A eliminação da violência à primeiríssima infância como condição central para uma sociedade justa e estável

May 21, 2017 | Autor: Ralf Rickli | Categoria: Psicologia Social, Psicologia infantil
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A eliminação da violência à primeiríssima infância como condição central para uma sociedade justa e estável Ralf RICKLI Separata da monografia Aos que podem salvar o mundo: a Filosofia e Pedagogia do Convívio e seu apelo por uma nova 1 consciência & arte dos pais (2009). Título atual da separata: 2017.

PALAVRAS INTRODUTÓRIAS. Os sucessivos passos da ideia que pretendemos expor, juntamente com as observações que forem necessárias a cada um deles, serão expostos dentro de uma numeração progressiva ao modo de Wittgenstein (2008) por ser neste caso a forma de apresentação que torna o conteúdo mais claro e acessível. Serão mencionados endossos bibliográficos somente para umas poucas das proposições a seguir: um amplo embasamento e discussão de cada uma delas equivaleria a uma defesa de tese, o que não é o objetivo deste trabalho. Grande parte das proposições, aliás, já é tão de domínio público quanto a de que a Terra gira em torno do Sol, da qual seria bizarro esperar que se apresentasse endosso bibliográfico. Tampouco houve preocupação de originalidade em relação a nenhuma das peças utilizadas na construção: se houver originalidade, estará no modo de combiná-las, construído mediante o trabalho combinado de observação fenomenológica e razoamento lógico (conforme, respectivamente, 1.7.1 e 1.2.1). 1 Na formação do ser humano a experiência se torna estrutura2: aquilo pelo que eu passo, isso passa a me constituir. 1.1 Tanto efeitos diretos da experiência podem se fixar em nós, e usualmente se fixam, quanto reações do nosso organismo físico e/ou psíquico a esses efeitos. 1.1.1 Na linguagem da ciência atual, tudo isso pode ser expresso em termos de informação: “informar”, “entrada de informação”, “registro da informação”, “conteúdo informacional armazenado” etc. 1.2 Embora essas duas dimensões estejam tão intimamente relacionadas que dificilmente se pode falar de uma sem encontrar implicações na outra, ainda assim se pode falar de informações cujo efeito é primordialmente físico, e de outras cujo conteúdo mais relevante é de natureza psíquica. As duas são significativas para a vida psíquica (p.ex., o efeito físico de substâncias tóxicas recebidas durante a gestação pode ter efeitos limitantes na vida psíquica futura3), mas as presentes considerações serão centradas no que causa impressões sobre a vida RICKLI, Ralf. Aos que podem salvar o mundo: a Filosofia e Pedagogia do Convívio e seu apelo por uma nova consciência & arte dos pais, p.21-25. Monografia de especialização. São Paulo: UNISA, 2009. Esta é a seção 0.3 da monografia, intitulada originalmente O período da amnésia infantil como porta invisível do Outro Mundo Possível. Esta separata também se encontra disponível em página HTML em www.tropis.org/biblioteca/rr-portainvisivel.html 1

Também em outros seres vivos, porém isto ultrapassa o escopo do presente trabalho. Entre muitos outros, pode ser significativo verificar as ideias de Maturana e Varela quanto a isto, sem que esta sugestão represente um endosso total às suas ideias (MATURANA e VARELA 2001). 2

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Ver p.ex. WILLIAMS 2009.

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2/5 psíquica (sendo portanto capaz de provocar respostas como, por exemplo, medo, confiança, alegria, tristeza etc.). 1.2.1 Ainda assim, será conveniente recordar sempre que a dimensão física não está excluída destas considerações; apenas não é por ela que segue o seu fio condutor. 1.3 Quanto a sua origem, as informações recebidas podem serem tanto casuais quanto sistemáticas, caso em que podem proceder de fonte ambiental, de fonte humana individual (p.ex. a mãe), da dimensão microcultural (os procedimentos usuais de um grupo, p.ex. a família), da macrocultural (os costumes de todo um país) etc. 2 Os efeitos estruturantes da experiência são máximos justamente no período da amnésia infantil (os anos iniciais de que temos pouquíssima ou nenhuma lembrança). 2.1 Há diversas hipóteses e provavelmente diversas causas simultâneas para a amnésia infantil:4 nosso interesse aqui é por uma delas em especial, cuja realidade parece mais que suficientemente atestada (sem que isso diga nada em contra nem em favor de outras possíveis causas): a experiência dos anos iniciais é inteiramente “devorada” pela constituição de estrutura. Usando como analogia a linguagem dos computadores, seu conjunto de dados passa a atuar como um programa, e deixa de ser acessível como documento.5 2.1.1 As experiências provavelmente só passam a ser disponíveis como lembranças na medida em que sejam redundantes; isto é: que a estrutura que iriam constituir já estiver formada. 2.1.2 Mesmo nesse caso, as experiências provavelmente não deixam de interagir com as estruturas com que têm afinidade, quer reforçando-as, quer de algum outro modo. 2.2 Embora haja diferenças, também são de grande importância – e igualmente não recordadas – as experiências do ser humano em gestação, razão pela qual, salvo indicação explícita em contrário, neste trabalho considerase o período de gestação sempre incluído nas referências ao período da amnésia infantil. 3 O ser humano adulto deve enorme parte de seu modo usual de ser e agir à forma como foi estruturado pelas experiências vivenciadas na época da amnésia infantil.

Para as neurociências, a maturação apenas gradual do sistema nervoso (v. p.ex. TRIPICCHIO 2007), para os freudianos ortodoxos, a repressão de uma fase de sensações de natureza erótica difusa, a ser substituída por outro estrato de psiquismo ativo (v. FREUD 1996; RIVA 2004) etc. 4

Esta concepção parece ter bastante afinidade com o modo de pensar da Gestalt (v. p.ex. BUROW e SCHERPP 1985), embora não derive do estudo dessa, e sim prioritariamente da observação fenomenológica (cf. 1.7.1). Por outro lado, vem sendo convincentemente demonstrado o registro da programação pela experiência no nível epigenético (ou seja, da codificação dos diferentes modos de expressão de um conjunto de genes sem chegar a alterar sua estrutura interna). Um excelente artigo sobre isso é SEQUERRA 2009. 5

3/5 3.1 De todos os aspectos do ser humano, estes são evidentemente os mais difíceis de modificar, assim como seria extremamente difícil intervir nas fundações enterradas de um edifício. 4 O próprio fato de não ter lembranças da fase da amnésia infantil faz com que a maior parte dos adultos mostre escassa ou nenhuma compreensão frente aos sentimentos e outras vivências das crianças que estão atravessando essa fase.6 4.1 Essa usual incompreensão dos adultos pelo que as crianças sentem inclui a incompreensão dos efeitos que seus atos têm ou podem ter nessas crianças. 4.1.1 Na verdade a incompreensão parece ser especialmente forte diante disso, sugerindo que haja outros componentes envolvidos além da incapacidade biológica de lembrar – mas não é preciso deter-se nisso para os presentes fins. 4.2 Como visto nos pontos 1 e 2, as crianças em questão serão inevitavelmente marcadas por esses atos realizados sem compreensão pelos adultos, e marcadas em suas estruturas psíquicas mais profundas e perenes; e como visto no ponto 3, essas marcas se expressarão no modo predominante de ser e agir dos novos adultos que essas crianças se tornarão. 5 À parte outras marcas possíveis, o que uma criança nessa fase vê fazerem diante dela, ouve fazerem perto dela e, sobretudo, sente fazerem a ela, tudo isso permanece inscrito em sua estrutura não como uma informação qualquer, e sim como modelo ou receita de como se deve agir em situações semelhantes. Esse modelo não atua apenas como uma aparência exterior vaga, mas é incorporado como um conjunto de instruções de procedimento detalhadas.7 5.1 É evidente, portanto, que os atos nocivos cometidos por um pai ou mãe no trato com seus filhos, sobretudo os de até cerca de três anos de idade, têm alta probabilidade de serem repetidos por esses filhos quando adultos, no trato com seus próprios filhos – e igualmente evidente que isso tende a se repetir em não só uma nova geração, e sim ao longo de muitas gerações, tornando-se forma-padrão de agir de vastas redes familiares, quiçá de todo um povo. 5.2 É compreensível, portanto, que grande parte das formas de agir humanas tenha caráter nocivo mas resista às tentativas de modificá-la a partir da análise racional – até mesmo das tentativas empreendidas voluntariamente pelo próprio indivíduo – pois é expressão de erros cometidos em tempos ime-

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Conforme a aguda observação feita em 1928 por FERENCZI (1996a; b).

Um dos sistemas pelos quais isso acontece é o dos neurônios-espelho, capazes de reproduzir no sujeito toda a sequência de ordens motoras inconscientes necessárias para reproduzir um ato presenciado. Sobre sua descoberta e modo de ação, ver RIZZOLATTI et al. 2006; RAMACHANDRAN e OBERMAN 2006. Além disso, vêm sendo descobertas vias epigenéticas de transmissão do comportamento materno à geração seguinte (como já mencionado: ver SEQUERRA 2009). Quanto aos destaque dado ao “o que sente fazerem a ela”, trata-se de outra expressão da frase do Prof. Dr. Marcos Ferreira Santos citada como terceira epigrafe (cf. 0). 7

4/5 moriais que vêm se reproduzindo como que automaticamente de geração em geração. 6 Apesar disso, é possível modificar o próprio modo de ser e agir mediante um empenho intensivo e continuado da consciência. 6.1 Por outro lado, não é possível a alguém modificar o comportamento de outros indivíduos já constituídos como sujeitos sem que isso constitua um ato de violência.8 O que é possível é sugerir ao outro que modifique seu comportamento, sugestão essa que ele tem o direito de aceitar e implementar, ou de rejeitar. 6.1.1 Isso significa que, haja ou não outros fatores em questão, no mínimo devido à resistência das configurações estruturais de cada indivíduo as coletividades humanas só podem apresentar enorme resistência à mudança dos comportamentos que predominam nelas – pois a mudança num sentido consciente depende de: (a) a opção inicial de cada indivíduo entre querer ou não querer conscientizar-se de que seria interessante mudar; (b) sua disposição de, em consequência da primeira opção, ingressar em um período de aprendizado sobre a mudança desejável; (c) uma vez relativamente avançado nesse aprendizado, enfrentar processos muitas vezes difíceis e dolorosos de enfrentamento dos traços nocivos preservados na sua configuração estrutural; (d) a vitória nesse enfrentamento não é garantida. 6.1.2 É possível induzir pessoas e grupos a mudanças de comportamento sem esse processo de conscientização e enfrentamento estrutural individual, porém isso significa manipulação, e tanto é moralmente indefensável quanto termina sendo inefetivo no médio e longo prazos, pois a regência das estruturas profundas tende a retornar. Baste como exemplo (ainda que se encontrem dezenas de outros) a intensidade com que a xenofobia e outros comportamentos antissociais têm emergido nos lugares que haviam antes sido tornados “justos e fraternos por decreto” pelos regimes ditos comunistas. 6.2 Em consequência de tudo o que foi visto, revela-se a lei de que mudanças de comportamento conquistadas por um indivíduo permanecem lábeis se não forem transmitidas para a geração seguinte. Em outras palavras, não se generalizam como conquista grupal pelo menos relativamente estável na mesma geração do indivíduo, mas somente se chegarem a ser transmitidas para pelo menos mais uma geração. 6.2.1 Naturalmente, esse efeito se dá com a máxima intensidade se a mudança conquistada pelo indivíduo envolve o trato desse indivíduo com seus filhos na primeira infância, influindo assim na configuração estrutural profunda do psiquismo desses filhos. 6.2.2 Isso não significa que na geração seguinte a mudança se expresse necessariamente em forma idêntica à conquistada pelo pai: se o trato com os filhos se aproximou do adequado, esses deixarão de ser vítimas de estruturas O reconhecimento deste fato constitui o núcleo gerador de toda a Filosofia do Convívio; ver a Minuta para um Estatuto Fundamental da Humanidade, RICKLI 2008a:2.4. 8

5/5 aprisionantes ou paralisadoras, e terão reconquistado a mutabilidade, flexibilidade e disponibilidade para a evolução que temos razões de considerar próprias do ser humano saudável. 6.2.3 Esse ato significa, portanto, abrir mão da prepotência doentia que é considerar a si mesmo um modelo suficientemente acabado para que seja desejável tê-lo reproduzido geração após geração. 6.3 Por meras razões matemáticas, mudanças de comportamento conscientes só podem chegar a ser significativas na escala coletiva (ou dimensão social) se chegar a haver uma certa massa crítica de pais e mães dispostos a reconfigurar seu modo de agir com os filhos. 6.3.1 Atualmente é corriqueiro o discurso sobre massa crítica na mudança de comportamento coletiva, mas essa perspectiva será sempre ilusória caso não envolva a atuação sobre o ponto nodal de maior alcance que há na humanidade, que é a constituição do sujeito entre a concepção e aproximadamente os três anos de idade. 7. Esta tese9 é ao mesmo tempo justificativa de um programa de Educação para a Paternidade e o conteúdo central, organizador dos demais, a ser ensinado num tal programa.

Obviamente, a palavra “tese” não tem aqui o sentido de “monografia de doutoramento” e sim o sentido mais geral de “proposição complexa” ou “sistema de proposições”, e se refere especificamente à subseção que se encerra aqui (0.3), e não ao conjunto do trabalho. 9

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