meio-dia do dia 13, depois de outras tentativas para chegar ao destino, o gerente da CERR me encontrou no meio da rua e me apresentou seu primo (Hudson, apelidado de Xerife). Este disse que sua esposa trabalhava como professora no Flexal e estava subindo para lá e poderia me levar. O transporte era uma motocicleta CG 125 TITAM azul. Aceitei a carona, dividi a bagagem, levei minha mochila grande com roupas e uma bolsa a tiracolo - daquela de agente de endemias, lembrança do tempo que trabalhei no DSEI-Yanomami/FUNASA -, que tinha meu notebook e papéis como caderno de campo, agenda, lanterna etc. (era meu kit de campo), deixei uma sacola grande com todo meu rancho na casa de apoio da CERR. Do rancho só levei uma rapadura, um quilo de farinha amarela, duas latas de sardinha, 600g de leite em pó e quatro pacotes de suco artificial, para eventuais restrições alimentares. Foi o que pude encaixar na mochila de roupas. Levei também uma garrafa térmica de um litro que me serviria para hidratar meus cálculos renais. Pegamos a estrada de terra e pedra e que parecia ter mais pedra do que terra. O sol de Roraima é quente em qualquer lugar, isso é um fato evidente e o horário era de suma predominância. Ainda, a presença dos piuns7 nessa região contribui com a tormenta. Não sei por que esses bichinhos não dormem e acredito que não foi à toa a impressão de KochGrünberg (2006, p. 36) sobre estes insetos “Aqui, fervilham os piuns, esses miseráveis sugadores diurnos, que são substituídos pelos carapanãs (mosquitos grandes) com o cair da noite” (grifo do autor). Mas, logo no segundo morro, já em pânico com a velocidade adotada pelo condutor, a corrente da moto caiu e travou a roda. Foi um susto, pois no momento que não conseguiu controlar a moto o condutor pulou e me deixou sozinho. Por pouco não fui

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Espécies de insetos dípteros, do género Simulium e família Simuliidae, comum nos lavrados de Roraima também conhecido por maruim. Em humanos, a mordedura deixa uma pequna mancha avermelhada na pele, acompanhada de comichão e às vezes causando edema localizado.

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parar num abismo, com aquela bagagem nas costas e a outra bolsa menor do lado. Algo pior poderia ter acontecido, mas a adrenalina também faz parte da aventura. Sem nenhuma chave, com o auxílio apenas de uma faca conseguimos destravar a roda e tentamos seguir adiante, mas a corrente havia empenado e estava frouxa. Recomendei que ele voltasse ao Uiramutã para ajustá-la enquanto aguardava embaixo de um caimbezeiro8. Aproveitei para escrever um pouco sobre os últimos acontecimentos. A demora não foi grande e 25 minutos depois ele já estava de volta e continuamos na piçarra e poeira. Cerca da metade da viagem como eu já havia ido lá outras vezes, tinha noção da distância, a corrente caiu outra vez, mas não travou a roda. Era uma subida, o que ajudou para conter a velocidade. No entanto, em torno de 300 metros depois, está a mais acentuada descida e ainda bem que foi antes dela. Foi uma ajuda para minha coluna, pois já estava travado por manter-me na mesma posição. Depois disso continuamos e chegamos ao Flexal sem mais contratempos. Ao chegar, fui recebido pelo Tuxaua Abel que já me aguardava. Fui alojado numa cabana onde havia sido sua residência. Lá já estava hospedado o motorista da SEI a serviço da Comunidade Flexal com um caminhão. A casa possuía dois cômodos, um fechado e outro semiaberto. O fechado estava ocupado. A outra parte onde me alojei estava exposta parcialmente ao cruviana9. Ali me senti um Malinowski, com muitas ressalvas de contexto. Era o estranho que as crianças viriam perguntar o que eu estava fazendo ali e que um dia iria embora. A observação do ambiente como: a localização da privada, do banheiro, horário de uso, quem eram os vizinhos mais próximos etc. e das relações como se tratavam, os mais brincalhões e os sérios, como e quando dirigiam a palavra a uma mulher, quem era pai ou filho de quem etc. foram as primeiras preocupações. As tentativas de conversas logo foram tomadas, aproveitei o acesso que meu companheiro de acomodação tinha com as pessoas para iniciar meus contatos. Mesmo que alguns se lembrassem de minha última visita à comunidade, os questionamentos se mantinham sobre: o que eu estava fazendo? Eu iria trocar os postes? Quanto era o meu salário na CERR? Como fazer para trabalhar na CERR? Foi, pelo menos para mim, o maior sacrifício explicar meus propósitos a todo instante. Durante os 25 dias de campo estive na roça de milho, de banana e de mandioca, fui ao pasto observar a garotada juntando o gado, presenciei a produção do biju e das bebidas 8

O Caimbé (Coussapoa asperifolia) é um arbusto da família das cecropiáceas. Muito comum nas paisagens de Roraima. 9 Nome dado pelos Macuxi ao vento da madrugada e que na região das serras é bastante frio.

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(caxiri e pajuaru), procurei acompanhá-los em jogos de futebol e festa de forró. Tentei me aproximar dentro do possível do cotidiano comunitário e neste exercício, o acesso às crianças abre as portas para o diálogo, e muitas informações são manifestas pela garotada, principalmente os nomes e funções sociais das pessoas. Entrevistei 15 moradores, que demonstraram interesse em colaborar com meu trabalho e sempre que possível fotografava com autorização prévia. Já em Boa Vista, depois de consolidar os dados levantados em campo percebi que algumas informações sobre a comunidade estavam incompletas, e neste mesmo tempo me encontrei com o Sr. Pedro Celso, Tuxaua da Comunidade Santa Creusa e pajé que atende a região. Após entrevistá-lo, pude então passar a limpo e tirar algumas dúvidas sobre o Flexal, e a nossa conversa serviu como complemento e aferição de alguns elementos sociais da comunidade Flexal que passaram despercebidos, principalmente sobre relações políticas e religiosidade.

1.2 Procedimentos metodológicos e estrutura do trabalho

A proposta do projeto desta pesquisa foi por sua natureza uma análise qualitativa e, sobre esta modalidade de pesquisa, Alves-Mazzotti (2002, p. 160) explicou que: “Dada à importância atribuída ao contexto nas pesquisas qualitativas, recomenda-se, como vimos, que a investigação focalizada seja precedida por um período exploratório. Este, por sua vez, é antecedido por uma fase de negociações para obter acesso ao campo”. As incursões anteriores, mesmo sendo puramente profissionais, facilitaram a negociação. Nestas condições o autor descreveu a pesquisa qualitativa como multimetodológica com variedade de técnicas de coletas de dados, e resumiu que a “observação (participante ou não), entrevista em profundidade e a análise de documentos são os mais utilizados, embora possam ser complementados por outras técnicas” (2002, p. 163). Sob esta perspectiva, algumas dessas ferramentas foram adotadas neste trabalho. Por sua vez, Gaskell (2008) comentou que a pesquisa qualitativa: ... se refere a entrevistas do tipo semi-estruturada com um único respondente (a entrevista em profundidade), ou com um grupo de respondentes (o grupo focal). Essas formas de entrevista qualitativa podem ser distinguidas, de um lado, da entrevista de levantamento fortemente estruturada, em que é feita uma série de questões predeterminadas; e de outro lado, distingue-se da conversação continuada menos estruturada da observação participante, ou etnografia, onde a ênfase é mais

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em absorver o conhecimento local e a cultura por um período de tempo mais longo do que em fazer perguntas dentro de um período relativamente limitado (p. 64).

Conforme recomendado por esse autor, a observação participante e etnografia possuem a mesma ênfase, no entanto, compreendemos que a primeira deve ser tratada como instrumento para se chegar à segunda. Pois a segunda tem o caráter de apresentar a consolidação de todos os dados analisados, enquanto a primeira faz parte dos meios de se chegar a estes dados. Sobre a técnica da observação participante, Malinowski (1997)10, seu principal defensor, apontou que “existem vários fenômenos, de grande importância que não podem ser recolhidos através de questionários ou da análise de documentos, mas que têm de ser observados em pleno funcionamento. Chamemo-lhes os imponderabilia da vida real” (1997, p. 31). O autor defendia que esta presença deveria ser por um tempo razoável de modo que o pesquisador se incorporasse ao grupo estudado: “... acabaram por me encarar como parte integrante das suas vidas, um mal ou um aborrecimento necessário...” (1997, p. 22). Alves-Mazzotti também declarou que na observação participante “o pesquisador se torna parte da situação observada, interagindo por longos períodos com os sujeitos, buscando partilhar o seu cotidiano para sentir o que significa estar naquela situação” (2002, p. 166). E ao comentar os prós e contras desta técnica destacou: ... as seguintes vantagens costumam ser atribuídas a observação: a) independe do nível de conhecimento ou da capacidade verbal dos sujeitos; b) permite "checar", na prática, a sinceridade de certas respostas que, as vezes, são dadas só para "causar boa impressão"; c) permite identificar comportamentos não intencionais ou inconscientes e explorar tópicos que os informantes não se sentem a vontade para discutir; e d) permite o registro do comportamento em seu contexto temporal espacial (ALVES-MAZZOTTI, 2002, p 164).

Como parte da colata de dados da pesquisa, a técnica observação participante tornouse essencialmente necessária para um trabalho de pesquisa qualitativa numa comunidade como Flexal. Nesse contexto, ainda podemos adotar o comentário de Tripodi [et al] (1975), que mesmo sendo de alguns anos atrás, mostrou que nos estudos exploratórios qualitativos: ... muita ênfase é devotada também aos métodos de acumulação de dados qualitativos como informações narradas em entrevistas não estruturadas e observações do pesquisador. Em particular, o método de observação participante tem sido um instrumento preponderante para antropólogos e sociólogos que estudaram vários tipos de comunidades e subculturas. (1975, p. 62).

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MALINOWSKI, B. Os Argonautas do Pacífico Ocidental. Capitulo I, in Ethnologia, n.s., nº 6-8, 1997.

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E como a proposta deste trabalho é tratar das implicações da eletricidade numa localidade, o estudo de caso se tornou o método mais cômodo para uma análise pontual de um elemento específico, além de ser considerado como um dos principais recursos metodológicos da antropologia. E conforme descreveu Becker (1999, p. 117): O termo "estudo de caso" vem de uma tradição de pesquisa médica e psico1ógica, onde se refere a uma análise detalhada de um caso individual que explica a dinâmica e a patologia de uma doença dada; O método supõe que se pode adquirir conhecimento do fenômeno adequadamente a partir da exploração intensa de um único caso (...) tornou-se uma das principais modalidades de análise das ciências sociais. O caso estudado em ciências sociais é tipicamente não o de um indivíduo, mas sim de uma organização ou comunidade.

A partir dessa premissa de Becker, para quem o estudo de caso amplia a sua utilização para as Ciências Sociais, e dos argumentos de Malinowski sobre o trabalho de campo, buscamos utilizar da observação participante como instrumento metodológico de coleta de dados, complementando-as com informações levantadas de outras fontes através de uma revisão bibliográfica obrigatória de documentos e publicações que abordam direta ou indiretamente o tema e, assim, montar uma análise etnográfica da Comunidade Flexal. Como no campo, a necessidade da prática multimetodológica também foi utilizada por meio da técnica de entrevistas com lideranças e anciões indígenas, a fim de coletar as informações necessárias sobre os aspectos de possíveis mudanças e perceptíveis transformações no contexto comunitário. Com isso, busquei consolidar uma avaliação dos impactos trazidos sobre esta comunidade pela nova ordem social estabelecida a partir das influências da inclusão tecnológica advinda do uso da energia elétrica. A este respeito, Flick (2008) apresentou um debate bastante interessante sobre a influência da tecnologia na vida de uma comunidade e cunhou a terminologia da entrevista episódica a partir de concepção da psicologia que segundo o autor: A entrevista episódica é mais orientada para narrativas de pequena escala e baseadas em situações, sendo, por isso, mais fácil concentrar-se na coleta de dados. Ela evita pressupostos de dados "verdadeiros" e, em vez disso, se restringe as realizações construtivas e interpretativas dos entrevistados. Não dá prioridade a um tipo de dado, como a entrevista narrativa faz com dados narrativos, mas faz uso das vantagens de diferentes formas de dados - conhecimento semântico e episódico, e expressões narrativas e argumentativas (FLICK, 2008, p. 130).

Dessa forma, levando em consideração as orientações propostas pelo autor, o método da entrevista episódica se apresenta concomitantemente com o objeto deste trabalho, sendo

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adotado como componente dos modelos de levantamento de dados e análise qualitativa desses elementos. Mesmo assim, as entrevistas que utilizei foram realizadas ao modo de entrevista não diretiva por facultar ao entrevistado a liberdade de pronunciar suas opiniões de modo espontâneo, deixando com o entrevistador a função de orientação e estímulo ao assunto proposto. Para tanto, contamos com o uso do gravador de áudio pelo grande número de informações que foram acumulados nas conversas. Sobre essa técnica, Alves-Mazzotti (2002, p. 169) afirmou que: “De um modo geral as entrevistas qualitativas são muito pouco estruturadas, sem um fraseamento e uma ordem rigidamente estabelecidos para as perguntas, assemelhando-se muito a uma conversa”. Por outro lado, como muitos dos membros da comunidade que acompanharam o processo de energização ainda foram localizados, como também na busca de entender as diversas relações na comunidade (que envolve fazendeiros e garimpeiros na região, mudança de local da comunidade, saída e retorno de moradores, política eleitoral, religião e etc.), procuramos dar voz às narrativas de história de vida de alguns deles, a fim de tentar reconstruir o entendimento da realidade anterior à chegada da eletricidade. A respeito desta técnica, Cruz Neto (1993), comentou que: ... como estratégia de compreensão da realidade, sua principal função é retratar as experiências vivenciadas, bem como as definições fornecidas por pessoas, grupos ou organizações. Ela pode ser escrita ou verbalizada e abrange na versão de Denzi, citado por Minayo (1992), os seguintes tipos: a história de vida completa, que retrata todo o conjunto da experiência vivida; e a história de vida tópica, que focaliza uma etapa ou um determinado setor da experiência em questão. (CRUZ NETO, 1993, p. 58-59)

O autor explicou ainda que nesta modalidade de coleta de dados, há a necessidade da construção de uma relação de confiança entre o pesquisador e o interlocutor. Neste sentido, esta confiança se consolidou com a interação com a comunidade a partir das incursões pontuais acompanhada da disposição em colaborar de modo simples, mas estando disposto a dialogar e construir uma relação com eles. E sobre esta confiança, Geertz (1989), com sua abordagem interpretativa, descreveu a experiência de aceite numa aldeia balinesa durante pesquisa de campo deste modo: De alguma forma você conseguiu cruzar uma fronteira de sombra moral ou metafísica, e embora não seja considerado exatamente como um balinês (para isso é preciso ter nascido balinês), você é pelo menos visto como ser humano em vez de uma nuvem ou um sopro de vento (1989, p. 279).

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A narrativa do autor revelou uma interação complexa com uma súbita mudança de relação dele com as pessoas com que convivia após o evento de uma rinha de briga de galos que presenciavam ser invadida pela polícia. Dessa forma, com os dados levantados partimos para a análise esquematizando a estrutura do trabalho final de forma simplificada. No primeiro capítulo, tratarei de uma análise situacional da Comunidade Flexal no contexto da relação com a eletricidade como parte de um conjunto de infraestruturas disponíveis, comparativamente com a abordagem teórica proposta por Gluckman (1987) sobre uma situação assemelhada ao objeto, contextualizando suas relações e realidades cotidianas com uma inovação de infraestrutura de uma ponte. Dessa maneira, a Comunidade Flexal apresenta um contexto inovador a partir das opções de consumo proporcionadas pelo uso da energia elétrica, que consequentemente implicava em mudanças básicas na rotina da comunidade. Neste contexto de mudanças, abordaremos o objeto estudado na perspectiva teórica da fricção interétnica de Roberto Cardoso de Oliveira (1976), com ênfase sobre o diálogo da comunidade com a sociedade envolvente. Acerca desta teoria, Cardoso de Oliveira define que “A noção de ‘fricção interétnica’ foi elaborada especificamente para tornar inteligíveis as relações que envolvem grupos indígenas e a sociedade de classes, abrangente” (1976, p. 58). No segundo capítulo, procurarei discutir um pouco do contexto histórico da comunidade e das relações interculturais e interétnicas da etnia Macuxi, principalmente com as esferas de poder público, com maior destaque à instância estadual. Esta abordagem será realizada com base na perspectiva teórica da interculturalidade, apresentada por Ávila Hernández e Martínez de Correa (2009), que definiram a adoção dessa percepção analítica a partir da noção antropológica da reciprocidade. No terceiro e último capítulo, buscaremos enfatizar alguns elementos pontuais que enriquece as relações da comunidade, com ênfase nos impactos provocados por usufruto de infraestruturas instaladas ou reaproveitadas na comunidade. Desse modo, destacamos as relações políticas, religiosas, econômicas e sociais, assim como a flexibilidade junto aos grupos políticos e ao mesmo tempo alguns pontos fracos e fortes dessas relações. Para as discussões, buscamos alguns autores que escreveram sobre os Macuxi e a região de Roraima como Santilli (1987, 1989a, 1989b e 2001), Farage (1986), Lemos (s/d), Cirino (2002, 2004 e 2008), Frank (2007), Rivière (2001) e Repetto (2005 e 2008) entre outros. Vale ressaltar que, como um experimento de escrita, procuramos abordar esta problemática com uma proposta de dissolução teórica sobre o tema em todo o texto, evitando uma densidade teórico/metodológico restrita a um único capítulo específico.

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A ideia foi buscar informações primárias do Flexal ao modo do que descreveu Clifford (1998) ao enfatizar o reconhecimento e credibilidade do discurso etnográfico conferindo ao etnógrafo uma autoridade sobre seus dados de campo e sua interpretação daquela realidade. “O modo predominante e moderno de autoridade no trabalho de campo é assim expresso: ‘Você está lá... porque eu estava lá’” (p. 18). Assim, de modo crítico às etnografias clássicas, o autor apresenta uma forma mais dinâmica e representativa da etnografia ao considerar a diversidade cultural onde a interculturalidade se resume sob a perspectiva de que “A diferença é um efeito de sincretismo inventivo “(p.19). Por sua vez, Peirano (1992), com uma proposta reflexiva diferente da de Clifford, recomendou o retorno às monografias clássicas como forma de rebuscar novidades intrínsecas ao objeto estudado: “O objetivo final é aceitar o desafio de Michael Fischer de que, mesmo nas repetições históricas, há algo novo que, com sorte, pode ser vislumbrado” (p. 4). Dessa mesma maneira, na categoria de principiante do trabalho etnográfico, buscamos registrar e relatar um contexto comunitário no tempo e espaço em que o encontramos, e que, quem sabe, possa revelar e perpetuar o novo a ser procurado. Ademais, adotamos também a perspectiva de transculturalidade de Sahlins (1997b) ao analisar o contexto entre os Mendi da Nova Guiné descrito por Lederman, sobre as inovações vividas (roupas, calçados) e a reinterpretação dada pelos nativos (p. 59). A partir da noção de estrutura, o autor defendeu a perpetuidade da cultura, tanto do ponto de vista temporal quanto como objeto da Antropologia. Desse modo, entendemos que os povos indígenas conseguem manter sua identidade específica, mesmo diante das mais diversas implementações tecnológicas ou agregações de costumes frutos de suas relações com a sociedade envolvente. Embora os estudos sobre mudança cultural faça parte do arcabouço analítico antropológico brasileiro como as contribuições de Eduardo Galvão, Darcy Ribeiro, Cardoso de Oliveira e outros, esta perspectiva analítica sugere a noção de transposição, perda, mutação ou nova roupagem, o que consideramos plausível adotar o contexto dessas reconfigurações a um diálogo interétnico fruto de uma aproximação de culturas em constante relação. Mas, que em suma, este processo corrobora com uma soma de elementos compartilhados por culturas distintas.

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CAPÍTULO I - UMA REFLEXÃO SITUACIONAL SOBRE A COMUNIDADE DO FLEXAL

É fato que a eletricidade se apresenta atualmente como um bem de consumo básico na nossa sociedade. Uma força invisível, impalpável e mortal que ilumina, movimenta máquinas e equipamentos, e proporciona a transformação de algo tosco, natural em elementos artificiais invejáveis que a cada dia seduz ao desejo de consumir mais e mais. Entretanto, para que a humanidade chegasse à condição de exploração da eletricidade como nos nossos dias, uma longa história de invenções tecnológicas faz parte do percurso. Do modo como a energia elétrica trouxe as inovações tecnológicas para as sociedades humanas, a ponto de considerarmos improvável aceitarmos uma realidade social sem a presença das tecnologias movidas pela eletricidade, basta observar o caos que um apagão provoca. No entanto, muitos grupos ainda vivem sem a influência direta da energia elétrica. Nas comunidades indígenas, especificamente no contexto amazônico que faz parte de nosso debate, a eletricidade tem se tornado cada vez presente. Embora, em muitos casos, não possuam a mesma dependência que a sociedade envolvente, em outros casos, em processo de iniciação ao uso e, em outros ainda, que não tiveram o encontro com as inovações tecnológicas que a eletricidade proporciona. Mas, a eletricidade numa comunidade indígena, como em outros grupos sociais, provoca mudanças não só na rotina comunitária, mas também nas relações interpessoais. E estas mudanças vêm de encontro ao que Conh (2001, p. 37), ao comentar a preservação da cultura em contextos de mudanças, concluiu: “Portanto, a mudança cultural deixa de ser percebida como um fantasma que assombra os nativos do mundo todo e passa a ser entendida como um meio de reprodução social que é pautada também pela história”. Além do mais, o acesso a novas tecnologias que leva mais que conforto, segurança e rapidez nas informações também transporta a representatividade simbólica do consumismo que permeia o universo da presença da eletricidade. Mas dos estudos antropológicos que tiveram por objeto as situações de mudança cultural, recordamos os desenvolvidos por Roberto Cardoso de Oliveira e seus contemporâneos como Darcy Ribeiro e Eduardo Galvão. Desses em destaque, chama a atenção à teoria da fricção interétnica elaborada por Cardoso de Oliveira, assim definida: Chamamos “fricção interétnica” o contato entre grupos tribais e segmentos da sociedade brasileira, caracterizados por seus aspectos competitivos e, no mais das vezes, conflituais, assumindo esse contato muitas vezes proporções “totais”, i.e., envolvendo toda a conduta tribal e não-tribal que passa a ser moldada pela situação de fricção interétnica. Entretanto, essa “situação” pode apresentar as mais variadas

30 configurações [...]. Desse modo, de conformidade com a natureza socioeconômica das frentes de expansão da sociedade brasileira, as situações de fricção apresentarão aspectos específicos. (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1962, p. 86).

Este conceito foi construído com vistas a confrontar o de aculturação então vigente, mas tanto um quanto o outro se mostram engendrado num contexto histórico que velava a ideia de assimilação, integração econômica e cultural, etc. Contudo, as situações de mudança cultural ganharam outros contornos analíticos remodelados por outros termos como o de relações interétnicas que se fundamenta no conjunto de relações entre grupos étnicos em diálogo intercultural. Mas as mudanças provocadas pelo uso da eletricidade vieram de uma forma tão cativante que é possível dizer que há grande similaridade comparada a descoberta do fogo pelos humanos, de modo que tem possibilitado e justificado a chegada do ser humano aos mais longínquos lugares, fazendo de todos esses lugares frentes de expansão econômica. Ainda, faz com que onde não haja eletricidade, seus derivados (produtos produzidos ou manufaturados com uso da eletricidade) estejam presentes. E é a realidade roraimense na convivência com a eletricidade em comunidades indígenas que é nosso foco.

2.1 A eletricidade como fator de mudanças em uma comunidade indígena Em Roraima, 10220 comunidades indígenas são atendidas de alguma forma com energia elétrica, não quero sublinhar a eficiência e qualidade da energia, se precária ou mesmo caótica, mas, a existência da energia nestas comunidades é o foco. Dentre estas, a Comunidade Flexal na TI Raposa Serra do Sol, município do Uiramutã região de predominância majoritária da etnia Macuxi. Como a minha relação com o povo Macuxi e consequentemente com a Comunidade Flexal teve tudo a ver com questões de infraestruturas nas comunidades (especificamente a eletricidade), neste trabalho pretendo apresentar, a partir de um projeto de pesquisa desenvolvido nesta Pós-Graduação em Antropologia, a relação dessa comunidade Macuxi com a eletricidade, muito embora, durante a pesquisa de campo tenha sido possível perceber que as relações são mais motivadas por um conjunto de infraestruturas em uso, para atender as necessidades básicas da vida em coletividade, principalmente a eletricidade, a água encanada, o telefone, a estrada, não necessariamente nesta ordem de prioridade.

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Relatório das ações da Diretoria Operacional CERR 1º semestre/2013 (documento Interno).

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Contribuiu para esta confluência o acesso à educação, o atendimento médico básico e as opções de entretenimento e lazer, além do sonho de desenvolvimento econômico que se apresenta como perspectiva transversal dos

debates. Esta ideia comunitária de

desenvolvimento diz respeito às possibilidades de produção de excedentes para o mercado. Entretanto, detenho minha atenção à eletricidade que se revela como um dos fatores que justificam a aglomeração da Comunidade do Flexal tomada como objeto de análise. Até porque, tecnicamente, a distribuição de energia elétrica depende da concentração de suas unidades de consumo, pois, quanto mais disperso esta concentração mais desperdício haverá no aproveitamento da eletricidade disposta. Antes desses encontros técnicos, conhecia um pouco dos costumes e da cultura Macuxi apenas do ouvir dizer e das informações estereotipadas e superficiais expostas à sociedade. Além disso, tive acesso a algumas literaturas sobre os povos indígenas em Roraima durante o Curso de Graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Roraima (UFRR) nos anos de 2001 a 2006. Contudo, a disponibilidade de energia elétrica numa comunidade altera a configuração da comunidade que vai desde as estruturas de instalações com postes e fios – em alguns casos são cabos nus -, que alteram a paisagem, tornando denso o Ambiente; os riscos com a segurança (a possibilidade de acidentes com choques), que é evidente a todo instante; o barulho da máquina de geração (é o caso da maioria das comunidades com energia em Roraima), que mesmo não tendo geração contínua altera a condição acústica das comunidades. Situações inevitáveis, pelo menos a maioria desses impactos, provocadas pela presença da eletricidade nas comunidades indígenas. Por outro lado, a aproximação das residências sugere o entendimento de um condicionamento de urbanização do ambiente comunitário. Mas, há um contrassenso, pois na nomenclatura de classificação dos consumidores, muitos técnicos consideram que a concentração das casas nas comunidades indígenas caracteriza uma similaridade de um arranjo urbano e a norma reguladora do sistema elétrico diferencia os consumidores em urbanos e rurais, mesmo que de pouco consumo, com valores de tarifa distintos. Por conseguinte, das oito classes de consumo estipuladas na Resolução Normativa da ANEEL nº 414 de 9 de setembro de 2010, a categoria indígena só é citada na classe residencial que se subdivide em seis subclasses, dentre elas a “residência de baixa renda indígena” (art. 5º, § 1º, III).

Esta agregação apresentada, pelo menos percebida, parece acenar como resultado da aproximação de grupos de pessoas, da mesma etnia ou etnias distintas, em formar

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coletividades que podem ser denominadas na nomenclatura regional de maloca, aldeia, taba, comunidade, etc. Adotaremos a opção comunidade como designação dos aglomerados de núcleos familiares que podem ocupar números razoáveis de habitações familiares, casa, cabana, rancho etc., ou mesmo uma única habitação comunal. Este termo é observado pelos próprios indígenas do Flexal como o mais coerente, pois se referem à maloca como nome pejorativo e inferior. Embora seja comum utilizá-lo para se reportar a casa do outro. Mas o termo comunidade se apresenta como resquício dos aldeamentos e posteriormente os diretórios indígenas, discutidos por Farage (1986), que convinha agregar indígenas de várias etnias com a finalidade de catequizá-los. Para Dantas (2004), o termo comunidade: ... pressupõe exatamente o oposto de nossa sociedade atual, altamente segmentada e mesmo fragmentada, para não dizer cindida entre incluídos e excluídos. O que costuma designar por "comunidade" e exatamente um conglomerado de indivíduos que estão reciprocamente vinculados de forma organizada e por sua vontade própria, e que se reconhecem e se aceitam de forma positiva como membros pertencentes aquele grupo (DANTAS, 2004, p. 18).

Dessa forma, mais que um agrupamento em pequena escala, comunidade indígena abrange um sentimento de pertencimento a um local, uma referência de origem. Ao perceber a eletricidade como fator de agregação, lembramo-nos do advento da eletricidade em substituição à fogueira ou à lamparina na iluminação das habitações. Ainda que pareça pouco para quem está acostumado a proceder ao ato de ligar um interruptor e ter seu ambiente familiar iluminado por uma ou mais lâmpadas, com uma luminosidade artificial quase ao nível da iluminação natural do dia. Embora já exista na atualidade o uso de sensor de presença e de calor21, que parece uma utopia para as comunidades indígenas que usufruem da eletricidade apenas por algumas horas do dia como é o caso do Flexal. Corrobora ao bem estar proporcionado pelo uso da eletricidade, além da lâmpada, o uso do freezer para conservação de alimento e refrigerar a água para beber. Por outro lado, pouco se vê, pelo menos não vi na Comunidade do Flexal, geladeira. Estes itens que são vistos como sinônimos de bem estar nos reporta ao exemplo discutido por Silva (2010) sobre a chegada da energia entre os Apurinã no oeste do estado do Amazonas: “Água gelada” foi instituída por eles como uma forma de inclusão e é elucidada quando um dos Apurinã diz: “...índio não é animal, índio é ser humano, também tem 21

São equipamentos eletrônicos capazes de identificar movimentos ou temperatura corpórea dentro do seu raio de ação ativa um dispositivo que aciona a lâmpada do Ambiente, já em uso em substituição aos interruptores convencionais.

33 direito de tomar água gelada”. O uso da geladeira também está associado à conservação de carne de caça, que antes tinha de ser salgada para ser consumida posteriormente. Alguns índios comercializam “suco gelado” que, na hora do almoço, também é bastante apreciado (p.176).

Além desses dois itens de uso comum e considerados essenciais nas residências, existem os outros como, por exemplo, aparelhos de som e televisão. Destaco que a percepção que tive em campo é que a televisão possui maior influência pelo seu poder de atração, pois, mesmo tendo a comunicação de modo monocrático e não interativo, a imagem em vídeo provoca a impressão de interlocução que a torna insubstituível, por enquanto. E, no Flexal, o uso desse tipo de equipamento (12 aparelhos acompanhados de antena parabólica) faz da rotina da comunidade uma inovação constante (FOTO 1). E estas inovações alteram o próprio aspecto físico paisagístico da comunidade, como na fotografia abaixo, onde a presença das antenas parabólicas se destaca. Além dessas que funcionam com sinal direto via satélite, há mais algumas que são de uso limitado para a reprodução de vídeo através de aparelho de DVD. São equipamentos de propriedade e uso particular de alguns pais de família que por seu esforço adquiriram este bem para a própria família. Ainda que o aparelho do tuxaua da comunidade esteja instalado na área de uso coletivo da comunidade, o salão onde ocorrem as reuniões e eventos.

FOTO 1: Padrão de residência Macuxi, com destaque para as antenas parabólicas: Comunidade do Flexal. FONTE: Arquivo do Pesquisador, outubro / 2012.

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A utilidade da televisão na comunidade se apresenta como principal opção de entretenimento noturno, com a programação dos canais abertos (que são os mais assistidos mesmo utilizando de antena parabólica) e suas atrações como novelas das seis, das sete e das nove entre as mais observadas, sendo o jornalismo facultado aos intervalos de outros programas. Os programas esportivos noturnos são preferências quase exclusivamente masculinas, e o futebol é o grande conquistador de fãs. E neste assunto me chamou a atenção o tanto de torcedores flamenguistas que há no Flexal. Em dada ocasião presenciei a saída da esposa de sua residência para poder assistir a novela na casa de sua parenta22 vizinha enquanto o marido persistia para assistir a transmissão de uma partida de futebol do Campeonato Brasileiro 2012. Mesmo a eletricidade sendo o principal ponto de reflexão aqui levantado, despertoume um interesse pelo surpreendente número de aparelhos de telefones móveis celulares na comunidade, não no sentido negativo que não deva ou que não mereçam, mas é tão comum que parece natural se ter um pequeno equipamento nas mãos, com bastante variedade de modelos, marcas, tamanhos etc. Entretanto, a principal utilidade, que foi o ponto máximo da percepção, é a capacidade de reproduzir músicas. O uso do aparelho de som nas residências depende da disponibilidade de energia elétrica durante o horário de funcionamento ou o uso de pilhas que financeiramente inviabiliza, e devido o fornecimento de energia ser intermitente, a CERR não cobra pelo consumo nas comunidades indígenas, pelo menos até então. Como a eletricidade só é disponível somente a partir das dezessete horas até a meia noite, também é neste horário que passam as principais atrações da grade de programação televisiva, assim o aparelho de som concorre com seu parente próximo, o televisor. Por outro lado, o aparelho celular com a sua capacidade de armazenar energia através da bateria, com a portabilidade e mobilidade oferecida além da autonomia para muito mais tempo que as 17 horas que convivem sem a eletricidade, se tornou inconscientemente a alternativa para a distração da mente e dos ouvidos durante as ocupações do dia-a-dia. Mesmo a reprodução musical como principal utilidade do celular, foi possível presenciar em alguns momentos, principalmente entre os jovens e adolescentes, a exploração de outros recursos como jogos, câmera, lanterna e reprodução de vídeo.

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O termo “parente” é adotado pelos macuxi para designar um familiar tanto de linhagem próxima quanto distante, com isso é comum o tratamento generalizado às pessoas por parente. Segundo Santilli (2001), o termo “parente” está relacionado ao reconhecimento do outro como descendentes dos heróis místicos dos povos circum Roraima, Macunaima e Enxikirang (p.16). E este tratamento é utilizado não somente nas relações entre macuxi, como também na relação macuxi e outras etnias da região do Roraima, como também é o termo utilizado como afirmação étnica no movimento indigenista brasileiro.

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A cena parece tão corriqueira que qualquer jovem, adolescente, senhora e senhor, com pouca utilização pela criançada, andam pela comunidade com um fone na orelha ouvindo os mais diversos estilos musicais. E quanto às músicas apresenta outra combinação impressionante, a maioria delas circula entre: forró, gospel, sertanejo e MPB. Pouco ouvi de axé, funk e hip-hop, e não ouvi nada de pagode, por exemplo. Chamou-me a atenção quando conversando com o jovem Sávio, ele ouvia uma música estilo gospel pentecostal, de cantoras como Cassiane ou Damares, por exemplo, cujas letras caracteristicamente exaltam a soberania de Deus e o mover do Espírito Santo, e, de repente, na sequência aleatória ou proposital do aparelho, reproduziu as bandas Aviões do Forró e em seguida Calcinha Preta, estilo de letra recheada de dedução à traição conjugal e à liberdade sexual, em seguida Nani Azevedo com “Os sonhos de Deus” ao mesmo estilo das primeiras. Enquanto isso, meu observado continuou ouvindo as músicas sem segregar os segmentos. Este exemplo ilustra que os estilos musicais, pelo menos nesse e outros casos que observei, o modismo do momento determina os gostos e o ritmo parece não influir na letra, fazendo com que não importasse o segmento da música, mas sim o ritmo envolvente. Outra vantagem é que o aparelho de telefone celular proporciona ao usuário uma autonomia de memória que permite um repertório bastante extenso. Como também a possibilidade de ouvir individualmente com o fone de ouvido ou coletivamente quando desconecta o fone de ouvido, mesmo que o som fique estridente e incômodo, mas o interessante é ouvir, de alguma forma, algum ritmo do momento. Noutra ocasião, provoquei o meu observado e perguntei se seu celular teve a oportunidade de realizar alguma ligação, já que na região não há cobertura de sinal de nenhuma operadora de telefonia celular, apenas nas proximidades de Uiramutã, e o Flexal está a aproximadamente 20 quilômetros em linha reta. O moço me respondeu que, como a maioria dos aparelhos na comunidade, nunca havia colocado crédito, e o grande número dos existentes no Flexal não têm nem chip de alguma operadora no aparelho. Todavia, essa maioria de sua fala não foi contabilizada. O que ficou claro quanto à utilidade principal dos aparelhos de celular é o entretenimento enquanto que a finalidade de comunicação à distância se apresenta como secundária do seu uso condicionando quando estão na cidade. Em certo momento, mostrei para alguns adolescentes algumas músicas no meu computador. Perguntaram se tinha alguma de forró, eu disse que só tinha músicas gospel antigas, de cantores como “Oséias de Paula”, de ritmos lentos e pouco atrativos na atualidade. A garotada não se agradou do estilo, com exceção do Sr. Caetano Barbosa que pediu para copiar para o cartão de memória do seu celular. Logo vi que os estilos musicais mais

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utilizados são definidos muito pelo que veem nos programas da televisão, ou uma inovação que alguém apresente como moda do momento, como também pela capacidade de contagiar que alguns ritmos possuem. O Rádio é pouco ouvido na comunidade, com exceção de algum idoso que tem o hábito de ouvir a “Voz do Brasil” no final da tarde ou outra programação como a “Trans Mundial” na madrugada. Por outro lado, o rádio também é concorrente com a fonte de alimentação, energia elétrica, e digamos vencido pelo televisor que proporciona áudio e vídeo que a torna mais cativante, com exceção da programação das madrugadas que exige a tradicional pilha ou bateria recarregável. Outro fator a considerar, é que o aparelho de celular nem sempre permite o uso do rádio pelo fato da maioria só disponibilizar faixa FM, e esta não possui cobertura na região. Percebi que muito embora o rádio tenha uma utilidade lógica mais coerente para a nossa sociedade, pois disponibiliza uma gama de informações e queremos está informados sempre que possível, no Flexal o interesse por informações está condicionado a outros interesses que implique nas suas rotinas. Mas as observações da adoção da televisão e do celular como aparelhos de entretenimento são inovações que estão presas a um contexto histórico maior na nossa própria sociedade. O uso do aparelho celular em substituição ao aparelho de som portátil é uma evolução dos rádios toca fita, novidades dos anos 1980, na década seguinte veio o walkman e mais recente o discman. E não parou por aí, atualmente há disponibilizadas no mercado dos importados, na República Cooperativista da Guiana e nos camelôs em Boa Vista, umas caixinhas de som portátil, “made in china”, com a praticidade de utilizarem bateria recarregável, possuírem porta USB e leitor de cartões de memória tipo SD. Estas, mesmo com autonomia de alimentação mais limitada, que gira em torno de até 4 horas de uso, atende a necessidade de reprodução musical com as desvantagens de não serem tão portáteis como os aparelhos de telefone celulares. Há de considerar que comparativamente na nossa sociedade, o uso do celular agrega a ação simbólica de extensão do próprio corpo, ou seja, uma tecnologia que ganhou a “anexação” ao corpo de alguns usuários, como uma espécie de prótese complementar. Durante a pesquisa de campo, a naturalidade do uso de aparelho celular ficou latente aos meus olhos, as senhoras indo ou vindo da roça ouvindo suas músicas, realizando outros afazeres domésticos sempre com sua distração tecnológica disponível. Mas vi poucos aparelhos de qualidade de recursos acima da média oferecida no mercado, lembro-me apenas do aparelho Sanssung Galaxy do professor Jordão, negociado com avarias pelo seu antigo dono, o dentista do posto de saúde, funcionário do Convênio Secretaria Especial de Saúde

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Indígena (SESAI) / Missão Caiuá de prestação de serviço de saúde básica aos indígenas de Roraima, tanto do Distrito Sanitário Indígena do Leste de Roraima (DSEI – Leste) quanto do DSEI – Yanomami. Por outro lado, considerei relativamente pouca a utilização de computadores portáteis, tipo notebook, netbook ou tablet na comunidade. Recordo-me apenas de alguns, nas mãos de professores não indígenas além do professor Neilton e do Robson gestor da escola e dirigente das reuniões da Igreja Adventista do 7º Dia na comunidade. Esta relatividade se dá com o fato de comparativamente em algumas comunidades onde tenho participado de reuniões, pude contar até 20 computadores portáteis em uso num mesmo evento. Quanto aos desktops, há 10 unidades na escola desde o ano de 2009. Estas máquinas, mesmo embaladas por plásticos, já estão com suas configurações quase ultrapassadas, são com PENTIL IV e monitores de tubo de imagem, e até então, sem utilidade alguma por causa da indisponibilidade de eletricidade suficiente para o bom funcionamento dos mesmos. Recordome que no final do ano de 2010, quando estive pela segunda vez no Flexal, tentei, com o auxílio de um funcionário da Secretaria Estadual de Educação (SECD), funcionar alguns desses computadores e uma impressora CANON multifuncional do laboratório de informática da escola sem sucesso, pois a energia chega muito fraca no local, permitindo apenas o uso das lâmpadas florescentes e de um freezer. Contudo, sobre o consentimento e estímulo ao uso dessas tecnologias tanto a televisão, o freezer, o aparelho de som, o aparelho de DVD e o próprio celular dentre outros eletroeletrônicos, não poderia ter a mesma aceitação na Comunidade Flexal se não houvesse a disponibilidade de eletricidade. Mesmo que de modo intermitente e pouco confiável. Todavia, uma das utilidades mais importantes da energia na comunidade é a escola, e infelizmente a indisponibilidade de energia confiável para escola se dá pelo fato do prédio ter sido construído distante da rede de baixa tensão existente na comunidade, mas já foi elaborado um novo projeto para substituição e ampliação dessa rede velha. O próprio Governador já solicitou que fosse construída a nova rede, mas por questão financeira o empreendimento não foi realizado. O projeto prevê a construção de uma rede em média tensão, de 13.8 KV com três transformadores de 45 kVA cada. Para isso será necessário também a substituição do grupo gerador por um de maior capacidade de geração e a implantação de uma subestação elevadora que potencializará a qualidade da energia. Na escola há um link remoto de acesso à internet da Universidade Virtual de Roraima (UNIVIR), mas durante meu trabalho de campo estava inoperante. Mesmo assim, comentaram a qualidade avançada e o quanto estava fazendo falta. Logo pude aferir que o

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acesso à internet ajuda em seus contatos, principalmente nos encaminhamentos burocráticos e informações emergentes, por exemplo, na educação em que os gestores das escolas mantêm acesso direto com a SECD. Mesmo assim, no campo da eletricidade considero poucas as opções de consumo de energia elétrica na comunidade, além das aqui expostas. Por exemplo, não vi o uso de liquidificador, condicionador de ar e outros eletrodomésticos e eletroeletrônicos comum na cidade. Como também, não utilizam eletricidade diretamente como força motriz em algum processo de produção, tipo o funcionamento de máquinas e equipamentos. Nem mesmo para o abastecimento de água, pois a água consumida é encanada diretamente de uma cachoeira a três quilômetros de distância da comunidade. Creio, no entanto, que esta baixa diversificação de consumo está relacionada à pouca disponibilidade de eletricidade na maior parte do dia e horário, restringida do final da tarde à meia-noite. Por outro lado, o acesso a novas tecnologias como o celular e a televisão, por exemplo, e o consumo dessas inovações se manifesta como uma nova identidade comportamental e consumista dos membros dessa comunidade. Com respeito ao uso de máquinas e equipamento em algum processo de produção, verifiquei que há na comunidade alguns motores a gasolina de ralar mandioca, visto que o principal alimento é o biju, caxiri e pajuarú que são derivados de mandioca. Há ainda um motor também a gasolina de uma descascadora de arroz. São estes os principais elementos da alimentação dos povos Macuxi, e sobre estes hábitos alimentares Souza (2011), que também é Macuxi, afirmou que: A damorida é a comida típica tradicional feita à base de pimenta murupi com folha de pimenta pimiro ou cariru “umamiiso’’ que dar mais sabor a carne de caça e peixe, cozida na panela de barro. O jeito de convidar as pessoas para beber caxiri e comer a damorida dar-se-á através de gritos proferido pelo dono da casa (SOUZA, 2011, p. 33).

A damorida é o prato típico, mas as facilidades de conservação oferecidas pela prática do congelamento através do uso do freezer, algo proporcionado devido à disposição da eletricidade, tem implementado a variedade da alimentação com outros modos de preparo da carne como também o consumo de frango congelado. Na região das serras, onde está localizada a comunidade Flexal, o consumo de peixe é bastante restrito a poucas variedades nos rios devido às cachoeiras intransponíveis.

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2.2 Um “marco” de mudança

É notório que a história possua marcos delimitadores que definem o início ou o fim de um determinado tempo ou mesmo prática. Embora tenhamos o costume de imaginar algumas rotinas como modelo de ação, neste exemplo a seguir estas proposições lógicas falharam, pelo menos num quadro geral. Sempre que tentamos traçar o início do uso de dado equipamento em determinado local, lembramo-nos de atribuir este início à disponibilidade de suprimento e recurso técnico operacional suficiente para o seu funcionamento. Entretanto, geralmente se este equipamento consome energia elétrica, por exemplo, supõe-se que a provisão de energia elétrica seja anterior ao seu uso. No caso do Flexal, considerei como curioso, ou no mínimo distinto de outros fatos observados, o início do uso do primeiro aparelho de TV na comunidade ter chegado antes do grupo-gerador de energia elétrica, conforme falou o Sr. Lauro: A primeira TV foi em minha casa, sempre usando parabólica, e foi à bateria, antes de ter motor. Tinha um inversor com painel solar que recarregava as baterias de dia para gente assistir TV. Eram 4 painéis, e só dava pra assistir quando tinha sol pra carregar. Não foi comprado por nós foi uma doação pelo Governador Ottomar também. Era uma SHARP colorida, foi mais ou menos em 198623.

A curiosidade desse evento se detém ao processo de antecipação de um item a outros que ocorreria em outras circunstâncias. O período apresentado não corresponde a nenhum dos mandatos políticos da pessoa citada, mas o termo Governador está relacionado ao “perpetuamento” com que foi atribuído ao seu nome na política de Roraima. Chama a atenção que a disponibilidade do equipamento foi anterior mesmo à construção da estrada de acesso a região. Vemos assim a política do “agrado” com o qual aquele político atuou junto aos povos indígenas e colonos em Roraima. Na mesma oportunidade da conversa com o Sr. Lauro, seu filho Horácio também contribuiu com a discussão e em sua fala podemos perceber a primeira impressão que o uso da televisão trouxe à comunidade. ... eu era garoto na época, era o programa do pessoal, todo mundo vinha assistir em nossa casa. O conjunto de bateria solar só atendia apenas aqui e só a TV, lâmpadas não tinha. A gente achava que tudo que não fosse notícia era filme. Por exemplo, a gente dizia que tinha assistido um filme muito bom, mas se perguntasse o nome, aí a gente respondia CHAPOLIM COLORADO. Os canais eram: OM, GLOBO, SBT, MANCHETE e BAND. O pessoal gostava muito daquele velho que dizia assim, 23

Lauro Barbosa, Entrevista, Uiramutã [Flexal], 2012.

40 Aqui agora! É, o Gil Gomes. Esse jornal a gente gostava. Tinha também o cobrador, o Celso Russumano, a gente gostava também, por que sempre ele resolvia os problemas. Os adultos preferiam mais os jornais (grifo nosso) 24.

Pode até parecer engraçado, para quem eventualmente tenha vivido neste período tendo acesso à televisão como algo rotineiro, mas para o contexto da época, meados da década de 1980, até mesmo nas cidades o uso da televisão não era artigo presente em toda residência, pelo menos era comum que as crianças e adultos se aglomerassem na casa de alguém, geralmente vizinhos ou parentes, para poderem assistir à TV. Mas especificamente sobre a relação de grupos indígenas com o uso da televisão, Freitas e Freitas (2003), ao comentar o uso da televisão no Parque do Xingu, detalhou o efeito hipnótico que sofre seus telespectadores, com atenção especial às crianças. ... tivemos a oportunidade de ver como este meio hipnotiza as pessoas dentro das aldeias, principalmente as crianças. Um exemplo disto ocorre no momento dos intervalos dos programas. Como a recepção se dá por antena parabólica, comumente os comerciais de difusão em rede nacional é que são transmitidos a captados pelos televisores, sendo que nos comerciais das redes locais e tela fica preta, sem imagem nem som. O incrível é que, mesmo nestes momentos de ‘vácuo, todos permanecem voltados para o televisor, em silencio, esperando a imagem e som retornarem (FREITAS e FREITAS, 2003, p. 15).

Os autores acrescentam ainda a esta ação a substituição dos momentos de transmissão do conhecimento que os anciões das aldeias realizavam através das histórias, cantos e outros meios tradicionais que foram deixados e passaram a perder o sentido, ou no mínimo deixaram de serem transmitido às novas gerações. E no Flexal foi algo constatado na fala do Sr. Pedro Felipe: “Ah, com esse negócio de moleques assistir TV, eles estão mais malandros, querem trapacear a gente e vem com umas gírias né...”

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. Esta explicação traz à

tona a adoção de uma linguagem diferenciada da que os costumes locais moldaram para o indivíduo. E a televisão acabou por gerar uma nova ordem de tratamento entre gerações. Souza (2012) também manifestou sua preocupação com crise da perda dos costumes antigos: Os mitos e as histórias tinham muito prestígios, pois traziam ensinamentos a população, para compreender e interpretar os saberes sobre o mundo e para cuidar da natureza. Eram ensinados dos mais velhos para os mais novos. Hoje esta situação passa por uma crise, devido à influência dos meios de comunicação, como principalmente a televisão e outros que as pessoas na comunidade dão mais atenção do que escutar as histórias pelos mais antigos (SOUZA, 2012, p. 35).

24 25

Horácio Barbosa, Entrevista, Uiramutã [Flexal], 2012. Pedro Felipe, Entrevista, Uiramutã [Flexal], 2012.

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Por outro lado, semelhante ao contexto do objeto desse trabalho, podemos adotar o exemplo das observações coletadas no Parque do Xingu por Freitas e Freitas. O aparelho de televisão do Tuxaua Abel não estava instalado na sua residência, pelo menos quando estive lá. Ficava disposto no salão de uso coletivo da comunidade onde acontecem as reuniões e eventos.

Uma percepção que conflui com as ideias de generosidade, uma das três

qualificações do chefe apresentada por Clastres (2003): “Ele deve ser generoso com seus bens, e não se pode permitir, sem ser desacreditado, repelir os incessantes pedidos de seus ‘administrados’” (p. 47). Embora sendo seus filhos que operam o processo de ligar o aparelho, principalmente o mais jovem de apenas nove anos de idade, como também detinha em suas mãos o controle remoto, a programação ficava a cargo de seu interesse. O uso coletivo reforça a benevolência do Tuxaua como líder e chefe e disposição para agradar aos seus liderados. Mas a praticidade do controle remoto que permite a comodidade de mudar de canal sem se levantar, como também a variedade que os pacotes de entretenimento disponibilizados com as mais simples assinaturas, ainda permitem uma razoável diversidade de opções, faz com que no momento dos intervalos das programações principais, viajem pelos outros canais em busca de programação paralela. Dessa forma, a atenção maior está no fato de que os pais, ou algum adulto, nem sempre estão por perto para censurar o entretenimento dispensado aos cuidados das crianças. Da mesma forma, os filmes adquiridos no mercado da pirataria, algo comum nas bancas das cidades, dispostos para a garotada assistirem não possuírem a menor censura e cenas violentas de agressão entre os personagens, como as que eu vi assistindo em “Motoqueiro Fantasma”, “Guerra de Robôs” e outros, ou mesmo cenas, com proibições em nossa sociedade para exibição livre. Mas, ao observá-las enquanto assistiam, percebi que as crianças agiam com naturalidade e até mencionavam gracejos infantis uns com os outros sobre aquelas cenas de modo que dava a entender que não passava de algo fútil. Por outro lado, durante as cenas violentas alguns se assustavam, outros menores choravam enquanto os maiores riam e até provocavam os outros. Mas durante o dia, nas brincadeiras se revelavam o que havia assistido na televisão, imitavam as cenas mais marcantes, além das expressões físicas e a fala dos personagens. Nesse sentido, vale lembrar o que também expuseram Freitas e Freitas que “Existem estudos e discussões ferrenhos do impacto da televisão para a nossa própria sociedade (...) para as sociedades indígenas é ainda maior, seja ela positiva ou negativa” (p. 15). Tal afirmativa faz jus à atenção, principalmente quando os filtros de censura que não têm sido

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adotados ou pouco aplicados para o grupo social que utilizam desses pacotes de serviços, podendo dentre estes se tornar danosos para a formação social e moral do indivíduo. Como exemplo na FOTO 2 abaixo quando várias crianças assistem a um filme no Flexal:

FOTO 2: Crianças assistem à TV na Comunidade do Flexal. FONTE: Arquivo Pessoal do Pesquisador, 2012.

Ainda sobre mudanças, Albernaz (2009), em sua Tese de Doutorado em Antropologia, discutiu numa perspectiva historiográfica sobre diversos fatores de mudança numa comunidade Ava-Guarani do Paraná. E a autora destacou as implicações da eletricidade como motivo de mudanças na Terra Indígenas de Oco’y no Paraná. Descreveu essas mudanças a partir da transposição de parte das aldeias de seus locais de origem, devido ao alagamento pelo Lago da Hidrelétrica de Itaipu, até as influências do uso da energia nas aldeias, que segundo a autora trouxe modificações na forma de organização social, principalmente no quesito da transmissão dos saberes tradicionais pelos idosos aos mais jovens. Estes últimos, passaram a demonstrar desinteresse por esses saberes, e buscam na inovação tecnológica da televisão e do computador conhecimento exterior à sua cultura.

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Esta mesma observação também foi percebida por Piedade (2004), em sua pesquisa de doutorado entre os indígenas Wauja no Alto Xingu: Há entre os Wauja um conflito de gerações que esteve presente em vários debates: os mais velhos reclamam que os mais novos não estão seguindo a cultura, e por isso ela vai acabar. Já os jovens têm muito interesse pelo mundo e pelas coisas do “branco”, mas não demonstram tanto desinteresse pela tradição. Entrevistei jovens entre dezesseis e vinte anos, e todos eles afirmaram que gostariam de continuar vivendo uma “vida de índio”, na aldeia, cuidando de roça, pescando, mas que gostariam de possuir motocicleta, televisão, luz elétrica, e outros produtos da técnica kajaopa (“caraíba”, “homem branco”). No fundo desta tensão se encontra a questão das transformações culturais, uma questão tão sensível quanto complexa (PIEDADE, 2004, p. 11 e 12).

Almeida (2004), tomando o contexto dos Kaigang como objeto de análise, tratou da influência religiosa e seus impactos na cultura, corroborando para nossa análise: “Por um lado, estas mudanças se deram através do uso fruto dos benefícios das inovações tecnológicas bem como pela convivência com novos valores e, por outro lado, partiram do interior da sociedade indígena (ALMEIDA, 2004, p. 10)”. Dessa forma, é possível abstrair que as mudanças culturais de uma comunidade indígena não são determinantes, apenas os fatores externos, mas também os aspectos internos do grupo que absorve a uma provocação exterior e adapta à sua realidade. Com isso conflui à ideia de diálogo intercultural, em que a relação entre culturas diferentes enriquece ambos os lados dessa relação. Mas as medidas contentoras do impacto merecem ser implantadas e avaliadas como parte da inclusão dessa sociedade. Silva (2010) relatou em seu artigo A energia em Camicuã o processo e os transtornos que marcaram a energização de uma comunidade indígena do povo Apurinã no Oeste do estado do Amazonas, desde a promessa até a efetiva energização da aldeia, com duração de oito anos. No entanto, quando de sua pesquisa dois anos depois, conclui: “Ainda é muito cedo para avaliar todas as mudanças ocorridas em Camicuã com a chegada da energia elétrica. A complexidade da entrada da energia vai além do que pelos índios foi considerado de bom e de ruim” (SILVA, 2010, p. 175). Mesmo assim, pelo curto período apresentado na discussão pela autora, as mudanças são perceptíveis e entremeia o discurso da inclusão social e do desenvolvimento. Ainda sobre mudanças junto a povos indígenas, Dal Poz (2009) comentou os impactos vividos pelos Zoró do Mato Grosso. Ao enfatizar o histórico de contato e relações drásticas para os povos indígenas, alguns fatores são comuns a situações de contato da maioria dos povos indígenas no Brasil. Dessas mudanças se destacam a perda e conflito por território, exploração dos recursos de seus territórios por não indígenas, sincretismo e até

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adoção de nova religião, consumo de produtos alheios a seus costumes, doenças desconhecidas ao grupo, etc. No caso dos Zoró, o autor destacou uma realidade que envolve uma perspectiva econômica ilegal e o consumismo capitalista. Um acelerado processo de mudanças sociais, culturais e econômicas irrompeu nas últimas décadas, no seio de um conturbado contexto regional e nacional, alcançando indistintamente todos os povos tupi-mondé. Entre outros aspectos relevantes, a função de zapijaj (“dono-da-casa” ou cacique) tem ampliado seu alcance político e econômico, e responde agora a novas atribuições e a obrigações antes exercidas pela FUNAI. Todos os líderes indígenas locais envolveram-se, em maior ou menor proporção, nos negócios com madeireiras para, em troca do mogno, do cedro e da cerejeira, adquirir veículos, abrir estradas, derrubar e plantar roças mecanizadas, instalar energia e antenas parabólicas nos postos e aldeias, comprar casas nas cidades vizinhas etc. (DAL POZ, 2009) 26.

Neste sentido, o autor lembrou que os impactos mais perceptivos estão relacionados aos valores adotados com a nova perspectiva religiosa do grupo que influenciou de maneira significativa uma nova postura social “A adesão coletiva ao evangelismo, (...) nova religião era de tal ordem que chegavam a celebrar até cinco cultos por semana. Em 1985 já contavam com cinco pastores (...) que respondiam pela administração dos sacramentos (batismo, comunhão) e a organização dos cultos”27. Comparativamente com os Zoró, entre as comunidades Macuxi em Roraima, podemos narrar muitas mudanças decorrentes da influência do contato interétnico, que perpetua há alguns séculos. Na região de Serras onde está a localidade do Flexal, este contato é mais recente, mas também prolonga há bastante tempo.

2.3 Como é a Comunidade do Flexal

No Flexal, ao questionar a que grupo pertence, a maioria das pessoas se afirmam como Macuxi, enquanto alguns idosos se identificam como “pemon”. Os moradores do Flexal são majoritariamente da família Barbosa que tem como anciões ainda vivos os Senhores Caetano e Lauro Barbosa, netos do patriarca pemon vindo da Venezuela, Pedro Barbosa e filhos de Januário Barbosa. Além dessa linhagem, o também idoso Sr. Dandãe Samuel, pai do operador de UTE da CERR, faz parte dos fundadores da comunidade. A memória da família Barbosa dá conta que Pedro Barbosa veio “cheirando o vento” desde a Venezuela. Essa 26

DAL POZ, João. Zoró. Instituto Socioambiental, 2009. in: http://pib.socioambiental.org/pt/povo/zoro/print Disponível em: 06/05/2012. 27 Op.Cit.

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analogia conota a situação de que o sentido da caminhada é contra o vento, por outro lado, reporta Roraima como um ambiente desejoso de ser explorado e habitado por quem esteja longe e os campos que convivem com vento continuamente é apresentado como um perfume da Natureza. Além desses patriarcas, também estiveram como fundadores nos anos 1960, que não vivem mais, o Sr. Antonhão, ex-sogro do Sr. Lauro, e o Sr. Pedro Felipe, irmão do Samuel Dandãe. Nesta migração, o primeiro Barbosa da região morou na Comunidade da Pedra Preta, que é predominantemente habitada pela etnia Ingarikó. Ali contraiu matrimônio e seguiu para o Caracanã e depois retornou para a região onde hoje fica o Flexal. Outras pessoas e familiares que vieram com ele foram para a Guiana. Mas no Flexal, mesmo a maioria sendo Macuxi, há alguns Ingaricó e um ou outro Wapixana, além de poucos descendentes de fazendeiros que nasceram na região e através de matrimônios com mulheres indígenas foram aceitos como membros da comunidade. A localização da comunidade está a 27 quilômetros depois da sede do município do Uiramutã sentido Noroeste. A estrada, quando foi construída, só ia até o Flexal, mais um pouco antes da comunidade há hoje uma derivação que segue até a Comunidade Santa Luzia, passando pela Comunidade Santa Creusa. A maioria das pessoas do Flexal se reporta como de origem, ou seja, seus antepassados como migrantes da Comunidade Caracanã. E relatam possuírem alguma relação de parentesco com famílias dessa comunidade. E a respeito das relações sociais, políticas e religiosas no Caracanã, Santilli (2001, p. 33-38) tratou com bastante êxito em suas análises que dão conta da influência do profeta do aleluia, Clementino. Mas a explicação básica para esta identificação com referida comunidade está voltada para a própria condição da política indígena entre esta comunidade e suas adjacentes. O autor relatou o movimento de desintegração política que a comunidade sofreu após o fim da vida de seu fundador, liderança e profeta do aleluia. Atualmente, a Comunidade Caracanã, que fora local de pesquisa de Paulo Santilli entre os Macuxi, mesmo possuindo menor número populacional, ainda dá nome ao polo base da equipe de saúde do DSEI Leste, como também, demonstra ter sido o berço político das lideranças locais. Antes de virem para o local atual que ocupam a Comunidade do Flexal, ficava na encosta de um morro a aproximadamente dois quilômetros no sentido Nordeste do atual núcleo comunitário. Este local era denominado de Barro, próximo à antiga sede de uma

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fazenda de propriedade do Sr. Antonio Paulista. Os relatos dão conta que a comunidade se transportou para este local em meados dos anos 1970. Em debate dos registros etnográficos dos irmãos Schomburgk, alemães que estiveram realizando descrições dos habitantes da região do circum Roraima nos anos 18351844, Frank (2007), apresenta alguns pontos de interesse que expressam a visão desses europeus sobre o povo Macuxi. Os Macusis [...] pertencem às mais belas tribos da Guiana, assim como ainda constituem uma das mais numerosas. A sua cor da pele é, como aquela dos Arawaaks, bastante clara, e os seus rostos têm algo extremamente meigo e agradável, reforçado – em graus variáveis – pelos seus narizes romanos, gregos e mulatos[?]. O seu corpo é magro, em geral bem proporcionado. Quase todos os homens têm cabelo curto, e as mulheres o deixam cair, bem arrumado [“sauber geordnet”], sobre a nuca e os ombros, ou o juntam em longas tranças no alto da cabeça. A sua fala tem um tom extremamente agradável, à semelhança do francês, já que grande parte das suas palavras termina em ong, eng ou ang [...] Uma rara vantagem que [o Macusi] compartilha só com poucas tribos é o seu amor pela ordem [“Ordnungsliebe”] e a limpeza [“Reinlichkeit”]. A poligamia é permitida, mas é extremamente rara28.

Desse modo, vemos a perspectiva romantizada europeia sobre os indígenas na região, embora esta seja uma das características de algumas descrições dos cronistas e aventureiros do Século XIX. Corroborando com esse ponto de vista sobre organização, é possível se perceber nas comunidades indígenas de Roraima, tanto Macuxi quanto outras, a postura organizacional em como lidam com determinadas situações. Por exemplo, nas reuniões onde ocorrem todas principais decisões coletivas e colegiadas, sempre há uma pauta definida, como também são produzidos relatórios e atas que registram os principais debates, deliberações e encaminhamentos. Nestes acontecimentos sociais, é exercitada com os alunos a capacidade de narrarem os acontecimentos e registrar por escrito a memória do evento. Com isso, fica evidente que a incorporação da escrita tem sido adotada como instrumento de registro e memória, como também única forma oficial de relação com a sociedade não indígena e os órgãos estatais. Sobre esta atitude do uso da escrita Melo (2000) nominou de metamorfose do saber Macuxi e Wapixana. Como também, ainda nesse respeito nos reportamos à noção de poder através do domínio da palavra apresentado por Clastres (2003), que trataremos a seguir como parte de um exercício político local. Utilizando-me da criatividade infantil e da facilidade da imaginação juvenil, durante minha estadia na comunidade, em conversa com alguns adolescentes solicitei que 28

SCHOMBURGK, R. 1847, vol. I: p. 322-23 apud FRANK, 2007, p.109-110.

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desenhassem um mapa da comunidade segundo seus olhos (FIGURA 1). Destes, escolhi um que representa uma noção do layout da comunidade:

FIGURA 1: Desenho da Com unidade do Flexal segundo um aluno da 4ª Série. FONTE: BARBOSA, A. Flexal, 2012.

Da ilustração apresentada nesta figura, é possível perceber que há um destaque para os campos de futebol que, mesmo não possuindo uma estrutura definida, são espaços de uso coletivo e muito bem aproveitado pela garotada. Também é possível ver que a área onde se encontra instalado o grupo-gerador da CERR é a única com definição de limites por cerca. E fica destacável ainda, o traçado da rede elétrica na comunidade. O caminho maior e semirreto no centro é a pista de pouso. Onde há a travessia da rede sobre o caminho da continuidade da pista, é uma área rebaixada ao lado de um pequeno córrego. Também merece a atenção a noção de ocupação refletida na identificação dos lideres das casas.

2.4 Perspectivas e desolações

A Comunidade do Flexal tem já reconhecido no mercado roraimense a marca “FEIJÃO FLEXAL”, o feijão jaulão como é denominado popularmente, com CNPJ e outros documentos. De qualidade excelente e uma freguesia garantida, este produto tem deixado de

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ir para as prateleiras, segundo seus cultivadores, devido à ausência de incentivo à produção por um lado e à gestão interna por outro. Desde o ano de 2010, quando estive pela segunda vez na comunidade, me recordo da presença de um trator agrícola, marca New Holland, de médio porte, disponibilizado pela Secretaria Estadual de Agricultura e Abastecimento (SEAAB) para serviços da comunidade. Mas dessa vez em outubro de 2012, após relatos do pessoal da comunidade, percebi que houve falhas no procedimento entrega e recebimento do mesmo, e uma falha na ajuda concedida aos indígenas. Informaram-me que a máquina foi entregue no ano de 2009 acompanhado apenas de um arado e uma plantadeira. O que deixa sua utilidade limitada quando há grande necessidade da carroça para transporte dos produtos da roça para a comunidade e até mesmo para a sede do município de Uiramutã. Outro fator considerado é que, a manutenção na máquina é improvisada pela própria comunidade, que busca parceria com Prefeitura e outros órgãos. Quando do trabalho de campo dessa pesquisa, a referida máquina estava há quatro meses parada por causa de uma pane na bomba injetora. Contudo, havia um jogo de pneus de reserva guardado para atender a eventual troca, enquanto que os que estavam em uso ainda aparentavam perfeitas condições. Outros fatores que atrapalharam o projeto local de geração de renda foram relatados pelo Sr. Lauro: “... no tempo da Flora, ela atrapalhou a plantação de feijão da comunidade, ela denunciou que nós estávamos destruindo o meio ambiente, ela é sempre oposição à gente daqui do Flexal”

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. Em suas palavras, narra à divergência política enfrentada pela

comunidade frente às gestões municipais de Uiramutã. A Flora citada trata da Senhora Florany Mota, que foi Prefeita por dois mandatos do município de Uiramutã, nascida na região, neta do ex-fazendeiro Moacir da Silva Mota, conhecido por “Cici Mota”, que segundo o Laudo Antropológico elaborado por Carlos Alberto Marinho Cirino30 foi posseiro da Fazenda Santo Antonio do Pão adquirida de outro posseiro José Leite, nome citado nas cartas de Dom Alcuino Meyer, monge beneditino que visitou muitos locais de Roraima na primeira metade do Século XX. Os relatos registrados no referido laudo dão conta de uma influência com raízes históricas do Sr. Moacir Mota, na condição de genro do garimpeiro que implantou a exploração mineral em Roraima, o paraibano Severino Pereira da Silva conhecido por “Severino Mineiro” que pela historia oficial é conhecido como o guardião das florestas, considerado o grande desbravador e explorador de minérios em Roraima. 29

Lauro Barbosa, Uiramutã [Flexal], 2012. Ação Civil Pública movida pela FUNAI contra Zélio da Silva Mota, Processo nº 1999.42.00.001457-6, Laudo Pericial Antropológico na fazenda Santo Antonio do Pão, situada na região das Serras, TI Raposa Serra do Sol, 2004. 30

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Sobre a decepção política com a ex-Prefeita, não asconheço o teor da denúncia sobre crime ambiental, mas algumas comunidades pouco se importam, por exemplo, com a possibilidade de deixar de desmatar as margens dos leitos de igarapés. Portanto, cabe lembrar que o município foi criado em 199531 e esta condição de autonomia política implica no fato das alianças políticas anteriores terem sido abaladas e a manutenção das mesmas tornou-se um zelo de alto custo. Soma-se a este fato a ausência de aliança política entre os governantes municipais e os governantes estaduais ao longo dos últimos anos, ou seja, a fidelidade das lideranças do Flexal aos gestores estaduais constantemente provoca divergências na relação política com o município, e consequentemente prejuízo aos projetos econômico para a comunidade. Como forma de superar as desilusões econômicas com influência e efeitos políticos, o Flexal tem buscado outras fontes de produção da comunidade para o mercado enquanto que cada chefe de família desenvolve suas atividades produtivas que se aproximam mais para a subsistência de sua família. A este termo, verificamos a relatividade do conceito de subsistência proposta por Schröder (2003, p. 20), e lembro que há sim algum acúmulo de bens, por exemplo, para atender a aquisição de equipamentos e outros itens como: celular, televisão, motor etc. Mas, também é realizado o chamado ajuri32 para atender a comunidade, são trabalhos coletivos que tem por finalidade produzir algo para a coletividade e nestes mutirões são feitas roças ou outros serviços que tem seu produto final destinado a investimentos na própria comunidade. Assim, produziram feijão e, atualmente, período da pesquisa de campo, estavam com uma boa produção de milho e banana maçã, sendo que devido à falta de transporte para transportar a produção já estava havendo desperdício na roça. Com os mesmos propósitos comunitários, também criam gado bovino tanto individual quanto coletivamente, e segundo o Sr. Alencar Barbosa, capataz da comunidade, em meados de 2012 possuía em torno de 300 cabeças ao todo. Desses, 44 eram da coletividade e o restante dividido entre alguns pais de família. As criações da comunidade ocupam dois espaços e parte do rebanho bovino, principalmente as vacas leiteiras, são criadas em torno da comunidade. Também os equinos, ovinos, suínos e galinhas convivem próximos à comunidade. O restante dos bovinos fica na antiga fazenda Arai, uma das fazendas que

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Lei Estadual nº 098 de 17 de outubro de 1995. Segundo SOUZA, José Valdo (2011) ajuri significa: “Sistema de trabalho coletivo entre os indígenas numa comunidade Macuxi. No cultivo da roça, construção de casas e outros trabalhos” (p.12). José Valdo é egresso do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena no Instituto de Educação Superior Indígena Insikiran/UFRR, 2011. Filho da liderança do Maturuca e morador/professor da comunidade Willimon. 32

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pertencia ao fazendeiro Sr. Jair Alves dos Reis e que foi desintrusada e tomada como retiro33, uma extensão da Comunidade do Flexal. Lá há uma família da comunidade que cuida dos animais e ali está a maioria do rebanho bovino. Em número menor que os bovinos, os equinos são criados com bastante cuidado, não que sejam animais de raça nobre e grande valor comercial, pois são para uso como transporte de pessoas e carga. Há quem dá o maior valor e capricho no cuidado dos seus cavalos como o Sr. Genézio que possui grande afinidade e dedicação no cuidado de seus equinos. E em suas conversas a relações com equinos é bastante evidente, como também na produção de apetrechos e acessórios de montaria artesanais em couro como corda, arreios, cabrestos etc., feitos por suas próprias mãos. As criações de ovinos, suínos e galinhas são individuais. Entretanto, destacamos que mesmo sendo uma comunidade que tem por denominação religiosa predominante o adventismo do Sétimo Dia, e esta tem por doutrina a restrição alimentar, o consumo de carne suína faz parte da dieta de algumas famílias, que desconsideram estes ensinos e fazem parte de outra agremiação religiosa, como discutiremos adiante. Ainda em meados do Século XX, por volta de 1938, Dom Vicente de Oliveira Ribeiro (1903-1979), frade beneditino, médico, contemporâneo e colega de Dom Alcuino Meyer, descreveu suas impressões sobre esta região do alto Rio Branco e Boa Vista dizendo: "As doenças mais encontradas eram: paludismo e suas sequelas, verminoses disenterias, beribéri, úlcera tropical...” (LEMOS, s/d, p. 119). O beribéri relatado por Dom Vicente como uma das moléstias da região ainda possui influência na região das serras ao Norte de Roraima. E devido uma incidência registrada em meados da década de 2000, foi realizada uma força tarefa pela Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) após registro de elevado número de casos e até óbito entre o povo Ingaricó e entre os Macuxi. Segundo Mesquita (2009), o nome beribéri significa “literalmente ‘Eu não posso, eu não posso’, em cingalês é causado por uma carência de vitamina B1 (também chamada de tiamina, presente em cereais integrais e algumas leguminosas e carnes)”34. No Flexal, algumas pessoas sofrem dessa enfermidade. Chamou-me a atenção a leitura dada por alguns deles a esta enfermidade. Por exemplo, o Sr. Genésio, AIS da comunidade, atribui a esta doença as consequências do consumo de caxiri produzido de batata 33

Segundo a denominação regional se trata de local fora da comunidade mais que faz parte da mesma onde geralmente fazem roças, caçadas, criação de gado etc. 34 MESQUITA, Rafael. Beribéri segue rastro da pobreza no Norte e Nordeste. ASCOM/UFPE in: http://www.ufpe.br/agencia/index.php?view=article&catid=20%3Apesquisa&id=3363... Disponível em: 25/08/2012.

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doce. Fundamenta sua opinião, no fato de que somente uma família que mais consumia dessa bebida foi a que desenvolveu esta enfermidade na comunidade. Os sintomas, segundo o Neilton, uma das pessoas acometidas são cansaço, fraqueza, sonolência etc. Dentre as observações percebidas na comunidade uma que merece atendimento especial e até objeto de análise em outra oportunidade diz respeito ao lixo, muito embora faça parte das consequências dos fatores de mudança comunitária. Para quem conhece algumas comunidades indígenas pode perceber como a grande quantidade de lixo altera negativamente a paisagem comunitária. É notório que o acesso a produtos industrializados, consequente da disponibilidade de consumo, se apresenta como grande impacto ambiental das comunidades indígenas de modo geral. Durante nosso trabalho de campo, recordo-me de ter reunido com alguns pais de família e sugerido a seleção de alguns itens para a reciclagem, principalmente latinhas e sucatas de vasilhas de alumínio que estão espalhadas nos terreiros das casas. Expliquei um pouco a possibilidade de renda com a seleção e venda de resíduos de alumínio bastante aceito no mercado de sucatas em Boa Vista, como também o malefício ambiental, provocado pela exposição desses resíduos como embalagens plásticas, pet, produtos descartáveis, etc. A Comunidade do Flexal tem a prática de acumular o lixo e descartar utilizando de pequeno aterro ou queimar a maioria. No entanto, como esta rotina é feita periodicamente, muitos desses resíduos se dispersam pela vizinhança provocando uma intensa poluição visual e ambiental. Estas e outras desolações merecem uma análise posterior. No próximo capítulo procuramos detalhar melhor um pouco da história da Comunidade Flexal.

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CAPÍTULO II - O FLEXAL: UM POUCO DE UMA HISTÓRIA MACUXI PECULIAR Para tratar da história da Comunidade do Flexal, será necessário nos atermos um

pouco na organização espacial e social dos Macuxi. Sobre este grupo étnico, Rivière (2001) e Santilli (1997), antropólogos que têm grandes contribuições nos estudos sobre os povos na chamada área cultural das Guianas, especificamente os povos da região circum Roraima, os descrevem como um povo do tronco linguístico Caribe, predominante na região de serras e savanas do Norte de Roraima, distribuído em território Guianense, Venezuelano e Brasileiro. Para Ricardo e Ricardo (2011, p. 12) em consolidação de informações sobre os povos indígenas no Brasil, os Macuxi representam a terceira maior população indígena em território brasileiro, com uma população de 29.931 indivíduos. A respeito da classificação da região geográfica que ocupam, Melatti (2011)52, ao fazer uso do termo “‘Ilha’ Guianense”, destacou a concepção de ilha formada pelos rios Amazonas e Orinoco interligados pelo Canal Cassiquiare e o Mar do Caribe, mas que corresponde toda a Região Norte da Amazônia. Com esta delimitação geográfica, Rivière (1984) chamou a atenção para esta região pelas características culturais peculiares e que exige uma compreensão analítica específica. Mesmo assim, Melatti criticou a limitação dos estudos apresentados, como também exibiu uma breve discussão dos motivos para a adoção do aprofundamento desses estudos dos povos de língua caribe por Rivière. Segundo Melatti (2011, p. 1), esta atenção especial dada por Rivière está voltada ao aproveitamento dos estudos contemporâneos sobre a região feitos por Colson e outros. Estes atentaram mais para o estudo dos povos de língua caribe e aruak e excluíram a propósito toda uma variedade linguística e cultural de outros povos como os Yanomami, por exemplo, que são de um tronco linguístico próprio. Com estes, convivi por um pouco de tempo e são culturalmente bastante distintos dos Macuxi, ocupam uma região de florestas, mantêm os costumes da caça e da pesca, andam seminus e tem se mantidos com um razoável distanciamento da sociedade envolvente. Sobre eles, há os estudos de Albert, Ramos, Chagnon, Nell, Lizot, Migliazza dentre outros. Especificamente acerca do contexto circum Roraima, Santilli (1997) relatou que o povo Macuxi se autodenomina de pemon em distinção aos kapon. E detalhou:

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MELATTI, Júlio César. Áreas Etnográficas da América Indígena. Introdução aos Capitulo 8, 9 e 10. A “Ilha” Guianense. (retocado) 2011.

53 ... A designação Kapon engloba os Akawaio, - que vivem nos altos rios Mazaruni e Cotingo, junto às vertentes ao norte e a leste do Roraima, na Cordilheira Pacaraima e os Patamona, que habitam as cabeceiras dos rios Potaro, Siparuni e Maú ou Ireng, a leste da cordilheira. Já a designação Pemon abrange os grupos a oeste e a sudoeste, na região: os Kamarakoto, os Arecuna, os Taurepang e os Macuxi, que habitam os vales dos rios Cuvuni, Caroni, Paragua, Uraricuera, Tacutu e Rupununi, compreende a área conhecida como ‘Gran Sabana’, ao norte e a oeste do Monte Roraima, e ‘campos naturais’ ou ‘lavrado’, ao sul e a sudeste da Cordilheira Pacaraima (p. 15).

Dessa forma, a “Ilha Guianense” e especificamente a área “Circum Roraima” se apresentam como um laboratório peculiar de estudos étnicos e linguísticos. E dentro da riqueza étnica dessa região o povo Macuxi convive com uma quantidade de outros povos a quem denominam de parente. Além dos não indígenas, responsáveis pelos principais impactos na sua cultura, resultando em um diálogo intercultural que dura mais de três séculos. Sobre o conceito de interculturalidade, Ávila Hernández e Martínez de Correa (2009) destacou que: ... la interculturalidad constituye una superación del multiculturalismo, entendido como “descriptiva de la experiencia de las culturas em las sociedades actuales”, a través del encuentro amoroso entre hombres de diversas experiencias y tradiciones culturales. El encuentro no es más lucha, dominio, asimilación o exclusión, sino diálogo. Lo universal es la experiencia comunicativa humana (2009, p. 52).

Sob a perspectiva antropológica, esta ideia deve ser entendida como um modelo dialógico coerente e menos conflitante. Nesse aspecto, os autores enfatizaram: La propuesta de la interculturalidad es «la antropologia de la reciprocidad», que implica la comunicación-transformación de los sujetos agentes dialogantes y la gestión de las culturas através de compromisos recíprocos y relaciones dialógicas si bien diversas, pero interdependientes (HERNÁNDEZ e CORREA, 2009, p. 54).

E neste encontro de culturas a imposição de elementos externos sobre a cultura indígena provocou muitos conflitos, como registrado por Farage (1986). Mesmo assim, os Macuxi mantêm seus traços culturais identitários ativos como: língua, adereços de pena, crenças, ritos de passagem entres outros. Internamente, os Macuxi também se reafirmam com distinção em suas formas de habitações. Os que vivem nas regiões de mata são mais propensos à ocupação de forma coletiva, enquanto os que vivem nas savanas são grupos que costumam construir suas habitações em tamanho menor, ou seja, famílias nucleares restritas em ocupações independentes. O Flexal, mesmo estando na região de serras, ocupa uma região de savanas e se caracterizou como sendo de habitações de ocupação individual por unidade familiar.

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Conforme a fala do Sr. Alencar: “quando os meninos ficam aí, com 15 ou 16 anos começa namorar, aí de repente a menina engravida aí eles casam e fica na casa do pai dele ou dela, um ano mais ou menos, aí nesse tempo ele faz a roça dele e constrói a casa dele e vão morar lá, mas a gente ajuda”53. Assim a prática comum da residência pós-nupcial provisoriamente pode ser virilocal (quando o casal fica na casa do pai do homem) ou uxirilocal (quando o casal fica na casa do pai da moça). Ocorre que, via de regra, posteriormente o casal constitui sua própria residência. Dessa forma, há um crescimento no número de casas na comunidade que hoje chega a 85 residências e dessas percebi que são núcleos familiares, de pais e filhos solteiros e eventualmente algum casado em preparação para sua própria casa, como o exemplo do filho do Sr. Ilco que no período que estive em pesquisa na comunidade estava fazendo a cobertura de sua casa e se preparando para mudança. Na prática optou por uma residência virilocal provisória, mas já encaminhado para sua residência neolocal. Corrobora com este fator o que Santilli (1997) apresentou: O desenho da aldeia makuxi não demonstra de imediato ao observador sua morfologia social. As casas parecem distribuir-se aleatoriamente, porém, um olhar mais atento percebe que, via de regra, elas se dispõem em conjuntos que correspondem a parentelas. As parentelas formam unidades políticas cuja interação perfaz a vida social e política da aldeia (SANTILLI, 1997, p. 99).

Com esta percepção de Santilli, foi possível também observar que mesmo aparentando uma dispersão desordenada das unidades familiares, no Flexal é mantida razoável proximidade das famílias no processo da própria ocupação espacial de suas casas. Geralmente, as casas dos filhos estão próximas da casa do pai, quanto aos que se dispersam um pouco para mais longe, ainda assim percebe-se uma confluência nas relações familiares, ou seja, uma união, pelo menos das visitas e conversas. Este exemplo ficou latente na organização das casas dos filhos do Sr. Caetano: três moram bastante próximos ao pai, outros três moram do outro lado do campo de futebol, o que em termos de localização considera-se do outro lado da comunidade, no entanto, todos os dias foram possíveis entender como a semelhança de uma peregrinação em que todos se dirigem à casa do pai. Essa forma de organização reforça as relações e as tornam em possibilidades de estratégias políticas e de poder que permitem uma condição favorável para a continuidade da concentração dos principais personagens de liderança serem membros da mesma família. Por exemplo, a primeira liderança a se tornar Tuxaua no Flexal foi Sr. Lauro Barbosa, o segundo 53

Alencar Barbosa, 43 anos, entrevista, Uiramutã [Flexal], 2012.

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Sr. Altevi, o atual é sobrinho do primeiro, Sr. Abel Barbosa, o segundo Tuxaua é primo do atual, o Capataz é irmão do tuxaua, o secretário também é irmão do atual Tuxaua. E assim se distribuem nas funções estratégicas de “comando” na comunidade. Entretanto, não é um comando despótico, e anualmente é realizada uma reunião com o propósito de aferir o desempenho do exercício anterior e, em caso de insatisfação, é realizada uma eleição, caso contrário há a recondução do líder anterior. Pude acompanhar um evento que denomino como um ápice da política local em que numa reunião da comunidade, houve a avaliação e recondução da liderança do Flexal em fevereiro de 2012 para mais um ano de mandato. Nas comunidades indígenas de Roraima, a figura do Tuxaua e dos professores são marcantes para o reconhecimento de autoridade. Sempre que um visitante chega a uma comunidade as pessoas o encaminham ao Tuxaua ou ao professor, até mesmo as crianças parecem instruídas a este direcionamento. Esta prática reflete o fato de tanto os professores quanto o Tuxaua terem mais habilidades e diálogo por estarem em constante relação com os órgãos públicos e atividades fora da comunidade. E no Flexal a família Barbosa, além das lideranças políticas, grande número dos professores também são da família Barbosa: Neilton, Jordão, Laurindo, Horácio, Robson, este último é gestor da escola, titulação dada ao que anteriormente era conhecido como Diretor. Mas, como em todas as relações humanas, o fato da existência de laços de parentesco não os elimina de possíveis facções políticas entre eles próprios e que em alguns momentos englobe outras pessoas. Por outro lado, este condicionamento do poder político local na mão de uma mesma família foi observado por Rivière (1984 apud SANTILLI, 2001), entre os pemon e outros povos da região das Guianas, com a interveniência da postura do líder-sogro, que de alguma forma agrega em torno de si seus filiados por laços matrimoniais (p. 32-33). O exemplo disto, a operação do grupo gerador da comunidade teve como primeiro responsável um filho do então Tuxaua, posteriormente passou para os cuidados de um genro que cuida até os dias atuais. Mas há outros envolvidos, muito embora os entrelaces de parentesco façam uma mistura dessas relações, como é o caso do AIS que não possui parentesco direto com a família Barbosa, mas é sobrinho do operador do grupo gerador. Outro que não foi identificada afinidade sanguínea direta é o microscopista que é filho de um fazendeiro que teve sua fazenda desintrusada e seus filhos ficaram como membros da comunidade. Mas neste caso este é primo do operador. Sobre a forma de moradia dos Macuxi, Santilli (1989) apresentou como consequência de mutações a realidade atual de suas habitações que vem desde as casas coletivas onde abrigava grande número de unidades familiares, segundo suas fontes, ainda

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presente nas regiões de matas, para as unidades familiares utilizando espaços independentes, forma comum nas regiões de savanas. O termo mais abrangente que engloba todas estas situações [casas coletivas, abrigo provisório, casa residenciais] (grifo nosso) é pata, que poderia ser traduzido, literalmente, por lugar, ou patasek, o lugar habitado, que corresponde aproximadamente a palavra aldeia, no sentido amplo utilizado aqui, embora seja um termo mais vago que significa também terra, mundo (COLSON, 1986, p. 114, apud SANTILLI, 1989, p. 96).

De qualquer forma, estes conceitos de lugar mantêm sua gênese e, no caso em observação, as casas da Comunidade do Flexal passam por outra alteração, agora no padrão de construção. As antigas casas com coberturas de folhas da planta do gênero Mauritia flexuosa da família das arecáceas mais conhecida por buritizeiro, estão sendo substituídas por outras, com cobertura de telhas de fibrocimento. Isso me levou a investigar os motivos básicos apresentados para a mudança nesse padrão construtivo. Fui informado que de um lado54, para a cobertura de uma casa do tamanho de 5 m de largura por 9 m de comprimento, seria necessário, em média, dois mil folhas de buritizeiro. Atualmente, já não existe tanto buritizeiro na região como outrora, forçando os construtores a buscarem esta material, a uma distância razoável. Contudo, se compararmos uma média de 10 folhas maduras por buritizeiro em cada corte (foi o que me informaram os construtores), teria uma média de 200 árvores para a cobertura de uma casa. E isso se tornou uma preocupação quanto à reposição natural desta matéria-prima como um quesito ambientalista. É uma complexidade ambiental, pois segundo eles, leva em torno de dois anos ou mais para que as folhas renasçam e permita proceder a novo corte. A respeito dessa mudança no padrão de construção Macuxi, Martins (2002)55 argumenta em resposta a quesitos sobre as casas na Comunidade do Uiramutã levantados pela União, Ministério Público Federal e outros, para dirimir litígio jurídico sobre a construção de um Quartel do Exército próximo à comunidade, a autora discorreu uma discussão em torno dos novos materiais utilizados na construção em comunidades indígenas justificando que: Em relação a materiais de construção, a telha é mais frequente nas comunidades indígenas que o tijolo comercial e o cimento. A razão principal para tal é a crescente escassez de buritizais na Região das Serras que agrava-se com o aumento da população e uso dos recursos naturais ao redor das comunidades e ao longo das estradas. O barro é fácil de ser achado e manipulado, geralmente o produto é retirado há alguns metros da casa, preparado aí mesmo rapidamente transformado em parede. 54

Complementarmente, em um momento de tédio durante o trabalho de campo contei às folhas que compunha a cobertura da casa em que eu estava abrigado e comparei com o tamanho das outras casas da comunidade, por fim, conclui que pelo tamanho da mesma é na sua maioria bem próxima ao tamanho desta. 55 Perícia Antropológica, Processo nº 2000.42.00.002293-8.

57 Em várias comunidades, a palha tem que ser buscada e carregada nas costas a muitas horas de caminhada. Em alguns lugares, precisa-se mesmo de algum tipo de veículo automóvel para “puxar” a palha (MARTINS, 2002, p. 44).

Por outro lado, a durabilidade de uma cobertura de folhas é em média de 10 anos e também há a desconfiança de insetos (como baratas, escorpiões, ratos, pequenos anfíbios e até pequenas cobras) que se alojam nas palhas. E complementando à discussão anterior, o uso de telha tem maior durabilidade e praticidade, muito embora admite-se que não há como comparar uma casa coberta de folha a uma coberta de telha no calor do dia em Roraima. É muito mais agradável uma cobertura de folha de buritizeiro. Consequentemente, há uma mudança no padrão construtivo das casas da Comunidade do Flexal em andamento como na discussão explorada por Martins (2002) e a influência externa da relação com a sociedade não indígena é outro fator preponderante. Um exemplo dessas mudanças me foi apresentado durante a pesquisa de campo. Numa tarde, fui procurado por um ancião, Sr. Caetano, que me indagou sobre a quantidade de telhas e o custo para a cobertura de uma casa de um tamanho específico, procedi com um cálculo aproximado para atender sua inquietação. Posteriormente, questionei-o sobre os objetivos de proposta de mudança na cobertura de sua residência, o que foi justificado com as razões de muito frio durante a noite e insetos na casa, por fim queria mudar a aparência de sua casa para ficar parecida com a casa de branco. Pareceu-me uma tentativa de diminuir o assunto. Poucas fontes históricas registraram a Comunidade do Flexal, embora saibamos que ainda está sendo construída esta relação, mas podemos perceber que no ano de 1970 foi listada e pontuada sua localização no mapa de Ernesto C. Migliazza (1970, apud SANTILLI, 1989). Mesmo que não tenhamos encontrado registros históricos anteriores dessa região que conste a Comunidade do Flexal, encontramos registros de contextos locais e sua vizinhança, como as cartas de Dom Alcuino Meyer, monge beneditino que fez peregrinações até o Monte Roraima nos primeiros meses de 1928, registrou muitas histórias, mitos e lendas dos indígenas na região. Numa de suas cartas, encontramos a seguinte citação: Do Ecoi avançamos até o Igarapé do Jibilindá. No terceiro dia, passamos pelas malocas do Cómered’yaû, Pirokembó e outra, todas então sem moradores. Pernoitamos ao ar livre junto à maloca do Paurê ou Pauremutá, pequenino casebre de palha repleto de gente (LEMOS, s/d, p. 30).

Este registro não cita o Flexal, mas contextualiza a região ao descrever o traçado do seu retorno do Monte Roraima, e a localidade Paruê é uma das comunidades vizinhas por onde passa a estrada até o Flexal. Por sua vez, no texto de Koch-Grünberg (2006), aventureiro

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alemão que realizou também este trajeto rumo ao Monte Roraima no início da década de 1910, também não foi possível identificar a localização das comunidades por onde passou, uma razão provável é que os nomes utilizados à época podem ter sido substituídos ao longo do tempo. Mas há um detalhe em sua narrativa que confunde a referência feita pelo autor à Fazenda Victoria Flechal, que era de propriedade da família do falecido capitalista Sebastião Diniz e localizava-se da margem do rio Parimé à margem do rio Cotingo (KOCHGRÜNBERG, 2006, p. 46). O nome Flexal é em homenagem a um igarapé que passa a margem de comunidade e tem em suas margens em abundância o capim flecha, uma vegetação da família das poáceas, cujo nome científico é tristachya leiostachya e produz um tendão de comprimento em torno de 2 metros, de onde dispersam suas sementes “voadoras”. A haste da semente desse capim, escolhida as de dimensão não superior a 1,5 cm de diâmetro e comprimento acima de 1,5 m, é aproveitada para fazer haste de flecha. Daí o nome Flexal ao igarapé e À comunidade, conforme a explicação dada pelo Sr. Caetano Barbosa: Aqui sempre foi chamado de Flexal, em Macuxi é “pleu i ên” que é o mesmo que flexal. Flecha é “pleu”. Ai Flexal “pleu i ên”. Porque tinha muito flecha por aqui, a gente vendia! O pessoal chama de capim flecha, mas não é capim, é flecha ai chamaram de capim flecha56.

Ainda que atualmente não tenha tanta abundância dessa planta como relataram de tempos anteriores, se mantêm como uma fonte de renda para alguns pais de família a extração para venda da haste de flecha do capim flexal. O preço por haste é apresentado à venda por dois reais cada. E o mercado principal são os Macuxi da região de campos, lavrados, local onde não há mais deste capim. Entretanto, justificamos a utilização do termo Flexal com o uso do “x” na grafia devido os documentos oficiais da comunidade e no próprio censo das populações indígenas da SESAI adotarem esta forma de escrita. Em conversas com as lideranças da comunidade, percebemos que a peculiaridade da história da comunidade está voltada a suas alianças políticas e posturas frente ao movimento indígena em Roraima. Embora suas lideranças desprezem totalmente as posturas adotadas pela organização indígena majoritária em Roraima, que também é uma das mais reconhecidas no Brasil, o Conselho Indígena de Roraima (CIR). Por coincidência, foi-me revelada uma situação inusitada em que um dos anciões da comunidade que se filiou a esta organização, e tinha a pretensão de dividir a comunidade e criar outra na vizinhança, e que ele pudesse ser a 56

Caetano Barbosa, Entrevista, Uiramutã [Flexal], 2012.

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liderança titular da nova comunidade, mas, por razões gerais das circunstâncias dessa filiação, esta liderança acabou por não prosseguir com o propósito de dissidência da comunidade. Este ancião é primo do atual Tuxaua e atualmente é o 2º Tuxaua do Flexal, um posto de ViceTuxaua. Um pacto político através da acomodação de opositor que poderá se tornar o líder da comunidade. Esta relação política própria parece refletir as alianças políticas da nossa sociedade numa postura aos moldes dos conselhos de Maquiavel em sua clássica obra O príncipe, além de reforçarem o entendimento da política se caracterizar como “um mundo de regras próprias”. Há uma dinâmica política nas comunidades indígenas na região que eventualmente passa por fragmentação, e este surgimento de novas comunidades não é nenhuma novidade. No caso do Flexal, em reunião no dia 5 de fevereiro de 2012, fez parte da pauta, além de outros assuntos, o desmembramento da Comunidade Arapá que fica bem próximo a uns 3 km do Flexal. Ou seja, somente a partir de fevereiro de 2012 esta comunidade teve o reconhecimento de sua autonomia política. O seu líder, Tuxaua como são reconhecidos na região, Sr. Júlio Melquior da Silva, já havia se filiado ao CIR no ano anterior, como também havia conseguido a aprovação de financiamento e liberação dos recursos para um projeto de criação de gado para sua comunidade – uma opção econômica comum nas comunidades indígenas de Roraima. Destacamos que a criação de gado pode ser vista como herança da relação com as fazendas na região, que exploraram a pecuária por décadas e vieram a ser desintrusadas há menos de uma década. Essa herança histórica da agropecuária na região dos campos em Roraima foi tratada com êxito na literatura sobre a região tanto por Santilli, Farage, e outros. Mas esta segmentação de comunidades que parece rotina, segundo informações levantadas junto ao setor de Epidemiologia do DSEI – Leste, em seus censos periódicos trimestrais é constante a alteração do número de comunidades devido a estas cisões, mudanças de local ou agregação a outras, o que modifica a rotina das visitas de atendimento pelas equipes de saúde. Algo semelhante convive a CERR com o crescimento de demandas de novas comunidades por eletricidade, evento difícil de explicar aos técnicos e engenheiros que não conseguem entender e nem aceitam estas dinâmicas. Do Flexal, além do Arapá que se desmembrou ultimamente e da iniciativa não continuada de cisão, também há poucos anos teve sua força política interna reduzida quando parte de seus membros foram divididos com a criação da Comunidade Santa Creusa, hoje disposta a 12 km ao sul do Flexal. No entanto, no caso da Santa Creusa, a divisão foi apenas um desmembramento da filiação, uma vez que desde sua criação sempre ocuparam o local

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que ocupam hoje, houve apenas a independência política, pois eram filiados ao Flexal. Mesmo assim, foi mantida a confluência política externa, pois ainda mantêm estreita relação e suas lideranças fazem parte da mesma organização indígena – a SODIUR. Mas esta condição de divisão em dois grupos é uma tendência um pouco embrionária do movimento em Roraima. Segundo informações repassadas pelo Tuxaua Abel Barbosa, nas comunidades Surumu, Taxi e Camararém é uma realidade há algum tempo. Tal situação política implica em dois ou mais tuxauas com seus seguidores filiados a organizações indígenas distintas e muitas vezes contraditórias, como CIR e SODIUR. Além disso, pesa uma dependência mística solidária entre a Comunidade Santa Creusa e Flexal, ainda que bastante desprezada, mas com suas raízes e crenças sobrevivendo, que é a prática xamânica exercida pelo Tuxaua da Comunidade Santa Creusa. Segundo a população do Flexal, ele é quem presta assistência nas redondezas, com atendimento de identificação e combate ao kanaimé, benzemento e cura xamânica e outros serviços correlatos. Mas, no Flexal, mesmo não tendo Pajé, há alguns anciões que exercem o trabalho de benzer, de menor complexidade, que ajuda na cura e prevenção de pequenas enfermidades. A este assunto retornaremos mais à frente. Contudo, mesmo assim a Comunidade do Flexal se apresenta como única em alguns aspectos como busco apresentar a seguir.

3.1

Seu modo de ser e ver-se diferente Ao afirmar-se como detentora de uma realidade distinta das outras comunidades

Macuxi na região, a Comunidade do Flexal se apresenta como líder de uma relação política vista com maus olhos por grande número de outras comunidades. Sua principal marca de diferenciação está locada no comportamento político, por isso tem sido tratada como de grande valia pela classe política de Roraima. E mesmo tendo outras comunidades com acessibilidade aos órgãos do Governo do Estado, o Flexal possui privilégios pela sua fidelidade aos ditames do grupo político dominante. Consideremos que a Comunidade do Flexal possui uma população de 388 pessoas57, distribuídas em 85 núcleos familiares atualmente, e o índice da presença indígena na população de Roraima nos últimos dados dão conta de 11% da população58, suas 32 terras 57

SESAI, abril de 2012. IBGE, Os indígenas no Censo Demográfico 2010, in: www.ibge.gov.br/indígenas/indígena_censo2010.pdf Acessado em: 26/04/2012. 58

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ocupam 46% do território do estado59, em um número de 44.031 indivíduos que se distribuem em 478 comunidades60 (vale lembrar que o estado de Roraima possui o maior percentual populacional indígena do país). Outro fator importante é o poder de negociação que suas lideranças possuem com a classe política do Estado. É comum encontrar tuxauas em gabinetes de deputados e até no Palácio do Governador. Digo isto por trabalhar numa empresa da administração indireta do estado e periodicamente o Governador decide despachar nessa empresa, como faz com outras empresas estatais e secretarias. Nestas ocasiões, é comum a presença de lideranças indígenas tratando assuntos do interesse de suas comunidades diretamente com o Governador, ainda que haja a SEI com ações voltadas exclusivamente aos povos indígenas de Roraima. As lideranças do Flexal e de outras comunidades, que mantêm sua fidelidade política ao grupo governante, sempre os procuram para tratar de assunto de seus interesses e foi numa dessas oportunidades, em julho de 2012, que o atual Governador autorizou, mesmo sem recurso disponível, a construção com ampliação da rede elétrica do Flexal, após uma reunião direta com o primeiro Tuxaua Abel Barbosa. Mas a preocupação dessas negociações diretas pelas lideranças indígenas, está na iminente cooptação dessas lideranças que a classe política sempre cobra pelo preço dos benfazejos atendidos. Essas relações políticas do governante próximo às lideranças indígenas podem ser conferidas na fala do Sr. Lauro Barbosa ex-Tuxaua e tio do atual: ... quando eu fui colocado como Tuxaua eu pedir estrada do governo, pois na região não havia estrada para Boa Vista. Aí o (então candidato a Governador) Ottomar de Souza Pinto em 1989 numa reunião no Uiramutã me prometeu que no mês seguinte a sua eleição a estrada estaria indo até o Flexal. Aí quando ele ganhou a (construtora Andrade) Gutierrez começou a fazer a estrada, pro Mutum, Uiramutã, Água Fria e Flexal. Foi ele que mandou! Me lembro dessa época! Aí, foi assim, saiu a estrada, antes disso as pessoas iam votar no Surumu a pés, cortando aí no lavrado. Não era todo mundo que tinha titulo, e se a pessoa não conseguia ir, vinha o avião pra levar o pessoal pra votar no Surumu (grifo nosso) 61.

Dessa fidelidade que remonta da década de 1980, resta um compromisso cumprido à risca pelas lideranças da comunidade e em parte pelo governante do momento. Essa atitude é interpretada pelos críticos e acadêmicos como uma relação de alienação política por parte da comunidade, mas prefiro percebê-la como um posicionamento político situacional. Uma

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Secretaria de Estado do Índio e FUNASA 2009. FUNAI/RR, 2008. 61 Lauro Joaquim Barbosa, 68 anos, Entrevista, Uiramutã [Flexal], 31/10/2012. 60

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condição de troca mútua, ainda que desvantajosa e muitas vezes aparentemente prejudicial para a comunidade. Nessa conjuntura, minha interrogação é: porque estão sempre fiéis ao grupo governante do momento? Por outro lado, respondendo parte da pergunta, todos os governadores de Roraima do final da década de 1980 até à gestão reeleita em 2010, quando ingressaram na vida política foram aliados ou, no mínimo, recomendado pelo político a quem essa e outras comunidades reverenciam. Trata-se de um político que deixou um grande legado de admiração junto às comunidades indígenas e às camadas sociais mais necessitadas do estado, especialmente emigrados de outros estados. Para a discussão dessas relações políticas e sociais na Comunidade do Flexal, consideramos interessante nos atermos a alguns conceitos da Antropologia que trata especificamente das noções de estrutura e organização social. Ainda mais pelo fato de percebermos um enraizamento dessas relações como identidade local. A esse respeito podemos adotar a opinião de Feldman-Bianco (1987), em Introdução à “Antropologia das Sociedades Contemporâneas”, que argumenta em diálogo com alguns autores sobre a distinção analítica entre estrutura e organização social e detalha um pouco da perspectiva da “teoria da ação” afirmando que: No contexto destas influências formativas, a distinção, feita por Firth, entre estrutura e organização social, foi de importância fundamental para o desenvolvimento da "teoria da ação". De acordo com esta distinção, estrutura e organização social são dois aspectos complementares da ação social que correspondem, respectivamente, à forma e ao processo na vida social. A estrutura social envolve o desempenho de papéis e proporciona o contexto para a ação. A organização social eqüivale à atividade ordenada, que inclui tanto os papéis sociais quanto as atividades decisivas mais espontâneas que não seguem simplesmente o desempenho de papéis (FELDMAN-BIANCO, 1987, p. 21,22).

A partir da interpretação da autora, percebemos que as relações e ações da Comunidade do Flexal possuem estreita semelhança à proposição da organização social, o que implica em uma teia de decisões e desempenho de papéis sociais intrigantes. Dessa forma, para a Comunidade do Flexal, mais importante do que estar ao lado do grupo político governante, é decidir permanecer com esta aliança. Nesta mesma linha de pensamento, a Comissão do Real Instituto de Antropologia da Grã-Bretanha e da Irlanda, criada para preparar o Notes and Queries on Anthropology, traduzido para o português como Guia Prático de Antropologia (1973), vai além ao abordar diversos temas específicos da Antropologia Física, social e cultura material. Do nosso

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interesse, conceitua organização política, estrutura social, agrupamentos domésticos e família. Quanto à organização política definiu: No sentido mais lato, a organização política de um povo abrange, de um lado, todo o complexo de instituições pelas quais se mantêm a lei e a ordem numa sociedade e de outro, todas as instituições pelas quais se mantém a integridade do grupo em relação a comunidades vizinhas de um gênero semelhante e se protege contra os ataques vindos do exterior (p. 172).

A estrutura social foi descrita como uma rede de relações que dá forma ao grupo tanto no contexto interno quanto no externo: Por estrutura social se entende toda a rede de relações sociais em que estilo envolvidos os membros de uma comunidade em determinado momento (grifo do autor). Define, de um lado, as formas em que se agrupam as pessoas com fins sociais nessa sociedade e, de outro, os laços socialmente reconhecidos que se refletem no comportamento dos indivíduos entre si e em relação aos seus grupos sociais (Ibidem, p. 89).

Apresentando uma defesa de que para entender a estrutura social devem-se relacionar os agrupamentos locais: Ao estudar a estrutura social de uma comunidade será conveniente começar pelas formas de agrupamento local, a partir das menores, os grupos domésticos, e continuando com o maior grupo territorial. Um grupo doméstico pode definir-se como uma habitação cujos ocupantes constituem uma família (grifo do autor) (ibidem, p. 90).

Como também apresentam uma descrição da família elementar, ou seja, uma unidade reprodutiva biológica e cultural, restrita aos ascendentes de descendentes: A família elementar ou nuclear é um grupo que consta do pai, da mãe e dos filhos, quer vivam juntos, quer não (grifo do autor). É normalmente a unidade básica da estrutura social, com que se constituem as duas relações primárias de parentesco: as de paternidade e as de irmandade (ibidem, p. 90).

Entendemos assim a função social da família como micro unidade política que reflete através de seus membros a estrutura social da comunidade. Não é à toa que entre os Macuxi, como em outras etnias, é comum a predominância de uma mesma família na hierarquia das lideranças comunitárias. Com estes conceitos é possível percebermos que, mesmo o segmento teórico predominante da escola britânica de Antropologia fosse essencialmente estruturalfuncionalista, e outras interpretações sobre estes conceitos devem ter sido construídas,

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verifica-se que os pontos destacados acima ainda possuem seu valor analítico válido para as gerações da atualidade. Sob esta perspectiva, o contexto da discussão em torno das relações da Comunidade do Flexal com a classe política tendo como fio condutor a implantação de infraestrutura é um exemplo, pelo entendido, de decisão e desempenho do papel social e envolve a estrutura social através de grupos domésticos e familiares com ênfase na organização política local e consequentemente na identidade de toda a comunidade. A confluência dessas muitas ideias também nos remete à perspectiva metodológica da análise situacional de Gluckman (1987). Em sua Análise de uma situação social na Zululândia moderna, com o texto estruturado em três partes, logo na primeira parte, o autor parte do contexto da organização social Zulu, e apresenta uma discussão em torno de uma realidade caracteristicamente localizada, buscando atingir uma generalidade de assuntos em um contexto em torno do problema. Toma por objeto a análise do evento da inauguração de uma ponte da África do Sul entre o povo Zulu no ano de 1938. Por esse evento, discorre sobre uma infinidade de relações de poder, dominação, resistência, concordância e discordância entre nativos negros e europeus brancos ao norte da chamada área Zululândia na África do Sul. O autor utilizou da possibilidade de uma análise dualística das relações numa realidade diversa do ambiente, onde diferentes atores agem em uma mesma realidade, confluindo em uma sinergia de trocas e interesses numa negociação constante e resistência contínua. E acrescentou que: Assim, as influências de valores e grupos diferentes produzem fortes conflitos na personalidade do indivíduo zulu e na estrutura social da Zululândia. Estes conflitos fazem parte da estrutura social, cujo equilíbrio atual está marcado por aquilo que costumamos normalmente chamar de desajustamentos. Os próprios conflitos, contradições e diferenças entre e dentre grupos zulus e brancos, além dos fatores que ultrapassam estas diferenças, constituem a estrutura da comunidade zulu-branca da Zululândia. São exatamente estes conflitos imanentes no interior da estrutura da Zululândia que irão desencadear seu futuro desenvolvimento (GLUCKMAM, 1987, p. 261).

Na segunda parte, o autor discorreu sobre os processos de mudanças culturais na Zululândia, perpassando sobre um histórico dos aspectos de mudanças estruturais das culturas nativas considerando desde séculos anteriores quando a população perambulava em territórios distintos ocupando áreas não habitadas, onde grupos se dividiam ou se incorporavam a outros, até se estabelecerem em terra fértil (p. 270). Parte da ideia de equilíbrio, o fato das mudanças e alterações de configuração interna da sociedade dos povos da língua bantu estarem detidas aos limites ambientais do território (p. 272). Desse equilíbrio, até a guerra constituía uma

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função da estrutura social. Com a estabilidade territorial houve a institucionalização do domínio de grandes chefes como verdadeiros reis que dominava outros líderes de influência políticas inferiores. Mas as mudanças estruturais foram estabelecidas através da fusão com a cultura do colonizador. E comentou: Os eventos ocorridos fora do sistema social zulu, isto é, no sistema social da Europa, ocasionaram a intersecção dos dois sistemas e criaram um novo campo de relações entre negros e brancos; como resultado, novas formas de conflitos e cooperação foram engendradas. Embora inevitável, a intersecção inicial dos dois sistemas, em termos de oportunidades e modos, foi parcialmente determinada pelo acaso. Os desenvolvimentos que se sucederam foram necessariamente determinados pelas tendências subjacentes a cada sistema e pelos processos sociais universais (ibidem, p. 279).

Na terceira e última parte, Gluckman procurou desenvolver o entendimento de mudanças nos sistemas sociais. Classifica-os em sistemas repetitivos e sistemas de mudanças conforme a seguir: 1 - Um sistema social repetitivo é aquele onde os conflitos podem ser inteiramente resolvidos e a cooperação inteiramente obtida dentro do padrão do sistema. Os indivíduos que são membros dos grupos e os participantes das relações que constituem as partes do sistema mudam, mas não há mudança no caráter dessas partes ou no padrão de sua interdependência com seus conflitos e coesão. (...) Por exemplo, na história zulu antiga, dois reis assumiram o trono usando a violência, mas as rebeliões não mudaram o padrão do sistema político zulu. 2 - Por outro lado, um sistema social em transformação é aquele onde os conflitos podem ser apenas resolvidos parcial ou inteiramente e a cooperação é também parcial ou inteiramente atingida. (...) A Zululândia moderna equivale a esse tipo de sistema, onde novos tipos de grupos e personalidades sociais emergem constantemente em relações sempre mutáveis entre si (ibidem, p. 309).

Comparativamente, tomando por base o argumento do autor podemos inferir de suas ideias que os conflitos observados nas relações Zulus contribuíam para a construção de uma identidade local. Infere-se do texto que não há uma preocupação com a estrutura social, mas com a ação dos indivíduos. E ao contextualizar estas situações de mudanças culturais é possível comparar que as desconexões nas relações políticas do Flexal corroboram para sua autoafirmação identitária. Assim como na sociedade Zulu, os povos indígenas de Roraima passam por processos de reafirmação e social com maior ênfase entre os Mações, que representam os que resistiram com maior força os impactos da relação conflituosa com a colonização nessa região. Com uma análise diferenciada, mas que possui proximidade por também utilizar das noções de eventos dessa vez relacionados com significados e estrutura social, Sahllins (1997) apresentou uma argumentação de interesse para este debate. Para sua ideia de Antropologia

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Estrutural Histórica, toma alguns eventos pontuais na Melanésia e Polinésia, a partir das narrativas do assassinato do Capitão Cook, comandante naval inglês no ano de 1779, pelos povos nativos do arquipélago havaiano. Desse evento, o autor discorreu sobre as interpretações culturais dos havaianos e a condução do processo em sincronia com um mito daquele povo. Estas coincidências proporcionaram condições promissoras de mudança social e comportamental dos indivíduos, e ao mesmo tempo destacou a ação das sociedades por ele analisadas como detentoras do controle e do destino daquela mudança. Conforme argumenta logo na introdução de Ilhas de História em que o autor resume suas ideias em: A história é ordenada culturalmente de diferentes modos nas diversas sociedades, de acordo com os esquemas de significação das coisas. O contrário também é verdadeiro: esquemas culturais são ordenados historicamente porque, em maior ou menor grau, os significados são reavaliados quando realizados na prática. A síntese desses contrários desdobra-se nas ações criativas dos sujeitos históricos, ou seja, as pessoas envolvidas. Porque, por um lado, as pessoas organizam seus projetos e dão sentido aos objetos partindo das compreensões preexistentes da ordem cultural. Nesses termos, a cultura é historicamente reproduzida na ação. (...) Por outro lado, entretanto, como as circunstâncias contingentes da ação não se conformam necessariamente aos significados que lhes são atribuídos por grupos específicos, sabe-se que os homens criativamente repensam seus esquemas convencionais. É nesses termos que a cultura é alterada historicamente na ação. Poderíamos até falar de ‘transformação estrutural’ pois a alteração de alguns sentidos muda a relação de posição entre as categorias culturais, havendo assim uma ‘mudança sistêmica’ (grifo nosso) (SAHLINS, 1997, p. 7).

Desta feita, o autor está preocupado com os significados que direcionam a ação dos indivíduos e reelaboram o contexto histórico, ou seja, os atores criam condições de mudarem a história não apenas nos atos, mas também a própria estrutura. Uma condição em que o grupo passa para a condição de agentes da história. E a partir dessas instigações analíticas dos autores citados acima, nos dispomos a buscar entender o advento da implantação de infraestruturas na Comunidade do Flexal como marco de mudanças na comunidade. Ao mesmo tempo, esta noção de mudança conota a perspectiva de reordenamento cultural, ou seja, uma releitura das práticas e costumes locais, em que novos valores são absorvidos e velhos costumes são reelaborados, alterados pelo contexto temporal, pelas relações entre a população interna e seus contatos exteriores à comunidade e, entre estas, as alianças políticas. Neste sentido, merece ênfase a abordagem de Melo (2000), que destaca a releitura dada pelos indígenas Macuxi e Wapixana quanto ao processo de educação que é capaz de motivar uma “elaboração de novos saberes e de novas técnicas” (p. 89). E o acesso a outras práticas e costumes, como adotar novas formas de entretenimento e uso de ferramentas de

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informação, como também o usufruir das vantagens oferecidas por uma nova realidade comunitária corroboram no entendimento da ideia de releitura de suas próprias ações. A esse respeito, podemos considerar também a sintética discussão, mas de grande valia, feita por Freitas e Freitas (2003), sobre mudanças culturais no Parque Xingu. Os autores procuram apresentar as situações mais críticas dos aspectos de mudança vivenciados por algumas etnias naquele território. Enfatizou o contexto de criação do Parque e destacam as implicações que as relações da população indígena com a sociedade envolvente têm provocado negativamente para as culturas locais. Entre estas, pontuamos o mercantilismo da cultura com a invasão de visitantes nos períodos de festas rituais em nome do ecoturismo, a desistência da população jovem de dar continuidade aos costumes ancestrais, a mudança dos hábitos alimentares e, consequentemente, a incidência de enfermidades antes não registradas na população indígena. Ainda, também relatam a autoridade da televisão como hipnótica e intermediadora dessas mudanças comportamentais etc. Ferraz (2000), por sua vez, apresentou o caso dos índios Gaviões, ou Parkatêjê, da Terra Indígena Mãe Maria, no Sudeste do Pará. Segundo a autora, este povo passou por diversas intervenções em seu espaço territorial, fruto do contato com a sociedade nacional, entre estas destacamos a passagem de uma linha de transmissão de energia e uma linha férrea por sua terra. Na negociação para a permissão desses empreendimentos receberam indenizações milionárias cujos valores foram investidos em infraestrutura para a comunidade como, por exemplo, a construção de uma nova aldeia. E a partir dessa nova estrutura, a autora relatou diversas mudanças na localidade. Como a pesquisa realizada pela autora foi focada na autoridade da liderança local, chamou atenção a citação: Em julho de 1985, por exemplo, num gesto dramático e inusitado, com grandes repercussões na vida da aldeia, Krohokrenhum quebrou publicamente seu maracá e seu arco e mandou destruir as toras que seriam utilizadas na "corrida", depois que um grupo de jovens, recém-chegados do "comércio", preferiram jogar futebol no pátio de aldeia ao invés de participar de um ritual que envolvia cantos e danças (FERRAZ, ISA, 2000).

Corrobora com esta discussão Carelli (2011), em entrevista à principal liderança dos Gaviões Parkatejê, sobre os impactos decorrentes das mudanças principalmente na continuidade da transmissão de conhecimento tradicional e os hábitos alimentares que a cada dia comprometem a saúde de seu povo em sua fala “A população aumentou, mas já está estragada. Parece tudo com kupen, não parece meu filho legitimo” (p. 443). Segundo o autor, kupen quer dizer branco, não indígenas. Desse modo, as condições de mudanças são fatores

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cruciais que podem desenvolver a noção de desesperança e pouca possibilidade de continuidade das práticas tradicionais. Por outro lado, um trabalho de pesquisa antropológico com ênfase ao histórico do uso da energia elétrica em uma comunidade indígena de Roraima tem sua importância aferida por contribuir na busca de entender o sentido dado pelos indivíduos sobre o tema. E, ao mesmo tempo, proporcionar uma avaliação crítica da maneira como interpretam e incorporam estas inovações tecnológicas. O que pode ser atribuída ao conceito de etnodesenvolvimento, segundo o modelo apresentado para as comunidades por parte dos poderes públicos, que, na maioria dos casos, desconsidera a organização social e política destes povos. Sobre este termo, que muito tem sido utilizado para justificar as ações estatais dentro das terras indígenas, Batalla (1995) definiu como: “el ejercício de la capacidad social de un pueblo para construir su futuro, aprovechando para ello las enseñanzas de su experiencia histórica y los recursos reales y potenciales de su cultura, de acuerdo con un proyecto que se defina según sus propios valores y aspiraciones” (p.467). Sob essa ideia entendemos como uma condição de entrega à iniciativa das próprias comunidades sua destinação desenvolvimento. Algo oposto ao praticado em Roraima. Por outro lado, Stavenhagen (1985), ao criticar os diversos discursos que cercam a noção de desenvolvimento, apresentou o etnodesenvolvimento como uma das modalidades de desenvolvimento alternativo que, segundo ele, deve buscar “... satisfazer as necessidades fundamentais de grande número de pessoas, mas do que o crescimento econômico por si mesmo” (p. 18). Como observado na expressão de uma liderança de outra comunidade62, em uma Assembleia do CIR “... vieram os fazendeiros dizendo que era coisa boa, não, chegaram os garimpeiros falaram que era coisa boa, não foi e, agora veem falando de energia dizendo que é bom, como é que vamos saber...”. Em outras palavras, as ofertas apresentadas pela sociedade nacional a estes povos, muito embora tenha contribuído para a satisfação do desejo de consumo e, em algum caso, ao anseio de posses que acompanham estas propostas, tem sido de modo geral mais nocivo que benéfica para o sistema cultural desses povos. Esta postura nos reproduz à proposta sugestiva de Cohn (2001) sobre as transformações culturais que “parece que resta apenas a saída de deixá-los em paz para seguirem seu próprio caminho, ou

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Discurso público do Sr. Djacir Melquior da Silva, da comunidade Maturuca, na XL Conferência dos Povos Indígenas de Roraima, realizada na comunidade do Barro em 15/03/2011, quando estava em debate à possibilidade do aproveitamento de fontes alternativas de geração de energia elétrica na Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

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seja, assumi-los como sujeitos de sua própria história, capazes de conduzir e negociar suas mudanças” (p. 41).

3.2 O efeito “esponja” ou uma “revoada” de retorno

Com a implantação de infraestrutura básica de água encanada e energia elétrica na Comunidade do Flexal, podemos pensar nas razões para a agregação das famílias em torno do local que ocupam atualmente, uma vez que as narrativas dos anciões da comunidade dão conta que no passado até a década de 1980 havia na região muitas fazendas de gado. E como observaram Rivière (1972) e Diniz (1972), sobre as relações políticas entre os Macuxi no Século XX, havia a prática dos pais disponibilizarem seus filhos para trabalharem nas fazendas com a esperança de terem um futuro mais promissor, segundo o entendimento de ajuntarem posses de gado (p. 75). Dessas relações de poder e política, a Comunidade do Flexal não foi isenta. E como verificado em campo, esta prática não foi isolada em um período muito anterior, visto que muitos membros da Comunidade do Flexal viveram esta experiência. A este respeito, Santilli (1989) descreveu esta realidade em um artigo publicado na Revista de Antropologia, intitulado “Os filhos da Nação”. Neste, o autor apresentou uma noção geral dessa relação entre indígenas e fazendeiros, trazendo à tona o regime de servidão a que os povos indígenas em Roraima se submetiam nos trabalhos nas fazendas tanto na condição de apadrinhamento em que os pais buscavam através de uma relação de compadrio submeter seus filhos e filhas à vivência na casa dos padrinhos na cidade, sem remuneração alguma, apenas com expectativa de poder aprender ler, escrever e algumas operações matemáticas. Como também, nas relações trabalhistas de vaqueiro na qual os jovens se submetiam ao trabalho braçal das fazendas no regime de “sorte” ou de “quarta”, ou seja, a cada quatro rezes que nasciam durante o ano uma era do vaqueiro. Todavia, vale lembrar que havia a situação dos jovens indígenas que exerciam a função de auxiliares tendo como recompensa apenas a alimentação enquanto em serviço (p. 429-430). Desse argumento, percebe-se que a exploração vinha em todos os modelos adotados, com agravamento na relação de compadrio em que a perspectiva escravocrata se revela. Koch-Grünberg (2006) também relatou no início da segunda década do Século XX a participação de indígenas Macuxi e Wapixana nas atividades de vaqueiros da então fazenda Nacional São Marcos. “Os vaqueiros são, em sua maioria, índios puros de tribos das

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redondezas, Makuschi e Wapischiãna, entre outras, e é admirável a rapidez com que essa gente aprende a lidar com o cavalo e o laço quando chega do interior” (p. 41). O autor criticou o contexto presenciado de apropriação indevida do patrimônio público por parte de pessoas influente na região, como caso da família Diniz que se apropriavam do gado da fazenda Nacional. Com o processo de reconhecimento da Terra Indígena Raposa do Sol, que foi marcante para política indigenista brasileira, todas as fazendeiros da região foram removidos, enquanto alguns posseiros há décadas se retiraram nas primeiras negociações, outros permaneceram até os últimos minutos, como no caso dos monoprodutores de arroz por exemplo. Não podemos esquecer os conflitos gerados pelo processo de colonização dessa região, e essas fazendas fizeram parte desse projeto, com a convivência sempre maquiada de paz ao lado das comunidades indígenas. Também analisada historicamente por Vieira (2003) 63

, que revelou um panorama distinto com uma ideia de jogar por terra o mito da ‘convivência

pacífica’ tão defendida pela classe política e dominante de Roraima. Expressão anteriormente contestada pela Diocese de Roraima em documento interno (s/d), que detalhou a falácia do discurso da condição de paz na relação entre índios e fazendeiros em Roraima desde a colonização64. Entre incômodos dessa convivência registrados além da violência física contra os indígenas, havia grande incidência na ação do gado das fazendas destruírem as roças de plantações dos indígenas. Como no que foi registrado em cartas por Dom Alcuino Meyer (p. 87) denunciando a imposição do fazendeiro Adolfo Brasil, patriarca da família Brasil em Roraima, que ao enviar uma leva de rezes bovina para a região informava que as comunidades cercassem suas roças. Fato este também comentado por: Davis (1978), Santilli (1989) e Rivière (1984). Desta relação econômica expropriatória entre indígenas e brancos colonizadores que iniciaram o processo de exploração nesta região, Koch-Grünberg (2006) generalizou o sistema escravocrata do índio como fenômeno predominante em todo o Brasil: Como em todo o Brasil, também na região do rio Branco a escravidão por dívidas é um meio frequente de manter o índio trabalhando para a o branco. Ao fim do seu tempo de serviço, que dura vários meses, o empregador lhe faz o calculo de tudo que ele recebeu em mercadorias, e sempre faz a coisa de tal maneira que sobre um saldo 63

Pesquisa de doutorado em História, UFPE. A “Estória da convivência pacífica entre Índios e Brancos” no Vale do Rio Branco 1850-1975. Autor desconhecido, s/d. 64

71 a lavor do patrão. O pobre-diabo, que não sabe fazer conta, tem de pagar esse saldo com trabalho e em tempo oportuno, adquirindo, enquanto isso, novas mercadorias e se afundando cada vez mais em dividas, sem a possibilidade de, um dia, vir a se libertar delas. Geralmente, ele só pode mudar de emprego se o novo patrão assumir suas dívidas (p. 144).

Também neste contexto, pela incumbência de definir em juízo como se dava esta relação entre índios e fazendeiros em Roraima, Cirino (2002 e 2004), em Laudos Periciais Antropológicos solicitados pela Justiça Federal de Roraima, para embasar as decisões judiciais de ações civis de desintrusão da TIRSS da fazenda Santa Aparecida65 do Wilson Alves Bezerra limítrofe com a Comunidade da Enseada, e da Fazenda Santo Antonio do Pão66 do Senhor Zélio da Silva Mota limítrofe a Comunidade Waromadá respectivamente, relatou a inconveniente interferência das criações de suínos e bovinos no modus vivendi das comunidades. Justifica com a fala dos próprios membros das referidas comunidade sobre o incomodo e prejuízos causados pelas criações de terceiros. Santilli (1989), ao relacionar e narrar as relações históricas de conflitos entre indígenas e fazendeiros na região da Comunidade da Raposa no lavrado de Roraima observou que: Os conflitos com posseiros, em sua grande maioria, representam variações acerca de dois antagonismos essenciais, a posse da terra e a exploração do trabalho dos índios. Configura-se aqui uma situação criada com a frustração de expectativas mútuas que são geradas no momento de chegada dos fazendeiros. Traçando um esboço esquemático, tal situação seria formada na seguinte sequência: inicialmente os índios não oferecem resistência na instalação de fazendeiros que, ao chegarem, acenam com artigos manufaturados, tecidos, ferramentas, aguardente, ou mesmo carne e leite de gado em troca de farinha de mandioca e ajuda no trabalho para a construção de uma casa, e de um curral. Como é evidente no caso de Gabriel, neste momento, interesses e expectativas recíprocas podiam dar origem a relações de compadrio, ou ainda, conjugais, intermediadas frequentemente pelo tuxaua. Os atritos, como vimos, começaram com os estragos nas roças dos índios causados pelo gado, criado solto nos campos, ou, questão igualmente exemplar, com a pretensão do fazendeiro de cercear a pesca dos índios, feita com o usa de timbó nos lagos e igarapés, cujas águas se tornam momentaneamente danosas ao gado. O quadro agrava-se irremediavelmente quando o fazendeiro uma vez instalado, deixa de cumprir a expectativa dos índios em relação ao fornecimento constante de bens que lhes havia sido prometido (p. 142-143).

Dessa forma, ficou evidente o conflito latente e discrepante com que conviveram e convivem os povos indígenas nas relações com a sociedade nacional. E pensando nas contraposições jurídicas de laudos antropológicos, Beltrão (2007) discutiu dois casos por ela estudados sobre o entendimento jurídico no conciliar os costumes e regras instituídas das 65 66

Processo nº 1999.42.00.001459-1 Processo nº 1999.42.00.001457-6

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sociedades indígenas e o sistema jurídico brasileiro. A autora partiu de uma análise pontual de dois inquéritos policiais abertos: um de acusação de homicídio contra o povo Gavião Parkatêjê e outro de acusação de roubo e lesão corporal contra os Suruí Aikewára, todos na região de Marabá no Pará. Beltrão conclui que: Pela lógica indígena os casos são resolvidos no âmbito da aldeia, ouvidas as lideranças, especialmente os mais velhos. Portanto, a solução de conflitos entre indígenas e não-indígenas demanda o estabelecimento de nova forma de relação com o Estado, sustentada pela autonomia dos povos indígenas... (BELTRÃO, 2007, p. 3606) 67.

Neste assunto, estando em jogo o direito consuetudinário verso o direito romano, o mais importante tange da definição e solução de conflitos serem resolvidos no âmbito da aldeia. O que implicou numa demanda diferenciada de relações de direito que o Estado necessita reconhecer. Mas, voltando ao contexto do Flexal, na fala do Sr. Pedro Felipe da Silva, morador da comunidade, foi a partir da década de 1980, com a intensificação do conflito pela terra, que alguns fazendeiros se retiraram, daí muitos jovens que trabalhavam em fazendas tiveram que retornar para suas comunidades, embora parte desse contingente aproveitasse para migrar para cidade ou outras comunidades. No exemplo do Flexal, hoje vários pais de famílias que na época da saída dos fazendeiros, que representava sua primeira relação patronal, ainda eram adolescentes ou jovens, retornaram a comunidade e contraíram matrimônio, constituindo o que ouso chamar de “efeito esponja” para a comunidade ou “revoada” de retorno, ao agregar um número de pessoas ao longo de um curto período. Por outro lado, somaram a este processo de agregação alguns jovens filhos de fazendeiros, a maioria deles nascidos na região, filhos de algum dos pais indígenas, contraíram matrimônio com mulheres indígenas da comunidade, foram absorvidos como seus membros e continuaram no local mesmo depois do processo de retirada dos não indígenas da Terra. Como é o caso dos irmãos Pedro, Flávio, Gonçalo e José Felipe, filhos do fazendeiro Pedro Felipe dono da Fazenda Flexal, que nasceram na vizinhança e moravam próximos ao Flexal e com a definição do território estes haviam se casado com mulheres da comunidade, foram admitidos como legítimos moradores do Flexal. A esse respeito, Rivière (2001) tratou com generalidade aos povos da chamada região da Guiana, segundo o autor “A alternativa mais comum é a residência uxorilocal, pelo menos durante um período” (p. 33). Ou seja, 67

BELTRÃO, Jane Felipe. Povos Indígenas e Direitos Humanos: como desafio de Antropólogos. In: Anais do XVI Congresso Nacional/CONPEDI, 2007, p. 3590-3608.

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mesmo que os maridos fossem de origem mestiça, decidiram ficar na comunidade de origem de suas esposas. Por outro lado, outros migraram para a cidade e engrossaram as periferias da capital Boa Vista. Vale considerar também que as primeiras casas da comunidade ficavam numa região no entorno do lado Nordeste ao local que ocupam hoje e, conforme narrativas de seus habitantes mais idosos, restam no local anterior apenas o cemitério que ainda é eventualmente usado. Na pesquisa de campo, tive curiosidade de conhecer este lugar, cheguei a solicitar que alguns garotos fossem comigo até lá, mas nenhum se dispôs a ir pelo motivo de suas crenças que cercam estes ambientes. Como também em conversa com o Sr. Genézio, Agente de Indígena de Saúde - AIS, sobre os costumes e tratos com o cemitério este foi muito claro que não fazem mais nenhuma ação especial em alusão aos mortos, por exemplo, as honrarias em dias de finados etc., comum na nossa sociedade. A explicação para esta postura está na predominância religiosa da comunidade, que trataremos adiante. Indaguei-me bastante das razões para a transposição de local, pois é pouca a distância, mas o questionamento girou em torno de: que motivo levou o grupo a migrar para o espaço atual? Na busca de resposta a esta inquietação, em diálogo com algumas das pessoas que moraram no antigo local, me afirmaram ter muito a ver com a própria localização geográfica, o local anterior era baixo e na encosta de um morro, o que implicava em menos ventilação e outros pontos negativos que uma encosta oferece. Era à margem do riacho Caracanã, também chamado de KLB. Por outro lado, no local para onde migraram havia uma pista de pouso que fora desativada. Contudo, hoje, aproximadamente a metade das casas da comunidade está localizada no perímetro dessa antiga pista de pouso, onde a própria pavimentação de terra compactada propiciava um terreiro mais limpo de gramíneas e pouca lama no período chuvoso. Outra pista de pouso foi construída na diagonal a anterior, como expressou o Sr. Caetano: “a primeira pista passava por aí assim, mais era de banda e os aviões não pousava direito, por causa do vento de lado. Aí, depois fizeram essa outra pista ai. Uma vez um avião ia pegando fogo bem aqui perto, bem na hora do pouso” 68. Depois que a comunidade veio para este local, relatam seus moradores, que utilizavam poço para pegarem água para beber, mas a água era salobra, e havia muita incidência de dor de barriga, daí a uns oito anos atrás foi possível através de recurso disposto por parceria com a SEI, fazerem o encanamento de água advinda de uma cachoeira do igarapé Flexal a montante, aproximadamente três quilômetros a Noroeste da comunidade, hoje

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Caetano Barbosa, 80 anos, entrevista, Uiramutã [Flexal] em: 23/10/2012.

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utilizada sem nenhum tratamento. E a água do poço foi motivo para que muitos migrassem para outros lugares. Com isso, mais uma benfeitoria em prol do bem estar que contribuiu com a agregação no mesmo local por parte de seus moradores. Somando a isto, no ano de 1992 foi disposto para a comunidade um grupo-gerador pequeno que iluminava apenas a casa do Tuxaua, e em 1994 trocaram o grupo-gerador por outra maior que atendia algumas casas. Já no ano 2002, foi construída uma rede de baixa tensão que atende a comunidade em sua maioria, esta se encontra hoje em estado precário devido ao material utilizado em postes de madeira. Com a estrutura de energia disponibilizada, mesmo com o crescimento da comunidade, 99% das casas possui energia elétrica, pelo menos somente a casa do Sr. Felipe é mantida sem eletricidade devido à distância, esta é uma das poucas que ficam afastadas da concentração a Noroeste da comunidade, enquanto 100% das residências possui água encanada. Não com banheiro interno, mas com uma ou mais torneiras disponíveis próximas a casa. Também não vi nenhuma, com exceção da escola (FOTO 3) e posto de saúde, construída com tijolos e piso pavimentado de cimento.

FOTO 3: Escola Estadual Tuxaua Pedro Barbosa, Flexal. FONTE: Arquivo Pessoal do pesquisador, Flexal, 2012.

A garimpagem na região é praticada desde o início do Século XX, como descreveu Dom Alcuino Meyer, monge beneditino que viveu com os indígenas de Roraima na primeira metade do Século XX: No Socó mora o velho mineiro Severino Pereira da Silva, casado pela segunda vez com índia macuxi e pai de numerosa família. Este Parahybano está no rio Branco há mais de 30 anos. Foi ele que iniciou o trabalho de mineração de ouro e diamantes no alto Rio Branco. Em 1928 encontrei-o no igarapé do Eremutau, um dia de viagem daqui (igarapé do Caranguejo) para o N. estava então amasiado com uma macuxi e casou-se. 1936 foi até o Rio por avião levando muitos kilos de ouro e não sei quanto

75 diamantes fazendo com que muito nordestinos e gente do Pará e de Manaus etc, viessem tentar fortuna nos garimpos do Alto Cotingo. Elle afirmou-me que calcula em cerca de 700 pessoas os que presentemente trabalham em ouro etc. no Cotingo e Aninô. Houve época em que o garimpo achava nos melhores lugares centenas de gramas de ouro por dia. Ultimamente tiram pouco resultado mas em geral ainda compensador. Não falta entretanto quem tenha tido prejuízo. Alem dos civilizados também muitos índios exploram ouro e diamante, ou como empregados dos brancos (se é que recebem) 150$000 por mes além de comida e pequenas regalias e outros por própria conta (LEMOS, s/d, p. 91).

Mesmo não confirmado por seus moradores, a história da Comunidade do Flexal se confunde com o período de exploração garimpeira na região desde a década de 1940. Há relatos que dão conta de que esta foi uma vila garimpeira, - “corrutela” como é chamada na região. Daí verifica-se ainda a herança da pista de pouso. No entanto, não foi confirmado, mas a prática da garimpagem não é estranha para seus habitantes. A uns 10 quilômetros do Flexal, na Comunidade Paruê e Nova Vida, até os dias atuais a exploração de ouro faz parte de suas atividades de subsistência. São trabalhos manuais e eventualmente com máquinas que garante uma renda complementar. Por outro lado, os homens de meia idade e idosos do Flexal relatam que em tempos atrás fizeram garimpagem nas proximidades do Paruê. Esta situação nos faz lembrar a fala de uma liderança da Comunidade da Andorinha69, no ano de 2010, que em prosa nos disse: “sabe aquele barranco naquele morro, é nossa poupança, quando precisamos de um dinheirinho a gente vai lá, trabalho dois ou três dias, junta cinco ou mais gramas de ouro e vende”. Dom Alcuino Meyer em suas caminhadas, na terceira e quarta década do século passado, e Koch-Grünberg no início do mesmo, relatam em suas aventuras do trajeto ao Monte Roraima, região cobiçada para os aventureiros de todos os tempos, a passagem pelo Paruê e comunidades vizinhas. A mesma região em que se encontra o Flexal. Sobre a noção econômica da garimpagem, Schröder (2003) chamou a atenção sobre o assunto e propôs a relativização do conceito de economia indígena a partir dos critérios e entendimento de cada sociedade indígena, este pode ser semelhante ao conceito clássico da sociedade envolvente ou não, como segue: ... é importante realçar que o conceito de economia indígena muitas vezes devia ser usado na forma plural, quando se fala das diversas formas de organização econômica das sociedades indígenas. Economia indígena, então, não é nenhuma coisa homogênea (SCHRÖDER, 2003, p. 19).

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Conversa com Airton, sobre meios de subsistência da comunidade durante um percurso de viagem Uiramutã / Flexal em 17 de dezembro de 2010.

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Ainda, o autor recomendou o cuidado em generalizar este assunto na ideia da economia de subsistência aos indígenas, pois este termo implica noutro erro evitável desde que considerada as diversas possibilidades de meios econômicos. É necessário questionar que economia indígena seja um sinônimo de economia de subsistência, como se os Índios tradicionalmente não produzissem excedentes. Na verdade, eles produzem-nos, por exemplo, para as trocas interlocais e interétnicas, mas o modelo básico entre os povos indígenas na Amazônia costuma ser voltado principalmente para o auto sustento (Op. cit., p. 20).

Dessa forma, as condições que justificam a agregação das famílias na Comunidade do Flexal carrega todo um contexto de motivos e razões que envolvem desde a natalidade interna, o retorno das pessoas que se aventuraram em atividades externas, a adoção de pessoas afins que compartilham os mesmos sentimentos de pertencimento à comunidade como também as condições de infraestrutura oferecida, construída ou aproveitada, fazendo daquele ambiente comunitário uma testemunha de relações que perpassa o entendimento de quem apenas ouve falar de sua existência. E tudo se resume em uma forma coletiva conveniente de ver-se e sentir únicos, muito embora, compartilhando de uma identidade étnica muito maior que seu próprio lugar. Prosseguiremos no próximo capitulo, onde pretendemos apresentar para o debate alguns pontos relevantes das relações na Comunidade do Flexal.

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CAPÍTULO III – DISCUTINDO AS RELAÇÕES NA COMUNIDADE DO FLEXAL

Nos capítulos anteriores apresentamos um pouco sobre a história do povo Macuxi, consequentemente da Comunidade do Flexal. Contextualizamos os Macuxi que representam uma das grandes etnias da região das Guianas que compartilham seu território com os povos Wapixana, Taurepang, Arekuna, Kamarakoto, Ingarikó e Patamona. A este território, área ao Sul do Monte Roraima, de predominância Macuxi e principalmente a história do contato e suas relações com outros grupos e a sociedade nacional, Santilli (2001) denominou como “rotas de conflito”. Nesta parte deste trabalho procuraremos apresentar o Flexal através de alguns elementos como uma comunidade ativa num diálogo intercultural e participante de suas próprias mudanças. A língua utilizada na comunicação no Flexal é o português, no entanto, a língua Macuxi se mantém como segunda língua ainda muito falada principalmente pelos idosos, como também na escola há o ensino convencional, através de disciplinas que ensinam a leitura, escrita e fala em Macuxi para os alunos desde as primeiras séries. Durante a estadia de campo desta pesquisa, quebrei um preconceito sobre o domínio da língua materna entre os jovens do Flexal. Achava eu que estes já haviam perdido por completo o domínio do Macuxi, mas percebi que mesmo estes jovens se comunicando em português no cotidiano mantêm ainda uma forte relação de comunicação em Macuxi com os mais velhos. Como também as aulas de Macuxi da escola são rigorosas e a maioria da garotada consegue se comunicar razoavelmente com seus pais em língua materna. Outro fator a considerar é que, devido à proximidade com a fronteira com a República Cooperativista da Guiana, é comum nesta região alguns indígenas falarem fluentemente também o inglês. Como também a ascendência de alguns idosos e o contato com os Ingarikó faz com que exista um pequeno número falante desse outro dialeto da filiação linguística Karib. Como a preocupação deste trabalho é as mudanças incorridas na comunidade a partir das infraestruturas instaladas, classificamos em quatro tipos de infraestruturas existentes no Flexal. São elas: primeiro as infraestruturas instituídas e mantidas pelo poder público: na parte da educação - um prédio da escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio, com quatro salas de aula e laboratório de informática com dez microcomputadores e impressora, uma pick up de transporte escolar; na parte da saúde - um prédio do Posto de Saúde com quatro cômodos, um poço e uma caixa d’água de fibra de 1000 L e um grupo gerador para eventual

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uso nos intervalos de funcionamento da maquina da CERR, um prédio da antiga escola que funciona como casa de apoio para a equipe de saúde; no campo da energia - um prédio onde fica a UTE com grupo gerador de energia de 75 KVA que funciona pelo período de sete horas diárias desde o ano de 1992, e tem sua operação e manutenção mantidas por sua proprietária, a CERR, há uma área cercada de arame do tamanho de 50X50 metros, uma rede de baixa tensão, com poste de madeira de 9 metros e cabos de alumínio nu; e na parte da agricultura – um trator agrícola, marca New Holland de médio porte e um pequeno caminhão MercedesBenz. Estes são infraestruturas de apoio e atendimento na comunidade, instalados por órgãos governamentais. Segundo, há outras infraestruturas permanentes que suprem a comunidade de maneira contínua. São elas: três quilômetros de encanamento de água que transporta água de uma cachoeira até a comunidade; a estrada de acesso à comunidade; e uma pista de pouso para pequenas aeronaves. Terceiro, existem as infraestruturas internas de uso comum: os dois espaços para reuniões; uma igreja; um campo de futebol. E quarto, as particulares: três pequenos comércios. Estas descrições podem aparentar uma repetição de informações acerca da comunidade, mas representa o elo de consolidação das mudanças culturais induzidas por mudança tecnológica, a quem nós atribuímos às instalações de infraestruturas no local. Prosseguiremos com alguns tópicos que motivaram em algum momento mudanças significativas.

4.1 Trabalho e sustentabilidade em perspectivas

Tratar da economia e sustentabilidade entre os povos indígenas em Roraima possui alguns aspectos históricos que se fundem com a história da colonização desta região. Estes povos sempre foram vistos pelos seus colonizadores europeus como de pouco interesse ao trabalho agrícola, tendo sua força de trabalho mais aproveitável no extrativismo de ervas e outros produtos naturais, fato descrito por Farage (1986) ao descrever a política dos aldeamentos no Vale do Rio Branco no Século XVII. Por sua vez, Santilli (1989) apontou o início do Século XX como marcado pela ocupação efetiva da região com a expansão das fazendas de bovinos, e, neste contexto, a utilização da mão-de-obra indígena “assalariada” passou a ser mais marcante no trato aos rebanhos. Koch-Grünberg (2006), na década de 1910, também registrou os labores dos indígenas dessa região tendo como prioridade a caça, a pesca e o cultivo de pequenos roçados

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e, eventualmente, a prestação de serviço aos não indígenas. Enquanto o monge beneditino Dom Alcuíno Meyer, em suas peregrinações evangelísticas, notou em 1939 a participação de indígenas nos atividades garimpeiras no vale do rio Cotingo. Mas foi Diniz (1972, apud SANTILLI, 1989) que, em sua análise sobre os Macuxi, inseriu os indígenas na economia regional de uma forma um pouco tosca: Com a chegada dos brancos que aos poucos foram intensificando o criatório bovino, as terras tradicionalmente habitadas pelos macuxi foram alcançadas. Estes, desde então, passaram a fazer parte, de modo indireto, da economia regional através da sua participação, embora marginal, na atividade que se tornou dominante na área. Contudo sua vida econômica, essencialmente de subsistência, é ainda baseada no cultivo das roças, nas quais cultivam mandioca, cará, fava, ... (SANTILLI, 1989, p. 447).

Mas foi especificamente no início da década de 1970 que as iniciativas de produção ganharam força com o incentivo por parte das missões religiosas, especialmente católicas, através das iniciativas de financiamento de projetos de sustentabilidade econômica entre os povos indígenas em Roraima. Esta iniciativa coincide com os grandes de expansão nacional. Sobre estes projetos de financiamentos se destacou o das roças comunitárias, o das cantinas missionárias e o projeto de gado, o que Cirino (2008, p. 201), ao comentar o relatório da FUNAI de 1986, sintetizou: Em síntese, ao esboçar um paralelo entre os três agentes citados, os pesquisadores diziam encontrar diferenças marcantes de atuação: O Governo local tinha como objetivo explícito homogeneizar os índios com os regionais e todos os projetos se concentravam na esfera econômica, acreditando que uma transformação radical na economia indígena levaria a uma integração total dos índios. A Funai e a Igreja Católica, por sua vez, agiam em sintonia ao propor solucionar os infortúnios provocados pelo contato.

Vale ressaltar que esta ideia dos projetos foi tão forte que a partir da década de 1990 uma modalidade de mercado foi criada, e Repetto (2008) comentou esta ideia a partir do que Santilli denomina de mercado de projetos: “... a partir da década de 90, se consolida um verdadeiro mercado de projetos, que procura atender as necessidades não cobertas pelo indigenismo oficial, e graças a uma crescente participação direta de agendas internacionais de cooperação” (p. 74). Por outro lado, as ideias dos projetos, desde sua origem na década de 1970, caminharam paralelamente às ações de definição territorial, ou seja, a mobilização pela posse da terra. Esta última iniciativa veio com uma proposta que acabou por fortalecer o movimento

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indígena e consolidar suas políticas de desenvolvimento. Afinal, não havia uma perspectiva aceitável sem que as questões voltadas para o território não tivessem respostas. Em um ponto anterior apresentamos algumas perspectivas e desolações na comunidade do Flexal. Retornemos ao quesito da produtividade, ou seja, dos meios de produção economia e sustentabilidade da comunidade. Mas, tratando-se da comunidade Flexal, há que se considerar as desavenças políticas que a organização SODIUR enfrenta e que impõe uma condição de solitária em sua luta por projetos de desenvolvimentos. Embora, como afirmado por Repetto (2008, p. 84-85): Não existe, em Roraima, organização indígena que não declare o desenvolvimento entre seus princípios. Elas não são as únicas, porem: alem delas, os Governos Federal, Estadual e municipais, bem como diversos tipos de instituições e ainda vários setores sociais, de modo geral, o utilizam como forma direta de apelo discursivo na construção das varias realidades que se vivem aqui.

Acrescente-se que esta ideia abrangente busca contemplar as perspectivas econômicas, educacionais, saúde etc. Contudo, a crítica comparativa entre o Flexal, e consequentemente a SODIUR que funciona como guarda-chuva político do movimento indígena para esta outras comunidades, movimento, diga-se de passagem, “oficial” do Estado, se fundamenta na ausência de um plano de atividades preparado, com metas e projetos definidos. Esse plano ajudaria a fugir da mendicância da boa vontade da classe política em troca de uma fidelidade numa relação em que mais perdem do que ganham. Por sua vez, a organização indígena majoritária de Roraima, CIR, até pelo seu próprio histórico de mobilização e provisão, possui um corpo técnico formado ao longo dos anos através de parcerias, principalmente de organizações não governamentais e de bases eclesiásticas. Enquanto a SODIUR não possui a mesma estrutura, nem organizacional, pessoal ou financeira. Por outro lado, Roraima é conhecido como um estado regido economicamente pelo contracheque. Sua principal fonte de movimentação financeira está voltada aos serviços públicos. E essa realidade se reflete também nas comunidades indígenas, pois é marcante nas comunidades indígenas de Roraima a presença de servidores públicos da própria localidade, sejam eles professores, agentes de saúde, operadores do grupo gerador da CERR, entre outros. Esta fonte econômica está representada na própria infraestrutura estatal instaladas nas comunidades. Essas pessoas acabam por possuírem certo privilégio nas suas comunidades, uma vez que os mesmos são os principais responsáveis pela circulação de dinheiro nestas

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localidades. Muitos, por eficiência de gestão de recurso, acumulam patrimônio móvel, como veículo, por exemplo, e semoventes. Durante a pesquisa de campo, foi possível enumerar os trabalhadores a serviço da escola em seis professores da comunidade, duas copeiras, além do operador da CERR, e na saúde um AIS e um microscopista que são remunerados por recursos públicos estadual ou municipal. Além desses, tem o Tuxaua que por uma política de incentivo do Estado recebe ajuda salário por seus serviços de articulação política local, como também há os beneficiários dos programas de distribuição de renda dos Governos Estadual e Federal e os aposentados. Contudo, as famílias que de alguma forma não são contempladas por estas fontes econômicas, uma vez que a sua maioria delas são, restam à produção agrícola em micro escala, para produção de mandioca com seus derivados (farinha, biju, caxiri, pajuaru, tucupi etc), feijão, banana ou batata doce; à agropecuária e, eventualmente, à garimpagem e prestação de serviço local. A este respeito, Silva (2010, p. 174-75) comentou a ampliação do poder aquisitivo entre os Apurinã, e tomou por referência as opções de acesso à renda disposta e à aquisição de bens: Hoje também temos alguns índios funcionários, são professores, agentes agro florestais, agentes de saúde e zeladores dos banheiros comunitários. Outra fonte de renda para eles são as aposentadorias de alguns índios. Mais recentemente (...) o “Bolsa Família”, que (...) beneficia cerca de 60% das famílias de Camicuã que têm crianças em idade escolar. O salário maternidade também é um benefício muito solicitado entre os Apurinã. De fato o “poder aquisitivo” dos Apurinã e a circulação de dinheiro hoje em Camicuã é bem maior (...) isso é constatado pelas reformas feitas nas casas da aldeia e pela quantidade de eletrodomésticos existentes nas residências.

A autora destacou a energia com os seus usos, principalmente a televisão, como fator de mudança na rotina comunitária. Destacou ainda a substituição dos momentos de reuniões noturnas e transmissão do conhecimento pelas programações televisivas, acontecendo situações de jovens abandonarem os trabalhos nas roças pelos programas da TV. Embora admitam na própria aldeia a TV como não salutar sua incorporação na comunidade, por outro lado é bastante apreciada devida aos jornais e novelas (SILVA, 2010, p. 174). Esta realidade, comparada à Comunidade do Flexal, possui uma concordância considerável. Desse modo, no contexto atual da comunidade Flexal quanto ao quesito de projetos de desenvolvimento econômico percebe-se uma carência de um direcionamento para projetos. Ademais, não contam com parcerias confiáveis que se dispunham a encaminhar uma

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empreitada que tenha solidez sem que tenha a preocupação de um retorno político eleitoral em curto prazo.

4.2 A experiência sócio-religiosa Macuxi

Por algum tempo, ouvi de determinada liderança evangélica que em todas as comunidades indígenas do Norte de Roraima havia uma congregação de sua denominação, o que representava uma universalização evangelística por esta denominação no Norte de Roraima. Não pretendo entrar no mérito das questões eclesiásticas e evangelísticas, mas a Comunidade do Flexal tem sua característica religiosa distinta das poucas que tenho acompanhado. Surpreendeu-me o fato de nunca terem tido um templo católico construído, segundo seus moradores. Isso por ser notória na literatura sobre a região, a contribuição das missões católicas no processo de intercomunicação dos colonizadores e as sociedades indígenas, em alguns momentos em parceria com o estado e em outros como fonte de conselho e resistência à dominação. Desde minha primeira ida à comunidade percebi que não havia um templo religioso conforme padrões vistos em outras localidades, ou seja, um espaço reservado para adorações e cultos, algo comum em outras comunidades. Mas, dessa vez que passei mais tempo indaguei aos meus coparticipantes da pesquisa sobre o sistema religioso, começando com questionamentos acerca da prática de cura xamânicas. Logo tive a resposta que não havia Pajé na comunidade e que o atendimento a eventuais trabalhos de pajelança é solicitado à ajuda do Tuxaua Pedro Celso da Comunidade Santa Creusa. Estes trabalhos são mais solicitados para atendimento de cura, e principalmente na identificação e combate ao kanaimé. Esse Tuxaua é quem exerce estas funções xamânicas na região e, desde que fundou uma comunidade, onde hoje ele é sua principal liderança, nunca treinou ninguém nem de sua comunidade nem do Flexal. Nas entrevistas e conversas percebi um pouco de descrédito atribuído a este “Pajé”, como fraco e de pouco domínio das práticas xamânicas. Reclamaram dos ritos de identificação do kanaimé, os trabalhos realizados do referido Pajé tem deixado a desejar ao afirmar saber quem fez aquele mal, mas não declarar o nome nem a comunidade do acusado, garantindo apenas que vai curar a vítima e que ela será esquecida pelo kanaimé. A esta concepção negativa de sua ação, ressaltamos a contribuição que as denominações evangélicas têm trazido às comunidades indígenas, assunto analisado por Almeida (2004) sobre a

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influência das igrejas evangélicas nos costumes e práticas tradicionais entre os Kaingang no Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Por outro lado, a história de vida do Sr. Pedro Celso é no mínimo curiosa por natureza. Segundo suas palavras, ele não é Macuxi e herdou a vocação xamânica da família de sua mãe Wapixana: Eu herdei da parte da família da minha mãe, (...) Minha mãe casou com 13 anos com o velho João Bezerra, ele era cearense, mais meu pai era muito mulherento e minha mãe largou ele aí depois que eu nasci ela casou com o garimpeiro maranhense velho Célio ele tirou minha mãe daqui do Baixo Cotingo e levou lá pra cima pra morar em garimpo. E meu avô, velho Julião começou ia pra lá de vez em quando visitar a filha. E ele transportava até o espírito de criança quando tava morrendo. Eu tinha 12 anos, ai um dia ele disse: você vai comigo pro Baixo Cotingo! E eu me animei pra comer peixe. Mas ele disse: você vai ficar com minha linha, trabalho! E quando cheguei na casa dele ele começou a me preparar pra falar com os espíritos, ele me dava um negócio pelo nariz, uma golda de fumo que dói e eu sofri, mas não desistir. Era sempre no silêncio da noite. Ai, uma vez ele me deu um negocio lá, que não me lembro, só que eu adormeci mais não tava dormindo ficava vendo um monte de coisa, eu comecei a ouvir tanta coisa. Como se fosse um sonho. Ai no outro dia eu tava todo quebrado. Ai comecei a ouvir vozes, e ele me disse: olha tu vai começar a falar com a Natureza! Ai quando ele tava pra morrer ele me disse que eu tinha que ir lá pra casa dele pra ficar com as coisas dele. Ai ele me disse que eu tinha que fumar e tal e ia transpassar que os espíritos viriam me assistir nas cessões. Ai eu comecei a fazer trabalhos 70.

Esse relato dá conta em forma resumida de uma iniciação xamânica, embora o narrador afirmou que o xamã nasce com esta vocação. Mas fica explícito a relação de um garimpeiro com uma indígena, o que Dom Alcuino Meyer narrava com reprovação. O fato de ser filho de um não indígena com uma mulher Wapixana também revela a reprovação a que seus trabalhos são entre os Macuxi, pois uma das funções mais importantes do Pajé é identificar um inimigo kanaimé devido sua condição de descendente de Wapixana, apesar de tanto os Wapixana quanto os Macuxi direcionam aos Ingarikó as acusações de kanaimé, fato percebido no Flexal. Contudo, nas conversas com a comunidade ficou clara a predominância das Igrejas Adventista do Sétimo Dia e Batista, esta última através de um apoio com a Missão Evangélica da Amazônia – MEVA. Atualmente, há um espaço construído para a realização dos cultos e escola sabatina pelos adventistas, que tem como liderança, responsável por dirigir os trabalhos e ministrar os ensinos bíblicos o Sr. Robson Barbosa, que acumula a função de gestor da escola (FOTO 4).

70

Pedro Celso da Silva, Entrevista, Boa Vista, 2013.

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FOTO 4: Celebração de uma Escola Sabatina. FONTE: Arquivo Pessoal, Flexal, 2012.

Mas nas palavras do Sr. Lauro há um resumo da condição denominacional nesta comunidade quando afirmou que a presença adventista como mais recente: ... hoje é os adventistas, mas existe uma Igreja Evangélica Macuxi, registrada em cartório e conveniada com a Missão Evangélica da Amazônia e a Igreja Batista. O Caracanã, Monte Muriá, Nova Vida, Paruê era tudo desse igreja. Os adventistas chegaram aqui agora. Os cultos hoje é junto, a nossa igreja caiu, a gente vai fazer uma igreja boa aqui. Foi à primeira igreja que veio pra cá, a católica nunca teve influência aqui não! E quando eu for a Boa Vista eu vou falar com o Pastor Edson pra ver se consigo umas telhas pra gente fazer uma igreja pra nós aqui71.

Não foi possível aferir a informação dessa denominação Macuxi relatada pelo colaborador de informações, uma vez que para o registro de uma igreja é necessário algumas formalidades como: existência de um Estatuto Social, um endereço definido de sua sede, um líder responsável com titularidade eclesiástica, uma diretoria composta para exercício temporal pré-estabelecido etc. Considero que um trabalho mais apurado sobre a religiosidade no Flexal poderá desmistificar a existência regular dessa denominação. Quanto à MEVA, fui informado pelo atual Tuxaua, Sr. Abel Barbosa, que desde a década de 1960 os missionários desta instituição realizam atividades de formação de lideranças evangélicas na região. Atualmente, seu trabalho é pontual e se dá de forma 71

Lauro Barbosa, Entrevista, Uiramutã [Flexal], 2012.

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temporária com os missionários indo até à comunidade, realizando um trabalho por tempo determinado e retornando. A influência protestante na região fica clara quando os próprios moradores do Flexal questionam algumas ações e até práticas culturais que, em tese, é comum atribuirmos como genérico dos povos Macuxi como, por exemplo, os cantos e as danças. Neste quesito há, por exemplo, grande rejeição quanto à dança do parixara, pois definem como uma dança pagã, uma vez que as letras de suas músicas enaltecem a Natureza e reportam aos mitos Macuxi. Então a consideram como um paganismo e buscam no aleluia uma interpretação religiosa cristã protestante de louvor e adoração ao criador. Esta tem sua origem ligada a uma mestiçagem da evangelização pelas missões anglicanas na República Cooperativista da Guiana no final do Século XIX72. Souza (2011), em Trabalho Monográfico propôs a possibilidade do uso de cantos e danças tradicionais como instrumentos para fortalecimento da cultura Macuxi na Comunidade Willimon, descrevendo cinco tipos de cantos e danças tradicionais dos Macuxi com suas devidas funções, como segue: O Parixara, (...) É um ritual de comemoração de festejos e agradecimento a natureza, pelos alimentos, pelo ambiente, pelos materiais de construção, pela água, peixes e as caças, além das frutas e produtos da terra (p. 27). O Tukui é a dança do beija-flor e tem como enredo as belezas das aves, dos valores e criatividades artísticas, da paixão, são cantos de encantamento e saudades (p. 28). O Marimari é uma dança em homenagem aos novos casais que formam a família, está relacionado aos valores e responsabilidades masculinos e femininos. O canto expressa um exemplo de convivência da vida dos animais com a vida dos casais ou namorados (p. 29). Ximiitin são cantos e danças de natal “keresmoxi”. É feito no momento de renovação espiritual e para pedir forças. É cantado também nos encerramentos das danças do parixara e tukui ou nos encerramentos das grandes festas, para purificação de todos contra os males que aconteceram durante a festa, para voltar as suas casas com alma limpa e com o compromisso pessoal (p. 29). O Areruya, é a prática de dança religiosa, usado em momentos de oração da comunidade. Servem para agradecer, pedir saúde, benções e proteção do “paapa”. Esta dança e canto são reverenciais e é muito respeitado pelas pessoas que a praticam. Esta dança chegou a nós Makuxi, através do povo Ingaricó. Mais que algumas comunidades makuxi o adotaram como a sua religião (SOUZA, 2011, p. 30).

O autor comentou ainda que o Parixara, Tukui, Marimari e Ximiitin são danças e cantos que demonstram a origem da identidade mística do povo Macuxi. Contudo, o aleluia foi adotado de seus vizinhos Ingarikó, e em algumas comunidades como: Flexal, Caracanã, e outras tem o aleluia como expressão máxima da religião. A respeito des a dança ou canto, Santilli (2001) relatou a influência do aleluia na região especificamente no Caracanã,

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Ver COLSO, A. B. 1998.

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comunidade fundada pelo profeta do aleluia Clementino. Segundo o autor, as narrativas sobre este personagem da história Macuxi afirmam que ele foi discípulo de “Pre:gá”, um xamã que vivia nas serras e através do acesso aos Akawaios aprendeu o canto e dança do aleluia. O Alelúia – Areruia, Hallelujah – é um movimento religioso surgido, em fins do século XIX, entre os Macuxi nos campos do Rupununi. Tratava-se, segundo Colson, de uma reelaboração criativa da breve pregação missionária anglicana naquela região, na primeira metade do século (SANTILLI, 2001, p. 33).

Dessa forma entende-se o aleluia como uma junção de alguns elementos religiosos, ou seja, uma reelaboração criativa de aspectos cristãos absorvidos pelas práticas tradicionais formando uma nova forma de expressar o sentimento e culto para estes povos. Como mencionado por Souza (2011), a Comunidade do Flexal faz parte dessas comunidades que adotaram o aleluia como expressão religiosa. Ficou latente durante o trabalho de pesquisa de campo que há uma valoração ao aleluia frente ao parixara. E são poucas as pessoas com conhecimento avançado das músicas do aleluia. Dentre estas conhecedoras se destaca a Senhora Leontina Clementino. Nascida na Comunidade Caracanã, é esposa do Sr. Roseno, filho mais velho do Sr. Caetano Barbosa. Este último diz ser genro de Clementino Joaquim, que também foi Tuxaua no Caracanã. Pode não ser o mesmo personagem, mas, há semelhanças nas narrativas apresentadas por Santilli, e infelizmente não tive tempo para investigar esta similitude. O histórico do canto e dança do aleluia também foi abordado por Abreu (1995), que fundamentada em literatura e pesquisa de campo entre os Ingarikó, relatou, como outros autores, que o aleluia tem seus primeiros registros na literatura ainda no início do Século XIX. Teve como embrião o processo de catequese por missionários holandeses na região da Guiana Inglesa no início do referido século. Segundo a autora, esta inovação cerimonial se apresenta tanto “no eixo temporal passa do imediatismo para iminência, ou, da realidade para a virtualidade. E no eixo espacial passa-se de um paraíso terrestre para um paraíso celeste” (ABREU, 1995, p. 19). Desta forma, o modelo ritual anterior do profetismo kapon dá lugar a um cerimonialismo. Este reordenamento religioso tem um reconhecimento oficial do estado guianense como religião desses povos. Como é notória, a influência da relação com a sociedade nacional deixa rastro de mudanças nas culturas dos povos colonizados. Entre os Macuxi, o histórico dessa relação de longa data se mostra em muitos aspectos dos costumes tradicionais e a religiosidade se torna um dos mais proeminentes desse novo arranjo cultural.

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Souza acrescentou como grande colaboração para o esquecimento das danças e cantos tradicionais entre os Macuxi a adoção do forró como nova forma de divertimento das comunidades, algo que pode ser conferido pela boa aceitação atual desse estilo musical entre os povos indígenas de Roraima. E a história dessa aceitação vem da relação com a sociedade nacional: O frequente contato com a sociedade envolvente afetou as práticas das danças tradicionais e estas foram perdendo o prestígio, (...) já que lhes foram impostas outros tipos de danças para diversão, como o forró. Os fazendeiros organizavam nas suas fazendas grandes festas dançantes de forró. Convidavam os pais das moças indígenas para levá-las para festas. Lá os fazendeiros davam bebida alcoólica aos pais das mesmas, embriagados estes dançavam, num certo momento da festa eram expulsos da festa e os fazendeiros e seus funcionários ficavam com as moças e abusavam sexualmente delas. Como se tivesse encontrado um novo jeito de se divertir, os pais (indígenas) passaram a organizar festas de forró nas suas próprias comunidades, alguns jovens e pessoas adultas, aprenderam a manusear os instrumentos musicais como violão, sanfona e outros e passaram a se apropriar do forró, que nas festas das malocas (...) Assim as danças tradicionais foram perdendo o valor, pois as festas de forró tornaram-se frequentes, criava-se qualquer motivo para dançar o forró (SOUZA, 2011, p. 30).

Além da troca de suas formas de divertimento, o triste histórico dessa relação, conforme comentado por Souza, revela uma violência física cultural com que as comunidades conviveram pela presença de fazendeiros em suas vizinhanças. Por sua vez, Dal Poz (2009) apresentou o exemplo do povo Zoró que passou por um processo devastador do ponto de vista cultural ao abrir mão de suas práticas e costumes tradicionais para absorver uma nova religiosidade. Já no início da década de 1980, impressionou o antropólogo Gambini (1983) o empobrecimento cultural generalizado. Um único ritual substituia os anteriores: o culto protestante, monótono e repetitivo - passagens do Gênese, louvores a Jesus Cristo, hinos em língua Zoró. Quatro anos depois, o mesmo antropólogo encontrouos mais fervorosos ainda, sendo os cultos realizados diariamente - um pela manhã, apenas para as mulheres, e um à noite, para toda a comunidade. Liderados por um pastor zoró, os “crentes” compartilham relatos bíblicos, confissões públicas, testemunhos de fé, hinos, passes de mão e atendimento a doentes (DAL POZ, 2009).

A preocupante condição de substituição das práticas religiosas tradicionais trouxe à tona o perigo da morte da memória desses povos no que diz respeito à sua própria criação e existência, algo sustentado pelos mitos e crenças e transmitido às outras gerações pelos cantos, danças e histórias. Estes têm a função de manter uma fronteira definidora de seu espaço e consequentemente de sua cultura. A respeito desses impactos em sociedade

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indígenas, Almeida (2004), quando analisou a influência das igrejas cristãs entre os Kaigang no sul do país, acrescenta que: Em suma, as religiões cristãs incorporadas pelos indígenas adquirem características das relações internas e do pensamento daqueles que aderem a ela e servem de suporte às mudanças das relações sociais permitindo a continuidade da vida comunitária e a ampliação das fronteiras de relacionamento com o outro (ALMEIDA, 2004, p. 9).

Comparando os resumos desses autores, é possível abstrairmos que a função da religião como instrumento de colonização, pelo menos do contato como a literatura descreve, teve como principal sequela alterar a configuração cosmológica desses povos. Em Roraima, as narrativas de Dom Alcuíno Meyer revelam a intenção do investimento espiritual como forma de levar a salvação de suas almas. Na cosmologia dos povos circum Roraima, faz parte de suas crenças, e considerei interessante o valor atribuído, ainda que com algumas explicações mais elaboradas que demonstram resquício do passado, que os moradores do Flexal dão à crença na existência da figura do kanaimé, um ente de significado polissêmico para os povos indígenas de Roraima e do entorno, também apelidado de “rabudo”, tem suas histórias cercadas de medo, magia e misticismo. Primeiro, é sempre pessoa do sexo masculino, segundo é sempre o outro e nunca uma pessoa da própria comunidade a ser acusado. E as acusações aos Ingarikó é sempre a primeira intenção. Poucos testificam terem visto pessoalmente, embora os feitos sejam constantemente relatados e servem de alerta, cuidado e temor para os outros que não querem jamais um infeliz encontro deste. No Flexal, as narrativas a respeito deste personagem apresentam uma concepção do kanaimé viva e eficaz de sua existência. Segundo o Sr. Caetano Barbosa: Os cachorros protegem a comunidade do kanaimé. Uma vez os meninos saíram atrás de uns que tavam por perto aqui, andaram pela serra, e subiram e desceram por aí tudo mais os bichos já tinham ido embora. Dizem que ele vira cachorrão bem grande, o pessoal já viram por aí. Aí tava de noite, não muito longe, mais ele quis chegar perto e quando focou ele fugiu, devia ter atirado antes!!73

Por sua vez, Alencar, filho do Sr. Caetano, confirmou o estado de atenção que a comunidade mantém para um eventual encontro com o kanaimé: “Quando a noite os

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Caetano Barbosa, Entrevista, Uiramutã [Flexal], 2012.

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cachorros ficarem latindo direto no igapó, pode crer que é eles que tão por aí. E eles se transformam mesmo, é fato, vira tamanduá, onça, cachorro, cobra é verdade!” 74. Na ocasião dessas conversas, perguntei se por acaso o kanaimé poderia revidar a um ataque no caso de se sentir cercado, e em suas informações que nem sempre são claras foram enfáticos ao afirmar que “são traiçoeiro, sempre procuram agir quando a pessoa está só e fogem quando percebem que foi visto” 75. Em sua versão, o Sr. Lauro comentou que: ... Na região tem ataque de vez em quando. Mais não é de moradores da comunidade é sempre pessoa que vem de fora principalmente da Guiana, é sempre de fora, às vezes da Venezuela. Já teve bastante vítima, até com óbito, inclusive o meu sobrinho que foi atacada há uns quatro meses atrás76.

Horácio Barbosa continuou a fala de seu pai Lauro acrescentando a experiência de seu primo no encontro com um kanaimé: ... ele lutou porrada mesmo sozinho pra sobreviver, estava pescando do outro lado da serra quando eles atacaram, tomaram o caniço, o facão, o minhoqueiro material de pesca dele e vieram largar ele logo ali perto. Eu estava chegando da escola à tarde quando eu vir, até pensei que ele estava bem mais ele tava ruim, ainda ofereci um gole de caxiri mais ele dispensou, não estava bem. Ai, diz à lenda que quando a pessoa é atacada não consegue falar, ai deve se lavar um pilão e dar á água pra ele beber, ai fizeram isso e ele contou na hora que tinha sido atacado por kanaimé. Eram cinco e ele teve que lutar com todos pra escapar77.

As narrativas da experiência do confronto são assustadoras, não negam que sejam pessoas que podem agir sobre efeitos de drogas ou mesmo de magia, mas atribuem a estes a capacidade de se transformarem em animais disformes como forma de se disfarçar em suas fugas, possui uma força além da conta, às vezes andam em grupo. São aspectos que cercam a existência do kanaimé. Confesso que a noite posterior a estas conversas não foi uma situação de terror, mas de atenção aos rumores dos caninos em momento noturno porque eu dormia numa casa que dava acesso livre à área externa. Por outro lado, o ataque à pessoa não indígena não se enquadra na preferência do kanaimé. Ainda a respeito desse assunto, Farage (1986), ao descrever sobre a figura do kanaimé na região das guianas, comentou:

74

Alencar Barbosa, Entrevista, Uiramutã [Flexal], 2012 Caetano Barbos, Entrevista, Uiramutã [Flexal], 2012. 76 Lauro Barbosa, Entrevista, Uiramutã [Flexal], 2012. 77 Horácio Barbosa, Entrevista, Uiramutã [Flexal], 2012. 75

90 Os dados etnográficos em geral convergem para explicar que para os Carib e Arawak não haveria morte natural as doenças, os acidentes fatais são atribuídos, via de regra, ao Kanaimé, intervenção enviada pelos inimigos, seja por meios mágicos ou pela ação humana direta (FARAGE, 1986, p. 205).

Segundo a autora, o personagem kanaimé está mais relacionado à vingança, muito embora argumentou também sobre o fato dos ataques estarem relacionados a pessoas de outras comunidades ou etnias. No caso na Comunidade do Flexal sempre se reportam aos guianenses e Ingarikó. Inclusive, segundo o Sr. Caetano comentou que existe a possibilidade de aviso e eventual presença do kanaimé quando da mobilização de muitas pessoas de outras comunidades para a região para festas ou jogos. “O kanaimé ataca gente grande, mas se não der ataca as crianças mesmo. Aí os parente às vezes avisa pelo rádio dizendo, vai um bocado de gente por aí, Flexal, Macuquém, Monte Moriá 1 e 2, Caracanã, Nova Vida. Aí eles vem junto” 78. Cirino (2008), em sua pesquisa doutoral, apresentou uma análise sobre a catequização dos índios Wapixana. Ao descrever a cosmologia Wapixana relatou que: A morte era apreendida como conseqüência da atuação de entidades malígnas que agiam por intermédio de um feiticeiro e era também conseqüência do esquecimento de tais ensinamentos. Entre essas entidades, o “Canaime" era a mais perigosa, podendo causar morte e infortúnios físicos, sendo a mais presente no imaginário Wapischana (p. 124).

Dessa forma, compreendemos que ao compartilhar parte da mitologia e crenças uns dos outros, Macuxi e Wapixana também percebem a morte como consequência de ações malignas e o kanaimé como um dos principais responsáveis por tal conclusão. Nos registros etnográficos dos irmãos naturalistas alemães Robert-Hermann e de Richard (Moritz) Schomburgk, Frank (2007) destacou-se a visão destes europeus que deixaram uma grande contribuição para os trabalhos modernos de descrição dos costumes e da impressão com que perceberam estes povos. Por exemplo, suas opiniões sobre o personagem kanaimé: É, pois, via a astúcia que [o índio] tenta satisfazer a sua sede de vingança, que é a [verdadeira] fonte daquela fantasmagoria que o acompanha constantemente, em todos os seus caminhos e em todas as [suas] atividades, [e] que pesa como um pesadelo sobre a sua alma. É essa [fantasmagoria que] o faz fechar cuidadosamente a porta da sua casa, no início de cada noite, e cuja chegada ele acredita avisada através de qualquer ruído noturno inusitado. [...] Naqueles instantes, nos quais a sede de vingança faz o indígena atuar como Kanaima, ele persegue sua vítima como uma cobra que se arrasta por baixo das folhas secas. Nunca a perde de vista [...] até [o 78

Caetano Barbosa, Entrevista, Uiramutã [Flexal], 2012.

91 momento em] que logra, finalmente, surpreendê-la dormindo. Então, ele coloca uma pequena quantidade de um pó nos lábios ou debaixo do nariz [da vítima]. Assim que [a vítima] inala [esse pó], uma forte dor queima os seus intestinos. Uma febre enfraquecedora, uma sede tantálica que não pode ser apagada – esses são os sintomas do envenenamento, entregando a vítima à certeza assustadora de que seus dias, até as horas, estão mesmo contados. Dentro de quatro semanas, o enfermo se reduz à pele e a ossos, e morre com as mais horríveis dores (p. 109-110)79.

Este ente do imaginário Macuxi e povos circum Roraima com seus valores duvidosos e suas práticas atormentadoras contribui para elevar o valor místico e cosmológico que a cultura Macuxi carrega. Muito embora seja combatido e procurado quando em suas ações de ataque, mantém uma sólida identidade desses povos.

4.3

Uma ideia negativa ou um empreendimento fantasmagórico

No ano de 2009, depois da presença do então Presidente da Rep=blica, Luis Inácio Lula da Silva, nas festividades de comemoração de um ano da homologação e desintrusão da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, na Comunidade Maturuca, município de Uiramutã, foi dado início a um diálogo em torno da possibilidade de implantar um sistema de geração de energia elétrica através de fonte de geração alternativa. Como as tecnologias e recursos disponíveis na região eram escassas, foi proposto o aproveitamento de alguma cachoeira. Esteve à frente a SEI em parceria com a CERR. Tomaram por justificativa as próprias demandas por energia das comunidades indígenas de Roraima. Foram realizadas visitas em várias comunidades na busca de verificar a potencialidade de cada uma e ao final foi elaborado um relatório que propôs o aproveitamento da Cachoeira da Andorinha, no rio Ailã, Município de Uiramutã, TI Raposa Serra do Sol, e a corredeira do Puraquê, no rio Surumu, Município de Pacaraima, TI São Marcos, para a construção de duas Micros Centrais Hidrelétricas – MCH com capacidade de geração de 960 kilo Watts - KW, cada uma. A pretensa obra teria inicialmente como resultado o atendimento de 41 comunidades da TI Raposa Serra do Sol (QUADRO 1), nas redondezas da sede do município com uma extensão de aproximadamente 160 quilômetros rede.

79

SCHOMBURG, R. 1847, vol. I: p. 322-23 apud FRANK, 2007, p. 109-110.

92

QUADRO 1 LISTAGEM DAS COMUNIDADES A SEREM ATENDIDAS PELA MCH ANDORINHA Item Comunidade N° de Famílias Latitude 1 Andorinha 13 4,72236 2 Arabadá 15 4,41903 3 Camararém 33 4,52777 4 Caracanã 22 4,70361 5 Enseada 43 4,43750 6 Escondido 10 4,62150 7 Flexal 79 4,66694 8 Flexalzinho 11 4,47462 9 Keweken 04 4,72618 10 Lage 22 4,62337 11 Lilás 10 4,51342 12 Macedônia 10 4,39202 13 Macuquém 16 4,67900 14 Maracanã 1 42 4,36376 15 Maracanã 2 13 4,35694 16 Maturuca 56 4,46429 17 Monte Muriá 1 34 4,66670 18 Monte Muriá 2 32 4,66698 19 Monte Sião 12 4,59563 20 Morro 45 4,35722 21 Mutum 11 4,45221 22 Nova Vida 1 19 4,62787 23 Nova Vida 2 10 4,63622 24 Paiuá 24 4,57453 25 Pé de Serra 12 4,59806 26 Pedra Branca 42 4,44925 27 Popó 07 4,60844 28 Prododó 06 4,64500 29 Salvador 16 4,71454 30 Santa Paz 10 4,52029 31 Santa Rita 07 4,42333 32 São Francisco 10 4,59155 33 São Mateus 09 4,65605 34 Socó 1 10 4,47035 35 Socó 2 05 4,47135 36 Tabatinga 40 4,49115 37 Ticoça 55 4,41528 38 Uiramutã 1 11 4,60042 39 Uiramutã 2 32 4,59453 40 Wilimon 25 4,63535 41 Ximaral 06 4,66921 FONTE: Anteprojeto MCH Andorinha, Arquivo CERR, 2011.

Longitude -60,22967 -59,92505 -60,18055 -60,26517 -60,23389 -60,14963 -60,28955 -60,18735 -60,23645 -60,14269 -60,18110 -60,08286 -60,21976 -60,01910 -60,00694 -60,09955 -60,21504 -60,21606 -60,26395 -59,97000 -59,85472 -60,29395 -60,28558 -60,19944 -60,15721 -60,27675 -60,15699 -60,20076 -60,22790 -60,20227 -60,17278 -60,15761 -60,20563 -60,17647 -60,17547 -60,26220 -60,12000 -60,16237 -60,15918 -60,17563 -60,22598

O diálogo foi iniciado e logo foi proposto que a pretensa energia a ser gerada deveria atender única e exclusivamente consumidores indígenas. Esta iniciativa visava minimizar os conflitos ideológicos nos debates diminuindo o conflito entre interesses dos índios e de não índios. Na TI São Marcos a negociação foi tranquila, uma vez que já havia um pleito reivindicando por energia devido ao fato desta TI ser dividida ao meio por uma linha de Transmissão de 230 KV que transporta energia da Venezuela para Roraima desde o ano de

93

2001. E sobre este empreendimento, Repetto (2005) analisou os conflitos gerados entre os povos atingidos por esta obra tanto do lado brasileiro quanto do lado venezuelano. Mas especificamente sobre o projeto da MCH, a reunião na sede do projeto São Marcos contou com a presença de um representante do Ministério Público da União e da Coordenação Regional da FUNAI, e foi deliberado por parte das comunidades pela aprovação ao empreendimento, cabendo aos órgãos competentes se manifestarem. A proposta previa inicialmente como resultado o atendimento de 34 comunidades na TI São Marcos e adjacências (QUADRO 2), compreendendo o eixo da BR 174 e da BR 433 com aproximadamente 200 quilômetros de rede.

QUADRO 2 LISTAGEM DAS COMUNIDADES A SEREM ATENDIDAS PELA MCH SURUMU Item Comunidade N° de Famílias Latitude 1 Nova Esperança 28 4,44414 2 Ingarumã 32 4,43066 3 Arai 12 4,42318 4 Samã 1 15 4,41454 5 Samã 2 24 4,40663 6 Sorocaima I 47 4,41854 7 Sorocaima II 70 4,41298 8 Guariba 39 4,42166 9 Bananal 44 4,42890 10 Boca da Mata 115 4,35035 11 Maloca São Marcos 04 4,25750 12 Entroncamento 13 4,23098 13 Sabiá 26 4,18535 14 Santa Rosa 34 4,22785 15 Curicaca 10 4,21896 16 Mel 14 4,29609 17 Xiriri 14 3,92007 18 Caranguejo 10 4,07701 19 Surumu 63 4,19509 20 São Jorge 33 4,15613 21 Contão 250 4,17118 22 Pedra do Sol 10 4,09201 23 Santo Antônio 08 4,07535 24 Taxi 1 42 4,23924 25 Taxi 2 39 4,22370 26 Machado 18 4,18703 27 Placas 22 4,17896 28 Renascer 09 4,17824 29 Olho d'água 36 4,12339 30 São Francisco 22 3,94957 31 Limão 10 3,93507 32 Banco 09 4,07412 33 Wixi 08 3,98684 34 Araçá 95 4,17290 FONTE: Anteprojeto MCH Surumu, Arquivo CERR, 2011.

Longitude -61,12282 -61,10491 -61,09081 -61,06061 -61,04426 -61,15618 -61,15951 -61,17905 -61,21917 -61,14174 -61,03499 -61,01494 -61,00646 -61,12312 -61,07146 -60,88631 -60,50563 -60,59396 -60,79160 -60,76986 -60,54118 -60,61618 -60,58285 -60,64313 -60,63088 -60,62769 -60,52590 -60,70721 -60,46896 -60,43569 -60,49118 -60,42583 -60,44017 -60,44187

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Por outro lado, na TI Raposa Serra do Sol a negociação foi mais complexa. Como a SEI possuía estreita aproximação com a organização SODIUR (que no período tinha a Comunidade Flexal como base principal), algo descrito por Repetto (2008), gerou um conflito sobre o projeto com o CIR. Esta, como é a organização que concentra a maior quantidade de lideranças, em sua 40ª Assembleia Geral dos Povos Indígenas, instância máxima deliberativa dessa organização, nos dias 11 a 15 de março de 2011, apreciou a proposta e reprovou-a por unanimidade. Sua reprovação à continuidade das discussões sobre o projeto gerou um grave desgaste político entre as organizações envolvidas. De um lado, a Associação dos Povos da Terra Indígena São Marcos (APTISM) com suas filiadas e a SODIUR defendiam a continuidade das propostas, de outro, o CIR veementemente negou a iniciativa propondo nova proposta para aproveitamento eólico e hídrico na região. Em atendimento a esta negativa do CIR, a FUNAI se manifestou negando a autorização da continuidade dos estudos. Ainda que o início da ideia tivesse nascido a partir de um evento na Comunidade Maturuca, que naquele período carregava o estigma de quartel geral – QG do CIR, como também foi a primeira comunidade a ser verificada se havia potencial hídrico suficiente para um empreendimento, foi encontrada maior resistência na mesma localidade que justificou e inspirou a iniciativa. No entanto, foi perceptível que o próprio Estado realizou ações no correr do processo sem as devidas observâncias ao rito organizacional e processual das comunidades. Embora não seja possível ter uma afirmativa quanto à verdadeira intenção (já que se trata de ações políticas), pelo menos a apresentada considerava estar propondo condições de sustentabilidade como também atendendo o que recomenda a Convenção Relativa aos Povos Indígenas e Tribais, OIT 169, instituída no Brasil pelo Decreto nº. 5.051, de 19/04/2004, em seu artigo 2, inciso 1 e 2, alínea c: Artigo 2° 1. Os governos deverão assumir a responsabilidade de desenvolver, com a participação dos povos interessados, uma ação coordenada e sistemática com vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o respeito pela sua integridade. 2. Essa ação deverá incluir medidas: c) que ajudem os membros dos povos interessados a eliminar as diferenças sócioeconômicas que possam existir entre os membros indígenas e os demais membros da comunidade nacional (BRASIL, 2004).

Estas medidas previstas na convenção foram consideradas como pilares do atendimento aos quesitos da sustentabilidade de comunidades indígenas. Embora as iniciativas de eletrificação de comunidades indígenas visem eliminar as diferenças

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socioeconômicas, em Roraima a iniciativa por parte do Estado teve resultado diverso ao esperado por terem iniciado com articulações políticas divergentes ao roteiro cultural tradicional desses povos, o qual prevê uma iniciativa conciliada das comunidades e organizações. De modo diverso, outras probabilidades negativas de caráter atemorizantes, como a ideia da construção da hidrelétrica na cachoeira do Tamanduá no rio Cotingo, por exemplo, foram capazes de gerar uma perspectiva fora do comum pelos conhecedores dos conhecimentos vitais para a cultura Macuxi. Esse temido empreendimento, se lavado a cabo, trará impacto cultural enorme e irreversível, pois, além das comunidades no percurso onde deverá ser alagado80, a própria Cachoeira do Tamanduá perderá parte de seu significado, já que é um dos principais lugares de reprodução mitológica, “espaço de formação xamânica”, lugar de habitação de espíritos ancestrais para o povo Macuxi81. Essas opiniões podem parecer crendices e precipitações por parte dos povos indígenas, ao olhar do não indígena, mas são colunas que sustentam a continuidade da cosmologia desse povo, fundamentos da religião tradicional Macuxi. Ao final da 40ª Assembleia do CIR, percebi que mesmo a última plenária tendo seu objeto mais amplo, (por exemplo, garimpagem, direito e Estatuto do Índio em debate), o direito à continuidade da existência de um ambiente sagrado se manifestou com uma importância acima dos debates subjacentes. Dessa forma, o sub-tema energia se desfez e se tornou apenas parte dos discursos, e a essência do debate girou em torno da vulnerabilidade cosmológica do grupo. Diante do debate em torno de uma ideia de infraestrutura cercada de compreensões negativas, como é o caso de aproveitamento de recursos hídricos na TIRSS, veio à tona a necessidade de um diálogo mais franco, uma negociação menos ambiciosa por parte dos grupos políticos, uma liberdade de dizer não pelos indígenas e uma lição de contenção de uma perspectiva de mudança evitada em tempo.

80

CIR & Comissão Pró-Indio, 1993, p. 54. Exposição oral da liderança Júlio Macuxi da comunidade Maturuca, no Seminário Diversidade Socioambiental de Roraima, realizado pelo ISA, no auditório da UFRR, em 9 de novembro de 2011. 81

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4.4

Organização política Macuxi em contexto de mudança

A política local nas comunidades do povo Macuxi gira em torno da existência de um conjunto de funções administrativas na comunidade e na arena das assembleias local, regional e geral se realiza na essência do Controle Social. São reuniões abertas e o poder da palavra se manifesta como ápice dessa relação política, tendo por referência a figura da liderança, a quem é dado o título de Tuxaua. Segundo Repetto (2008), Dependendo do tamanho, do volume populacional e das condições de trabalho, hoje quase todas as malocas Makuxi ou Wapichana, tem a seguinte estrutura administrativa: a) tuxaua; b) segundo tuxaua; c) capataz; d) professor (es) (diretor de escola); e) vaqueiro; f) catequista; g) cantineiro; h) responsável pelo corte e costura ou clube de mães; i) responsável pela marcenaria; j) conselheiro (s). Isto implicou uma reestruturação das comunidades, que visava a revigorar a vida social interna, abalada de forma geral pela situação de dominação e desestruturação que sofreram, produto das invasões de fazendeiros e garimpeiros. Esta reestruturação surgiu com um incentive para a organização coletiva e para modificação das difíceis condições de vida que levavam trabalhando nas fazendas, sofrendo grandes·violências e ameaças, tendo as roças e as áreas invadidas e devoradas pelo gado, sendo expulsos pelas armas de capangas e policiais militares que chegavam a atear fogo nas casas de barro e palha, sem poder caçar e pescar par serem proibidos pelos fazendeiros ou porque já não havia mais animais e peixes nas águas contaminadas por mercúrio; e por fim, vitimas do alcoolismo e da prostituição nas corruptelas dos garimpos (REPETTO, 2008, p. 118).

O autor deixou clara, a composição administrativa de uma comunidade no contexto temporal da atualidade. Mas, este modelo não nasceu pronto. Especificamente no contexto do Flexal, a narrativa sobre a política de lideranças na região no passado se dava na forma de uma liderança que arrebanhava toda uma região na relação com os padres, os fazendeiros, os garimpeiros e outros atores não indígenas. Segundo o Sr. Caetano, O primeiro Tuxaua da região foi Armando da Comunidade da Pedra Preta morreu vítima de kanaimé, depois o Amaro Barbosa, meu irmão mais velho, também do Pedra Preta, depois foi meu sogro Clementino Joaquim da Comunidade Caracanã, depois o Paulo da Comunidade Willimon, depois o Júlio da Comunidade Uiramutã, ai teve o Davi da Comunidade Nova Vida que era meu primo, depois Lauro daqui do Flexal, que é meu irmão e por último o Abel que é meu filho82.

Esta narrativa por um lado deixa clara uma linhagem dos Tuxauas do Flexal. Por outro lado, ficou claro na conversa que a cada dia se comprime a área de influência de um tuxaua, pois, segundo o interlocutor, no passado havia apenas uma liderança que atendia e representava toda uma região com diversas comunidades. Hoje, cada liderança representa uma 82

Caetano Barbosa, Entrevista, Uiramutã [Flexal], 2012.

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única comunidade como uma relação de poder compacta. Essa ideia de uma possível compressão na abrangência da liderança de um Tuxaua reforça a tendência da fragmentação de comunidades sob direção de mais de um tuxaua, filiados a organizações distintas, como comentado anteriormente. Mas a respeito da função social do chefe indígena, que dá origem à noção de liderança a que os tuxauas se apresentam, Clastres (2003) comentou três características essenciais de um líder pontuadas por Lowie (1948), para quem estas são características comuns entre os povos nativos das Américas: I] O chefe é um "fazedor de paz"; ele é a instância moderadora do grupo, tal como é atestado pela divisão freqüente do poder em civil e militar. 2] Ele deve ser generoso com seus bens, e não se pode permitir, sem ser desacreditado, repelir os incessantes pedidos de seus "administrados". 3] Somente um bom orador pode ter acesso à chefia (CLASTRES, 2003, p. 47).

Nessa perspectiva, Clastres desenvolveu toda uma discussão em torno do papel da chefia, algo que o processo colonizador explorou muito bem. E no contexto da região de Serras de Roraima, conforme observado na fala do ancião Caetano, a autoridade de um Tuxaua abrangia uma região com grande número de aldeias, e com as mudanças e o fracionamento político, estas áreas foram reduzidas até o ponto atual em que cada comunidade possui seu próprio corpus administrativo. Mas a figura do Tuxaua possui outras concepções por se tratar de um título mais abrangente e de histórico complexo. Cirino (2008), ao tratar da organização social do povo Wapixana, comentou a obra de Herrmann (1947) sobre a existência de uma estratificação dessa titularidade: Herrmann, por sua vez, quando analisa o controle formal dos Wapischana, assinala três categorias de tuxauas: o tuxaua-da-guerra, chefe de expedições militares que na época não mais existia, o "tuxaua-da-taba" que exercia o controle no âmbito da "aldeia", já mencionado, e o tuxaua-capitão que tinha sob sua jurisdição vários tuxauas de uma determinada região. Quanto ao cargo de tuxaua-capitão, teria sido criado pela necessidade de um intermediário entre os índios e o governo brasileiro e não correspondia propriamente às instituições dos índios (CIRINO, 2008, p. 109).

Mas o contexto atual traz à tona outra forma de tratamento, em que o Tuxaua possui um papel social dividindo responsabilidades com outros atores de importância similar, não perdendo o prestígio da referência local. Esta autonomia comunitária que gerou a multiplicação de novas lideranças que se afirmaram, condicionando para a realidade atual, quando todas as comunidades têm a sua liderança local, trouxe grande contribuição através do incentivo às ações de políticas

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indígenas com o apoio de organizações indigenistas, especificamente da Igreja Católica Apostólica Romana, para realização das assembleias gerais de tuxauas, no início da década de 1970. Como descreveu Repetto (2008): A dinâmica de assembleias vivenciada hoje pelas comunidades indígenas do norte e do leste de Roraima foi remodelada na década de 1970, graças ao apoio logístico e aos incentives dos missionários católicos. A partir daí, as lideranças começaram a se reunir para discutir seus problemas e para fazer reivindicações. Dai em diante, perfilaram-se os campos prioritários de atuação política das lideranças: demarcação de territórios indígenas, saúde, educação e melhoras nas condições de vida (p. 121).

Também foi neste período que houve a germinação dos movimentos indígenas que teve por resultado, após tantas discussões, o nascimento do que hoje é o CIR. Essa entidade possui uma longa história de mobilizações pelos direitos dos povos indígenas que remota à década de 1970. Conforme a fala de uma das principais lideranças da Comunidade Maturuca e um dos fundadores do CIR, a primeira Assembleia Geral de Tuxauas ocorreu em 1971 na Missão Surumu83. Mas a realidade atual do CIR é um desdobramento de uma realidade construída com muito diálogo e apoio de outros agentes colaboradores com o processo e institucionalização do movimento indígena no Brasil. Essa informação foi verificada por Athias (2000), que relatou a organização das Assembleias Gerais de Tuxauas, articuladas com a parceria das missões católicas, sendo posteriormente apoiadas pela The Oxford Committe for Famine Relief – OXFAM, organização não governamental que financiou diversos projetos no Brasil. Em sua pesquisa doutoral, Repetto (2008) acrescentou mais detalhes sobre a história de união e segmentação do CIR, destacando a criação inicial do Conselho Indígena do Território Federal de Roraima - CINTER que foi a gênese do CIR. Congregava as lideranças das regiões da Comunidade da Raposa e Serras, posteriormente se estendeu às outras regiões (p. 126-127), e passou por rupturas internas a partir das ideologias políticas existentes no seu meio: Pode-se perceber que a APIRR foi a primeira divisão entre indígenas que se afastaram do CINTER, reunindo lideranças que não concordavam com as decisões maioritárias do CINTER. Algumas destas lideranças procuraram apoio no Governo do Estado, mas dependendo do rumo dos acontecimentos algumas das lideranças procuraram afastar-se do mesmo. Posteriormente, se desmembraram da APIRR as organizações ARIKOM, SODIURR, TWM, e ADMIR. Ainda várias organizações regionais se mantiveram associadas a APIRR, entre 1995 e 1998 (ARTID, ARIA, ARIBAS, MCBA, ACB, ADMIR) (REPETTO, 2008, p. 129).

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Relatório da Quadragésima Assembleia Geral dos Povos Indígenas de Roraima.

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A partir dos conflitos de interesses, houve uma diversificação no movimento indígena de Roraima. Muito embora exista uma quantidade de organizações indígenas, a política estadual indígena gira em torno de junção de várias organizações pequenas que de modo confederado se juntam a uma das organizações majoritárias, consolidando maior força tanto nas reivindicações de direitos quanto em situações de protestos. Mas a política indígena em Roraima não se resume apenas na pessoa dos tuxauas. Há que considerarmos o papel das reuniões e assembleias locais onde se efetiva uma verdadeira democracia local. E voltando às ideias de Clastres, é nas reuniões locais que se efetiva a influência e o poder do Tuxaua. Há também reuniões regionais e assembleias gerais como descreveu Repetto (2008): Uma ''reunião" caracteriza-se por geralmente convocar um número limitado de lideranças e não ser aberta como uma assembleia regional ou estadual. Estas "reuniões" realizaram-se tanto nas comunidades, nas regiões quanto na capital do Estado. Geralmente se utiliza esta categoria para referir-se a encontros de articulação ou para avaliações e planejamentos gerais periódicos ou extraordinários, bem como para discutir problemas pontuais... (p. 121).

Podemos ver que a história do Movimento Indígena em Roraima possui várias percepções, como todo processo de construção participativa e social, enquanto os interesses se mantinham em comum acordo, prossegue um projeto de unidade como planejado, mas, quando os interesses se dissociam, a ruptura da ordem estabelecida se estremece. Foi o que ocorreu com o Movimento Indígena em Roraima. Não dá para descartar que o que está em jogo é poder humano. A segunda organização majoritária é que tem sua total influência na Comunidade do Flexal, localidade por muito tempo considerada o “Quartel General – QG” dessa instituição. Tendo seu ápice no conhecido e comentado episódio da atitude das lideranças da comunidade que detiveram pelo período de nove dias quatro agentes da Polícia Federal – PF em uma cabana no centro da comunidade no mês de abril do ano de 2005, em protesto pelo encaminhamento da homologação da TIRSS em área contínua e outras insatisfações. A SODIUR é conhecida como instituição emblemática: primeiro, é uma das poucas instituições indígenas a reunir apenas membro de uma única etnia, só congrega lideranças Macuxi, não se associa, pelo menos até então, com nenhuma outra organização, e embora não possua o mesmo número de associados que o CIR, sua influência predomina nas maiores comunidades das savanas e serras.

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Essas reviravoltas do Movimento Indígena de Roraima estão inteiramente ligadas ao conflito pela terra, especialmente à situação confusa gerada durante o processo da demarcação da TIRSS. A exigência de um posicionamento por parte das lideranças indígenas foi responsável por provocar as mais drásticas cisões entre pares do processo. E ao analisar o contexto político de Roraima, Repetto (2008) destacou a participação de figuras emblemáticas no cenário político local e nacional, fazendo enfoque ao ex-Governador de Roraima, Ottomar de Souza Pinto, e seus correligionários e familiares que perpetuam na política estadual e se destaca como um dos incentivadores da fragmentação das forças indígenas em suas próprias bases. Como na citação a seguir: Como governador, segundo lideranças da APIRR, Ottomar esteve envolvido na fundação da Associação dos índios Unidos do Norte de Roraima (SODIURR), que se produziu a partir de um cisma da Associação dos Povos Indígena do Estado de Roraima (APIRR), que já não estava comungando das propostas do governador. Com as mudanças de governadores, as organizações indígenas aliadas ao governo mantiveram vínculos com e1es, apoiando as propostas de demarcação em "ilhas" e atuando contra as propostas de demarcação em áreas "contínuas", fazendo frente a outras organizações indígenas e a Igreja Cató1ica (REPETTO, 2008, p. 42)84.

Ao observar o debate em torno do Movimento Indigenista de Roraima, é perceptivo que parece um caminho sombrio para um posicionamento. Por um lado, adentrar no campo que a todo instante é contestado por defender uma postura de interveniente ou alienador político de parte de uma classe que pleiteavam uma solução definitiva do território parece complexo e muito provável ser taxado de cúmplice desse grupo político de ideário colonizador, sendo desses a história contada há muito tempo. Mas por outro lado, a situação do contexto político durante a demarcação de TIRSS exigia um posicionamento político por parte das lideranças indígenas e colocava em cheque as perspectivas de desenvolvimento, segundo os moldes ocidentais contra as ameaças de retração ou enclausuramento em seus territórios. Aos que persistiram em suas convicções de mãos dadas enfrentando a “máquina” e “opinião” pública alem da classe política dominante tiveram seus sonhos de definição territorial realizado. Enquanto os que de alguma forma também mantiveram sua postura de parceria com esta classe política, em concordância com a “opinião” pública constituída em busca de um modelo desenvolvimentista ficcional, não tiveram o êxito pleiteado. No entanto, a homologação da terra foi um ganho para todos que, de alguma forma, compreensiva ou não, desejam valorizar suas origens.

84

Op. Cit., p. 42.

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E as lideranças do Flexal e de outras comunidades, especialmente as afiliadas à SODIUR, adotaram a opção por manter a parceria antes estabelecida em detrimento da maioria que contestava tal postura, fazendo com que fossem rotulados de “persona non grata” no movimento indígena predominante. Isso os forçou a manterem o compartilhamento de objetivos e traçarem um caminho alternativo no movimento indígena do Estado. Dessa forma, com o apoio da classe política criaram uma espécie de “movimento indígena oficial” do Estado. Por outro lado, embora atualmente continue uma linha divisória que mantém esta divergência de ideias e de contestação entre um e o outro no que diz respeito às suas posições no movimento indígena como um todo, de modo geral considero que estas divisões e contestações contínuas não fazem o mesmo sentido, pelo menos na questão do território Macuxi, que justificavam as dissensões.

FOTO 5: Uma Assembleia da SODIUR, Flexal. Fonte: Arquivo Pessoal do Pesquisador, 2011.

Dessa forma, destacamos as figuras de poder e prestígio nas comunidades Macuxi: o Tuxaua que atua como representante externo da comunidade, o 2º Tuxaua é o substituto do primeiro na sua ausência e mantêm uma relação estreita entre os pais de família e o 1º

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Tuxaua, a função do Capataz funciona como aquele que mobiliza para as atividades coletivas, é ele que planeja e convoca os pais de família para os serviços de ajuri, quem controla os bens coletivos, quem toma a frente dos serviços principais, quem chama a atenção de alguém que porventura esteja usurpando ou tomando proveito dos recursos da coletividade. Mas ainda sobre o contexto político, a Comunidade do Flexal, como a maioria das comunidades indígenas de Roraima, tem suas alianças políticas que se manifestam com maior destaque durante as campanhas eleitorais. E na campanha eleitoral municipal de 2012, o Flexal participou do processo político de forma bastante calorosa. Dispusera-se a concorrer a uma vaga de vereador do município de Uiramutã os senhores Getúlio Barbosa e seu tio Lauro Barbosa. A divisão do voto da comunidade foi comentada a mim pelo Sr. Genézio, AIS da comunidade, como uma demonstração de indefinição consensual de um projeto político para o Flexal. E o resultado confirmou a crítica, pois, enquanto necessitariam de aproximadamente 150 votos para ocuparem uma cadeira no legislativo municipal, um deles conseguiu 105 e o outro 50 votos. Para uma população de 388 pessoas a aproximadamente 150 e cinquenta eleitores. E que se houvesse o investimento em um deles apenas, o resultado poderia ter melhor êxito. Por outro lado, saiu fortalecida do pleito a comunidade vizinha Santa Creusa que apresentou a professora Irisnaide, filha do Tuxaua Pedro Celso, e conseguiu os votos necessários para sua eleição. Embora a população de sua comunidade some apenas 150 pessoas e em torno de 60 eleitores. E o fortalecimento político da Comunidade Santa Creusa cresceu não somente no campo eleitoral, mas também de seu Tuxaua na política indigenista da organização a que fazem parte, a SODIUR, por ter demonstrado uma capacidade de liderança e objetividade em prol de um projeto político para sua comunidade. Como também pôs em dúvida a postura política e a capacidade de arrebanhar votos das lideranças do Flexal. Nesses exemplos de relações políticas com suas devidas dinâmicas, os pactos firmados com grupos de apoio político pelas lideranças do Flexal preveem uma estruturação sistemática das alianças e trocas.

4.5 O Esporte e o entretenimento numa comunidade indígena

“Brasil, o país do futebol!”: é comum ouvirmos esta frase nos programas esportivos e durante os grandes campeonatos de futebol, prova disso é a mobilização política e

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econômica do Brasil em preparação para a Copa do Mundo de Futebol da FIFA no ano de 2014. Mesmo sendo historicamente denominado como invenção inglesa, o futebol carrega o fardo do título de uma das paixões nacionais. Não cabe e nem pretendo aqui exaltar a prática esportista do futebol, mas nas competições desportivas escolares, e na versão dos Jogos Escolares Indígenas, entre as modalidades que apresentam maior número de competidores, com grande número de equipes e de torcedores é o futebol e o atletismo, pelo menos em Roraima. Durante a realização desta pesquisa, tive oportunidade de acompanhar por duas ocasiões a delegação esportiva da Comunidade do Flexal para participar de campeonatos esportistas: a primeira ocasião, logo no terceiro dia de minha chegada ao Flexal, foi para a Comunidade Camararém, e na outra para a Enseada numa etapa local dos Jogos Escolares Indígenas. Nas duas ocasiões foram três equipes de futebol (mirim, masculino e feminino). Na primeira foram campeãs as equipes masculina e mirim, e na segunda foram as equipes masculina e feminina os grandes campeões da versão dos Jogos Escolares do município de Uiramutã, conforme as FOTOS 6, 7 e 8 das referidas equipes.

FOTOS 6, 7 e 8: Equipes de futebol feminino, masculino mirim e adulto da Comunidade do Flexal. FONTE: Arquivo Pessoal do pesquisador, Flexal, 2012

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Especificamente, na segunda ocasião por ser uma programação mais extensa e que fazia parte da programação escolar do Estado, foram previstas várias modalidades esportivas como: futebol, corrida de pedestre, salto à distância, queda de corpo, flechada a distância, peitada, dança tradicional, tooki, concurso de ralar mandioca, salto em altura, concurso de trança e redação em língua Macuxi. Todas as modalidades com categorização masculina adulta e mirim além de feminina, com exceção do trançado que previa apenas a participação masculina. O trançado como modalidade masculina, me fez refletir sobre as razões de uma modalidade esportiva sem muito esforço físico como prática exclusivamente masculina. Mas na Comunidade do Flexal a prática de trançado é função masculina. Foi uma das reclamações apresentadas por um ancião que tem sete filhos homens e nenhum desses pratica o trançado. Mesmo assim, o vencedor do concurso de trança, dos cinco competidores inscritos, foi um aluno da Escola “Tuxaua Pedro Barbosa” do Flexal. Como eram atividades do cronograma escolar, a Escola foi mobilizada na sua totalidade para os treinos na semana antecedente ao evento. Cada professor se encarregou por uma modalidade esportiva que levavam a cabo o treino e a classificação dos melhores atletas. Como observador da comunidade, tive muitas atividades nesses dias, pois os treinos eram realizados no período da manhã e tarde e à noite ainda treinavam a dança do aleluia. Nos ensaios noturnos, conheci a dona Leontina, esposa do Sr. Roseno Barbosa, filho mais velho do Sr. Caetano Barbosa. De origem da Comunidade Caracanã, descendente direta do profeta do aleluia Clementino, esta Senhora era a mestra na dança do aleluia e informaram-me ser ela a maior conhecedora dos passos, das músicas e cantos da comunidade. Chamou-me a atenção em todos os casos a importância e a capacidade de mobilizar a comunidade que o esporte futebol possui. Mas, nos dois eventos que participei acompanhando os jogadores, percebi outro item de extrema importância no entretenimento das comunidades da região: trata-se de uma prática enraizada na cultura regional, a dança do forró. Embora, seja atribuída sua origem ao Nordeste, em Roraima, em todos estes encontros entre comunidades há nas atividades diurnas e as noturnas que sempre fazem parte o forró como opção para os encontros e divertimento geral. Para o primeiro evento na Comunidade Camararém, foi mobilizada duas viagens no caminhão a serviço do Flexal, enquanto para o segundo evento que possuía caráter oficial da escola, aproximadamente 250 pessoas foram mobilizadas para a Comunidade da Enseada. Somente alunos matriculados da escola do Flexal foram 115 pessoas, além desses uma multidão de familiares, torcedores e “intrusos” se deslocaram nas quatro viagens que o

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caminhão deu nesse percurso. Dentre esses muitos, que sem compromisso esportivo, apenas pela possibilidade de sair e se divertir em uma festa regional, principalmente com interesse nos possibilidades nos encontros noturnos proporcionados pela festa de forró, os solteiros sempre arranjam uma justificativa plausível para compor uma delegação. Enquanto os casados, se homem e não possui habilidade esportiva, vai para acompanhar a esposa ou filha, e se for mulher também sempre está presente na monitoria do marido e filha. De qualquer forma, a presença na festa engloba uma quantia de interesses e cuidados conjugais. Durante o evento no período diurno, as competições tiveram sua plenitude sem distinção de hora boa ou ruim, o que nada impede de ocorrer uma partida de futebol no mais escaldante calor das 11h às 13h. Enquanto isso, os atletas, por instinto esportivo e superação física, nem sempre utilizam uniformes adequados. Por exemplo, há muitos que jogam descalços, ou um time joga com camisa enquanto o outro compete sem camisa. A “precariedade” acaba sendo utilizada para a distinção entre equipes. Enquanto isso a o resultado dos “Jogos Escolares Indígenas” da Comunidade da Enseada foram concentrados para a delegação da Comunidade do Flexal, pois sua escola Tuxaua Pedro Barbosa foi a que competiu no maior número de modalidades e consequentemente foi a que venceu na maioria das modalidades competidas.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao observar as condições históricas das relações interétnicas entre o povo Macuxi e a sociedade nacional, e tomando por referência a Comunidade Flexal, percebemos algumas implicações que a inclusão de novas tecnologias e práticas de consumo, - algo impulsionado pelo acesso à eletricidade -, tem transformado o sistema organizacional local com diversas alterações das relações socioeconômicas e políticas da comunidade. Estas alterações ficam evidentes quando verificamos o modo como se relacionam com as outras comunidades do entorno e com os órgãos do poder público. Entretanto, nesse trabalho nossa inquietação girou em torno de perceber como estas inovações prosseguem sendo dispostas aos povos indígenas, sem a preocupação de um trabalho transitório para as possíveis mudanças. Justificado apenas pelas ideias de desenvolvimento, motivando assim novas relações com os sistemas de poder público, ao mesmo tempo em que estabelece dependências mútuas. Estas políticas de desenvolvimento não questionam sua real necessidade, e especificamente no Flexal, as influências dessas relações ganharam maior impulso no contexto político, proporcionado por alianças marcantes tanto no contexto interétnico e intersocial, ou seja, tanto em instâncias internas quanto externas. Apesar disso, é possível apreender que as mudanças culturais de uma comunidade indígena não são determinadas apenas pelos fatores externos, mas também pelos fatores internos do grupo que reage a uma provocação exterior - ou mesmo fruto da dinâmica local e resignifica uma nova realidade. Com isso confluem à ideia de diálogo intercultural, em que a relação entre culturas diferentes enriquece ambos os lados dessa relação. Ao contornarmos estas relações entendemos que propiciam as condições ideais que justificam a agregação das famílias na Comunidade do Flexal, e carregam todo um contexto de motivos e razões que envolvem desde a natalidade interna, o retorno das pessoas que se aventuraram em atividades externas, a adoção de pessoas afins que compartilham os mesmos sentimentos de pertencimento à comunidade e principalmente as condições de infraestrutura oferecida, construída ou aproveitada, fazendo daquele ambiente comunitário uma testemunha de relações que perpassa o entendimento de quem apenas ouve falar de sua existência. E tudo se resume em uma forma coletiva conveniente de ver e sentir-se únicos, embora, compartilhando de uma identidade étnica muito maior que seu próprio lugar. Por outro lado, percebemos que as consequências das mudanças provocadas pelo acesso a novas tecnologias se apresentam como um quadro irreversível, o que não permite a

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possibilidade de condenarmos e menos ainda prudente defendermos que as comunidades indígenas não tenham o direito ao acesso às inovações tecnológicas e benefícios da comunicação, educação, saúde e entretenimento que o uso de novas tecnologias pode trazer as estas comunidades. Ainda que as relações constituídas no processo corroborem para uma realidade enriquecida e diversificada onde são eles próprios os principais agentes da ação política. Como também ficou bastante perceptível que por traz da noção de inclusão social se esconde uma ideologia de consumismo e que a disposição da eletricidade diversifica estas opções. Ao mesmo tempo em que estas inovações parecem colaborar para uma roupagem social diferenciada e aparentemente promissora, ao se sentirem capazes de consumir produtos e serviços como qualquer outro cidadão, também os insere como parte de um todo, um sistema econômico e social mundial, efetivando assim a ampliação da cadeia de consumo capitalista. Da mesma forma, ainda que o uso de novas tecnologias, em sua maioria esmagadora, se limite a modelos aparentemente ultrapassados, como verificado in loco, este fato não descaracteriza sua qualidade de cidadão, no gozo pleno de seus direitos de ser, viver, possuir, ir e vir, entre outros. Desse modo, analisar estas transformações em uma comunidade indígena, coloca-nos na condição de meros expectadores de uma realidade mutante, e ao mesmo tempo como uma testemunha de uma cultura viva e reprodutora de suas feições com capacidade de influenciar e absorver as pressões exteriores, fazendo dos Macuxi um símbolo de força e um exemplo de vontade coletiva, ao definirem ao seu modo como querem ser vistos e tratados, não como retrógrados e presos em um tempo inexistente, mas, com uma identidade independente possuidora de suas próprias definições políticas, econômica e social. Contudo, mesmo que um olhar externo considere a Comunidade Flexal como presos a uma alienação política em torno de um desenvolvimento inviável, - não apenas devido ao contexto geográfico eleito pela própria Natureza, mas também pela ausência de uma iniciativa plausível, um despertar interno que faça da comunidade um polo de produção contínua de produtos -, o sonho de crescimento econômico e de afirmar-se como líder de um processo de desenvolvimento se apresenta como principal estímulo de suas lideranças. Contudo é nítido que os propósitos de seus parceiros remetem ao interesse próprio, oferecendo somente o suficiente para manutenção da parceria política e para a legitimação do discurso falacioso de uma suposta aliança para o desenvolvimento, mas, deixando-os, porém, à mercê de seus próprios esforços e dos recursos que a Natureza oferece.

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E o desenvolvimento sempre foi objeto de diversas ações na região com o aval da comunidade Flexal e da organização a que faz parte, dentre elas destacamos: o apoio à criação do município de Uiramutã através da lei 098/1995 com efetividade na posse de seu primeiro prefeito e dos vereadores da primeira legislatura em 1º de janeiro de 1997; a busca pela construção e manutenção da estrada; a defesa da demarcação de TI em ilhas; a concordância na permanência dos fazendeiros na TIRSS; a resistência à presença de forças federais na região; apoio irrestrito aos projetos de empreendimentos de aproveitamento dos recursos hídricos para a geração de energia (hidrelétricas) tanto de pequeno quanto de grande porte, entre outros. Esse caminho inverso ao movimento indígena majoritário foi e ainda serve ao propósito de ratificar as iniciativas políticas anti-indigenista regionais. Todas estas defesas se embasam na utopia do crescimento econômico oferecido pelo Estado aos grupos indígenas que tem arrebanhado muitos ao redil eleitoral dos governantes de Roraima. Mesmo que as mudanças sejam aceleradas ou mesmo atribuídas à eletricidade, a presença de equipamentos eletro eletrônicos nas comunidades indígenas se justifica como bem simbólico que representa o sentimento de pertencimento a um grupo social maior que se identifica pela capacidade de consumir o que as novas tecnologias oferecem. Neste contexto o uso: da televisão, do aparelho celular e do freezer, além do acesso à internet se destacam como principais representantes das mudanças nas rotinas locais. Proporcionando novas formas de entretenimento e provocando uma linguagem adaptada com gírias e jargões que a telinha e as músicas ostentam. E a partir dessas instigações, nos dispomos a buscar entender o advento da implantação de infraestruturas na Comunidade do Flexal como marco de mudanças na comunidade. Ao mesmo tempo, esta noção de mudança conota a perspectiva de reordenamento cultural, ou seja, uma releitura das práticas e costumes locais, em que novos valores são absorvidos e velhos costumes são reelaborados, alterados pelo contexto temporal, pelas relações entre a população interna e seus contatos exteriores à comunidade e, entre estas, resumindo-se nas alianças políticas. Neste sentido, merece ênfase a abordagem de Melo (2000), que destacou a releitura dada pelos indígenas Macuxi e Wapixana quanto ao processo de educação que é capaz de motivar uma “elaboração de novos saberes e de novas técnicas” (p. 89). E o acesso a outras práticas e costumes, como adotar novas formas de entretenimento e uso de ferramentas de informação, como também o usufruir das vantagens oferecidas por uma nova realidade comunitária corroboram no entendimento da ideia de releitura de suas próprias ações. Uma conjuntura aproximada ao contexto africano analisado por Gluckmam (1987, p. 296) “As

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direções de mudança e a forma do novo padrão são determinadas pelo padrão original. (...) Como cada mudança aumenta o distúrbio, o ritmo da mudança acelera-se, sendo a alteração final de padrão violenta e rápida”. Enfim, as mudanças culturais vivenciadas pela Comunidade Flexal incorrem em efeito cascata nos mais diversos campos de relações internas e externas. Tanto do ponto de vista prático quanto simbólico. Cabe, pois, ao profissional da Antropologia acompanhar e analisar estas mudanças de modo a contribuir com uma crítica da situação e perceber as entrelinhas do processo.

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ANEXOS

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ANEXO I

FOTO 9: Preparação de biju, Flexal. FONTE: Arquivo Pessoal do pesquisador, Flexal, 2012.

ANEXO II

FOTO 10: Plantação de mandioca e milho. FONTE: Arquivo Pessoal do pesquisador, Flexal, 2012.

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ANEXO III

MAPA 1: Mapa do Estado de Roraima com destaque das terras indígenas. FONTE: INSTITUTO DE TERRAS E COLONIZAÇÃO DE RORAIMA - INTERAIMA

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ANEXO IV

MAPA 2: Mapa da região norte de Roraima com a indicação das comunidades indígenas. FONTE: SEPLAN/RR

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ANEXO V

FOTO 11: Vista panorâmica da Comunidade do Flexal. FONTE: Arquivo Pessoal do pesquisador, Flexal, 2012.

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