A EMERGÊNCIA DO CÓDIGO DE MENORES DE 1927: uma análise do discurso jurídico e institucional da assistência e proteção aos menores.

July 27, 2017 | Autor: Marcos César Alvarez | Categoria: Punição
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA

A EMERGÊNCIA DO CÓDIGO DE MENORES DE 1927: uma análise do discurso jurídico e institucional da assistência e proteção aos menores.

MARCOS CÉSAR ALVAREZ

SÃO PAULO 1989

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA

A EMERGÊNCIA DO CÓDIGO DE MENORES DE 1927: uma análise do discurso jurídico e institucional da assistência e proteção aos menores.

MARCOS CÉSAR ALVAREZ

Dissertação de Mestrado em Sociologia, sob a orientação da Professora Doutora Lia Freitas Garcia Fukui.

SÃO PAULO 1989

Para minha família.

AGRADECIMENTOS

À Profª. Drª. Lia Freitas Garcia Fukui, orientadora desta dissertação, que acompanhou dedicadamente o desenvolvimento do trabalho.

Aos professores do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo, que contribuíram para a discussão do projeto.

Aos colegas do Departamento de Ciências Sociais e à própria Universidade Estadual de Londrina, pela liberação das atividades didáticas durante a redação final da dissertação.

Às instituições financiadoras de pesquisas:  FAPESP pela bolsa de iniciação científica obtida ainda na graduação;  CAPES e CNPq, que financiaram a pós-graduação.

Ao Prof. Lourenço Chacon J. Filho, que revisou a primeira versão da dissertação.

À Vanda Moraes e Mello L. dos Santos, que trabalhou como auxiliar de pesquisa durante o ano de 1988.

À Teruko Kikumoto, que revisou a versão final e a datilografou.

SUMÁRIO

RESUMO I – O PROBLEMA _______________________________________________________ 2 I.1. – Introdução e revisão bibliográfica __________________________________ 2 I.2. – Proposta de trabalho ____________________________________________ 14 II – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E METODOLÓGICA E OBJETO DE ANÁLISE ________________________________________________ 18 II.1. – Sobre o conceito de sujeição _____________________________________ 18 II.2. – Foucault e a análise histórica dos _________________________________ 22 mecanismos de sujeição ______________________________________________ 22 II.3. – O Código de Menores de 1927 ___________________________________ 28 como objeto de análise _______________________________________________ 28 III – CONTEXTO HISTÓRICO __________________________________________ 32 III.1. – Legislação e contexto __________________________________________ 32 III.2. – Transformações institucionais __________________________________ 35 III.3 – A emergência do Código de Menores de 1927 ______________________ 52 IV – DISCURSOS _______________________________________________________ 61 IV.1. – A crítica ao “discernimento” ____________________________________ 61 IV.2. – Uma “Nova Justiça” ___________________________________________ 79 IV.2. – “Justiça e Assistência” _________________________________________ 88 IV.4. – A proposta de uma nova legislação: Alcindo Guanabara e Mello Mattos ____________________________________ 97 IV.5. – Moncorvo Filho e a “Cruzada pela Infância”: ____________________ 111 IV.6. – O Código de Menores e a estruturação da prática institucional referente ao menor _______________________________ 123 V – A SUJEIÇÃO DO MENOR __________________________________________ 153 V.1. – A justiça para menores como um dispositivo de poder ______________ 153

V.2 – A “questão do menor” e a “questão social _________________________ 166 CONCLUSÃO_________________________________________________________ 180 BIBLIOGRAFIA ______________________________________________________ 184 FONTES PRIMÁRIAS _________________________________________________ 197

RESUMO

Este trabalho estuda as transformações discursivas que tornaram possível a emergência de uma legislação de assistência e proteção aos menores no Brasil do início do século. Para isso, são analisados uma série de textos elaborados por juristas e filantropos que, entre o fim do século XIX e início do século XX, passaram a discutir a necessidade da reformulação da legislação sobre a menoridade, culminando essas discussões na promulgação do primeiro Código de Menores do País, em 1927. O capítulo I situa a proposta de trabalho, que consiste em enfatizar a historicidade do “menor” enquanto categoria jurídica e institucional. No capítulo II são definidos os dois principais conceitos necessários para a análise: os conceitos da sujeição e de discurso. No capítulo III são indicadas algumas das principais transformações institucionais, referentes ao tratamento da infância e adolescência durante o século XIX e princípio do XX. No capítulo IV é feita a análise de discurso propriamente dita, explicitando-se as principais mudanças discursivas que então ocorreram: os textos analisados começam com a crítica da legislação sobre a menoridade então vigente e que se baseava na noção de “discernimento”. Uma “nova justiça” e uma “nova assistência” são propostas, baseadas nos tribunais para menores, que passarão a aplicar um novo estilo penal, no qual a noção de “punição” será substituída pela noção de “recuperação”. O Código de Menores de 1927 aparecerá então como a síntese dessas novas propostas, ao definir um novo projeto jurídico e institucional voltado para a menoridade. No capítulo V

esse novo projeto visando o tratamento jurídico e institucional de crianças e adoles centes será interpretado como um dispositivo de poder, articulado ao novo contexto urbano que então se constituía, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo. No final de todas essas transformações o menor enquanto sujeito histórico estará plenamente definido. Na conclusão serão apontados alguns caminhos possíveis para o desenvolvimento futuro das análises sobre o tema.

I – O PROBLEMA

I.1. – Introdução e revisão bibliográfica I.2. – Proposta de trabalho

“Os objetos parecem determinar nossa conduta, mas, primeiramente, nossa prática determina esses objetos. Portanto, partamos, antes, dessa própria prática, de tal modo que o objeto ao qual ela se aplique só seja o que é relativamente a ela (...) A relação determina o objeto, e só existe o que é determinado (...)” PAUL VEYNE

I – O PROBLEMA I.1. – Introdução e revisão bibliográfica

A questão do menor na sociedade brasileira ganhou destaque nos últimos anos. Muito se fala, atualmente, sobre o “problema do menor” – definição genérica que abrange temas diversos, como o das condições de vida e trabalho a que estão sujeitos parte das crianças e adolescentes brasileiros, o da marginalização daqueles provenientes das classes mais pobres, o do fracasso das instituições que deveriam lhes dar assistência e proteção, etc. Essa problemática, específica a uma categoria da população brasileira, não deixa de apontar, também, para temas mais abrangentes, referentes à sociedade como um todo: as condições de vida e de saúde de grande parte da população, a distribuiçã o da renda nacional, a falta de participação política a que está sujeito o povo do país, etc. Assim, de uma forma ou de outra, o menor e seus inúmeros problemas estão presentes o tempo todo em nosso cotidiano, nos meios de comunicação como jornais, rádio e televisão. Dificilmente passamos uma semana sem notícias, entrevistas, debates e até comerciais chamando a atenção para o tema. Também no plano das práticas institucionais existem muitas iniciativas, tanto em termos assistenciais e pedagógicos como em termos punitivos e reformadores. Portanto, não só os discursos sobre o menor proliferam, mas também diferentes ações institucionais se revezam, geralmente sem muita eficácia, na tentativa de solução do problema.

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De qualquer modo, dentro do senso-comum, o menor é um tema que se presta muito mais à denúncia do que à análise. Essa percepção da questão do menor como um dos grandes problemas de nossa sociedade tem sido acompanhada, desde o início da década de setenta, por trabalhos de pesquisadores e cientistas sociais, que passaram a se interessar pela problemática. Estes trabalhos, indo além do senso-comum sobre a “questão do menor”, passaram a discutir mais a fundo questões como a da marginalidade de crianças de certos segmentos da população, as possíveis causas sociais da delinqüência do menor e as representações que o menor tem sobre seu cotidiano1. Um dos primeiros trabalhos mais significativos neste sentido foi o realizado pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, intitulado A criança, o adolescente, a cidade (CEBRAP, 1972). Este trabalho resultou de uma pesquisa encomendada pela Presidência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, para servir de subsídio às Semanas de Estudos do Problema do Menor (Cf. São Paulo, Secretaria do Tribunal de Justiça, 1974). Nele, foi realizado um estudo sociológico sobre a marginalidade e a reintegração social do menor na cidade de São Paulo. Para isso, pesquisou-se a situação social dos menores internados em 1971 nas entidades públicas e privadas da capital e em algumas entidades situadas em municípios vizinhos. Como instrumentos de pesquisa da situação do menor abandonado e delinqüente interno na cidade, foram utilizados questionários, entrevistas, histórias da vida, estudo de caso e a observação direta. O plano da obra dividiu-se em três partes:

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Nosso levantamento bibliográfico se restringe aos trabalhos considerados mais significativos, feitos em São Paulo, já que temos maior familiaridade com essa produção local. Acreditamos, todavia, que se trata de uma produção expressiva também no âmbito nacional, daí a pertinência do recorte.

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1ª ) A Problemática Foram examinadas as condições sócio-econômicas da marginalização social no meio urbano, focalizando, mais especificamente, a marginalização social do menor a partir do contexto do pauperismo e da desorganização social da família proletária urbana. O objetivo era o de relacionar explicitamente a marginalização social do menor com a marginalização social no meio urbano. 2ª ) Diagnóstico Estudou-se a situação social do menor internado em entidades públicas e privadas, reconstituindo suas condições sociais de vida nessas entidades. 3ª ) Conclusão Foi feito um estudo conjunto da problemática do menor que se achava internado em entidades públicas e privadas em São Paulo, focalizando as insuficiências e inadequações na organização e funcionamento de entidades públicas e privadas, fazendo um balanço crítico das possibilidades de aproveitamento mais eficiente dos recursos disponíveis. Resumindo, o trabalho tentou colocar o problema do menor como um problema relacionado às condições de vida no meio urbano. O pauperismo e a desorganização social das famílias proletárias levariam a uma situação de carência generalizada, a partir da qual se produziria a socialização divergente de crianças e adolescentes pertencentes a essa s famílias. O trabalho concluía com a proposta de que só seria possível a ressocialização desses menores a partir de uma maior racionalização dos meios institucionais públicos e privados disponíveis para esse fim, tendo por base um órgão de planejamento social integrado.

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O mérito deste trabalho, bastante rico e completo em dados empíricos, foi o de ter retirado a questão do menor do âmbito estritamente jurídico e tê-la colocado dentro de um contexto social mais amplo. A partir deste trabalho essa questão passou a ser alvo de estudos de outros pesquisadores, que começaram a analisá-la a partir de novos enfoques. Meninos de rua (Ferreira, 1979) foi um dos estudos que se seguiram, resultado de uma pesquisa encomendada ao Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC), pela Comissão de Justiça e Paz de São Paulo. Seu objetivo foi o de levantar os valores de crianças e adolescentes que viviam em situação de marginalidade sócio-econômica na Grande São Paulo. Tratava-se de saber de que modo aqueles que eram marginalizados reagiam a sua própria situação, ou seja, como os sujeitos desse processo o viviam:

A proposta da pesquisa pressupõe (...) que a informação mais íntegra das condições de vida do marginalizado só pode ser dada por ele próprio. Isto é, que a reconstrução da situação social dos menores marginalizados deve basear-se em dados empíricos, obtidos diretamente dos sujeitos, no momento em que ocupam essa posição, da forma como se expressam e se manifestam comumente. Logo, a pesquisa se posicionou no sentido de conhecer a forma de ser e pensar dos sujeitos, o modo como compreendem a realidade que os cerca, como fazem suas opções, o que desejam, como agem para obter o desejado, a partir de sua vivência pessoal e visão-de-mundo. (Ferreira, op.cit., p.18)

Centrando-se nas expectativas e valores dos menores, a pesquisa visou, principalmente, reconhecer e captar as estratégias de sobrevivência e as formas de

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relacionamento social das crianças estudadas, a partir do material de análise, obtido, em sua maior parte, através da transcrição do diálogo com os próprios agentes. Evitando entrar em discussões sobre as causas do processo de marginalização, o livro não deixou, porém, de posicionar a população estudada no contexto mais amplo das condições estruturais e conjunturais da sociedade brasileira. Ao tentar responder a questão sobre quem era o menor infrator, a partir da análise das estratégias de sobrevivência colocadas pelos próprios agentes no seu cotidiano, o mérito deste estudo foi justamente o de recuperar a questão do menor a partir de um ponto de vista distinto daquele das instituições e discursos oficiais. Ao mesmo tempo, não perdeu de vista o contexto político e social no qual estavam inseridos os agentes, apontando, no seu final, para outros temas que deveriam ser abordados: a violência na família, na escola, no aparato institucional; a elaboração cultural dos estigmas sociais; a real função da escola e das instituições de assistência social e de recuperação de menores; as articulações entre o crime organizado e os esquemas de repressão. O dilema do decente malandro (Violante, 1982) tratou da identidade do menor institucionalizado do ponto de vista psicossocial. Partindo do pressuposto de que a marginalização é fruto do processo histórico da acumulação capitalista, o trabalho tentou captar a construção da identidade do menor dialeticamente articulada a esse processo:

Conceber o Menor como síntese de múltiplas determinações implica em considerá-lo não como uma entidade única, peculiar e fechada em si mesma, mas como ser social, no contexto das condições marginais de sua existência, condições essas que refletem as contradições básicas da sociedade. (Violante, op.cit., p.22)

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Levando em conta que a carreira institucional do menor é essencial para a compreensão de sua identidade, já que instituições se apropriam do menor enquanto marginalizado para socializá-lo, a autora estudou menores de unidades educacionais da FEBEM, em São Paulo, chegando à conclusão de que essa instituição reproduzia o menor em sua identidade de marginalizado, sem, contudo, dominá-lo totalmente, já que ele acabava se identificando com seu grupo de iguais, afastando-se assim do mundo da norma. Passeti, em sua dissertação de mestrado intitulada Política nacional do bemestar do menor (Passeti, 1982), estudou o confronto entre crianças e jovens pertencentes ao proletariado e à instituição social encarregada de controlá-los. A partir de pesquisas de campo realizadas com menores infratores que agiam na cidade de São Paulo e que tinham passado pela FEBEM, tentou captar as situações de enfrentamento entre menores e instituição, partindo do pressuposto de que o problema do menor era um problema a ser compreendido no âmbito da classe dominada e de suas relações com instituições que efetivavam o poder da classe dominante. No livro O mundo do menor infrator (Queiroz, 1984), diferentes abordagens foram feitas por uma equipe interdisciplinar pertencente ao Grupo de Trabalho do Menor, da PUC-SP. Ao longo dos capítulos deste trabalho foram analisados: a problemática do menor infrator em sua relação mais ampla com os conflitos de classe em nossa sociedade; o objeto “menor” e sua constituição pelo direito e pelas instituições; as condições de vida dos menores e sua trajetória na marginalidade; confronto entre o menor e a instituição; seu envolvimento no mundo do crime; as representações do menor infrator egresso. Este trabalho, ao situar a questão do menor em uma perspectiva interdisciplinar, representou

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uma síntese das principais abordagens do assunto até então realizadas2. Podemos dizer, a partir desse breve levantamento bibliográfico sobre o tema, que os trabalhos sobre o problema do menor começaram mostrando, no início da década de setenta, que se tratava de uma questão que só poderia ser compreendida dentro d e um contexto mais amplo de pauperização que levava à marginalidade, terminando por mostrar, no final dos anos setenta e início dos oitenta, a indissociabilidade entre essa marginalização e relações de dominação que remetiam ao conflito de classes dentro de nossa sociedade, salientando-se a importância das instituições na reprodução da marginalização e a resistência dos institucionalizados a esse processo. As análises sobre o tema, porém, já mostravam sinais de esgotamento. Sader, em um dos trabalhos mais recentes, apontou para esse esgotamento, mostrando como ele se refletiu no campo também da política. No artigo “Democracia é coisa de gente grande?” (Sader et al., 1987), mostrou como, apesar da imagem do menor ter ganho destaque na década de setenta, com a transição democrática que se seguiu a questão do menor não encontrou lugar de articulação com as forças políticas democráticas, acabando segregada juntamente com outras categorias. Segundo o autor, embora o regime político tenha se democratizado, o menor continuou sendo instrumentalizado como justificativa para a manutenção do aparato repressivo:

Toda imagem social é construída; mudam os meios de sua elaboração. A transição tutelada militarmente da ditadura à democracia encontrou seus argumentos decisivos para manter e multiplicar os aparatos repressivos na

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Outros trabalhos de interesse são os de Arruda (1983), que estudou os menores infratores na cidade de São Paulo, e o de Simões (1983), que, estudando a história do Código de Menores, é aquele que mais se aproxima do nosso tema de trabalho. Foi a partir, porém, do trabalho de Fukui (1982) que formulamos a problemática da construção histórica do menor enquanto categoria.

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extensão da delinqüência, onde o elemento novo foi a construção da imagem do “pixote”. Chegou assim o dia em que foi se reconhecendo com “um estranho” a criança que havia sido escorraçada do mecanismo seletivo do mercado capitalista. (Sader et al., op.cit., p.12)

Ainda segundo o autor, para encaminhar a solução do problema, é necessário encaminhar a questão como um problema político da sociedade brasileira:

A “questão do menor” ou o “problema do menor” ou, ainda, como querem outros, o “problema da família” se reduz, na verdade, ao problema da sociedade (sem aspas). Situando-se no centro de reprodução do mecanismo da nossa sociedade, tanto as crianças e os jovens quanto a família refletem, na sua doença, a enfermidade geral do corpo social que as engloba. (Sader et al., op.cit., p.34)

Assim, apesar de já possuirmos uma razoável bibliografia sobre a questão, acreditamos que o próprio impasse político, no qual atualmente se encontra o problema, aponta para possíveis lacunas na sua compreensão. Não desmerecendo os estudos feitos até o momento, devemos acreditar que o tema ainda não está, portanto, esgotado. Acreditamos aqui justamente que uma das maiores lacunas na compreensão do tema está na falta de estudos históricos sobre a emergência do menor enquanto categoria produzida por relações de dominação. Façamos antes, para explicitar melhor nosso ponto de vista, a crítica teórica dos livros já citados. Chamboredon (1971), ao discutir a questão da delinqüência juvenil, alerta para os cuidados que devem ser tomados na construção de tal objeto de estudo. Ressaltando as

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múltiplas determinações do objeto, o autor mostra, entre outras coisas, como a delinqüência juvenil se diferencia conforme as classes, e qual a importância das instituições de repressão e de recuperação na constituição de seu perfil. Esse rigor na construção do objeto parece não estar presente na pesquisa realizada pelo CEBRAP que comentamos anteriormente. O trabalho, sem dúvida, deslocou a questão do menor, de um ponto de vista estritamente jurídico para um ponto de vista social mais amplo. Mas, o trabalho apenas se preocupou com as condições sociais que levam à marginalização, deixando de lado a própria construção social desse processo de marginalização:

A orfandade, o abandono, a desorganização familiar, a maternidade solitária, doenças físicas ou mentais dos pais são fatores que interferem drasticamente na criação do ambiente social em que se processa a socialização do menor marginalizado. Como substrato, em todas estas situações, a carência econômica é o fator de caráter genérico, que identifica a posição que o menor ocupa na escala social. A carência econômica é o pano de fundo, no cenário em que ocorrem os comportamentos divergentes, as atitudes anti-sociais; ela em si é marginalizante. (CEBRAP, op.cit., p.33)

Esta citação exemplifica de que modo, neste trabalho, o vínculo entre pauperismo e marginalização aparece como um dado de análise. E embora seja colocado, mais adiante, que a pobreza não leva necessariamente o menor a agir de modo inadequado (Cf. CEBRAP, op.cit., p.48), o que não está problematizado neste tipo de conceituação é justamente a produção social dos critérios de inadequação e a articulação, historicamente

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constituída, entre pauperismo e marginalidade. Não querendo fazer aqui uma crítica detalhada ao conceito de marginalização 3, queremos ressaltar que o trabalho realizado pelo CEBRAP estuda a marginalização como uma variável que não pode ser analisada fora do contexto de pauperismo da sociedade, mas ainda assim não se preocupa com o processo de constituição dessa variável e sua articulação historicamente específica neste contexto. Não devemos esquecer que o próprio conceito de marginalização é um produto histórico. Em outras palavras, por que essa forma de marginalização e não outra? Por que a ligação entre pauperismo, desorganização familiar e marginalização? Faz-se a análise das condições sociais que levam à marginalização, mas não se faz a análise da própria constituição histórica do elo entre marginalização e certas condições sociais. Pobreza e marginalidade não andam necessariamente juntas, logo essa articulação não é uma evidência, mas sim um problema a ser analisado. Por isso afirmamos que não há, neste texto, um cuidado maior com a construção do objeto. Tanto que o livro conclui apenas reafirmando aquilo que já é dado como pressuposto (a relação entre pauperismo e marginalização social do menor), não sendo capaz de equacionar, de modo diferenciado, o problema, apenas propondo uma maior racionalização das instituições e equipamentos voltados para a questão, incapaz de fazer uma crítica dessas mesmas instituições. Os trabalhos posteriores levaram a uma visão mais crítica desse processo de marginalização, mostrando sua articulação com o conflito de classes em nossa sociedade, e a resistência dos agentes que são objetos desses mecanismos de marginalização. Mas, em termos da construção do objeto de análise, um aspecto continuou obscuro: sua historicidade. Não basta mostrar que a categoria menor é fruto dos conflitos de classe. É

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A marginalidade não é um fato social que pode ser encontrado em todas as sociedades, mas práticas históricas específicas constituem processos de marginalização também específicos. Uma crítica mais exaustiva à associação entre pobreza e criminalidade e ao conceito de marginalização em relação ao menor pode ser encontrada nos textos de Passeti e Violante, anteriormente citados.

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necessário desenvolver historicamente como o menor surge enquanto categoria específica dentro dessas determinações mais amplas. Ao analisarem o problema do menor no contexto da luta de classes, estes trabalhos acabaram criando um vício de análise, que consiste em perder sua especificidade nas determinações consideradas mais fundamentais. Nessa perspectiva, o surgimento da categoria acaba reduzido ao conflito de classes. Simões (1983), por exemplo, parece incorrer nesse erro ao colocar:

A formação e o desenvolvimento do capitalismo caracteriza-se, como se sabe, pela geração de um conflito específico – entre as diversas formas que a luta de classes assume – que os juristas, doutrinadores oficiais e da Igreja passaram a denominar de “problema do menor” ou “questão do menor”, uma espécie da chamada “questão social”. Esta foi a forma pela qual o conflito profundo entre capital e o trabalho emergiu como temática jurídico-assistencial. (Simões, op.cit., p.83)

Torna-se inevitável, neste tipo de interpretação, o surgimento da questão do menor nas formações econômicas capitalistas. Com isso, subestima-se a especificidade da questão. É assim que o momento no qual o Estado assume de forma clara a questão do menor, em termos jurídicos, no Brasil, com a criação do primeiro Código de Menores em 1927, acaba sendo interpretado como um reflexo inevitável do desenvolvimento capitalista do nosso país4. 4

Sabemos que a idéia da construção histórica do menor como categoria não é totalmente estranha aos estudos feitos no Brasil sobre a questão. Faleiros (1987), por exemplo, em artigo intitulado “A fabricação do menor”, tenta dar conta da construção do menor a partir de vários níveis, como o do trabalho, da rua, das instituições, do aparelho jurídico, etc. Mas, o que falta, na maioria dos trabalhos acerca do tema, é justamente uma maior tematização do momento histórico no qual a problemática atinge seus contornos gerais, co m o primeiro Código de Menores.

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Devemos evitar esse tipo de reducionismo. O menor, enquanto categoria histórica, é fruto de um amplo contexto, mas, ao mesmo tempo, possui especificidades que não podem ser subestimadas. Talvez o impasse político em relação ao problema do menor, apontado por Sader, seja conseqüência justamente desta dificuldade de se equacionar, de modo mais preciso, essa questão. Não basta dizer que se trata de uma falsa questão. Dizer que um problema não existe é uma forma bastante pobre de equacioná-lo.

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I.2. – Proposta de trabalho

Acreditamos que, de modo geral, a maioria dos trabalhos sobre o tema do menor acabam por considerar essa categoria, ou como um dado da realidade social a ser analisado, ou como mero reflexo de relações sociais mais pertinentes (a luta de classes, por exemplo), de qualquer maneira, perdendo sua especificidade. Queremos mostrar, no desenvolvimento do nosso trabalho, que essas colocações levam a um falso impasse. O problema do menor é uma construção histórica e, enquanto tal, não pode ser compreendida fora de seu contexto de emergência, mas, ao mesmo tempo, não é apenas resultado desse contexto, já que possui suas especificidades. Para tanto, deteremos nossa atenção justamente em um dos aspectos da questão que tem sido subestimado: a emergência do primeiro Código de Menores, em 1927, no Brasil. Os trabalhos anteriormente citados colocam que esse é o momento no qual o Estado assume oficialmente, em nosso país, a questão do menor. Não se perguntam, porém, como e por que isto acontece. Nossa pesquisa pretende, portanto, trabalhar algumas dessas questões a partir da análise histórica de certos aspectos do processo de constituição do Código de Menores de 1927. O próprio problema será, pois, reconfigurado. Não se tratará aqui da “questão do menor” em geral, mas sim de práticas históricas específicas que permitiram sua formulação como categoria do discurso jurídico brasileiro. A criação de nosso primeiro Código de Menores parece ser um acontecimento importante, se queremos analisar mais profundamente como todo o problema se constituiu. Na verdade, tentaremos estudar as condições de formulação do próprio problema.

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A partir de discursos que discutiam a formulação de uma nova legislação sobre a infância e a adolescência no início do século, tentaremos recuperar o sentimento mais geral das transformações históricas que levaram à emergência do menor como categoria jurídica em nossa sociedade. Essa ênfase na historicidade das categorias sociais tem sido colocada por vários autores em outros países, já há algum tempo. O livro de Ariés, História social da criança e da família (Ariés, 1981), provavelmente é o trabalho paradigmático deste tipo de análise. Mostrando as mudanças de atitude diante da infância, do Antigo Regime em relação aos nossos dias, Ariés abriu todo um campo de análise que permitiu historicizar as formas de sociabilidade. Porém, foi com Foucault, Donzelot e Castel, principalmente, que toda uma teoria analítica dos processos históricos de sujeição, que perpassam as relações sociais, se constituiu5. Estes autores tornaram possível a análise das relações de poder que constituem os próprios sujeitos históricos. É inspirado nos trabalhos destes autores que pretendemos estudar alguns aspectos da emergência do menor como categoria no Código de Menores de 1927. Acreditamos que, em relação a essa categoria, muito mais que em relação à categoria “criança”, não basta apenas fazer a história de sua constituição. É necessário, principalmente, colocar como ponto central as relações de poder que a tornaram possível. Como veremos adiante, a unidade do “problema do menor” não estará referida a um conjunto de problemas econômicos, sociais ou morais, mas sim a um processo de sujeição complexo que articulará, de modo coerente, esses diversos níveis. É a partir das relações de

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Acreditamos que estes autores possuem em comum, nos seus trabalhos, a ênfase no estudo das práticas de poder que constituem os sujeitos históricos. Foucault foi quem mais avançou na formulação do que seria essa metodologia capaz de dar conta do que chamamos aqui de práticas históricas de sujeição. Por isso, será a partir de alguns de seus trabalhos que tentaremos explicitar o método necessário para nossa travessia teórica.

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poder que produzem e reproduzem a categoria que poderemos analisar seus aspectos mais importantes. Os livros mais críticos sobre o tema, anteriormente analisados, mostraram de que modo as relações de dominação são essenciais para a compreensão do problema. Faltou a eles uma maior atenção à historicidade desses processos de sujeição. Fazer a construção do objeto implica, assim, em enfatizar as condições históricas do processo de sujeição que permitiu a emergência do menor como categoria. Nosso estudo partirá da legislação que definiu a questão da menoridade no início do século, porque acreditamos que ela representa o momento da emergência do menor enquanto categoria plenamente institucionalizável. Ao estudar diversos discursos que deram suporte à emergência dessa legislação, estaremos tentando recuperar parte da história do processo de menorização a que certos grupos sociais foram então submetidos. O menor não é um objeto dado, mas sim um sujeito de práticas discursivas e institucionais, resultado de enfrentamentos e de estratégias de dominação. Abordá-lo historicamente, é esse o nosso objetivo. Essa proposta implica um longo desvio em relação aos estudos habituais sobre o tema. Implica em abandonarmos a esperança de reconhecer no passado os objetos sociais que acreditamos existirem no presente. Em compensação, permitirá a recuperação de práticas históricas que constituem os próprios objetos. A seguir, veremos a metodologia necessária para o desenvolvimento do trabalho, a definição precisa do objeto de pesquisa e as fontes às quais nos remeteremos.

II – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E METODOLÓGICA E OBJETO DE ANÁLISE

II.1. – Sobre o conceito de sujeição II.2. – Foucault e a análise histórica dos mecanismos de sujeição II.3. – O Código de Menores de 1927 como objeto de análise

“De modo geral, a linguagem tanto diz como faz coisas. Depende de como é vista, de por quem é vista e de quando é vista.” CARLOS VOGT

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II – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E METODOLÓGICA E OBJETO DE ANÁLISE

II.1. – Sobre o conceito de sujeição

Estudar a emergência da categoria menor como um acontecimento histórico específico implica a utilização de um instrumental de análise que seja capaz de dar conta das práticas históricas que a constituíram. O primeiro conceito chave para a construção dessa metodologia é o de sujeito histórico, tal como podemos desenvolvê-lo com base em algumas colocações de Althusser (1983). Numa das passagens do seu trabalho, ao discutir a questão da ideologia, esse autor desloca a discussão do tema, do campo abstrato das idéias para o campo do funcionamento material da própria ideologia. Como diz Albuquerque, explicitando os pressupostos fundamentais com que trabalha Althusser:

Não é no campo das idéias que as ideologias existem e, portanto, não é aí que se encontra seu interesse teórico. As ideologias têm existência material, é nessa existência material que devem ser estudadas, e não enquanto idéias (...) trata-se de estudar as ideologias como conjunto de práticas materiais necessárias à reprodução das relações de produção. (Albuquerque, 1983, p.8)

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Conseqüentemente, haverá, para Althusser, uma articulação importante entre instituição e ideologia: “(...) uma ideologia existe sempre em um aparelho e em sua prática ou práticas. Essa existência é material.” (Althusser, op.cit. p.89) Será através dos mecanismos institucionais, dos Aparelhos Ideológicos de Estado que a ideologia irá se realizar e adquirir sua eficácia. Ainda segundo Althusser, se a ideologia tem uma existência material precisa, terá um efeito também preciso: o efeito sujeito. A ideologia constitui, através das práticas e mecanismos institucionais, indivíduos concretos como sujeitos. Ser “sujeito”, neste sentido, implica em se reconhecer (e em ser reconhecido pelos outros) como agente numa situação social já dada e pré-existente aos agentes. A ideologia interpela os indivíduos como sujeitos:

(...) a categoria do sujeito é uma “evidência” primeira (...) a evidência de que vocês e eu somos sujeitos (...) é um efeito ideológico, o efeito ideológico elementar (...). Este é aliás o efeito característico da ideologia – impor (sem parecer fazê-lo, uma vez que se tratam de “evidências”) as evidências como evidências, que não podemos deixar de reconhecer e diante das quais, inevitável e naturalmente, exclamamos (...): “é evidente! é exatamente isso! é verdade!” (Althusser, op.cit. pp.94-5)

A ideologia transforma os indivíduos em sujeitos. O que é resultado dos mecanismos de sujeição aparece como sendo a essência do próprio sujeito. Indivíduos concretos (usando aqui o tema do nosso trabalho), crianças e adolescentes das classes mais pobres, por exemplo, são reconhecidos (e também se reconhecem) como menores,

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quando, na realidade, são práticas institucionais específicas que os sujeitaram enquanto tal. Ninguém é naturalmente menor, mas, depois de assujeitado enquanto tal, é como se esse atributo fizesse parte da essência do agente. Em outras palavras, um conjunto de práticas de poder sujeitam o indivíduo concreto a uma posição social que lhe pré-existe, mas na qual ele acaba se reconhecendo. Esse seria, segundo Althusser, o mecanismo ideológico básico, resultado do funcionamento material dos Aparelhos Ideológicos de Estado. Não entrando aqui numa discussão mais aprofundada sobre a obra de Althusser, queremos apenas reter essa idéia de que o efeito sujeito é produzido pelo funcionamento material da ideologia, consistindo em fazer com que indivíduos concretos se reconheçam a partir de categorias que são resultados de mecanismos de sujeição6. Assim, podemos explicitar melhor nossa proposta de trabalho: pretendemos estudar alguns aspectos dos mecanismos de sujeição que levaram à constituição do menor como categoria do discurso jurídico e de práticas institucionais, ou, em outras palavras, estudar o menor como efeito de determinadas práticas de poder. Para realizar essa proposta, buscamos o instrumental teórico na obra de Foucault, pois, embora Althusser tenha colocado a questão da sujeição, foi nos trabalhos de Foucault que encontramos uma análise detalhada das estratégias de poder que

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Muitos trabalhos têm discutido a questão dos mecanismos de sujeição a partir do referencial teórico marxista, mostrando como as práticas econômicas são indissociáveis de práticas de dominação (Cf. Albuquerque, 1978). Escolhemos o texto de Althusser citado porque nele o autor enfatiza o aspecto material do funcionamento da ideologia e, ao mesmo tempo, fornece uma primeira definição do conceito de sujeição, a partir da qual podemos desenvolver melhor as considerações sobre a metodologia de Foucault. Não acreditamos, assim, numa incompatibilidade entre algumas análises marxistas e os trabalhos de Foucault. Entre os muitos trabalhos que articulam essas diferentes perspectivas, podemos citar a pesquisa de Luz (1979), que trabalha simultaneamente com Foucault e Gramsci.

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produzem os sujeitos históricos. Nos trabalhos de Foucault, a categoria sujeito aparece como resultado de dispositivos de poder (Cf. Albuquerque, op.cit., p.51), como fruto de relações de dominação que sujeitam, em diferentes momentos históricos, diferentes categorias de indivíduos. É a partir dos seus trabalhos, portanto, que vamos detalhar o instrumental analítico necessário para o desenvolvimento de nosso estudo.

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II.2. – Foucault e a análise histórica dos

mecanismos de sujeição

A obra de Foucault é geralmente dividida, pelos comentaristas, em duas partes: seus primeiros estudos constituiriam uma “Arqueologia do saber”, na qual foram analisadas as transformações históricas de vários discursos, enquanto que, num segundo momento, ele teria feito uma “Genealogia do poder”, na qual foram analisadas as transformações das relações de poder que sustentam os próprios discursos (Cf. Machado, 1981). Com a publicação dos últimos volumes de sua história da sexualidade, porém, um novo aspecto passou a ser privilegiado. A unidade dos seus trabalhos se deslocou para uma análise histórica dos mecanismos de sujeição, como já colocamos anteriormente7. Assim, desde seus trabalhos sobre a loucura na Idade Clássica, sobre o nascimento da clínica e das ciências humanas, até os estudos sobre os poderes disciplinares e a sexualidade, em todos o fio condutor seriam os processos de sujeição

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O próprio Foucault explicita essa idéia, como podemos ver na citação de Lebrun: O objetivo de minhas pesquisas nos últimos vinte anos, escrevia Foucault em 1983, foi o de “produzir uma história dos diferentes modos de subjetivação do ser humano em nossa cultura”. E esse estudo das modalidades de transformação “dos seres humanos em sujeitos” dividiu-se em três eixos: 1º ) a transformação do sujeito em objeto de saber: “objetivação do sujeito falante sob a forma de Gramática Geral, de filologia, de lingüística... ou, ainda, a objetivação do mero fato de ser vivo, sob a forma de História Natural ou de biologia”; 2º) produção do sujeito individual para fins políticos, sob a égide da divisão normal/patológico (louco/são de espírito, criminoso/homem de bem...); 3 º) “a maneira pela qual um ser humano se transforma em sujeito... a maneira pela qual o homem aprendeu a se reconhecer como sujeito de uma sexualidade”(*). E Foucault acrescenta: “Não é portanto o poder, porém o sujeito que constitui o tema geral de minhas investigações”(**) ... (*) Hubert Dreyfus e Paul Rabinow, Michel Foucault. Un parcours philosophique au-delà de l’objectivité et de la subjectivité, Paris, Gallimard, 1984, p.298 (trad. francesa do original americano: Michel Foucault. Beyond structuralism and hermeneutics, Chicago, University of Chicago Press, 1982). (**) Dreyfus e Rabinow, pp.296-298. (Lebrun, 1985, p.23)

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que constituíram a história do homem ocidental. É do ponto de vista deste recorte da obra de Foucault que podemos pensar as relações históricas de poder que constituem o que conceituamos no capítulo anterior, a partir de algumas colocações de Althusser, como sujeitos históricos. Nesse

aspecto,

dois

conceitos

colocados

por

Foucault

serão

metodologicamente importantes: o de poder e o de prática discursiva. Primeiro, o conceito de poder. Em suas pesquisas, ao estudar as relações de poder na sociedade, Foucault tenta dar conta do poder, não apenas no aparelho de Estado, mas na sua aplicação cotidiana, nas “capilaridades” do corpo social. Com isso, consegue apreender as práticas de poder que perpassam a sociedade sem perder de vista a questão do Estado, mas, ao mesmo tempo, sem reduzir todas as relações de dominação ao poder estatal. Nesse sentido, sua metodologia é capaz de dar conta das relações de poder envolvidas em acontecimentos específicos – o surgimento de uma categoria do discurso, por exemplo – articulando-as com uma série de outros acontecimentos. É

necessária

uma

redefinição

do

conceito

habitual

de

poder,

conseqüentemente. Segundo Foucault (1977; 1979; 1980), o poder deve ser pensado como uma relação social complexa, que provém de todos os lugares, de todos os pontos da sociedade, não havendo um lugar privilegiado de seu exercício. Nominalismo radical, portanto: o poder é apenas o nome dado a uma situação estratégica complexa em uma determinada sociedade. O poder não deve ser pensado como posse, mas sim como relação, que se estabelece entre diferentes pontos e que se modifica constantemente. Esta relação não é superestrutural, já que as relações de poder são imanentes às relações econômicas, de conhecimento, sexuais, etc. O poder não é superestrutural porque ele é produtivo e não

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apenas repressivo. Ele cria dispositivos e através deles produz campos de saber e de dominação. Outro aspecto importante é o de que o exercício do poder é, ao mesmo tempo, intencional e não subjetivo, ou seja, o poder se exerce a partir de miras e objetivos, mas o exercício do poder não tem por fonte os sujeitos; pelo contrário, são as próprias práticas de poder que constituem os sujeitos. Logo, a racionalidade das estratégias de poder não deve ser buscada nas intenções dos sujeitos apenas, mas sim nas próprias táticas explícitas que, em grande medida, escapam aos próprios sujeitos. Daí o aparente paradoxo: as estratégias colocam objetivos, mas, ao mesmo tempo, são anônimas, não há um grupo que as controle. Finalmente, para Foucault, o poder não existe sozinho, visto que é relação. O outro termo das relações de poder são as práticas de resistência: onde há poder há resistência, já que ambos os termos são inseparáveis. Não existe, conseqüentemente, um lugar privilegiado de resistência, uma vez que esta também se dá em todos os níveis, não havendo posição de exterioridade em relação ao poder. O poder, para Foucault é, concluindo, o jogo das correlações de força que atravessam a sociedade. Outro conceito de Foucault que será por nós utilizado é o conceito de prática discursiva. Os discursos são práticas articuladas a relações de poder e de saber (Cf. Foucault, 1986 e Veyne, 1982) A análise arqueológica do discurso, proposta por Foucault, ressalta a especificidade interna do discurso, juntamente com suas condições de produção. O discurso tem uma especificidade, apresenta-se como exterioridade, positividade, mas, ao mesmo tempo, remete ao conjunto das condições históricas que o

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constituíram. Por isso, não se trata apenas daquilo que indica uma coisa, uma simples representação, mas sim do fato de que o discurso possui uma existência peculiar:

... não se trata, aqui, de neutralizar o discurso, transformá-lo em signo de outra coisa e atravessar-lhe a espessura para encontrar o que permanece silenciosamente aquém dele, e sim, pelo contrário, mantêlo em sua consistência, fazê-lo surgir na complexidade que lhe é própria. (Foucault, 1986, p.54)

Analisar os discursos, portanto, é tratá-los como práticas:

... gostaria de mostrar que os “discursos”, tais como podemos ouvilos, tais como podemos lê-los sob a forma de texto, não são como se poderia esperar, um puro e simples entrecruzamento de coisas e palavras: trama obscura das coisas, cadeia manifesta, visível e colorida das palavras; gostaria de mostrar que o discurso não é uma estreita superfície de contato, ou de confronto, entre uma realidade e uma língua, o intrincamento entre um léxico e uma experiência; gostaria de mostrar, por meio de exemplos precisos, que, analisando os próprios discursos, vemos se desfazerem os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e destacar-se um conjunto de regras, próprias da prática discursiva. (Foucault, op.cit., p.56)

Trata-se de estudar o discurso como uma prática regrada. E análise dessa prática enunciativa é essencialmente histórica:

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A análise enunciativa é, pois, uma análise histórica, mas que se mantém fora de qualquer interpretação: às coisas ditas, não pergunta o que escondem, o que nelas estava dito e o não-dito que involuntariamente recobrem (...) mas, ao contrário, de que modo existem, o que significa para elas o fato de se terem manifestado, de terem deixado rastros e, talvez, de permanecerem para uma reutilização eventual; o que é para elas o fato de terem aparecido – e nenhuma outra em seu lugar. (Foucault, op.cit., p.126)

Resumindo,

os

discursos

são

práticas

com formas

próprias

de

encadeamento, mas que, ao mesmo tempo, estão articuladas com outros conjuntos de práticas. Como diz Veyne, ao comentar a obra de Foucault, o discurso é a prática no plano dos enunciados, designa aquilo que é dito, assim como outras práticas objetivam outros níveis de acontecimentos. E, enquanto tal, está articulado (sem ser reflexo, superestrutura, etc.) ao resto da história:

Mas cada prática, ela própria, com seus contornos inimitáveis, de onde vem? Mas, das mudanças históricas, muito simplesmente, das mil transformações da realidade, isto é, do resto da história, como todas as coisas. Foucault não descobriu uma nova instância chamada “prática”, que era, até então, desconhecida: ele se esforça para ver a prática tal qual é realmente; não fala de coisa diferente da qual fala todo historiador, a saber, do que fazem as pessoas... (Veyne, op.cit., p.159160)

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A prática dos homens objetivando enunciados, é isto, portanto, o discurso na concepção de Foucault. Vejamos agora, como, a partir dos conceitos trabalhados, podemos construir nosso objeto de estudo.

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II.3. – O Código de Menores de 1927

como objeto de análise

A partir do que foi colocado, podemos definir nosso campo de pesquisa. Partiremos do pressuposto de que a categoria menor é resultado de mecanismos de sujeição que perpassam a sociedade. Em A verdade e as formas jurídicas (Foucault, 1978), Foucault coloca que as práticas jurídicas parecem ser uma das formas pelas quais nossa sociedade definiu tipos de subjetividade. Partindo dessa idéia, estudaremos parte do processo de sujeição do menor a partir do primeiro Código de Menores do Brasil, publicado em 1927. Não se tratará de reduzir o surgimento da categoria aos seus aspectos jurídicos, mas sim de tomar a emergência do primeiro Código de Menores de nosso país como um dos momentos centrais de constituição da categoria no Brasil. O Código de 1927 parece representar melhor o momento em que se dá a cristalização jurídico-institucional do menor como categoria discursiva. Além do que, a escolha da lei como ponto de partida da análise adquire maior significado em relação à categoria menor, já que esta se define prioritariamente como uma categoria jurídica. O Código de Menores de 1927 será tomado em sua dimensão discursiva, conforme a conceituação anteriormente discutida. Mas, o estudo não estará centrado apenas nesta lei. Estudaremos também uma série de outros discursos que, desde o final do século XIX, passaram a discutir a proteção e a assistência à criança e ao adolescente (abandonado e delinqüente), culminando em um novo projeto de institucionalização, do

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qual o Código de Menores é apenas seu resultado mais acabado. O Código de Menores de 1927 é apenas o nó de uma rede mais ampla de práticas discursivas que objetivaram o menor como sujeito8. Assim, estudaremos alguns discursos que tornaram possível a emergência do menor como sujeito, dentro de um novo projeto de institucionalização da infância e da adolescência que se constitui, no início deste século, em nosso país 9. Consideraremos que a unidade do processo a ser estudado, portanto, é a de um processo de sujeição. É a pressuposição desta unidade que permitirá a análise transversal, se assim podemos chamá-la, de discursos provenientes de campos diferenciados, como discursos jurídicos, médicos, jornalísticos, etc. As unidades geralmente pressupostas (saber médico, saber jurídico, etc.) serão dissolvidas em benefício de uma unidade que será por nós privilegiada, a unidade mais significativa de um processo de sujeição10. 8

Nossa proposta de trabalho está muito próxima dos trabalhos de análise de discursos feitos por Orlandi (1983, 1986, 1987a, 1987b). Não faremos, contudo, uma análise de discursos, estritamente falando, pois não temos o domínio metodológico necessário para essa finalidade. O que vamos reter da análise do discurso como método é a idéia, já desenvolvida, de se tomar os discursos enquanto práticas históricas. Aqui, porém, essas práticas discursivas (que definem o nosso recorte) serão tomadas como peças de mecanismos de poder dentro da sociedade. Portanto, se trata, essencialmente para nós, de uma análise dos mecanismos de sujeição a partir de discursos. 9 Sujeição e institucionalização estão intimamente ligadas. Se as relações de dominação constituem indivíduos em sujeitos, as instituições são os locais de cristalização dessas relações de dominação. Por isso, o processo de sujeição do menor enquanto categoria é indissociável de um novo projeto de institucionalização da menoridade, como veremos nos próximos capítulos. Para uma melhor conceituação da questão das instituições, do ponto de vista que queremos trabalhar, consultar os trabalhos de Luz (1979) e Albuquerque (1978). Para uma discussão sobre a relação entre dispositivos de poder e instituições disciplinares, consultar Muchail (1985). 10 Nossa proposta segue os mesmos caminhos de vários trabalhos recentes que, como já mostramos a partir de Foucault, estudam os processos de sujeição na sociedade moderna e contemporânea. Trabalhos como os de Castel (1978), em que é estudado o processo de institucionalização da loucura a partir do desenvolvimento da psiquiatria e, no Brasil, os trabalhos de Roberto Machado (1978) sobre a normalização da sociedade brasileira a partir do desenvolvimento da medicina higiênica. No entanto, os trabalhos que mais se aproximam do tema por nós estudado (o menor como categoria de discursos jurídicos e institucionais) são os de Platt (1982), que estudou as origens dos tribunais para menores nos Estados Unidos no final do século XIX; de Meyer (1977), que estudou a constituição da infância como instrumento de uniformização e controle da sociedade pelo Estado na França; de Donzelot (1980), que analisou, também na França, o desenvolvimento da justiça para menores como parte da emergência do “social” como dispositivo de controle da população; e, no Brasil, algumas passagens dos trabalhos de Rago (1985) e Corrêa (1982a, 1982b) sobre o processo de menorização da infância em nosso país.

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Como diz Sennet (1988, pp.62-63) tentaremos mostrar a plausibilidade empírica de nossa argumentação, através da explicação das conexões lógicas entre fenômenos (no nosso caso, discursos) que podem ser concretamente descritos. Trabalharemos, aqui, com uma documentação bastante específica e baseados em informações historiográficas a que tivemos acesso. Novas informações e novas fontes não invalidam necessariamente a análise, já que não pretendemos realizar um estudo exaustivo. A reconstituição histórica que fazemos, portanto, implica em escolhas metodológicas que se justificam pela eficácia possível das explicações que propomos. Existem outras explicações possíveis que privilegiam outras abordagens. Iniciaremos o próximo capítulo com algumas considerações sobre o contexto histórico da emergência do menor enquanto categoria do discurso jurídico e institucional11.

11

Comentando Nietzsche, Foucault afirma: “A emergência é portanto a entrada em cena das forças; é sua irrupção, o salto pelo qual elas passam dos bastidores para o teatro...” (Foucault, 1979, p.24) É nesse sentido que usamos o conceito de “emergência”: momento no qual um espaço possível para novas práticas se constitui. A categoria menor entra em cena no início do século, nova peça tática no meio de relações sociais mais amplas. Recuperar um fio da história dessa emergência é, aqui, nossa p roposta. Sobre o conceito de “acontecimento”, Foucault o utiliza para ressaltar a especificidade, a raridade dos fenômenos históricos. É com essa ênfase que também o empregamos.

III – CONTEXTO HISTÓRICO

III.1. – Legislação e contexto III.2. – Transformações institucionais III.3. – A emergência do Código de Menores de 1927

“Sendo émbora a protecção á creança dos mais vitaes problemas de uma nação, é com desgosto que se registra a situação em que sempre entre nós viveu, desde os tempos primeiros da nossa civilisação, a infancia moralmente abandonada e delinquente. Em tudo reside, de um lado, na ausencia quasi completa da legislação apropriada, de outro na escassez dos estabelecimentos especiaes que possuia para tal fim o nosso paiz, alguns dos quaes, – porque não confessar –, absolutamente improficuos.” MONCORVO FILHO

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III – CONTEXTO HISTÓRICO III.1. – Legislação e contexto

Comecemos com algumas considerações a respeito da evolução histórica da legislação sobre o menor. Segundo trabalhos da área do direito, a questão do menor nos códigos penais do século XIX se acha diretamente vinculada à questão do discernimento:

(...) perante o nosso C.Crim. (Código Criminal) do Império de 1830, o menor de quatorze anos não era considerado criminoso (art.10), mas tratava-se de uma irresponsabilidade juris tantum, i.e., condicionada ao discernimento, de vez que acrescentava o art.13: “Se se provar que os menores de quatorze anos, que tiverem cometido crimes obrarem com discernimento, deverão ser recolhidos às casas de correção, pelo tempo que ao juiz parecer, contanto que o recolhimento não exceda a idade de dezessete anos (...) (...) O CP (Código Penal) de 1890 e o CPM (Código Penal Militar) de 1891 não se divorciaram do discernimento, cujos dispositivos, por sinal, eram idênticos, sendo ociosa a transcrição de ambos. (Enciclopédia Saraiva ..., 1977, pp.216-218)

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Ainda de acordo com essas mesmas fontes, é justamente com a crise do dispositivo do discernimento que começam a se organizar as leis de assistência e proteção à infância:

De feito, o critério do discernimento morreu e foi sepultado definitivamente no Brasil. Foi ele expressamente revogado na cauda do orçamento para 1921 – Lei n.4.242, de 5-1-1921, art.3°, que o legislador federal autorizou o Governo da República a organizar o serviço de assistência e proteção à infância abandonada e delinquente, construindo abrigos, fundando casas de preservação, etc., para, finalmente, estabelecer no § 20: “O menor de 14 anos, indigitado autor ou cúmplice de crime ou contravenção, não será submetido a processo de espécie alguma e que o menor de 14 a 18 anos, indigitado autor ou cúmplice de crime ou contravenção, será submetido a processo especial”. (Enciclopédia Saraiva, op.cit., p.220)

Uma interpretação possível para o Código de Menores de 1927, com base nessas fontes, seria a de que ele resultaria da evolução da legislação referente à menoridade. Nesse sentido, teria havido um progresso da legislação, que teria partido de noções imprecisas, como a do discernimento, caminhando, posteriormente, para concepções mais elaboradas de assistência e proteção aos menores. Todo o processo em questão, segundo esse raciocínio, tornar-se-ia, assim, evidente: o Código seria apenas fruto da evolução da sensibilidade social no que diz respeito à situação do menor. Acreditamos, no entanto, que este tipo de colocação é equivocada: não podemos pressupor, no que concerne à globalidade desse processo, uma evolução.

[EC1] Comentário: Repete-se “Segundo”...

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Talvez algumas modificações da legislação tenham sido benéficas em algum sentido. Talvez alguns mecanismos legais tenham sido aperfeiçoados, mas não podemos antepor juízos prévios dessa natureza às análises. Se o Código de 1927 representou ou não um progresso jurídico, isto nós só poderemos discutir, mesmo assim, de passagem, ao cabo das análises. Devemos, portanto, abrir mão da idéia de que o Código é fruto do progresso da legislação. Devemos abrir mão de nossas ilusões retrospectivas: mudanças existiram, a legislação sobre o menor se modificou no período, novas instituições surgiram, novas práticas se consolidaram. Resta saber em quais sentidos se deram estas transformações. Do conceito de discernimento ao Código de Menores de 1927, toda a legislação sobre a menoridade foi modificada. A lógica dessa transformação não provém, todavia, apenas da dinâmica interna da legislação, mas sim de um contexto histórico mais amplo. Recuperemos, pois, alguns aspectos deste contexto, possíveis de serem articulados às mudanças na legislação sobre a menoridade12.

12

A idéia de “evolução” da legislação se baseia na ilusão da permanência do objeto: diante do menor, as leis vão se tornando mais aprimoradas, aproximando-se, cada vez mais, de um equacionamento ideal da questão. Esse é o equívoco: leis diferentes visam objetos também diferentes. O “menor” visado pelos Códigos do século XIX é aquele que cometeu um delito: o que está em causa é a possibilidade ou não da punição, dependendo do discernimento. O que está em jogo é um poder especialmente punitivo. O Código de 1927, como veremos ao longo deste trabalho, visa todo menor em risco de abandono. Sua clientela é mais ampla. Seu caráter não pretende ser punitivo, mas assistencialista, preventivo, recuperador. Novas práticas de poder, novas leis, novos objetos, portanto. São alguns aspectos dessas transformações que tentaremos recuperar aqui.

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III.2. – Transformações institucionais

As mudanças na legislação sobre a menoridade durante o século XIX e início do século XX no Brasil se correlacionam a mudanças nas formas de institucionalização da infância durante esse mesmo período. Uma das formas mais importantes dessa institucionalização durante a época colonial, ligada ao que posteriormente se nomearia como problema do abandono, são as rodas dos Expostos:

Na época colonial e durante o Império, “exposto” e “enjeitado” constituíam termos recorrentes empregados na sociedade brasileira para nomear a criança abandonada. “Exposto” e “enjeitado”, segundo o dicionário da língua portuguesa de Antonio de Morais Silva, edição de 1831, correspondia àquele (e/ou àquela) que era abandonado(a) na Roda – aparelho, em geral de madeira, do formato de um cilindro, com um dos lados vazado, assentado num eixo que produzia um movimento rotativo, anexo a um asilo de menores. A utilização desse tipo de engrenagem permitia o ocultamento da identidade daquele(a) que abandonava. A pessoa que levava e “lançava” a criança na Roda não estabelecia nenhuma espécie de contato com quem a recolhia do lado de dentro do estabelecimento. A manutenção do segredo sobre a origem social da criança resultava da relação promovida entre abandono de crianças e amores ilícitos. Os espaços especialmente destinados a acolher crianças visavam, num primeiro momento,

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absorver os frutos de tais uniões. Com o tempo, essas instituições passaram a ser utilizadas também por outros motivos – indivíduos das camadas populares, por exemplo, abandonavam seus filhos na Roda por não possuir meios materiais de mantê-los e criá-los. Casa dos Expostos, Depósito dos Expostos e Casa da Roda eram designações correntes no Brasil para os asilos de menores abandonados. (Gonçalves, 1978, pp.37-38)

Segundo Gonçalves, no mesmo trabalho, e Mesgravis (1972), as primeiras Rodas foram instaladas em Salvador e no Rio de Janeiro, por volta de 1700, embora as primeiras referências aos expostos sejam do século XVII. O mecanismo da Roda e os asilos que dele se utilizavam parecem apontar para um tipo de institucionalização da infância, que visava regular os desvios da organização familiar colonial, definindo um tipo de assistência norteada pela caridade religiosa. Mesgravis ressalta o caráter urbano dessa forma de institucionalização:

O fato das primeiras “rodas” terem sido instaladas em Salvador e no Rio de Janeiro vem confirmar o seu caráter urbano, uma vez que, até o século

XVIII,

apenas

essas

duas

localidades

mereciam

verdadeiramente o nome de cidade, enquanto as outras permaneciam na condição mais próxima de grandes aldeias, dominadas pelo particularismo de “homens-bons” com os interesses voltados para suas grandes propriedades rurais, sem real preocupação com os problemas públicos (...) (Mesgravis, op.cit., p.231)

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As Rodas, enquanto forma de institucionalização, entrarão em crise ao longo do século XIX. Gonçalves, ao estudar a Roda existente no Rio de Janeiro, afirma:

As mudanças de local da Roda tiveram lugar a partir do século XIX... Os sucessivos deslocamentos do estabelecimento denotam, por um lado, o aumento de crianças abandonadas. Por outro, manifestam uma preocupação crescente que então despertara a mortalidade, de altas taxas, que atingia os “enjeitados” da Santa Casa. E, na expressão dessa “preocupação”,

a

medicina

higiênica

teve

um

desempenho

importante... (Gonçalves, op.cit., pp.40-41)

Sofrendo o ataque da medicina higiênica, que então se consolidava no Brasil, e de novos projetos de institucionalização da infância abandonada e delinqüente, a Roda acabou por se tornar um paradigma negativo de institucionalização, de tal modo que o Código de Menores de 1927 chegou a decretar a sua extinção, no capítulo referente aos infantes expostos: “Art.15. A admissão dos expostos á assistencia se fará por consignação directa, excluido o systema das rodas”. A Roda parece ter sobrevivido, porém, ao Código, vindo a desaparecer somente em 1950 (Cf. Mesgravis, op.cit., p.249). Mas, o que nos interessa aqui é o fato de que na época da edição do Código já há um consenso em relação à ineficácia desse mecanismo13. Uma comentadora do Código de 1927 explicitará esse consenso:

13

Uma citação de Moncorvo Filho também exemplifica a crítica da época às Rodas: “Desde muito que a Roda além de muitos outros inconvenientes, é considerada como uma instituição condemnada e essa afirmação é uma verdade tão flagrante que, dos paizes civilisados, sómente Portugal e o Brasil a possuem nest’hora. (Moncorvo Filho, 1926, p.44)

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A questão do fechamento das rodas vem de longa data suscitando grandes polemicas. Modernamente, porém, a opinião vencedora é contraria a ellas, que têm sido substituidas por institutos, de molde a offerecerem as suas vantagens sem os seus inconvenientes. (Mineiro, 1929, p.34)

Provavelmente a crise da Roda se deva a sua incapacidade de acompanhar as mudanças históricas que ocorriam na sociedade brasileira durante o século XIX e início do século XX. Novas urgências históricas levaram a novas experiências institucionais. Da segunda metade do século XIX a seu término, o país passou por grandes transformações sociais, políticas e econômicas. Centremos nossa atenção nas transformações decorrentes da substituição da mão-de-obra escrava pela mão-de-obra assalariada e a conseqüente formação de um mercado de trabalho livre no Brasil. A formação desse mercado não foi uma tarefa simples, nem se limitou apenas à esfera do econômico, mas implicou a formação de novos processos de sujeição:

... submeter pessoas para que vendam sua força de trabalho não é algo que se possa fazer de um momento para outro. Ao contrário, a formação de um mercado de mão-de-obra livre foi um longo e tortuoso percurso histórico marcado, no mais de vezes, por intensa coerção e violência. Para tanto foi necessário efetuar maciça expropriação, que residiu em destruir as formas autônomas de subsistência, impedindo a acesso à propriedade da terra e aos instrumentos produtivos, a fim de retirar do trabalhador o controle sobre o processo produtivo. Mas, além disso, foi também necessário

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proceder a um conjunto de transformações de cunho mais marcadamente cultural, para que os indivíduos despossuídos dos meios materiais de vida não só precisassem como também estivessem dispostos a trabalhar para os outros. (Kowarick, 1987, p.10)

Nessas transformações, a lei do Ventre Livre de 1871 parece ter tido importância central na organização da mão-de-obra livre e na abolição da escravidão (Cf. Gebara, 1986, p.11). Numa discussão em torno dessa lei, Mattoso (1988) mostra, de maneira bastante exemplificativa, como a questão da infância e da menoridade era diferente entre a população livre e a população escrava:

É por demais conhecido que, para a Igreja, a idade de razão de todo cristão jovem situa-se aos 7 anos de idade, idade de consciência e responsabilidade. Para a Igreja, aos sete anos a criança adquire foro de adulto: de ingênuo torna-se alma de confissão(*). Por sua vez, na sua parte de direito civil, o Código Filipino mantido em vigor durante todo o século XIX, fixava a maioridade aos 12 anos para as meninas e aos 14 anos para os meninos (**). Finalmente, a lei de 28 de setembro de 1871 (Lei do Ventre Livre), ao colocar em poder e sob a autoridade dos senhores os filhos de escravos nascidos ingênuos, obriga a estes “crial-os e tratal-os até a idade de oito anos completos. Chegando o filho de escrava a esta idade, o senhor da mãe terá a opção, ou de receber do Estado a Indemnização de 600$000 ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 annos completos”(***). Pelo que se infere nos documentos que são os inventários, e pelas normas e leis da sociedade civil e religiosa, há, ao lado da maioridade religiosa e

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civil, uma terceira maioridade, esta afeta ao início de uma atividade econômica produtiva. Terceira maioridade que nos parece muito mais importante que as outras duas porque não somente é própria à condição escrava(****) como também indica claramente que, tratando-se da criança escrava, o divisor de águas entre infância e adolescência colocava-se bem antes dos doze anos, porque assim exigiam os imperativos de ordem econômica e social. (*) – AZEVEDO, Thales de. Povoamento da cidade do Salvador. Salvador, Editora Itapuã, 1968. (**) – MATTOSO, Kátia de Queirós. Família e sociedade na Bahia do século XIX. São Paulo, Corrupio, 1988. (***) – Actos do Poder Legislativo, Lei n.2040, de 28 de setembro de 1871, Art.1 §1º . In: Leis do Brasil. Rio de Janeiro, Imprensa Oficial, 1871, pp.147-149 (****) – A nosso conhecimento não existe nenhuma lei referente à população livre, compelindo crianças a ingressarem na vida ativa nessa idade. Observo, porém, que apesar da lei de 28 de setembro de 1871 ter sido feita para crianças nascidas livres de mães escravas, o parágrafo do artigo 1º, ao facultar ao senhor da escrava a utilização do trabalho dos ingênuos de mais de 8 anos, jogava estes, novamente na escravidão. (Mattoso, op.cit., pp.42-43)

Transcrevemos essa longa citação porque nela a autora mostra claramente como a questão da maioridade na época acompanha as modificações da legislação sobre o trabalho escravo. Novas formas de trabalho são concomitantes de novas formas de sujeição. Assim, num primeiro momento, serão os mecanismos de sujeição para o

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trabalho que irão colocar novas formas de institucionalização da infância, distintas daquelas ligadas aos expostos e à Roda. Barreiro (1987), ao estudar as modificações institucionais que no século XIX levaram à produção de uma nova ideologia do trabalho, indica como a preocupação da burguesia com a formação de trabalhadores livres levou a novas experiências institucionais dirigidas à infância abandonada:

A especificação de um espaço de características determinadas, para submeter os indivíduos a regime de internato e semi-encarceramento, foi também um recurso de importância e significação, que objetivou organizar o espaço e disciplinar os homens livres não vinculados à plantation. Instituições como hospícios de expostos, existentes de havia muito na sociedade brasileira, embora organizassem de uma certa forma os indivíduos no interior de um espaço fechado, não o faziam de molde a preservá-los e torná-los úteis ao sistema social. As crianças recolhidas em tais hospícios não eram preparadas por essas instituições para integrarem e acatarem as regras do trabalho capitalista. Ao invés disso, essas instituições apresentavam um espantoso índice de “destruição dos corpos”, com dados estatísticos apresentando um índice de mortalidade entre 40 e 50% sobre a população por elas recolhida*. As “Colônias Agrícolas para ingênuos” ou “Colônias Orfanológicas”, discutidas, estudadas e fundadas pela classe dominante brasileira na segunda metade do século XIX foram uma forma de organização do espaço que submetia os indivíduos a controle sob regime de internato (...)

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(*) – Congresso Agrícola do Rio de Janeiro, pp. 62 e 76 (Barreiro, op.cit., p.145)

Surgem, assim, as Colônias Agrícolas, que visavam produzir indivíduos disciplinados para o trabalho, instituições produtivas, no lugar dos antigos depósitos para expostos. Barreiro (Cf. ibidem) cita que, pelo menos uma delas parece ter dado resultados positivos: a Colônia Isabel, na Província de Pernambuco. Entendemos que vale a pena analisar mais detalhadamente esta instituição a fim de ressaltar sua especificidade em relação às experiências institucionais existentes até então. Primeiro ensaio da escola industrial no Brasil, a “Colônia Agrícola, Orphanologica e Industrial Isabel” foi fundada em 1873 pelo desembargador Henrique Pereira de Lucena, na extinta colônia militar das Pimenteiras, ficando sua direção sob o comando de Frei Fidelis Maria Fogano (Cf. Moncorvo Filho, 1926, p.77). Um relatório de Frei Fidelis14 apresentado ao presidente da província em 1883 informa que a colônia foi instalada somente em 24 de janeiro de 1875, com 38 menores, a maioria dos quais vindos do extinto Colégio de Órfãos da capital, que era ligado à Santa Casa do Recife. A Colônia tinha uma média anual superior a 130 educandos entre 1875 e 1882. Estes educandos recebiam instrução básica, religiosa e aulas de música, sendo que a maioria sabia ler, escrever e contar. A Colônia Agrícola apresentava também entre seus educandos um aparente baixo índice de mortalidade: 1 óbito em 1 ano.

14

Os documentos básicos com os quais trabalharemos aqui sobre esta instituição são os de Fidelis, Frei. Relatório da Colonia Agricola, Orphanologica e Industrial Isabel, Recife, Typ. De M. Figueiroa de F. & Filhos, 1883, 23p., e também Pereira, F.M.S., Falla com que o Exm. Sr.Conselheiro da Provincia Doutor Francisco Maria Sodré Pereira abrio no 1º de março de 1883 a Assembléia Legislativa Provincial, Recife, Typ. De M. Figueiroa de F. & Filhos, 1883, pp.41-44. Apesar da dificuldade de análise deste tipo de documentação, arriscamo-nos a interpretá-la diretamente, já que não conhecemos nenhum estudo histórico detalhado sobre a questão.

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No já citado relatório de Frei Fidelis, o diretor da colônia definia os objetivos da instituição ao defender as verbas destinadas pelo governo:

Não se julgue mal empregada a quantia consignada pela referida lei (*). Institutos da natureza d’este devem-se considerar fontes de renda publica, quer pelos artistas e trabalhadores instruidos e laboriosos que formam, quer pelos cidadãos ordeiros e moralisados que educam. Quantos braços não se perdem por falta de educação? Quantos desordeiros não cria a ociosidade? E obtendo o Governo o aproveitamento d’aquelles e a diminuição d’estes, com os quaes faz tantas despezas improductivas, não augmenta por isso mesmo as suas rendas? E se é do interesse de qualquer Governo aproveitar os braços que se perderiam e diminuir o numero de desordeiros, não será isto imperiosa necessidade para o Brasil, na época de transformação social que vae atravessando e que trar-lhe-ha necessariamente falta de braços, especialmente para a agricultura? (Fidelis, 1883, p.6) (*) Lei n.1481 de 12 de junho de 1880, que previa verbas próprias para a colônia. A instituição recebia subvenção orçamentária da província, mas não tinha recursos assegurados por lei permanente, sendo a única fonte certa de renda os rendimentos do patrimônio dos órfãos, confiados à administração da Santa Casa de Misericórdia do Recife.

Produzir cidadãos ordeiros e moralizados através do trabalho, era esse o objetivo colocado. Desse modo, este tipo de instituição pretendia ser duplamente

[E2] Comentário: Verificar se esta nota deve ser incluída no rodapé. Criar padrão para as demais. (p.49)

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produtiva: produziria os trabalhadores necessários, principalmente para a agricultura, e cidadãos ordeiros que assim escapavam da delinqüência. Dupla utilidade para o Estado, portanto, o que justificava as verbas demandadas. Mas o próprio diretor da colônia já alertava

para

as

duas

principais

dificuldades

que

esse

novo

projeto

de

institucionalização encontrava. A primeira era a resistência da clientela ao trabalho:

Nem um menor, dos que são remettidos dessa capital, feitas poucas excepções, se quer sujeitar a trabalhar na agricultura; por não poder isemptar-se, frequentam uma das diversas officinas, repetindo a maior parte delles que o trabalho só é próprio do escravo!!! .... Isto dá em resultado viciar os educandos filhos de agricultores, ponto que merece muita consideração pelas consequencias que pode ter, e deveria obrigar essa presidencia a dar preferencia, nas admissões, aos menores do campo, pois esta Colonia foi fundada, principalmente, para criar agricultores. (Fidelis, op.cit., pp.12-13)

Mas, a maior dificuldade era a financeira, sendo a tônica de todo o relatório:

Uma ha entre as necessidades d’esta Colonia que reclama serios cuidados por parte da administração da provincia, porque, no meu fraco entender, sobrepuja á todas as outras, quer pela importancia, quer pelo alcance de seus effeitos, e d’ella depende, quando não a vida, pelo menos o progresso da mesma Colonia, e é o estabelecimento de uma fonte certa de rendas necessarias para seu elevado custeio, afim de emancipal-a dos cofres publicos, para assim

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viver vida propria, livre d’estas dolorosas contingencias que lhe atrazam immensamente o seu desenvolvimento. (Fidelis, op.cit., p.5)

Embora não tenhamos informações sobre o destino que teve essa instituição, vemos delinear-se nestes discursos um novo tipo de projeto de institucionalização da infância, diferente daquele ligado à Roda, que não visava mais ser apenas um depósito de expostos, mas que procurava produzir cidadãos aptos para o trabalho. Instituições lucrativas, cujo “lucro” para o Estado consistia na produção de indivíduos moralizados e trabalhadores. As palavras do Conselheiro Presidente da Província sobre o relatório anteriormente citado, ressaltavam este aspecto:

A compensação das despezas e mesmo dos sacrificios, que são merecidos, deve consistir para o Estado unicamente no lucro que lhe provem da assistencia aos desherdados da fortuna, que mais tarde se apresentarão cidadãos moralisados e trabalhadores, uteis a si e a patria. Não há duvida, porém, que o Estado deverá concorrer para crear nesses estabelecimentos meios de rendas, para que possam depois, vivendo independentemente, dispensar os auxilios da administração publica. (Pereira, 1883, p.41)

Ao mesmo tempo em que o investimento na instituição era visto como produtivo, vemos no texto anteriormente citado que o Estado não parecia pretender, nesse momento, arcar totalmente com a manutenção deste tipo de estabelecimento.

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Talvez, justamente essa dificuldade em obter amparo público é que tenha levado ao insucesso essas experiências. Mas, provavelmente, a utilização do trabalho imigrante no Brasil tenha de tal modo transformado o eixo das questões sobre a formação de um mercado de mão-de-obra livre que tenha impedido a continuidade de experiências institucionais como a da Colônia Isabel. De qualquer modo, as transformações institucionais em relação à infância e à menoridade não eram apenas respostas à formação de mão-de-obra livre, mas respondiam também a outras urgências históricas. A Colônia Isabel parece ser uma experiência ainda incipiente de instituição produtiva, de um espaço diferenciado onde se visava não só a exclusão, mas também a sujeição de indivíduos a certas disciplinas. Essas novas formas de institucionalização parecem se deslocar, na virada do século XIX para o XX, principalmente para os grandes centros urbanos que mais cresciam na época, Rio de Janeiro e São Paulo. Alguns trabalhos já trataram da relação nesta época entre novas estratégias institucionais e o controle social das populações urbanas. Abreu, por exemplo, mostra o surgimento, em São Paulo, de novas formas de filantropia dirigidas à pobreza urbana:

A história da filantropia em São Paulo parece conter dois momentos distintos. Entre o último quartel do século XVIII até meados do século XIX, as obras de assistência aos ‘desafortunados’ estavam impregnadas

pelo

espírito de

perseverança

e

benemerência.

Predominava a caridade cristã como norma orientadora da ação das obras sociais. Não havia preocupações preventivas e sequer a preocupação em separar, hierarquizar e classificar os diversos assistidos sociais. Assistência e repressão confundiam-se. No limiar da segunda metade do século XIX, o quadro da filantropia em São Paulo

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vai, progressivamente, alterar-se com a introdução de novas regras de ação prático-normativa. Transformações na composição da população, decorrentes das restrições ao tráfico de escravos e do incentivo à imigração estrangeira, agravaram as precárias condições de habitação, alimentação e higiene, suscitando problemas de ocupação e circulação no espaço citadino. Ademais, a escassez crônica das rendas municipais e provinciais impedia que a administração pública promovesse uma política social previdenciária dirigida à população pauperizada. A assistência à pobreza não se inseria no raio de ação do Estado. Preocupações com a ‘desordem urbana’ passam a habitar o vocabulário das elites políticas locais. A filantropia do ‘civilismo cristão’ das elites e a medicina social deram-se as mãos para inaugurar um corte decisivo para com o passado da assistência social aos ‘desafortunados’, incentivando a introdução e prática de novas concepções pedagógico-sanitárias. (Abreu & Castro, 1987, pp.101102)

As transformações urbanas também são acentuadas no Rio de Janeiro, levando a toda uma reorganização institucional, visando o gerenciamento da nova problemática urbana que vai se consolidando15. Nesse novo contexto, as preocupações em relação à infância e adolescência vão se desenvolvendo em diversas direções. Segundo os autores anteriormente citados, o problema da infância abandonada aparece, no final do século XIX, como um “ponto nodal” das contradições pelas quais passava a filantropia na época. (Cf. Abreu & Castro, op.cit., p.107) 15

Sobre as transformações urbanas no Rio de Janeiro, consultar Chalhoub (1986) e Sevcenko (1984). Em relação à questão da nova problemática urbana que surge com o capitalismo industrial, é bastante interessante também o trabalho de Bresciani (1987).

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Já Fausto (1984) mostra, em um estudo sobre a criminalidade em São Paulo entre 1880 e 1924, como a relação entre a questão do menor e a criminalidade se faz presente. Segundo o autor, a última década do século XIX representa para a cidade de São Paulo um momento de inflexão na questão da criminalidade. O grande crescimento da cidade faz com que, em diferentes níveis, apareça a preocupação de controlar e classificar, ligada ao objetivo das elites de instituir uma nova ordem urbana. E dentro dessa nova ordem, o controle social sobre as camadas mais pobres aparece como instrumento de grande importância. A questão da criminalidade do menor aparecerá, então, com freqüência: o controle social passará por distintos segmentos da população, como as prostitutas, os primeiros organizadores do movimento operário e os menores vadios. É assim que, junto com a preocupação sobre a regulamentação do meretrício e as primeiras prisões de socialistas e anarquistas, surgem as campanhas contra os chamados menores arruaceiros e abandonados que acabaram por resultar na criação do Instituto Disciplinar, em 1902. (Cf. Fausto, op.cit., p.11) Outro problema que começa a ganhar espaço é o do trabalho infantil. Com o avanço da industrialização e a utilização de mão-de-obra imigrante no fim do século XIX e início do século XX, o emprego de menores nas fábricas passa a ser generalizado, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo (Cf. Góes, 1988, pp.5456; Pinheiro, 1981, pp.59-61). Juntamente com a mão-de-obra feminina, a mão-de-obra do menor passa a ocupar lugar de destaque na composição da força de trabalho, principalmente na indústria têxtil16. Essa presença não é acidental, pois essa mão-deobra ocupava papel central no processo de acumulação capitalista de então:

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Um dos trabalhos mais completos sobre a participação da mão-de-obra menor e feminina no trabalho industrial no início do século é o de Moura (1982).

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A presença de mulheres e meninas nas fábricas, bem como de menores em geral, favorecia certos mecanismos de superexploração, entre eles, o próprio rebaixamento de salários. Nos períodos de crise, o desemprego atingia, em geral, todos os membros da família operária. A entrada de mulheres e menores, em massa, no mercado de trabalho, acrescia em muito os contingentes do exército industrial de reserva. Além disso, o trabalho feminino e infantil, em certos casos, aumentava mais as dificuldades de organização, pela presença de elementos ideológicos patriarcais no meio operário. (Hardman, 1982, pp.183-184)

Assim, problemas ligados ao abandono da infância, à delinqüência juvenil e ao trabalho de menores nas indústrias começam a emergir como parte da questão social que então se constituía, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo. O surgimento de novos tipos de instituições disciplinares nessas cidades, espaços diferenciados, tais como a já citada Colônia Isabel, mas agora voltadas para um contexto eminentemente urbano, não surpreende. Instituições como a Escola 15 de Novembro, no Rio de Janeiro, e o Instituto Disciplinar, em São Paulo, são exemplos. A Escola 15 de Novembro foi fundada em 15 de novembro de 1899 e inaugurada a 3 de dezembro do mesmo ano. Inicialmente um instituto particular, foi oficializada, mais tarde, sob o governo Rodrigues Alves (Cf. Mineiro, 1929, p.452). Paiva definia os objetivos desta instituição:

Essa instituição tem por fim ministrar assistencia e educação physica, profissional e moral aos menores abandonados e recolhidos aos

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estabelecimentos por ordem das auctoridades competentes, nos termos do art.7º da lei n.947 de 29 de dezembro de 1902. Dahi a sua denominação de “Premunitoria” (Escola Premunitoria 15 de Novembro), para bem caracterizar que é “aos menores moralmente abandonados, orphãos, vadios, etc., que ella se destina, e não aos que já incidiram na sancção penal”. (Paiva, 1916, p.146)

O Instituto Disciplinar foi criado pelo Decreto n. 1079 de 30 de dezembro de 1902 (Cf. Corrêa, 1928, p.16). Neste decreto, eram definidas suas características:

Artigo 1º O Instituto Disciplinar, com séde na Capital do Estado, subordinado ao secretario do Interior e da Justiça, sob a immediata inspecção do chefe de policia, destina-se a incutir habitos de trabalho, a educar e a fornecer instrucção litteraria e profissional, esta ultima de preferencia agricola: a) a maiores de 9 annos e menores de 14, no caso do artigo 30 do Codigo Penal; b) a maiores de 14 annos e menores de 21, condemnados por infracção do artigo 399 do Codigo Penal e do art.2º do decreto federal n.145, de 11 de julho de 1893; c) a pequenos mendigos, vadios, viciosos, abandonados, maiores de 9 annos e menores de 14. (Corrêa, op.cit., pp.17-18)

As intenções explícitas destas instituições já estão bastante distantes das concepções que norteavam os antigos depósitos de expostos. Estas novas instituições

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disciplinares visavam não apenas excluir os menores sob sua guarda, mas torná-los política e economicamente produtivos, cidadãos moralizados e trabalhadores. Mas, essas novas experiências institucionais não são iniciativas isoladas. Elas fazem parte de uma ampla discussão sobre a infância e a juventude, abandonada e delinqüente, que começa a emergir na virada do século XIX para o XX, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Uma série de discursos começam a se articular em torno das questões sobre a necessidade de mudanças na legislação e nas instituições que tratavam de problemas ligados à menoridade. Um novo projeto de institucionalização da infância e adolescência se constituiu, então. É o que veremos a seguir 17.

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São inúmeras as modificações em relação à infância e adolescência no decorrer do século XIX e início do século XX no Brasil. Trabalhamos principalmente a questão dos expostos e o surgimento de institutos disciplinares porque estão mais próximos da problemática do menor abandonado e delinqüente que se constituirá depois.

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III.3 – A emergência do Código de Menores de 1927

No início do século XX, um autêntico movimento em favor da infância abandonada e delinqüente se constituiu, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo. Livros, artigos de jornais e projetos de lei passam a propor reformas na legislação e nas instituições referentes aos menores em geral. Advogados, juízes, educadores e médicos participam de uma verdadeira cruzada pela infância e adolescência abandonada ou delinqüente. Lopes Trovão, Evaristo de Moraes, Moncorvo Filho, Ataulpho de Paiva, Noé Azevedo, Alcindo Guanabara, Mello Mattos e muitos outros contribuíram para a construção de um novo tratamento jurídico-institucional para a questão da menoridade. O resultado de todo esse movimento foi a emergência do primeiro Código de Menores do Brasil, em 1927. A crítica à antiga legislação sobre a menoridade já vinha desde o século passado. Em 1884, Tobias Barreto já tinha feito a crítica ao discernimento na sua obra “Menores e Loucos”. Mas, a discussão sobre a legislação da menoridade começou a ganhar impulso a partir de 1902, quando Lopes Trovão apresentou um primeiro projeto de assistência e proteção aos menores (Cf. Mineiro, op.cit., p.18). Seguiram-se muitas outras iniciativas no mesmo sentido, como as de Alcindo Guanabara em 1906 e 1917. Mas foi Mello Mattos, primeiro Juiz de Menores do Brasil, nomeado em 1924, quem, a partir da década de vinte, passou a levar em frente as reformulações da legislação da menoridade, terminando por ser o principal responsável pela aprovação do primeiro Código de Menores do país. Mello Mattos reuniu sua experiência como criminalista, filantropo e juiz de menores para sintetizar, em forma de lei, um novo projeto de institucionalização da

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infância e adolescência, que já estava presente em muitos discursos que circulavam, então, na sociedade. Muitos autores, no início do século, influenciados pelas mudanças na legislação de proteção à menoridade em outros países, colocavam a necessidade da proteção à criança brasileira através de uma legislação apropriada e de estabelecimentos especiais, já que, para esses autores, a infância no país encontrava-se ainda abandonada, jurídica e institucionalmente. Mello Mattos uniu essas novas idéias às mudanças na jurisprudência que, desde o início do século XX, tentavam dar conta dos novos problemas relativos à menoridade nos grandes centros urbanos, para criar, assim, uma legislação especial para a assistência e proteção aos menores. A advogada Beatriz Sofia Mineiro, colaboradora de Mello Mattos e representante da Assistência Judiciária no Juízo de Menores do Rio de Janeiro na época da edição do Código de Menores, foi quem deixou um dos documentos mais ricos e interessantes para a análise do processo de constituição dessa legislação. No seu comentário ao Código de Menores (Mineiro, 1919), prefaciado pelo próprio juiz Mello Mattos, a autora discutia de modo exaustivo a nova legislação. Reconstituindo o histórico da legislação de assistência e proteção à infância no Brasil, esta autora demarcava o início do processo com o já citado projeto de Lopes Trovão:

A iniciativa dessa humanitária reforma no Congresso Nacional é devida a Lopes Trovão, que apresentou o primeiro projeto ao Senado, em 29 de outubro de 1902 (projecto n.27 de 1902). Seguiu-se-lhe Alcindo Guanabara, que apresentou projecto á Camara dos Deputados em 31 de outubro de 1906 (projecto n.328, de 1906). Mais tarde, em 11 de julho de 1912, appareceu um projecto de João Chaves (n.94, de 1912).

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Finalmente surgiu novo projecto de Alcindo Guanabara, no Senado, em 21 de agosto de 1917 (n.14, de 1917). (...) (Mineiro, op.cit., p.18)

Alcindo Guanabara, Senador pelo Distrito Federal, apresentou, por duas vezes, projeto visando a assistência e proteção à infância e adolescência, mas não teve êxito em suas iniciativas. Foi Mello Mattos quem deu continuidade, posteriormente, a esses projetos:

Os projectos apresentados ao Congresso nacional ficaram sem solução. O ultimo, de Alcindo Guanabara, chegou até á terceira discussão; mas por ter morrido o seu autor, ficou encalhado, até que Alfredo Pinto, como ministro da Justiça e Negocios Interiores do Presidente Epitacio Pessoa, promoveu o seu andamento. (...) A commissão de Finanças do Senado, depois de encerrada a terceira discussão do projecto de Alcindo Guanabara, em 1919, foi de parecer que o Governo devia ser consultado a respeito do augmento de despesas delle decorrentes. Assim decidido, remetteu-se o projecto ao Presidente da Republica, por intermedio do Ministerio da Justiça e Negocios Interiores. Com a ascenção de Epitacio Pessoa á Presidencia da Republica, o ministro Alfredo Pinto, conhecedor do assumpto e enthusiasta propagandista dessa reforma, deu novo impulso ao projecto Guanabara, encarregando o notavel criminalista, distincto professor de direito e grande advogado, Dr. José Candido de Albuquerque Mello Mattos, de organizar um projecto substitutivo, que, com pequenas modificações, serviu de base á autorização legislativa constante da lei

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numero 4.242, de 5 de janeiro de 1921, art. 3º , proposta pelo senador Gonzaga Jayme. Essa autorização foi mantida pelo art. 1º do decreto n.4.547, de 22 de maio de 1922. E o mesmo jurisconsulto Mello Mattos foi incumbido do projecto do respectivo regulamento. Mas o Presidente Epitacio Pessoa não se utilizou dessa autorização, por causa da grande crise financeira do momento. (Mineiro, op.cit., pp.1819)

Mello Mattos teve de esperar, assim, até o governo seguinte, para poder dar continuidade ao seu projeto. Com Arthur Bernardes, porém, a questão já havia ganho importância, a ponto de já constar da plataforma do candidato:

Bem inteirado da necessidade urgente de resolver o palpitante problema (...) o eminente Sr. Dr. Arthur Bernardes, logo na sua plataforma eleitoral, annunciou que no seu governo promoveria a creação do Juízo de Menores e a organização da assistencia e protecção aos menores abandonados e delinquentes; e effectivamente dotou o Brasil com admirável e efficiente legislação a esse respeito, decretando o regulamento autorizado pelo Congresso Nacional e os seus complementares. (...) Esse regulamento foi approvado pelo decreto n.16.272, de 20 de dezembro de 1923; e a reforma Judiciária o foi pelo decreto n.16.273 da mesma data. Pelo art.30 da lei n.4.793, de 7 de janeiro de 1924, ratificaram-se ambos esses decretos, adquirindo elles assim força de lei.

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Depois, o ministro João Luiz Alves distinguiu novamente Mello Mattos, incumbindo-o da organização do projecto de regulamento do Conselho de Assistencia e Protecção aos Menores, approvado pelo decreto n.16.388, de 27 de fevereiro de 1924; bem como da do projecto do regulamento do Abrigo de Menores, approvado pelo decreto numero 16.444, de 2 de abril de 1924. Ulteriormente, tendo sido João Luiz Alves nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal, substituiu-o Affonso Penna Junior, que incumbiu Mello Mattos de organizar o projecto de lei n.4.893A, de 30 de dezembro de 1925, que ampliou o funccionalismo do Juizo de Menores, e decretou melhoramentos para os institutos disciplinares, inclusive a organização autonomica do reformatorio para o sexo masculino; encarregando-o tambem do projecto de regulamento desta escola, approvado pelo decreto n.17.508, de 4 de novembro de 1926, bem como do respectivo Regimento Interno. (...) (Mineiro, op.cit., pp.19-20)

Com a criação do Juízo de Menores do Rio de Janeiro, Mattos passa a se dedicar à constituição de um Código de Menores, que organizasse, de modo global, as leis referentes à assistência e proteção aos menores em todo o país:

A execução da lei, sob a orientação pratica e efficiente do juiz Mello Mattos, pôz a descoberto alguns defeitos e falhas da mesma; a experiencia levou o preclaro magistrado a solicitar medidas legislativas que a corrigissem e completassem. Dahi a apresentação ao Senado Federal de um projecto de reforma, convertido hoje no decreto

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n.5.083, de 1 de dezembro de 1926, e promulgado pelo Presidente Washington Luis. Elaborado por Mello Mattos, esse projecto foi adoptado e assignado por 16 senadores seus amigos, á cuja frente está Mendonça Martins; apresentado em sessão de 7 de julho de 1925, recebeu o n.12 desse anno. Tinha elle por fim estabelecer um “Codigo dos Menores”, consolidando as leis de assistência e protecção aos menores de 18 annos, abandonados ou delinquentes, addicionando-lhes novos dispositivos complementares e ampliativos, cogitando tambem dos menores da primeira infancia, dos operarios e de outros aspectos do complexo problema. Tendo o art. 1º do decreto n. 5.083, autorizado o Governo a organizar e publicar o “Codigo de Menores”, o Presidente Washington Luis confiou a confecção delle a Mello Mattos, cujo projecto foi approvado, sem modificação alguma, e convertido no decreto n.17.943A, de 12 de outubro de 1927. Com a publicação desse codigo o Brasil ficou possuindo uma das leis mais perfeitas sobre tão importante materia. (Mineiro, op.cit., pp.2122)

Fica claro, assim, a partir desse histórico realizado por Mineiro, a importância de Mello Mattos em todo o processo de constituição da nova legislação. Seguindo estas e outras pistas iniciais, tentaremos reconstituir, no próximo capítulo, a trama discursiva que tornou possível a emergência do Código de Menores de 1927. Interpretaremos esse processo, porém, a partir da ótica de um processo de sujeição.

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Pretendemos ressaltar que a emergência do Código de Menores implicou a cristalização de um novo projeto de institucionalização da infância e adolescência. Síntese de todo um movimento em prol do menor iniciado, como vimos no princípio deste século, o Código definirá de modo claro o menor como categoria jurídica e institucional18. Com essa legislação, uma justiça especial para menores irá se definir, estabelecendo seus objetivos e procedimentos. Um amplo projeto de assistência irá se desenhar, visando toda a sociedade, mas tendo por base a assistência à infância. Todo um conjunto de representações em torno do menor abandonado e delinqüente ganharão coerência nos dispositivos contidos no Código. Enfim, um amplo projeto institucional, tendo por alvo o menor, irá se consolidar. Para que esse acontecimento se tornasse possível, uma ampla transformação conceitual foi necessária, novos discursos tiveram que se constituir. É parte dessas transformações conceituais, que tornou possível a emergência de um Código de Menores, que analisaremos a seguir, a partir de alguns dos principais textos que na época discutiam a questão. Iniciaremos, assim, nossa análise com a discussão sobre o discernimento, mas não para mostrar a “evolução da legislação”, mas para indicar as transformações

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Mas, por que considerar como principal conseqüência da emergência do Código a constituição de um novo projeto de institucionalização da menoridade? Por que não privilegiar outros aspectos? Privilegiamos o Código como um novo projeto institucional porque acreditamos ser esse o seu aspecto mais importante, já que em outros sentidos ele não parece adquirir grande significação na época. O Código é uma das principais leis sociais decretadas entre 1925 e 1927. Mas, não é enquanto legislação social que o Código adquire sentido, pois sua eficácia nesse campo é bastante restrita. Em termos de regulamentação do trabalho do menor, por exemplo, que, como já mencionamos, era um dos grandes problemas sociais de então, o Código foi ineficaz já que, diante da pressão exercida pelos empresários da época, a maioria das indústrias não chegou a cumprir a regulamentação contida no Código (Cf. Gomes, 1979, p.184; Vianna, 1978, p.82). Assim, na regulamentação direta dos conflitos entre capital e trabalho, o Código não teve grandes efeitos. Como veremos, o Código não pode ser visto apenas como mais uma lei social. Trata-se, do nosso ponto de vista, de uma iniciativa de certas camadas médias (advogados, médicos, educadores e filantropos em geral), que acabaram criando um dispositivo institucional que lhes garantia um espaço de atuação e que, ao mesmo tempo, garantia novas formas de controle social ao Estado. É com base nesse contexto que estudaremos o debate em torno da legislação.

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discursivas que foram necessárias para a formação de um novo projeto de sujeição, que, tendo o menor como alvo, então se constituiu.

IV – DISCURSOS

IV.1. – A crítica ao “discernimento” IV.2. – Uma “Nova Justiça” IV.3. – “Justiça e Assistência” IV.4. – A proposta de uma nova legislação: Alcindo Guanabara e Mello Mattos IV.5. – Moncorvo Filho e a “Cruzada pela infância” IV.6. – O Código de Menores e a estruturação da prática institucional referente ao menor

“Punir é uma injustiça; punir creanças, uma iniquidade.” NOÉ AZEVEDO

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IV – DISCURSOS IV.1. – A crítica ao “discernimento”

“Tres ou quatro noções, tradicionaes, que se recebem sem exame, como velha moeda, cujo peso e legitimidade ninguém se dá ao trabalho de verificar (...)” Tobias Barreto

Para que a emergência de um Código de Menores fosse possível, para que novas práticas institucionais referentes à infância e adolescência se cristalizassem, uma série de mudanças discursivas tiveram também que ocorrer. Novas práticas, pois, tanto em termos discursivos como em termos não-discursivos. Pretendemos aqui recuperar algumas dessas transformações discursivas. Comecemos com um conceito chave, predominante no decorrer do século XIX e que entrará em crise no início do século XX no Brasil: o discernimento. Esse conceito é um dos pontos básicos de inflexão a partir dos quis os comentadores da época começarão a apontar para a necessidade de novas práticas jurídicas e institucionais em relação aos menores. Para aqueles que defenderão uma nova justiça para menores, não punitiva mas recuperadora, educativa e disciplinar, o discernimento aparecerá como um dos alvos privilegiados de ataque. “Falso conceito, critério duvidoso, teoricamente impreciso e inaplicável na prática, incapaz de levar em conta as

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causas que podem levar um menor ao crime”, segundo as palavras de seus críticos, o discernimento, primeiro terá seu conteúdo esvaziado, sendo, posteriormente, abolido de qualquer consideração sobre o posicionamento da justiça em relação aos menores. Com a crítica ao discernimento, qualquer possibilidade de responsabilização dos menores deixa de ser colocada pelos discursos jurídicos e institucionais. O campo da tutela encontrará aí, a partir de então, um dos seus campos privilegiados de inscrição19. Como já citamos anteriormente, o discernimento era um dispositivo existente no Código Criminal do Império, e que se manteve, mesmo com o advento da República, que tratava da responsabilidade criminal dos menores. Segundo o art.10 do Código do Império, não seriam julgados os criminosos menores de 14 anos. Mas o art.13 do mesmo Código colocava que se os menores de 14 anos tivessem agido com discernimento de seus atos, deveriam ser recolhidos às casas de correção pelo tempo que o juiz considerasse necessário20. Um dos primeiros textos mais significativos de crítica a esse dispositivo é uma monografia de Tobias Barreto intitulada Menores e loucos21 e publicada pela

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Duprat (1987), ao analisar as propostas de reforma das prisões na França, a partir da Restauração, dirá que “Nos filantropos de 1819, nunca há recusa, atenuação ou transferência de culpabilidade”. (Duprat, op.cit., p.39). No discurso sobre o menor, que estamos estudando, parecer ocorrer justamente o contrário: o menor, ao longo das discussões, deixa de ter no seu horizonte a culpa e a responsabilidade, que devem ser encontradas nas condições que o rodeiam, seja o meio social ou especificamente a família. Condição paradoxal do menor, portanto: assujeitado pelas condições adversas do meio, ele jamais será sujeito do seu próprio infortúnio. Sem responsabilidades, mas também sem direitos, toda uma justiça tutelar e paternal irá se consolidar em torno dessa categoria. 20 O discernimento sobreviveu no texto da legislação durante um longo tempo. Mas desde o fim do século XIX, uma série de novas práticas começam a traçar novos rumos para a questão da menoridade. Recuperaremos aqui as mudanças discursivas, ressaltando, porém, que são correlativas as mudanças nos próprios procedimentos jurídicos e institucionais que também ocorriam na época. Aldrovando Corrêa (1928) dá um interessante exemplo dessas mudanças, ao colocar que, enquanto o direito penal substantivo em relação ao menor continuava inalterado, mudanças já ocorriam nas leis de processo, por exemplo, no Distrito Federal, que ordenavam a internação de menores abandonados, e nas novas formas de institucionalização como o Instituto Disciplinar, já citado, em São Paulo. 21 A primeira edição é de 1884 (Barreto, Tobias, Menores e loucos, Rio de Janeiro, H. Laemmert & C., 1884). A segunda edição, revista e ampliada, é do Recife, Typographia Central, 1886. Trabalhamos com a edição de 1926, que reproduz a 2 ª edição já citada: Barreto, Tobias, Menores e loucos e fundamentos do direito de punir, Rio de Janeiro, Empresa Graphica Editora de Paulo, Pongetti & C., 1926, Obras Completas, v. V – Direito, 152p.

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primeira vez em 1884. Nesse texto, Tobias Barreto comenta o art.10, já citado, do Código do Império, que tratava também de diversas outras formas de imputabilidade penal. A argumentação de Tobias Barreto começa com uma crítica geral à teoria que dava suporte ao próprio Código como um todo:

O art.10 do Codigo encerra a questão, que elle também resolve a seu modo, da imputação criminal. Geralmente a psychologia, de que se servem os legisladores penaes para delimitar o conceito de criminoso, é uma psychologia de pobre; e o nosso não faz excepção. Tres ou quatro noções, tradicionaes, que se recebem sem exame, como velha moeda, cujo peso e legitimidade ninguém se dá ao trabalho de verificar, a isto se reduz toda a despeza philosophica do nosso Codigo. (Barreto, 1926, p.6)

Após criticar os aspectos mais gerais do Código, o autor entra numa crítica mias específica, dirigida ao próprio artigo em questão:

O nosso Codigo, no art.10 não fez mais do que reconhecer uma velha verdade, consagrada pela historia em todos os periodos culturaes do direito penal. Commetteu, entretanto, além de outros, que serão apontados, um erro de methodo: foi reunir em uma só cathegoria diversas classes de sujeitos irresponsáveis, que não se deixam reduzir a um denominador commum, isto é, a ausencia do que eu chamei normalidade mental. (...) (Barreto, op.cit., p.13)

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Para Tobias Barreto, o Código reúne, num mesmo caso, problemas muito diferentes. É este o erro do método que permite reunir sob a noção de irresponsabilidade, sob o denominador comum da ausência de normalidade mental, classes de sujeitos específicos, que merecem tratamento também específico. É na crítica a essa falta de especificidade que ele introduzirá a discussão sobre o discernimento, como se pode observar na continuação de seu comentário ao art.10:

Mas vamos ao ponto central da nossa analyse. Diz o Codigo: “Também não se julgarão criminosos: §1º, os menores de quatorze annos; §2º, os loucos de todo o genero, salvo se tiverem lucidos intervallos, e nelles commetterem o crime; §3 º, os que commetterem crimes violentados por força ou medo irresistiveis; §4 º, os que commetterem crimes casualmente, no exercicio ou na pratica de qualquer acto licito, feito com a tenção ordinaria. Eis ahi um modelo de simplicidade, que é pena não seja tambem um modelo de perfeição. Apreciemol-o detalhadamente. Os legisladores de quasi todos os paizes têm sempre estabelecido uma época certa, depois da qual, e só depois della, é que pode ter lugar a responsabilidade criminal. O nosso Codigo seguio o exemplo da maioria dos povos cultos, e fixou tambem a menoridade de quatorze annos, como razão peremptoria de escusa por qualquer acto delictuoso. Em termos Technicos, o Codigo estabeleceu tambem, em favor de taes menores, a presumptio juris et de jure da sua immaturidade moral. É porém, para lastimar que, aproveitando-se da doutrina do art.66 e seguintes do Code Pénal, o nosso legislador tivesse, no art.13, consagrado a singular theoria do discernimento, que

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pode abrir caminho a muito abuso e dar lugar a mais de um espectaculo doloroso. (Barreto, op.cit., pp.13-14)

O critério do discernimento, “de difficillima apreciação” segundo o autor, merecerá, pois, uma crítica mais detalhada. Num parágrafo que chama a atenção pelo estilo curioso do exemplo escolhido, Barreto começa a relativizar o critério a partir de variáveis que não são mais apenas as da responsabilidade ou não do criminoso menor, mas sim de variáveis que começam a colocar em causa o próprio meio no qual está inserido o agente. Comparando o nosso Código Criminal do Império com o Código Francês, no qual o nosso se inspirou no que se refere à questão do discernimento22, o autor imagina uma situação possível em ambos os países:

(...) pelo direito criminal francez, um rapaz de quinze annos, que já conhece todos os encantos da vida parisiense, que já entra, com todo o conhecimento de causa, na gruta mystica e perfumada em que habita alguma deusa, que até já sabe a fonte onde Diana se banha, e vai espreital-a núa, não obstante o perigo de ser devorado pelos cães, caso commetta um homicidio, s’il est decidé qu’il a agi sans discernement, será absolvido; podendo apenas ser, selon les circonstances, remis á ses parens ou conduit dans une maison de correction... Ao passo que isto alli succede, entre nós, pelo contrario, um pobre matutinho da mesma idade, cujo maior grão de educação consiste em estender a 22

Segundo Perrot (1988), a situação jurídica da criança na França, durante o século XIX, repousava em um duplo sistema: de um lado, a “correção paternal”, a partir da qual as famílias podiam pedir a detenção de um de seus membros pelo poder público. Esse sistema era herdeiro das antigas “letres de cachet”. De outro, o discernimento, que foi copiado pelos Códigos Penais brasileiros, no qual as crianças eram julgadas pelos tribunais comuns, podendo ser condenadas se tivessem ciência da criminalidade do ato cometido. Ainda, segundo essa autora, a situação penitenciária das crianças na França, nessa época, era lamentável, sendo que, na maioria das vezes os jovens delinqüentes eram encarcerados com os adultos.

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mão e pedir a benção a todos os mais velhos, principalmente ao vigario da freguezia e ao coronel dono das terras, onde seu pai cultivava a mandioca, se porventura perpétra um crime de igual natureza, se por exemplo mata com a faquinha de tirar espinhos o moço rico da casa grande, que elle encontrou beijando sua irmã solteira, obre ou não com discernimento, será julgado como criminoso! (Barreto, op.cit., p.17)

Ressalta no texto o contraste ente as duas situações e a arbitrariedade do discernimento no Brasil que permitiria que um menor julgado como criminoso, mesmo numa situação com tantos atenuantes, fosse condenado. Interessante o caráter moderno, se assim podemos caracterizá-lo, da colocação de Tobias Barreto, antecipando, ou melhor, acolhendo antecipadamente a noção de uma especificidade da justiça para menores, que já surgia então na Europa e nos Estados Unidos e que começará a ganhar ênfase no Brasil no início do século XX. Continuando sua argumentação, Tobias Barreto compara a legislação do Brasil com o Código Italiano, no qual a idade de responsabilidade era definida como sendo a de nove anos. O autor considera então essa definição mais desculpável num Estado como o italiano do que no Brasil, já que um Estado que cumpre com seus deveres pode exigir mais de seus cidadãos do que o Estado brasileiro23:

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Interessante notar no discurso sobre a menoridade que começa a se constituir é que a ênfase no dever do Estado para com a infância tem um viés claramente tutelar. Não é um dever que, em contrapartida, estabelece direitos dos cidadão, mas sim um dever de prevenção por parte do Estado, que deve assistir a infância para evitar sua queda na criminalidade. Não se tratará de uma visão contratualista na qual cidadão e Estado tenham direitos e deveres claramente definidos, mas sim de uma visão essencialmente paternalista, na qual o Estado que não cuida bem de seus cidadãos quase tem vergonha de puní-los.

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(...) um Estado, no qual se obriga a aprender, e onde homens como Casati, Coppino, de Sanctis, têm sido ministros da instrucção publica, para promoverem a sua difusão, tem mais direito de exigir de um maior de nove annos uma certa consciencia do dever, que o faça recuar da pratica do crime, do que o Brazil, com o seu pessimo systema de ensino, pode exigil-a de qualquer maior de quatorze. (Barreto, op.cit., p.19)

Para enfatizar o caráter cruel do Código Criminal em vigência no Brasil da época, o autor chega a exagerar na dramaticidade dos exemplos:

O nosso Codigo (...) se nelle apparece alguma cousa de piedoso para os delinquentes, que estão entre os quatorze e os dezesseis annos, esta compaixão não exclue a possibilidade de ser, por exemplo, um rapaz de quinze janeiros condemnado á prisão perpetua. (Barreto, op.cit., p.20)

Não interessa aqui se existiram ou não casos concretos nos quais se realizaram a possibilidade colocada pelo autor. Interessa a ênfase do texto no caráter arbitrário e desproporcional da legislação brasileira da época, referente ao menor. É o conceito de discernimento que é considerado pelo autor como sendo muito indefinido, tornando-se assim suporte para decisões absurdas:

É facil, pois, comprehender que, se o legislador patrio houvesse haurido com mais cuidado nas fontes romanas, outros teriam sido os seus preceitos a respeito dos menores, pelo menos no que pertence ao

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vago discernimento, de que trata o art.13, e que é possível, na falta de restricção legal, ser descoberto pelo juiz até em uma criança de cinco annos! ... (Barreto, op.cit., p.21)

Discutindo no restante do trabalho, outras formas de irresponsabilidade colocadas pelo art.10, Tobias Barreto pretendia enfatizar a necessidade de reformulação do Código, no sentido de uma maior diferenciação e de uma maior precisão nas formas de irresponsabilidade criminal. Na crítica do autor, portanto, o discernimento não passava de uma noção ultrapassada, velha moeda sem peso e sem legitimidade, que precisava ser colocada em discussão. A importância da crítica apresentada nesse livro é que trata-se de uma crítica paradigmática, de um divisor de águas. Neste texto estão colocadas as principais linhas de crítica à antiga legislação sobre o menor, com base nas quais o discurso de uma nova legislação para menores irá emergir. A necessidade de uma diferenciação entre aqueles tidos como irresponsáveis, a colocação de situações atenuantes a partir das quais é preciso considerar os delitos, a crítica ao discernimento como conceito impreciso e ineficaz, todos esses pontos serão retomados no processo de constituição de uma nova justiça para menores e que culminará na emergência do primeiro Código de Menores do Brasil, em 1927. O Código Criminal do Império visava essencialmente a questão da imputabilidade, nos artigos criticados por Tobias Barreto. O problema que se apresentava era justamente o de quais indivíduos deveriam ser excluídos da imputabilidade. O que se colocava para esse Código Criminal era uma preocupação essencialmente punitiva. A crítica feita por Tobias Barreto, ao contrário, reivindica uma diferenciação das categorias inimputáveis, na qual se respeitariam as especificidades das diferentes classes de agentes. Ou seja, já aponta para procedimentos jurídicos

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diferenciados de acordo com os agentes visados e segundo situações bastante diversas. Será por esse caminho que se reivindicará, anos depois, uma justiça especial para menores. Ao colocar a questão do discernimento para os menores, o antigo Código do Império dilatava ao máximo a possibilidade de responsabilização criminal. O Código de Menores de 1927 colocará justamente o oposto: o menor não deverá ser, de modo algum, punido. O conceito de pena deverá ser praticamente abolido, quando se tratar de menores. Para estes, a justiça deverá ser, segundo o espírito do Código de Menores, pedagógica, tutelar, recuperadora. Assim, o texto de Tobias Barreto, na crítica ao discernimento que realizava, já apontava para novos conceitos jurídicos em relação à menoridade, mais adequados às especificidades e complexidades dos novos sujeitos visados. Não será mais possível, a partir de então, colocar em uma mesma problemática sujeitos tão diversos como os loucos e os menores. O que se abre aqui, portanto, não é apenas a crise de um velho conceito, o discernimento, como algo abstratamente ultrapassado, mas sim a reorganização dos discursos jurídicos e das formas de institucionalização. Algumas décadas mais tarde, já dentro de uma nova proposta de tratamento da criminalidade da infância e adolescência, o advogado Evaristo de Moraes retoma a crítica de Tobias Barreto ao discernimento. Estudioso das questões relativas à criminalidade precoce, e interessado pelas instituições que se dedicavam à infância abandonada, Evaristo de Moraes publica, em 1916, o livro, Criminalidade da infância e adolescência24, no qual analisava as causas da criminalidade precoce e os novos métodos de combate a esse mal. Ao discutir esses novos métodos de combate à criminalidade infantil e adolescente é que Evaristo de 24

Trabalhamos aqui com a segunda edição: Moraes, Evaristo de, Criminalidade da infância e adolescência, 2ª edição, Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1927, 302p.

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Moraes irá retomar a crítica ao discernimento. Para o autor, diante da justiça moderna o discernimento não passa de um falso critério:

Um dos postulados da sciencia criminologica moderna é o abandono do falso criterio do discernimento que, desde sua adopção pelo velho Codigo Penal Francez, serve de base, aliás movediça, á repressão e á educação correcional dos adolescentes. (Moraes, 1927, p.112)

Ressaltando-se, em seguida, a imprecisão e inaplicabilidade do conceito:

Effectivamente não se sabe em que consiste, ao certo, o discernimento a que alludem o Codigo Francez e aos que delle derivaram neste particular. Esses Codigos, e, em geral, os criminalistas que ainda adoptam o malsinado criterio, não fornecem á magistratura um methodo ou uma norma para solução segura desse “problema psycologico”, na expressão feliz de Albanel. (...) E, desde logo, se percebe que não é sério assentar decisões judiciarias em criterio indefinido e, ao que parece, indefinível. As perplexidades dos juizes são constantes. Affirma um professor, vagamente, que o “discernimento

consiste

na

plena

consciencia

da

acção,

comprehendendo, ao mesmo tempo, a consciencia da illegalidade e punibilidade do acto e a consciencia moral do bem e do mal” (Garraud). A isto se objecta, de todos os lados, tanto da parte dos criminologos como da banda dos juizes, que embora existindo a consciencia da illegalidade e da punibilidade do acto, póde a consciencia moral estar falseada pelas condições da hereditariedade,

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physiologica e psychologica, e da educação do menor. (Moraes, op.cit., pp.115-116)

Na argumentação acima colocada, é a noção de responsabilidade que passa a ser uma questão de grau, ao mesmo tempo em que se colocam diferentes formas dessa responsabilidade: o indivíduo pode não ter total responsabilidade em relação a seus atos; pode ter consciência do ato, mas não capacidade moral para julgá-lo como bom ou mau:

Quasi todos os adolescentes possuem o discernimento juridico, isto é, a consciencia da ilegalidade e da punibilidade do acto, quasi todos – como diz Ad. Prins – sabem, mais ou menos, quando furtam, que a Policia persegue os ladrões. Mas cumpre reconhecer que elles vivem fóra da sociedade honesta, que são victimas do abandono, ou crescem em uma atmosphera viciada, tendo sobre si, muitas vezes, o peso da hereditariedade pathologica, que lhes deforma prematuramente a consciencia, do bem e do mal, modificando a sua responsabilidade. Apenas, por vel-os intelligentes e capazes de responder, com maior ou menor justeza, ás perguntas que lhes são dirigidas, não póde o juiz affirmar que tenham capacidade moral para escolher entre o bem e o mal. Só tendo visto o mal, a sua consciencia deve estar viciada, illudida, incapaz de fazer a distincção, cuja possibilidade a lei e a doutrina erradamente presumiram, tendo imaginado um só typo ideal, normal, familiarmente educado, de menores criminosos. (Moraes, op.cit., pp. 116-117)

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Colocando apenas a questão da existência ou não da consciência sobre o ato, o discernimento não era capaz de dar conta de gradações e especificidades da consciência em relação ao ato, já que em torno dessa consciência, uma série de condições externas poderiam estar atuando no sentido de desvirtuá-la. O problema torna-se, pois, tão complexo que não basta mais constatar e punir o ato, mas se coloca como necessário estudar a linha tênue que liga a consciência ao ato praticado, o maior ou menor grau de aproximação entre ambos, as condições que desvirtuam ou tornam imprecisa sua relação. Foucault já mostrou como é nessa brecha entre o ato e a consciência que se abre todo um campo de atuação, dentro da justiça, de uma série de profissionais da “ortopedia moral”, psicólogos, pedagogos, terapeutas em geral25. Mas o que interessa para nós no momento é a impossibilidade do discernimento de dar conta de toda essa nova complexidade, que não envolve mais apenas o crime, mas sim o criminoso e seus estados de alma. Evaristo de Moraes termina sua crítica ao discernimento, lamentando apenas que tal dispositivo legal, abandonado paulatinamente, tanto na teoria como na prática judiciária, ainda estivesse em vigência no nosso Código Penal de então. Não se deve, contudo, pensar que o fim do discernimento tenha sido simples. As práticas históricas não se modificam assim com tanta facilidade, mesmo no campo dos discursos. Muitas resistências provavelmente ainda permaneceram, muitas batalhas talvez tenham sido travadas até que esse “falso critério” fosse definitivamente sepultado. Vejamos dois exemplos que remetem a arranjos intermediários.

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Cf. Foucault (1977). A construção do discurso sobre a menoridade é uma empreitada claramente multidisciplinar. Voltaremos a esse assunto mais adiante.

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Num artigo de 1911, no qual defendia a criação dos Tribunais para Menores no Brasil, o desembargador Ataulpho de Paiva mencionava a questão do discernimento, ao comentar o regime dos Estados Unidos de tratamento à criminalidade precoce:

Todo o processo penal deve ser abandonado desde que o menor não tenha ainda o critério do discernimento, isto é, quando não haja atingido a sua plena conformação intellectual e moral. (Paiva, 1916, p.72)

Nesta citação, os novos procedimentos jurídicos em relação à menoridade se colocam no espaço cedido pelo discernimento: se o menor não tem ainda o discernimento, deve então ser tutelado, e não punido. Mas não existe, neste raciocínio, um confronto entre os dois estilos penais. A tutela se dá onde não é possível a execução dos mecanismos punitivos. Com o Código de Menores de 1927, pelo contrário, a proposição irá se radicalizar: todo menor será tutelado, não havendo espaço para o discernimento e todos os mecanismos que ele carrega. No texto de Ataulpho de Paiva, que citamos, visualizamos uma primeira possibilidade: o novo conceito de justiça para menores se instala ao lado das antigas concepções. Já o deputado Alcindo Guanabara, num projeto apresentado ao Senado Federal em 1917 e que pretendia reorganizar a assistência à infância abandonada e delinqüente, irá colocar uma outra solução, envolvendo um compromisso em relação ao discernimento:

O regimen deste projecto parece-me que tornou sem importância a “questão do discernimento”. Pouco dado, de minha propria natureza,

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ás reformas radicaes e, por outro lado, sabendo bem quanto ha de resistências subtis e ás vezes inconscientes ás innovações legaes, deixei permanecer no projecto a “questão do discernimento” como a consigna o nosso atrazadissimo Codigo Penal. Elevei, apenas, o limite de edade da imputabilidade de nove a doze annos, porque, realmente, nada justifica entre nós tão baixo limite. Pareceu-me, porém, que não haveria inconveniente pratico em permittir que o juiz privativo examinasse a “questão do discernimento” dos 12 aos 17 annos, porque, de qualquer fórma, elle teria de apreciar a situação de responsabilidade do menor, pela sua educação ou pelo seu estado de abandono, pela miserabilidade, pelas condições moraes do meio em que vivia, desde que, uma vez levado esse menor á sua presença, elle ha de mandar recolhel-o a uma escola de prevenção ou internal-o em uma escola de reforma. A sua preocupação não ha, pois, de ser tanto a do crime ou delicto no momento praticado, com ou sem responsabilidade, como a do estudo do caracter do menor, do seu gráo de corrupção, de esperança que elle póde dar de aperfeiçoamento ou de regeneração e a sua decisão ha de ser inspirada segundo a sua consciencia se formar por esse inquerito e por esse estudo. É por conseguinte indifferente saber se o menor é, ou não, capaz de imputabilidade e é positivamente tempo perdido discutir se essa imputabilidade é uma funcção da edade, desde que, preliminarmente, admittimos que o é das condições personalissimas do menor e das circumstancias do meio em que se fez criminoso. Assim, pareceu-me inutil suscitar mais um motivo de combate ao projecto: deixo de pé a letra do Codigo e dou ao juiz a autoridade necessaria para examinar e decidir, como a sua consciencia o aconselhar. (Guanabara, pp.36-37)

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Trata-se, no exemplo acima, de um desvio tático: não se ataca frontalmente o discernimento, mas seu conteúdo já está totalmente esvaziado. O autor no próprio texto explicita essa tática de evitar a resistência, que o fim do discernimento traria, em relação aos novos procedimentos jurídicos e assistenciais. O discernimento permanece, assim, nesse projeto praticamente como letra morta, pois no essencial já está sepultado: quem examinará a responsabilidade ou não do menor será o juiz de menores. Este não apreciará a responsabilidade como algo absoluto, mas como fruto do meio e das condições morais do menor. Um inquérito dirá se o menor é, ou não, recuperável, e não se ele é, ou não, responsável. A “Nova Justiça” já está, assim, instalada ao lado do discernimento, que figura apenas como velha moeda, agora sem valor. Apesar dos recuos táticos, entre a crítica colocada por Tobias Barreto e as discussões que culminam com a promulgação do Código de Menores de 1927, o sentido geral que vai se delineando é claro: uma nova concepção de justiça especial para menores surge a partir da crítica dos antigos conceitos penais, representados pelo critério do discernimento. Se este ainda sobrevive no projeto de Alcindo Guanabara, já está, no entanto, com os dias contados diante da nova concepção de tratamento para os menores, na qual já não há mais sentido em apenas se punir o menor, da mesma forma como se entende que um pai compreensivo não é aquele que apenas castiga os filhos. Alcindo Guanabara chega a colocar que o juiz deve ser justamente um “bom pai” para os menores, inspirado pela legislação de Portugal:

(...) prefiro francamente um juiz singular, um juiz togado, que póde ser recrutado no mais alto tribunal local, habituado a julgar, que tome a si a protecção e defesa do menor em abandono e que julgue o menor delinquente, em consciencia, informando-se por si mesmo das suas

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condições, do meio em que vive, do concurso de circumstancias que o fizeram criminoso. Esse juiz será, na phrase da lei portugueza “um bom pae”, que saberá prever, aconselhar, reprehender e corrigir. (Guanabara, op.cit., p.34)

Prever, aconselhar, repreender, corrigir. Quantas palavras não irão se instalar onde antes havia apenas a palavra punir? Já estamos distantes de uma lei puramente punitiva, que não se envergonhava com palavras como castigo e punição. A crise do discernimento é a crise dessas antigas concepções de justiça. No texto do Código de Menores de 1927, o discernimento é definitivamente eliminado:

Art.69. O menor indigitado autor ou cumplice de facto qualificado crime ou contravenção, que contar mais de 14 annos e menos de 18, será submettido a processo especial, tomando ao mesmo tempo, a autoridade competente as precisas informações a respeito do estado physico, mental e moral delle, e da situação social, moral e economica dos paes, tutor ou pessoa incumbida de sua guarda. (Collecção das Leis ..., 1928, p.487)

Uma edição comentada do Código, publicada em 1929, esclarece o sentido desse artigo em relação ao discernimento:

Neste artigo elimina-se o criterio do discernimento como base para o julgamento do menor e supprime-se a applicação da pena ou medida repressiva. (...)

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A lei nova supprime o criterio do discernimento como base da responsabilidade criminal dos menores. Questão perigosa, illusoria, ociosa, inutil, está banida das legislações adeantadas. Hoje é ponto aceito e corrente entre os melhores criminalistas e as legislações mais adeantadas, para o julgamento dos delinquentes juvenis, não se dever procurar o discernimento delles, o qual, na maioria dos casos, é um verdadeiro enigma psychologico. Os autores não são accordes quanto á significação a dar á palavra discernimento. Alei não a define. A jurisprudencia é varia relativamente ao sentido em que ella deve ser tomada. Urgia banil-a do nosso direito. Os infantes em raros casos, e os adolescentes, com frequencia, dado certo desenvolvimento, podem ter capacidade psychica para distinguir o bem do mal, sem que tenham capacidade moral para deixar de fazer o mal. (...) Além do inconveniente da vagueza da expressão “discernimento”, prestando-se a interpretações diversas, quanto devia ser claro e fixo seu sentido, succede que, na pratica, a solução da questão pelo juiz, para cada menor que comparece frente elle, é muito difficil e muito delicada, sempre incerta e baseada em informações insufficientes. (Mineiro, 1929, pp.85-87)

O fim do discernimento dá lugar, segundo estas colocações, a uma justiça especial para menores, não apenas mais justa como também mais eficaz26. Vejamos, no

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Na realidade, o discernimento não foi banido por uma questão de justiça. Ao invés de condenar menores à prisão perpétua, como temia Tobias Barreto, o discernimento acabou se tornando um mecanismo totalmente ineficaz em nosso país. É contra essa ineficácia que surgem as propostas de mudança da legislação, já que são necessários mecanismos de controle da criminalidade precoce. O próprio Mello Mattos explicita que a vantagem da nova legislação reside em sua eficácia: “(...) ha uma grande vantagem pratica na sujeição, entre nós, dos menores até 18 annos ao regimen correccional

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próximo item algumas características da “Nova Justiça” que então surgia, segundo os textos da época.

especial: - sempre o jury os absolve, systematicamente, deixando-os na impunidade e no caminho da reincidência: a passo que submettidos ao novo regimen, a regeneração delles pela reeducação e pelo habito do trabalho é muito provavel.” (Mattos apud Mineiro, 1929, p.88) Assim, nada parece indicar que houve um “progresso da justiça” com a criação da legislação especial para a menoridade. Como indica Mariza Corrêa (Cf. 1982b, p.190), o fato de as crianças não terem um tratamento diferenciado pela antiga legislação brasileira, implicava também que fossem vistas como integrando plenamente a sociedade em todos os seus aspectos. É uma nova estratégia de poder, visando um tratamento diferenciado dessa parte da população que leva a uma legislação diferenciada para a infância e para a adolescência. E não se trata também de um “desvio” em nossa legislação, pois, mesmo em relação aos países pioneiros nas reformas visando a legislação infantil, não houve um progresso das práticas penais. Platt (1982, pp.210-217), ao discutir a questão da responsabilização penal da infância, mostra que não existem indícios empíricos que demonstrem que a execução de menores fosse uma prática regular da Inglaterra e nos Estados Unidos durante o século XIX, como afirmavam os apologistas americanos da nova justiça para crianças. No geral, segundo as pesquisas do autor, se reconhecia, no século passado, que as crianças menores de 14 anos não deveriam ser consideradas responsáveis por suas ações. Todos os indícios levam a confirmar nossa hipótese de que não existe, de um lado, uma justiça penal que tratasse de modo brutal as crianças e, de outro lado, uma nova legislação redentora da infância e adolescência, mas sim que existem dois mecanismos diferenciados de tratamento penal da menoridade, que visam objetivos específicos em momentos históricos diferentes.

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IV.2. – Uma “Nova Justiça”

“É a nova era da Justiça que surge, justiça substanciada nos tribunaes para crianças, (...)” Ataulpho de Paiva

Pelo que vimos, na crise do discernimento começa a se constituir um novo projeto de justiça para menores. Essa nova justiça, porém, segundo os comentadores da época, não é exclusiva para menores. A aplicação de novas práticas legais já na infância aparece apenas como um modo privilegiado de se implantarem novas idéias que, segundo seus defensores, acabariam por triunfar em todos os campos da justiça. O já citado desembargador Ataulpho de Paiva é um dos defensores dessa nova justiça. Propagandista de métodos novos no campo da justiça e da assistência em geral, Ataulpho de Paiva realizou conferências, artigos e projetos que propunham mudanças jurídicas como a criação no Brasil de Tribunais para Menores e a criação de um amplo sistema de assistência social que assistiria à infância, à velhice, aos loucos, aos tuberculosos e a outros tipos de desafortunados. Alguns destes trabalhos estão reunidos numa coletânea intitulada Justiça e assistência27. Sobre a questão da nova justiça que então era proposta, Ataulpho de Paiva resume a argumentação de maneira clara: a justiça começa a encontrar “novos horizontes”; a justiça especial para menores é 27

Paiva, Ataulpho de. Justiça e assistência: os novos horizontes, Rio de Janeiro, Typ. do Jornal do Commercio, de Rodrigues & C., 1916, 345p. Este livro é uma coletânea que reúne uma conferência de 1913, artigos publicados no Jornal do Comércio, entre 1911 e 1913 e um projeto de assistência pública e privada para o Rio de Janeiro encomendado pela prefeitura do Districto Federal.

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um exemplo dessa nova justiça; e os tribunais especiais para menores são seu instrumento de aplicação. Nas palavras do autor:

Os principios primordiaes da Justiça moderna conquistaram um curioso novo apparelho que modificou profundamente, radicalmente a acção reguladora da auctoridade publica na crescente complexidade dos crimes e das infracções de toda a sorte. Nunca o evolucionismo, nos varios ramos da actividade juridica, contou um triumpho maior e mais significativo. Ha uma verdadeira revolução nas regras educativas e correccionaes. A determinação legal das penas soffreu um abalo violento com esse surto novo, curioso e autonomo organismo judiciario. É a nova era da justiça que surge, justiça substanciada nos tribunaes para crianças, honra da geração actual, sagrado ministerio, especie de apostolado social em que a alta dignidade do juiz passa a receber uma consciencia mais clara, um senso mais preciso, encontrando a preservação moral da infancia, afinal, solução menos embaraçosa e menos complicada. (Paiva, 1916, pp.26-27)

Para o autor, os tribunais para menores são uma grande invenção contra a criminalidade infantil e, consequentemente, contra a criminalidade em geral:

É agraddavel observar o que vai pelo mundo moderno, na hora actual, a respeito dos graves e serios problemas da criminalidade infantil. (...) Um apparelho de pura creação moderna, que desde logo foi geralmente bem acolhido, pela sua indiscutivel perfeição e admiravel

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praticabilidade, vai sendo posto em execução a fim de que a campanha da sociedade contra

o crime tenha nelle um instrumento

calculadamente digno do prestigio da auctoridade e do poder publico. A preservação moral da infancia, questão até agora sempre complicada e insoluvel, já não oferecerá talvez, de ora avante, as mesmas razões de difficuldade e de embaraços. Essa parte primordial da lucta do estado social contra o delicto encontrou, afinal, uma solução positiva, curiosa e original. (Paiva, op.cit., p.65)

Um outro autor, Noé Azevedo, numa dissertação sobre os tribunais especiais para menores delinqüentes apresentada na Faculdade de Direito de São Paulo em 192028, também coloca os tribunais para menores como uma solução para a questão da criminalidade:

Sendo a criminalidade precoce o grande mal a combater-se, a penologia deve esmerar-se na escolha de medidas proprias para a reforma dos jovens delinquentes; e o orgão distribuidor dessas penas ou medidas tambem precisa ser apto para conhecer a natureza e a constituição psychica do menor criminoso, afim de lhe applicar um tratamento adequado. Ahi está a directriz do meu pensamento: a precocidade é a feição caracteristica da criminalidade moderna; para combater esse mal os

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Azevedo, Noé. Dos tribunaes especiaes para menores delinquentes e como podem ser creados entre nós, São Paulo, Edictores Saraiva e Cia., 1920, 159p.

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meios preventivos são os mais efficazes, mas nem por isso deve-se abandonar inteiramente a repressão; esta para satisfazer á necessidade da defesa social, que é seu fim e razão de ser, precisa ser applicada convenientemente, isto é, precisa ser individualizada; para isso é mister crearem-se orgãos capazes de comprehender a individualidade dos delinquentes e suas anomalias, do contrario os julgamentos serão obra do acaso, os juizes andarão ás cegas, e a justiça não será mais que a sorte; emfim, para comprehender a alma das creanças, que é complexa e delicada, afim de ministrar-lhe tratamento capaz de regeneral-as quando corrompidas, e de evitar que tomem o caminho do mal si ainda puras, tornam-se indispensáveis orgãos julgadores especiais que são os tribunaes para menores, objecto principal desta dissertação. (Azevedo, 1920, pp.69-70)

Para ambos os autores, portanto, esses tribunais para menores são o que há de mais moderno no combate à criminalidade, pois permitem a “preservação moral da infância”. Preservação da infância e combate à criminalidade estarão intimamente ligadas, assim, nesse discurso que então se formava. Segundo esse discurso, os antigos métodos institucionais, não percebendo essa articulação, não eram capazes de equacionar de modo satisfatório o problema, já que se baseavam na simples repressão e com isso confundiam a causa do menor. Nas palavras de Ataulpho de Paiva:

Nunca foi lisonjeira a esphera de acção geralmente fornecida pela gerencia tutelar da infancia, e toda a actividade das instituições não logrou, até este momento, resultado algum apreciavel. A simples

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repressão, que constituiu a idéia fundamental dos codigos, sempre confundiu a causa do menor, deixando-o ao desamparo do Direito e da Justiça. A crise tremenda em que se vê a delinquencia juvenil assumir proporções assustadoras, maxime na sua comparação com a criminalidade dos adultos, ahi está para attestar eloquentemente a imprestabilidade dos velhos moldes e dos processos anachronicos. (Paiva, op.cit., p.66)

Segundo o autor, a simples repressão não dá conta da criminalidade do menor. Desamparado por uma justiça apenas repressiva, a causa do menor não encontraria solução. Apenas pelo combate às causas que levam os menores à delinqüência, através de uma autêntica “prophilaxia social” é que seria possível resolver o problema. Nesse raciocínio, deveria ser reduzido o uso da repressão penal para combater o criminoso juvenil, desviando-se da simples repressão para o combate das causas da “degenerescência social”:

A defesa contra a criminalidade dos menores, ou melhor, a prophilaxia social contra o crime praticado pela criança constitue o problema do momento actual (...) limitando e reduzindo, tanto quanto possivel, o uso immoderado, oppressivo e tardo da justiça penal. A excessiva precocidade no crime resume hoje, na sua complexidade etiologica, um vasto e agitante phenomeno de degenerescencia social. (Paiva, op.cit. p.67)

Essa crítica aos antigos procedimentos penais leva, também, à crítica da prisão, instrumento privilegiado dessas formas de penalização, que devem ser

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substituídas pela proteção e assistência moral desde a infância. Citando o Congresso de Antropologia Criminal de Amsterdam, realizado em 1901, Ataulpho de Paiva coloca: “Nos nossos dias a prisão, como medida afflictiva ou como meio de intimidação, é, sem duvida, nulla e contraproducente. (...)” (Paiva, op.cit., p. 68) Segundo o discurso da Nova Justiça, o antigo instrumento, a prisão, deve ser substituído pelo novo instrumento de combate à criminalidade: os tribunais especiais para menores. Ao tomar como exemplo os tribunais para crianças existentes nos Estados Unidos, Paiva realça sua importância para o exercício do novo papel da Justiça:

Há dez annos, pouco mais ou menos, os Estados Unidos da America do Norte entenderam de suprehender todo o mundo scientifico applicando corajosamente as novas formulas, fazendo ao mesmo tempo uma revolução real, positiva e benefica. Era preciso, porém, crear para o caso um orgão especial que funccionasse especialmente, um instrumento harmonico que associasse todos os elementos particularizados, um apparelho que representasse fielmente todas as necessidades actuaes. Na antiga organização judiciaria não era possivel descobrir qualquer cousa que se assemelhasse a essa nova funcção social. O antigo Juiz penal sómente tinha a preocupação de capitular o delicto e applicar a respectiva pena ao caso occorrente. Nada mais improprio nem menos apto para o exercicio do moderno papel da Justiça. A instituição dos tribunaes para crianças appareceu então como meio proficuo, adequado e justo para alcançar a regeneração moral do delinquente, regeneração que traduz o interesse legitimo e immediato da sociedade. (Paiva, op.cit., pp.70-71)

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Segundo essa argumentação, se outras instituições voltadas para a infância se especializam, por que o mesmo processo não poderia ocorrer no campo da justiça? Daí o exemplo:

Um commentador illustre pergunta então judiciosamente: ─ Por que é que a criança, tendo tido sempre as suas escolas, os seus hospitaes, os seus asylos e as suas prisões, não poderá tambem ser julgada por tribunaes especiaes? Ao regimen penal especial deve corresponder uma jurisdição especial, á parte. (...) (Paiva, op.cit., p.71)

Essa nova justiça especial para menores vai requerer um juiz também especializado, diferenciado no seu perfil, um juiz paternal, como já citamos, que trate do problema da infância e da adolescência. Mas, como já mencionamos anteriormente, uma série de outros especialistas deverão também ajudar nesse tratamento. Um corpo de especialistas deve encarregar de pesquisar e de conhecer os antecedentes da criança. Já estamos longe de um procedimento puramente jurídico, ou melhor, esse procedimento já se reveste de atribuições mais complexas. Um conhecimento se constitui como correlativo ao juizado infantil. Ainda nas palavras de Ataulpho de Paiva:

Além dos Juizes que se devem preparar especialmente para a missão da nova Justiça, um corpo tambem especial de inquiridores, educados na nova escola, deve ser mantido para não somente conhecer e pesquisar os antecedentes da criança, como egualmente para a acompanhar deante do tribunal, fiscalizando mais tarde a sua propria

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liberdade. E, por ultimo, os depositos especiaes, os asylos especiaes, as prisões especiaes constituem um admiravel remate, digno de um alto espirito de cultura, de justiça e de civilização. (Paiva, op.cit., p.72)

Instituições especiais serão, assim, o espaço onde esses profissionais especializados nos problemas da infância irão atuar em conjunto. Aí a autoridade abdicará de seu caráter punitivo, para se investir de características tutelares. Ataulpho de Paiva não parece, contudo, ser dos mais radicais defensores dos novos métodos de tratamento dos menores, tanto que não propõe ainda o fim do discernimento. Para ele, a permanência de alguns aspectos repressivos na legislação sobre a menoridade não parece excluir os novos métodos. Nesse sentido, seu entusiasmo é grande, o que o leva a propor a adoção imediata desses novos procedimentos jurídicos no Brasil por parte do Estado:

Não se trata mais, por conseguinte, de uma tentativa, de um ensaio, de uma aspiração. Trata-se de um sucesso consagrado em toda a sua plenitude. Trata-se de uma causa que não tem nem póde ter adversarios, causa que o Brasil já conhece sobejamente pelas minuciosas noticias que aqui foram divulgadas por varios e illustres publicistas. Nada se oppõe a que elle seja, na America do Sul, o primeiro paiz a consagrar um campo de acção onde difficilmente germinará o pernicioso flagello da criminalidade infantil. Fallece-lhe apenas, para base complementar de todo o plano, a systematização regular e methodica da assistencia publica. Esta, porém, é uma partida que já está aqui inteiramente ganha perante a opinião publica. Como já

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ficou dicto em outra occasião, resta tão sómente que a ella se associe a solicitude de um homem de Estado que, tendo a verdadeira compenetração de um dever sagrado, queira, em boa hora, immortalizar o seu nome. (Paiva, op.cit., p.74)

A adoção das medidas necessárias para a consolidação das novas propostas de tratamento à infância e à adolescência, demorou ainda alguns anos. Mas a proposta geral se apresenta já bem esboçada. Resumidamente, a nova justiça deve ser recuperadora e não punitiva. A justiça especial para menores é um dos pilares desses novos procedimentos jurídicos. Seu dispositivo privilegiado de aplicação é o juízo especial para menores. Mas, como se pode perceber no final da última citação do texto de Paiva, a nova justiça deve ser acompanhada também da sistematização da assistência pública em geral. Acreditamos que o que se chamava então de nova justiça era também um novo projeto de institucionalização da infância abandonada e delinqüente. Por isso, além das reformas dos procedimentos jurídicos, era necessária também uma reorganização das formas de assistência voltadas para a infância, tanto públicas como privadas, e também uma nova sistematização da assistência em geral. Veremos como os autores da época trabalharam essa articulação entre novas formas de justiça e novas formas de assistência.

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IV.3. – “Justiça e Assistência”

Era um cunho director, superior e scientifico que se queria imprimir ás nossas obras de philantropia, encaminhando-as para a larga estrada indicada pela sciencia

e

pela

caridade,

furtando-as

á

desorganização actual. Ataulpho de Paiva

Os textos da época explicitam claramente que a proposta de uma nova justiça para menores e a criação dos tribunais especiais implicavam não apenas uma modificação a nível justiça, mas também uma reorganização das instituições voltadas para a infância e a adolescência. Noé Azevedo, por exemplo, ao defender a implantação dos tribunais juvenis já existentes em outros países, colocava:

Mas todo esse trabalho de amparo, visando preservar do mal os menores ainda puros, e reconduzir para o bem os que se desencaminharam, toda essa obra meritoria e nobre andava dividida em instituições isoladas umas das outras, não podendo alcançar os mesmos resultados de um systema scientificamente organizado. Os tribunaes para menores, oriundos da tendencia individualizadora da pena, creados a principio com o fim apenas de julgar os jovens delinquentes, dando-lhes um tratamento conveniente, tiveram

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necessidade de pedir auxilio a outras instituições protetoras, que estavam em condições de fornecer os precisos dados sobre os antecedentes dos acusados. Assim as administrações autonomas que funccionavam cada uma a seu modo, sem vistas communs, se foram reunindo e subordinando á direcção central do juiz, que ficou sendo mais que um simples magistrado, o chefe de todos os institutos de protecção á infância abandonada. Assim fica bem caracterizada a instituição que não é um mero orgão de julgamento de faltas e distribuição de penas, mas uma vasta organização de institutos e associações protectoras dos menores abandonados. (Azevedo, op.cit., pp.88-89)

Os tribunais para menores, assim, ao mesmo tempo em que se apoiavam em instituições de amparo à infância já existentes, passavam também a subordinar essas instituições a uma instância central judiciária, que criará um sistema organizado de assistência até então não existente. Por isso, os tribunais para menores serão colocados como síntese de um novo projeto de institucionalização da infância e da adolescência:

De todas as instituições filhas do espirito tutelar e protector que caracteriza o tratamento actual dos delinquentes, a mais importante e que se póde considerar como synthese e concentração de todas as outras é sem duvida a creação dos Tribunaes para menores ou Tribunaes juvenis. (Azevedo, op.cit., p.83)

O problema básico que então se colocará nos textos é o da relação entre a ação organizadora e centralizadora do Estado, através dos tribunais para menores, e as

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instituições de assistência já existentes na sociedade. Ataulpho de Paiva, no texto já citado, coloca de modo exemplar essa relação entre novas formas de justiça e novas formas de assistência. Não é gratuitamente que seu livro se chama Justiça e assistência. Para esse autor, a transformação da legislação também deve ser acompanhada por um sistema de assistência social. Esse sistema representa um novo espírito de atuação, um amplo movimento dentro da sociedade brasileira de reforma da assistência pública e da beneficência privada:

Aqui mesmo, no seio da communidade brasileira, ha facto recente que bem demonstra como as idéas, uma vez encaminhadas sem intuitos exclusivistas, dominam os espiritos intellectuaes, absorvendo as consciencias puras. Ha poucos annos alguem se lembrou de transportar para o nosso paiz o movimento que, em toda a parte do mundo civilizado, então se fazia nos dominios da assistencia publica e da beneficiencia privada. Em nome da doutrina e da experiencia contemporaneas reclamava-se para a assistencia publica uma classificação juridica entre os factores de civilização e de saneamento moral no meio social. Convinha-se que sómente assim se tornaria ella o ideal de uma Justiça defensiva, preventiva e reparativa, uma vez que outras não eram as condições vitaes da mais pura confraternização humana. Era um cunho director, superior e scientifico que se queria imprimir ás nossas obras de philanthropia, encaminhando-as para a larga estrada indicada pela sciencia e pela caridade, furtando-as á desorganização actual. Era uma transição, que se aconselhava, do regimen da beneficiencia espontanea para a philanthropia systematizada. Seria

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fundada, como então foi dicto, uma grande associação protectora dos desvalidos, destinada a exercer uma fiscalização carinhosa para impedir a fraude, que, muitas vezes, leva a beneficiencia publica a favorecer a ella propria, de envolta com os verdadeiros necessitados. (Paiva, op.cit., pp.25-26)

Segundo o texto, uma filantropia científica deve ser correlativa, portanto, de uma nova justiça. Os tribunais para menores são um exemplo privilegiado desse novo movimento de reforma da assistência, ao permitir um tratamento moderno para os menores, afastando-os das prisões comuns. Nas palavras de Noé Azevedo:

Convencidos da grande verdade propagada pela sociologia criminal de que o delinquente é produto do meio, os legisladores modernos vão aos poucos furtando o menor ao domínio do direito penal, e afastandoo completamente das prisões. Si commetem faltas são conduzidos para estabelecimentos, onde recebem todos os cuidados que o seu estado reclama: assistencia material e amparo moral. Em vez de passarem pelos postos policiaes, para depois irem para os carceres communs, vão logo para casas onde encontram conforto, tratamento medico, occupação, ensino, e onde são submettidos, sem que o percebam, a um exame psychologico attento. O juiz de menores não póde decretar a medida a respeito de um accusado sem o conhecer bem. Não se consegue tal conhecimento pelas praticas ridiculas da instrução criminal, até hoje seguida na formação de culpa de toda a casta criminosa. Essas praticas, todas contrarias á sciencia precisam ser

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abolidas de vez, tanto dos processos de adultos como de menores. (...) (Azevedo, op.cit., p.97)

No lugar da prisão comum, portanto, são colocados os tribunais para menores e toda a rede assistencial a ele articulada. Para esse discurso, esses tribunais são, pois, peças essenciais no tratamento científico da criminalidade. Para ajudá-los em sua tarefa preventiva, existiriam as instituições privadas de amparo à infância, que deveriam, para tanto, passar a ser organizadas pelo Estado. Ainda, segundo o mesmo autor:

Assim, havendo em todas as camadas sociaes espalhado um espirito de benevolencia para com os menores, devemos ir aproveitando esses bons instinctos, para desenvolver o mais possivel as instituições de preservação

dos

que

se

encontram

material

e

moralmente

abandonados, aperfeiçoando ao mesmo tempo os estabelecimentos de reforma ou reerguimento dos que já commetteram faltas ou delictos. Quanto aos primeiros, aos que ainda não chegaram a delinquir, mas acham-se em condições perigosas, devido ao abandono por parte da familia, ou por serem filhos de paes indignos de os guardarem, vai-se organizando um systema mais ou menos scientifico de assistencia social aos menores material e moralmente abandonados. E essa obra de amparo que antes era de caracter privado e por isso inefficaz, porque apesar de muito nobre, fragmentaria como se achava, não podia satisfazer as grandes necessidades da vida agitadissima do mundo contemporaneo, tende como todas as instituições modernas a socializar-se, pela acção do Estado. Este em todos os paizes vai

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deixando o seu papel restricto de orgão mantenedor da segurança publica, da ordem juridica, para desenvolver cada vez mais sua missão social. (Azevedo, op.cit., pp.97-98)

O Estado é chamado, conseqüentemente, a organizar a assistência dispersa já existente na sociedade. É nesse sentido também que vai a proposta de Ataulpho de Paiva. Para este autor, a assistência pública e privada em nosso país ainda se encontrava num estado de confusão e anarquia. Caberia ao Estado organizar essa assistência. A caridade privada deveria ser esclarecida pela beneficência pública, científica. Ao resumir as considerações tiradas em vários congressos europeus sobre o problema da assistência, Ataulpho de Paiva, ao mesmo tempo em que falava da penetração dessas novas idéias na sociedade brasileira, através da imprensa, também criticava a falta de medidas mais eficazes e duradouras no sentido de uma organização da assistência em nosso país. Entre suas propostas estava a criação de um Ofício Geral de Assistência, que viria justamente realizar essa tarefa organizativa. O tempo todo está presente, nesse e em outros textos, a preocupação em colocar que essa assistência pública científica e racional não se opõe à caridade já existente, mas que, pelo contrário, vem organizá-lo de modo mais eficaz. É nesse sentido que Ataulpho de Paiva coloca que o espírito de caridade já estava presente em nossa sociedade, fazendo, contudo, a ressalva de que, sem a organização científica, sem a orientação geral necessária, esse espírito caridoso se perderia na sua fragmentação:

O Brasil já se asseverou em outro logar, é a terra productiva e fertilizante da philantropia e da caridade. (...)

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(...) O culto da caridade em nosso paíz possue manifestações grandiosas, immensuraveis. No sagrado interesse da indigencia, existe sempre aqui uma somma infinita de nobres esforços, uma emulação piedosa, uma dedicação corajosa. Todas as desgraças encontram um apoio valioso e um amparo abnegado. Um simples appello á generosidade da população faz brotar donativos opulentos. Os socorros que, á discreção, prodigalizamos á orphandade, á pobreza e ao infortunio não tem barreiras impostas nem limites traçados. Por toda a parte espalham-se as casas de beneficiencia, os asylos, os orphanatos, os estabelecimentos hospitalares, os dispensarios, as casas pias, as associações religiosas, os socorros mutuos, as devoções, as ordens e as irmandades (...) Mas o reverso dessa situação não conduz, entretanto, a um circulo de impressões tão lisonjeiras e agradaveis. É que, hoje, todo o mundo deve estar farto de saber que, sem embargo do tradicional movimento da nossa dedicação corajosa e permanente em materia de beneficios caridosos, esse sentimento se exerce sem orientação coordenada, sem composição e sem arranjo de especie alguma. Os trabalhos de assistencia são executados em fragmentos, parcelladamente, sem o rigor do methodo, sem a cooperação efficaz, sem a organização intelligente dos auxilios reciprocos e dos resultados compensadores. As manifestações compassivas dos nossos sentimentos de piedade e de amor ahi estão simplesmente resumidos e estampados em fundações grandiosas, mas isoladas e deploravelmente dispersas. Dahi a insufficiencia dos esforços e a inefficacia dos recursos, phenomeno aliás observado em todas as epochas e em todos os tempos. (Paiva, op.cit., pp.112-114)

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Para vencer a fragmentação das iniciativas privadas de auxílio e de assistência é que se faz necessária, segundo este ponto de vista, a ação da assistência pública. Para este discurso, o Estado moderno deve dar conta das questões sociais através da organização dos vários ramos da assistência, que não atingirá apenas os tradicionais desafortunados visados pela caridade privada, mas visará também todos aqueles que, de uma maneira ou de outra, se enquadrem dentro da questão social: crianças, velhos, estrangeiros, alienados, tuberculosos, trabalhadores, etc. Ataulpho de Paiva se deterá na análise de cada um desses ramos da assistência, voltando a enfatizar a necessidade da aliança entre assistência pública e assistência privada para o bom andamento do novo sistema proposto. Seus textos terminam conclamando o poder público a assumir, de modo definitivo, a tarefa de organizar esse ambicioso sistema de assistência, que, partindo do Estado, organizaria de modo científico as instituições privadas já existentes, no sentido de um funcionamento mais harmonioso e eficiente, evitando, assim, a dispersão da caridade cega. Acreditamos que, ao propor uma sistematização da assistência em geral que harmonizasse os interesses da assistência pública e os da assistência privada, o autor propunha uma nova estratégia institucional para dar conta das demandas sociais que se colocavam nos grandes centros urbanos da época. A centralidade das novas instituições para menores nesse contexto não é gratuita: a assistência à criança deveria ser um dos pontos chaves dessa nova estratégia institucional, já que atingia uma clientela potencialmente mais ampla – não nos esqueçamos de que loucos, trabalhadores, idosos e todos os outros, antes de tudo, foram crianças. O que vimos nos últimos itens é suficiente para indicar como um novo discurso sobre a menoridade começa a se constituir a partir das discussões sobre uma

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nova legislação e novas formas de institucionalização da infância e da adolescência. Esse discurso, presente em artigos de jornais, conferências e livros, também se articulará em torno da discussão de projetos de leis que visavam uma nova legislação para o menor. É o que veremos a seguir.

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IV.4. – A proposta de uma nova legislação: Alcindo Guanabara e Mello Mattos

Na época presente não ha mais duvida de que, perante a infancia e a adolescencia a lei, em geral, e o direito penal, em particular, devem mudar os seus criterios de julgamento (...) Mello Mattos

Vimos anteriormente, de que modo os textos partiram de uma crítica ao conceito de discernimento, colocaram uma nova proposta de justiça para menores, tutelar e recuperadora, e articularam esse novo conceito de justiça a uma nova assistência social, mais ampla, científica e racional. Veremos agora como esses temas já se apresentavam também nas discussões acerca de projetos de leis que tratavam também nas discussões acerca de projetos de leis que tratavam de mudanças na legislação sobre a menoridade. Deteremos nossa atenção em dois projetos que estão entre as principais iniciativas da época: os de Alcindo Guanabara e de Mello Mattos. Alcindo Guanabara, Senador pelo Distrito Federal, apresentou seu primeiro projeto de assistência e proteção aos menores à Câmara dos Deputados em 31 de outubro de 1906. Segundo o próprio autor29, foram reconhecidos na época os méritos 29

Cf. Guanabara, Alcindo. Pela infância abandonada e delinquente no Districto Federal. Exposição de motivos e projecto de lei. Apresentado ao Senado Federal na sessão de 21 de Agosto de 1917. Rio de

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desse primeiro projeto pela Comissão de Justiça do Congresso que o examinou, tendo sido rejeitado, porém, sob a alegação de que se aguardava a deliberação do Senado sobre o Código Civil e a reforma do Código Penal, além do que o projeto implicava grandes despesas:

Além disso, o projecto do nobre Deputado, por isso mesmo que visa uma organização definitiva da assistencia à infância abandonada e delinquente, consigna não pequena despeza, que a Commissão pensa que deve ser adiada, desde que com menor dispendio se possa organizar um serviço de assistencia, que vá satisfazendo as urgencias do momento. Por isso, pensa que, approvado em primeira discussão, deve o projecto n.328 do anno findo ser substituido em segunda pelo que a Comissão offerece. (Apud Guanabara, 1917, p.7)

Ainda segundo Guanabara, a proposta da comissão que acabou sendo aprovada, organizou um serviço de asilos para os dois sexos, sob a jurisdição dos juízos de órfãos, onde seriam internados os menores abandonados até serem recolocados pelos juízes. Tratava-se, ao que parece, de um serviço já existente, sob a administração do chefe de polícia do Distrito Federal, e que a comissão entendia ser suficiente. Em 21 de agosto de 1917, Alcindo Guanabara reapresentava seu projeto, lamentando, na exposição de motivos, que o substitutivo aprovado no lugar de seu projeto de 1906:

Janeiro, Typ. do Jornal do Commercio, de Rodrigues & C., 1917, 62p. Esse texto é interessante porque nele o autor não apenas apresenta o seu projeto, mas também explicita suas idéias a respeito da questão da infância abandonada e delinquente.

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(...) em nada alterou os termos do problema, que subsiste tal qual era, reclamando solução efficaz, que não mais póde ser adiada ou illudida, sem sacrificios dos mais altos interesses moraes e sociaes. (Guanabara, op.cit. p.8)

E em seguida alertava para a gravidade do problema da infância abandonada:

A imprensa diaria, livros, opusculos, relatorios, conferencias, congressos especiaes, todas as fórmas de manifestação da opinião affirmam, repetem, consignam, registram depoimentos, factos e estatisticas, que patenteiam, á toda a evidencia, que a infancia abandonada, augmentada em numero pelo augmento da população, continúa a viver na miseria mais affrontosa, viveiro de delinquentes, sementeira da prostituição e do crime, que se avoluma e cresce progressivamente, deante do Estado criminosamente indifferente, ou, quando muito, reduzido á contingencia, triste, senão ridicula, de reconhecer o mal immenso e de confessar uma impotencia para reparal-o ou attenual-o, que não tem nenhuma justificativa, pois não está somente no seu poder, como principalmente no seu dever, agir para eliminal-a, substituindo-a pela acção energica e intelligente que lhe compete. (Guanabara, op.cit., pp. 8-9)

Ao transcrever, em seguida, as palavras do então Ministro da Justiça, Carlos Maximiliano, que pedia providências para o problema da infância desvalida, Paiva apresentava também estatísticas sobre a criminalidade dos jovens para enfatizar a

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necessidade de medidas definitivas para o problema, propondo assim que se superasse o obstáculo orçamentário para tão urgente tarefa:

Não vale a pena, já agora, dissimular o pensamento: o que levou o Congresso Nacional em 1907 a repellir o conjuncto de medidas indispensaveis á organização efficaz da assistencia á infancia foi a mesma força que agora levou o honrado Sr. Ministro da Justiça a concluir contra as suas proprias premissas e a pedir providencias insufficientes, mesmo quando o seu coração bem formado não se resigna a transigir com a situação actual e o força a clamar: “Agora, é demais!” É simplesmente o recúo deante das despezas que a organização desse serviço póde reclamar. Andamos tão longe, estamos tão arredios do verdadeiro caminho que o Estado deve trilhar para a solução dos problemas verdadeiramente sociaes, estamos tão affeitos ao preconceito de que a intervenção do Estado só é legítima nos assumptos que convencionamos chamar politicos, que se nos afigura abusiva a intervenção do Estado em todas as questões de assistencia; e é só forçando a sua timidez e mal occultando o receio da critica ou da censura doutrinaria ou theorica, que o Governo e o Congresso ousam despender algumas migalhas naquillo em que, entretanto, a collectividade, com todo o direito e com alguma impaciencia, reclama que seja empregada a somma sufficiente para assegurar o seu bem estar presente e a commodidade do seu futuro. (Guanabara, op.cit., pp.14-15)

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Interessante notar nesta citação a necessidade de crítica a uma visão totalmente liberal do Estado, na medida em que deve intervir na questão social e que esta intervenção vem do apelo da própria sociedade. Mas não só a sociedade tem direito a medidas que garantam a sua segurança, como também o próprio indivíduo aparece na argumentação como tendo direito à assistência:

Não sou eu decerto o primeiro que proclama que todo o homem na sociedade tem o direito, não sómente de ser protegido contra as offensas, mas ainda de não ser abandonado em caso de miseria; todo o homem tem o direito de ser ajudado em caso de necessidade, de ter o abrigo, o vestuario, a nutrição em caso de fome, o tratamento em caso de molestia, o asylo em caso de decrepitude, a instrucção em caso de ignorancia. Todo o cidadão deve ser socorrido pela collectividade de que faz parte. Esse dever social decorre, naturalmente, do facto social. O dever de existencia é um dever de justiça, que não ha legislação, desta época, que desconheça ou repudie. (Guanabara, op.cit., pp.1617)

Ou seja, segundo essa argumentação, o Estado tem de proteger a sociedade contra os perigos da miséria e auxiliar os indivíduos que caírem vítimas desse mal. Além do mais, se o Estado não é cioso dos seus deveres, deve sê-lo em relação a seus interesses: aqui Alcindo Guanabara recupera a argumentação já vista anteriormente, de que o cuidado com a infância abandonada é também economicamente vantajoso:

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Si esse é o dever social, si esse é o dever entre os homens e o dever do Estado para com o cidadão, como desconhecel-o para com a infancia, que renova e robustece a sociedade? Si fechardes o coração á piedade, heis, ao menos, de abrir os olhos ao interesse, facilmente verificando o prejuizo que todos os annos o abandono da infancia vos faz inscrever na contabilidade do Estado, pelo numero de criminosos que se deve sustentar, pelo numero de miseraveis que se deve manter, pelo numero de vadios que se deve alimentar, pelo numero de prostitutas que corrompem a sociedade e disseminam larga-manu a enfermidade cruel, que a aniquilla. Podeis, ao mesmo tempo, apreciar em algarismos o que deixaes de ganhar, avaliando o que produziria o trabalho sadio e intelligente desses milhares de individuos que não recebem senão o mal (...) Não nos detenhamos diante da consideração verdadeiramente secundaria e subalterna do dinheiro a despender; primeiro, porque positivamente, seja qual fôr o sacrificio que isso represente, o nosso dever inilludivel é dependel-o, e, depois, porque, se effectivamente, alguma despeza póde o Estado fazer, que lhe renda cem por um, essa é uma dellas. Para justifical-a, senão para impôl-a, associam-se o dever moral e o interesse social. (Guanabara, op.cit., pp.17-19)

Ao caracterizar seu projeto, o autor afirmava que não se tratava de algo novo, consistindo, pelo contrário, em propostas já analisadas em outros países e que eram consensuais, como a não-reclusão dos menores à prisão comum, a criação de depósitos para menores com separação dos sexos, sendo os menores posteriormente

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encaminhados de volta à família ou a escolas de prevenção ou reforma, conforme o caso. Tudo formaria como que um sistema, perfeitamente articulado. De novidade em relação à legislação brasileira, o autor colocava apenas a criação do juízo privativo de menores:

Em relação, entretanto, ao estado actual da nossa legislação, contém uma idéa nova, que não duvido qualificar como a sua idéa capital: a creação do juizo privativo para a protecção, defesa, processo e julgamento dos menores, com a consequente reforma do processo, que não será escripto, das audiencias, que serão secretas, da prohibição da imprensa de divulgar o que nellas occorrer e da faculdade conferida ao juiz de proferir a sua decisão de consciência, sem se subordinar á rigidez das regras do Codigo Penal. (Guanabara, op.cit., p.28)

Analisando o projeto de lei apresentado por Alcindo Guanabara, percebemos que se tratava já de um projeto bem organizado de institucionalização da infância abandonada e delinquente. A nova clientela visada era definida nas disposições gerais:

Art.1º Todo menor, de qualquer dos sexos, em reconhecida situação de abandono moral ou de máos tratos physicos, fica pela presente lei sob a protecção da autoridade publica. (Guanabara, op.cit., p.45)

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Em seguida eram definidas as condições de destituição do pátrio-poder. Criavam-se instituições especiais como depósitos e escolas de prevenção que recolheriam os menores. Nestas instituições seriam proibidos os castigos corporais:

Art.15. É expressamente prohibido na escola de prevenção o castigo corporal, qualquer que seja a fórma que revista. (Guanabara, op.cit. p.51)

Criava-se um juízo privativo para os menores:

Art.22. Fica creado no Districto Federal um juizo privativo para protecção, defesa, processo e julgamento dos menores abandonados e delinquentes. (Guanabara, op.cit., p.54)

Mas, como já mencionamos anteriormente, permanecia o discernimento:

Art.23. Não são criminosos: 1º , os menores de 12 annos completos. 2º, os maiores de 12 e menores de 17, que obrarem sem discernimento. Art.24. Os maiores de 12 e menores de 17 annos que tiverem obrado com discernimento serão recolhidos ás escolas de reforma creadas pela presente lei, onde cumprirão a pena que lhes for imposta pelo juiz a que se refere o art.22. (Guanabara, op.cit., pp.55-56)

Embora não se tratasse ainda de um projeto mais elaborado de um Código Especial para os Menores, o projeto de Alcindo Guanabara estava plenamente de acordo

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com o espírito de uma nova justiça para menores, tal como colocado pelos textos vistos anteriormente. Apesar de manter certa ambigüidade em relação à questão do discernimento, um dispositivo geral já estava esboçado. O projeto de Alcindo Guanabara ficou sem continuidade com a morte de seu autor. Parece ter sido, porém, uma das iniciativas mais importantes até então realizadas, tanto que será a partir desse projeto que Mello Mattos começará a elaborar um substitutivo, anos depois. Mello Mattos, advogado criminalista, promotor público, deputado federal e catedrático da Universidade do Rio de Janeiro, foi o principal arquiteto da nova justiça para menores que então se consolidava. Casado, mas sem filhos, derrotado na sua tentativa de eleição para o Senado Federal, quando então abandonou a política, Mattos parece ter dedicado seus maiores esforços à “causa” da infância abandonada e delinquente, tendo sido diretor do Lyceu Pedro II, do Instituto Benjamin Constant de meninos cegos, e nomeado Juiz de Menores em 1924. Seu discurso é o que mais claramente define a nova estratégia institucional colocada para a menoridade. Após sua nomeação como Juiz de Menores, Mello Mattos começou a trabalhar no sentido da criação de um “Código dos Menores”. Baseado em sua experiência nesse juizado, Mattos apresentou, em 1925, um projeto ao Senado Federal, visando medidas legislativas que complementassem a ação do Juízo de Menores30. Esse projeto já tinha por objetivo, estabelecer um Código dos Menores, uma ampla legislação para dar conta das várias questões relativas à menoridade. Na justificativa desse projeto, Mello Mattos afirmava que as leis até então existentes para a proteção e assistência aos menores de 18 anos, abandonados ou 30

Projeto n.12 – 1925, que estabelecia medidas complementares das leis de assistência e de proteção aos menores de 18 anos e instituía um Código de Menores.

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delinqüentes, necessitavam de uma série de complementos. Eram necessárias, segundo o autor, medidas protetoras das crianças de primeira idade, dos enjeitados (propunha o fim das Rodas), dos vadios, uma legislação que definisse com precisão a questão da tutoria, das penas indeterminadas aplicáveis aos menores, da regulamentação do trabalho infantil, das instituições de preservação e reforma, etc. 31. Seu projeto visava justamente equacionar todas essas questões, estabelecendo um Código geral que tratasse dessas matérias. Aprovado esse projeto, o Presidente Washington Luis confiou a confecção do novo Código de Menores a Mello Mattos, sendo aprovado e convertido no decreto n.17.943A de 12 de outubro de 192732. Numa edição comentada desse Código, Mello Mattos sintetizava a nova estratégia institucional em relação à infância e adolescência que a nova legislação consolidava, retomando os vários temas já vistos anteriormente em outros discursos da época. Para Mello Mattos, a legislação sobre a menoridade que então se instituía implicava uma nova forma de articulação entre assistência pública e privada:

As leis relativas á assistencia e proteção aos menores abandonados e delinquentes empregam o vocabulo “assistencia” em um sentido completamente novo entre nós! A assistencia social, em nosso paiz como nos demais, originou-se do exercicio da caridade, virtude privada, cujo funccionamento era

31

Sobre algumas discussões desse projeto, consultar: Rio de Janeiro. Congresso Nacional. Annaes do Senado Federal. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional. 1931. v. III, V, VI, VIII, IX e X. 32 Para uma edição completa desse decreto, consultar: Rio de Janeiro. Actos do Poder Executivo. Collecção das Leis da Republica dos Estados Unidos do Brasil de 1927. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional. 1928. v.II, pp.476-524.

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assegurado por associações religiosas ou leigas, cujos recursos provinham das liberalidades dos particulares. Entendia-se que o Estado não tinha a obrigação de assistir aos desgraçados, aos que soffrem de qualquer das multiplas fórmas da miseria ou da doença. Actualmente, porém, e já desde algum tempo, está reconhecido e consagrado em leis dos paizes mais cultos, que é do poder geral do Estado dar uma assistencia aos doentes e necessitados, mediante organização administrativa,

cuja

extensão e

aplicação serão

determinadas em lei. O termo Assistencia Publica é empregado, desde então, em opposição a Beneficiencia Privada; mas uma não dispensa a outra. Não póde o Estado assumir, por si só, os encargos da assistencia social; cabe-lhe fundar e manter os institutos mais urgentes e typicos, deixando o socorro do maior numero de necessitados á iniciativa privada individual ou collectiva, auxiliando todavia os esforços desta. (Mattos, 1929, p.III)

A questão da assistência, para Mattos, deixava, assim, de ser exclusividade da virtude privada, passando a ser também dever do Estado. Não se trata de opor assistência pública à beneficência privada, mas sim de articulá-las no sentido de uma melhor eficiência. Mattos coloca também que essa assistência, além de se tornar atributo do Estado, também alargava seu campo de atuação:

O mais notavel, porém, é que a extensão da assistencia publica, no estrangeiro como agora no Brasil, vae além de dar auxilio aos enfermos em geral, e, em particular, aos alienados, cegos, surdos-

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mudos, engeitados e velhos desvalidos: comprehende tambem os menores abandonados material ou moralmente e os jovens delinquentes, variando, entretanto, nos diferentes paizes a idade maxima para essa assistencia. Os menores assistidos já não são unicamente os expostos, filhos de paes incognitos lançados á roda; são tambem, os materialmente abandonados, que nascidos de paes e mães conhecidos, e a principio creados e mantidos por suas familias, são depois largados ao desamparo, sem que se saiba o que foi feito dos seus responsaveis legaes; e da mesma fórma, os moralmente abandonados, que, convivendo com seus paes ou outros responsaveis, soffrem habitualmente maus tratos ou castigos immoderados ou recebem maus exemplos delles, ou que estes, por circumstancias dependentes ou não de sua vontade, deixam em estado habitual de vagabundagem, mendicidade, prostituição ou criminalidade. (Mattos, op.cit., p.IV)

Em relação às antigas formas de institucionalização, como a já citada Roda dos Expostos, o autor afirmava que a assistência ampliava seu raio de atuação para os também moralmente abandonados, ou seja, a assistência se expandia, ao menos potencialmente, para todos os menores dentro da sociedade. Não só se expandia nesse sentido como também passava a começar desde o nascimento, e mesmo antes dele, alongando-se por todo o desenvolvimento do menor:

Mas, esse magno problema social da assistencia e protecção aos menores é tão complexo, abrange tantas modalidades, que, para ter solução efficaz, cumpre começar pela assistencia maternal, soccorros

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da gravidez, refugios operarios de mulheres gravidas, maternidades secretas, asylos de convalescencia, recolhimentos infantis, soccorros de lactação, crèches, postos de consulta para lactantes, hospitais infantis; e outros meios tendentes a evitar a mortalidade na primeira idade e os maleficios contra a primeira infancia. Segue-se então, a protecção da creança abandonada, desde o limiar do asylo, que a recolhe, até á sua maioridade, acompanhando-a em todas as phases do seu desenvolvimento e educação, amparando-a nas difficuldades, nos perigos ou accidentes de sua vida, acudindo aos maltratados, preservando dos maus contagios os innocentes, arrancando do vicio e do crime os pervertidos. (Mattos, op.cit., p.V)

Interessante notar que nesta citação, Mello Mattos descreve todo o alcance do novo projeto de institucionalização da menoridade, associando-o, em seguida, a um novo tipo de tratamento recuperador e racional:

Como remate da assistencia social moderna vem o tratamento racional, educativo e reformador, dos menores delinquentes, de cuja acção punivel, póde-se dizer, a sociedade é para elles mais culpada do que elles o são para com a sociedade. A delinquencia, o vicio, a miseria não procedem tanto de aberrações e degenerações individuaes como de aberrações e degenerações sociaes. Suas faltas, na maioria das quaes elles são antes as victimas do que os auctores responsaveis, correm principalmente por conta das influencias do meio social, da negligencia dos paes, tutores ou guardas, da falta de vigilancia destes, dos maus exemplos que lhes dão. (Mattos, op.cit., p.VI)

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Concluindo que a própria justiça, a partir de então, deverá mudar seu rosto frente ao menor:

Na época presente não ha mais duvida de que, perante a infancia e a adolescencia a lei, em geral, e o direito penal, em particular, devem mudar os seus criterios de julgamento, estabelecer secções especiaes, modificar o processo, a composição do tribunal, as cerimonias da audiencia, o recrutamento dos magistrados, porque esses jovens seres, ainda incompletamente formados, instinctivos antes que conscientes, amoraes antes que immoraes, têm necessidade de serem tratados por methodos especiaes e por especialistas, como acertadamente opinam abalisados escriptores. (Mattos, op.cit., pp.VI, VII)

O Código é o ponto de chegada do novo projeto de institucionalização da menoridade, explicitado pelo texto de Mello Mattos, e que foi se constituindo ao longo das transformações discursivas estudadas nos itens anteriores. Já estamos, assim, longe de dispositivos legais tais como o discernimento. Um novo dispositivo legal e institucional já está plenamente conceituado.

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IV.5. – Moncorvo Filho e a “Cruzada pela Infância”:

E nenhuma cruzada teremos maior empenho em levar por deante que a nossa defeza nacional pelo amparo da infância. Moncorvo Filho

Estudamos, até aqui, textos de juristas sobre a questão da infância abandonada e delinqüente. A construção do menor como categoria jurídica e institucional, porém, parece ter sido uma empreitada eminentemente multidisciplinar. Evaristo de Moraes, por exemplo, na segunda edição do seu já citado livro sobre a criminalidade da infância e da adolescência, dedica seu trabalho a três homens que teriam contribuído para a causa da preservação da infância e adolescência:

À memória do educador Franco Vaz, a quem tanto deve a obra patriótica e humanitaria da preservação da infancia e da adolescencia. Ao pediatra Dr. Moncorvo Filho, que tamanhos esforços vem fazendo, desde muito, para prevenir os males de que tratamos neste livro. Ao jurista e magistrado Dr. Mello Mattos, que, ultimamente, tamanho empenho tem posto na realisação dos nossos ideaes, quanto aos menores abandonados e delinquentes. (Moraes, op.cit., p.5)

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Fica evidente o interesse pelas questões por nós discutidas até aqui, não só por parte de juristas da época, como também por parte de educadores, médicos e filantropos em geral. Tomemos, a título de exemplo, o discurso de Moncorvo Filho33. Alguns estudos já trabalharam a constituição da medicina higiênica no Brasil e suas relações com determinadas estratégias de poder34. A afinidade entre práticas médicas e jurídicas na manutenção da ordem social, porém, foi especialmente ressaltada por Corrêa (1982a, 1982b). Ao estudar as relações entre antropologia e medicina legal no Brasil, essa autora mostrou de que modo o interesse dos médicos legistas pela questão da identificação, durante a década de trinta, levou à transformação de “crianças” em “menores”. Essa relação entre discurso médico e discurso jurídico e o processo de “menorização” da infância, estudada por Corrêa, já pode se encontrada no processo de constituição do Código de Menores de 1927. A análise dos textos de Moncorvo Filho torna explicíto esse fato. O médico Moncorvo Filho dedicou-se exaustivamente à causa da infância nas primeiras décadas do século. Fundador do “Instituto de Protecção e Assistencia à

33

Tanto os textos dos educadores como os dos médicos da época sobre a infância mereceriam estudos detalhados à parte. Trabalhamos aqui com os textos de Moncorvo Filho, uma vez que esse autor é frequentemente citado por aqueles que, na época, discutiam a nova legislação para menores. Queremos ressaltar, com isso,a interdisciplinaridade da nova estratégia institucional que então se constituía. Franco Vaz, citado por Evaristo de Moraes, foi diretor da Escola 15 de Novembro para menores abandonados. Mencionado em vários textos como um grandes defensores da causa da infância no início do século, escreveu trabalhos e artigos de jornais sobre o problema da infância desprotegida. 34 Machado (1978) estudou como a medicina higiênica se constituiu no Brasil, durante o século XIX, como um novo dispositivo de poder, diferenciando-se da medicina do período colonial; Gonçalves (op.cit.) faz algumas colocações sobre o discurso médico-higienista em relação às Rodas; Costa (1979) estudou a “normalização” da elite familiar burguesa, no Brasil do século XIX, pelas novas técnicas disciplinares aplicadas pela medicina higiênica; Engel (1989) estudou o papel do saber médico na normatização da prostituição na cidade do Rio de Janeiro entre 1840 e 1890. Rago (1985) estudou a participação dos médicos higienistas na moralização do proletariado urbano durante a Primeira República, principalmente no sentido da redefinição do papel da mulher e da criança dentro da família. Essa autora mostra que a preocupação médica com a infância começa a despontar no Brasil em meados do século XIX, intensificando-se nas primeiras décadas do século XX. A preservação das crianças aparece então como objeto privilegiado de convergência das práticas do poder médico, que passa a visar três problemas principais: as elevadas taxas de mortalidade infantil, o problema do menor abandonado e a medicalização da família. Rago cita a participação destacada de Moncorvo Filho e de sua puericultura na abordagem dessas questões. Voltaremos a discutir esse trabalho no próximo capítulo.

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Infancia do Rio de Janeiro”, em 1899, e do “Departamento da Creança no Brasil”, em 1919, desenvolveu uma série de atividades visando o desenvolvimento físico, moral e social da criança brasileira, escrevendo artigos sobre mortalidade infantil, assistência à infância, amamentação, etc., assim como elaborou projetos de lei visando a proteção da infância da primeira idade, a regulamentação das amas de leite e a inspeção sanitária escolar. No prefácio de seu livro Historico da Protecção à Infancia no Brasil: 1500192235, Moncorvo Filho é apresentado por Esmeraldino Bandeira, nos seguintes termos:

Creio externar um conceito de todas as consciencias cultas affirmando que dos nossos homens de sciencia nenhum já se informou melhor do que o Dr. Moncorvo Filho sobre o problema da infancia, assim em seu conjuncto como em seus pormenores; em sua estructura como em suas affinidades. Ninguem ha que lhe pronunciado o nome não evoque de par o do mais abnegado amigo da creança no Brasil; e ninguem ha que tratando da creança não lhe evoque simultaneamente o nome. (...) Há 30 annos corridos que o illustre Autor vem estudando a situação da creança em seus multiplos aspectos, encarando-a principalmente pelo lado da saúde, da psychologia e da educação, com o intuito, como elle proprio o declara, de poder collaborar na grande obra de eugenia do nosso povo.

35

Moncorvo Filho, Arthur. Histórico da Protecção à Infancia no Brasil, 1500-1922. Rio de Janeiro, Empreza Graphica Editora, 1926.383p. Trata-se de um texto bastante interessante e rico em informações no qual o autor pretende traçar um amplo panorama histórico do tratamento à infância no Brasil, desde os antigos depósitos para expostos até as novas instituições que surgiam no início do século XX. Grande parte do trabalho é dedicada às iniciativas do próprio autor no sentido de desenvolver a puericultura e a higiene infantil no país.

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Tão extenso e tão complexo é o problema da infancia que só um estudo em annos assim numerosos, e não observações e experiencias fragmentarias e apressadas, poderá colligir os elementos necessarios á respectiva solução, que apresenta um caracter triplo: – médico, jurídico e social. (Moncorvo Filho, 1926, pp.XXVII e XXVIII)

Moncorvo Filho tinha como clara essa interligação entre práticas médicas, jurídicas e assistenciais na questão da proteção à infância. Seus textos se preocupavam não apenas com a puericultura, mas também com as instituições de assistência e de proteção da infância e a legislação sobre a menoridade. No seu discurso, o problema da saúde infantil estava intimamente ligado com a questão moral, institucional e legal que envolvia as crianças. O que estava em jogo na infância era a própria “questão social” e, consequentemente, a saúde da própria sociedade. Para esse autor, os grandes problemas da proteção à infância no Brasil eram a ausência de estabelecimentos especiais e de uma legislação adequada para a infância. Ao fazer o histórico da proteção à infância no Brasil, Moncorvo Filho criticava antigas instituições de amparo à infância, como a Roda, que se caracterizavam por altos índices de mortalidade. Sobre os asilos para crianças, existentes no Rio de Janeiro na passagem do século, afirmava:

Quanto aos Recolhimentos desta ou daquella natureza, eram uma lastima. Elles guardavam a tradição do maior anachronismo, insensíveis ante o hodierno progresso.

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Ora, o “asylo”, tal qual o concebiam os antigos, era uma casa na qual encafurnavam dezenas de creanças de 7 a 8 annos em diante nem sempre livres de uma promiscuidade prejudicial, educadas no carrancismo de uma instrucção quasi exclusivamente religiosa, vivendo sem o menor preceito de hygiene, muitas vezes atrophiadas pela falta de ar e de luz sufficientes, via de regra pessimamente alimentadas, sujeitas, não raro, á qualquer leve falta, a castigos barbaros dos quaes o mais suave era o supplicio da fôme e da sêde, aberrando, pois, tudo isso dos principios scientificos e sociaes que devem presidir a manutenção das casas de caridade, recolhimentos, patronatos, orphanatos, etc., sendo, conseguintemente os asylos nessas condições instituições condemnaveis. (Moncorvo Filho, op.cit., pp.133-134)

Para Moncorvo, a assistência particular que existia no Brasil tentava suprir a ausência do Estado na proteção e assistência à infância. A quase inexistência de uma legislação adequada para dar conta desse problema, era um dos indícios do descaso do Estado para com a assistência às crianças. Daí o autor ressaltar também a necessidade de uma ação conjunta da iniciativa particular e do poder público para realizar o amparo à infância. Acompanhando mais detidamente um de seus textos, podemos analisar melhor sua argumentação. No discurso apresentado à Academia Nacional de Medicina, em 5 de junho de 1919, quando de sua posse como membro honorário, Moncorvo Filho faz uma breve exposição do que chama de movimento em prol da infância em nosso

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país36. Esclarecendo que pretendia fazer uma narrativa dos fatos por ele estudados em relação à infância, baseado em suas próprias investigações, e apoiando-se em dados estatísticos, ao invés de um discurso meramente retórico, Moncorvo, logo de saída, critica a desorganização da assistência pública no país:

É por demais conhecido quão defeituosa e insufficiente se depara nest’hora a nossa estructura social. Sabem-n’o todos tambem que maior não podia ser a nossa desorganização administrativa no sentido da Assistencia Publica e a recente epidemia de grippe deixou aos olhos dos mais inexpertos a nossa dolorosa situação nesse ponto de vista. (...) Tudo está em que até hoje ainda é uma mytho entre nós a verdadeira organização da Assistencia Publica. Falta-nos o impulso decisivo a animar um Homem de Estado que queira immortalizar o seu nome, ligando-se a esse emprehendimento, o mais premente da actualidade. (...) (Moncorvo Filho, 1919, p.6)

Cita, em seguida, o texto já visto de Ataulpho de Paiva, sobre a necessidade de uma sistematização dos serviços de assistência pública. Para Moncorvo, apesar dessa ausência de interesse por parte do Estado para com a assistência pública, a “questão social” já havia sensibilizado a sociedade brasileira, e a causa da infância passava também a ser um problema essencial:

36

Moncorvo Filho, Arthur. A cruzada pela infancia. Rio de Janeiro, Typ. Besnard Frères, 1919. 33p. Neste trabalho, Moncorvo faz um pequeno resumo de suas principais idéias.

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A santa causa da creança entrou positivamente nas cogitações dos estadistas e de todos que, em nossa Patria, têm uma parcela de responsabilidade. (...) A protecção á infancia é um dever patriotico, uma obrigação nacional, e não foi de outra sórte pensado, que me propuz, com todas as minhas energias, numa avidez bem compreensivel nos apaixonados pelas causas dessa ordem, a contribuir com o que melhor o pudessem, para resolver o grave e palpitante problema. (...) Por motivo que ignoro, a questão social da infancia, porém, bem pouco tem attrahido os nossos confrades e foi isto que me animou a tomar sobre os hombros essa espinhosa empreitada, da qual, incontestavelmente, todos devemos cuidar com o mais carinhoso apreço. (...) (Moncorvo, op.cit., p.8)

Apesar de uma certa ambigüidade que pode ser lida no texto, pois, ao mesmo tempo em que afirma que a questão social desperta interesses cada vez maiores no Brasil, e que a proteção à infância é um dos pontos centrais dessa mesma questão social, coloca também a falta de interesse por essa mesma causa da infância e, consequentemente, pela própria questão social, Moncorvo quer enfatizar a necessidade do Estado assumir, juntamente com as iniciativas particulares já existentes, entre as quais ele próprio se inclui, a tarefa da proteção à infância. Por isso reclama da carência de leis específicas para essa proteção. Em seguida, o autor deixa de lado as questões relativas à infância moralmente abandonada e delinqüente, que ficaria a cargo do direito, para relatar seu campo próprio de atuação, a puericultura, descrevendo suas iniciativas, como o já citado

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“Instituto de Protecção e Assistencia á Infancia do Rio de Janeiro”, e problemas como o do aleitamento infantil e o das altas taxas de mortalidade37. No final do seu discurso, no entanto, volta a enfatizar uma ação conjunta para a resolução do problema da infância, uma autêntica “Cruzada pela Infância”:

E nenhuma cruzada teremos maior empenho em levar por deante que a da nossa defeza nacional pelo amparo da infancia. Quanto ha nesse sentido a respigar, quando volvemos os olhos para nossa nupcialidade, com todo o cortejo das questões que á ella se prendem como as heranças morbidas, o flagello da tuberculose, da avaria e do ethylismo, etc.; para a cifra da natalidade brasileira, tão discordante de um extremo a outro do paiz e tão fraca em relação á nossa capital, lembrando-nos os effeitos daquelles flagellos da humanidade, a falta de leis de protecçào á mulher e á creança, a ilegitimidade das uniões, a miseria, o abôrto criminoso e tantos outros factores; para esse terrível phantasma das sociedades modernas que é a mortalidade infantil e a mortinatalidade, qualquer das duas, um verdadeiro entrave ao progresso do paiz; para a morbidade, que tão calcada é nos primeiros tempos da vida, sobretudo na rubrica das doenças do apparelho digestivo, cujo coefficiente é espantoso; para a delinquencia infantil; o abandono moral; os castigos, crueldades e crimes commettidos contra a indefesa infancia e tantos outros assumptos, dos quaes bem poucos cogitam em nosso meio, sempre cruelmente torturados pela preocupação de uma política que não deixa

37

Moncorvo Filho, ao discutir o problema da mortalidade infantil, repete o argumento, já visto em outros textos, sobre o valor econômico da infância para o Estado, e a conseqüente perda de riquezas da nação com a falta de cuidados para com a infância.

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uma restia de luz que nos illumine, que nos priva da salutar bafagem de que carecemos para fugir á essa deploravel inercia e inconsciente estagnação em que nos achamos, assistindo todos os paizes adiantados caminharem a passos agigantados. Somos um paiz por si proprio grandioso e não temos até hoje o menor esboço de uma organização de Assistencia Publica. A sórte da infancia, essa então está, póde-se dizer, ao Deus dará! (Moncorvo, op.cit., pp.28-29)

O problema da infância envolve, assim, a questão da natalidade, da mortalidade infantil, da falta de leis referentes às mulheres e às crianças, dos casamentos ilegítimos, do aborto, do abandono moral, da delinqüência infantil, dos castigos físicos, etc. E, contra todos esse problemas é que deve ser voltar uma cruzada pela infância, que, segundo o autor, deve ser levada adiante por um grupo de filantropos:

(...) não é obra para um homem e sim para um nucleo de philantropos e de scientistas como os de uma egregia agremiação deste quilate, amparada por governos intelligentes e activos. (Moncorvo Filho, op.cit., p.32)

A agremiação a que Moncorvo se referia era a Academia Nacional de Medicina, local onde proferiu o discurso em questão, mas o apelo à cruzada pela infância não se restringia a seus membros, envolvendo também cientistas e filantropos em geral.

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Assim, embora não possamos fazer aqui um estudo mais aprofundado sobre o discurso médico acerca da infância38, fica claro que os discursos que se consolidavam em torno das questões da proteção e da assistência à infância e à adolescência provinham de campos diversos. Há um entrelaçamento freqüente entre noções médicas, morais e jurídicas. É nesse sentido que Moncorvo Filho afirma que uma boa moral é a melhor higiene do corpo; Ataulpho de Paiva fala em terapêutica penal, em profilaxia e higiene moral, e coloca a assistência pública como higiene moral e social, simultaneamente; Mineiro descreve o juiz de menores como sendo ao mesmo tempo um tutor e um médico, que não vai ao tribunal para punir um culpado, mas para fazer um diagnóstico e dirigir um tratamento. E, em Noé Azevedo, medicina e justiça se interpenetram totalmente, tanto que o criminoso é entendido como um doente que precisa ser tratado, e o juiz, como o médico que deve tratá-lo. E, nas citações abaixo, ao definir a eugenia, Azevedo utiliza metáforas biológicas e, ao mesmo tempo, morais:

Os alicerces da sociedade futura, sadia e honesta, serão fundadas por uma sciencia mais nova ainda que a criminologia, porém de tão amplos e alevantados ideaes que, alguem ja o disse, mais parece religião do que sciencia: é a eugenia. O bom nascimento, a geração em estado hygido (...) é a condição primordial para a realização da justiça que no meu entender não é mais que o equilibrio ou a harmonia das forças sociaes. (...)

38

Costa (Cf. op.cit.), ao estudar a normatização da família burguesa brasileira do século XIX, mostra como esse processo levou à criação de novos papéis familiares, novas categorias disciplinares, entre elas a “criança normatizada”: com a apropriação médica da infância, a criança passa a ser vista como a matriz do futuro adulto normatizado. Seria interessante, seguindo esse raciocínio, estudar paralelamente as práticas médicas que objetivaram a criança como matriz do futuro adulto trabalhador, e as práticas jurídicas que objetivaram o menor como matriz do futuro delinqüente. Ambas as figuras podem ser vistas, assim, como integrando uma mesma estratégia disciplinar.

121

De modo que num meio tal o problema da recondução do menor faltoso ao caminho da honestidade torna-se difficillimo. Não se consegue separal-o do grande desideratum da regeneração da sociedade inteira. Emquanto esta não se mostrar limpa dos vícios ou defeitos, ha de ser um ambiente impuro, ha de necessariamente concorrer para a perniciosa educação das novas gerações. Mas como obter a regeneração social sinão formando desde o berço uma gente, que cresça e se eduque alimentada pela seiva pura de novos ideaes? (Azevedo, op.cit., pp.85, 95)

Por isso, com a consolidação do novo projeto visando a menoridade, a ação do juiz de menores, agente privilegiado da causa da infância e da adolescência, será definida como uma ação essencialmente multidisciplinar, devendo ser auxiliado, segundo a própria lei, por outros especialistas:

O papel do juiz de menores é muito mais difficil e delicado que o dos juizes communs. Para julgar convenientemente um menor, opinam os tratadistas, é preciso possuir um conjuncto de conhecimentos juridicos, psychologicos, psychiatricos, sociologicos, pedagogicos, raramente encontrados e reunidos em um só e mesmo homem. Felizmente, com grande sabedoria, a nossa lei, para resolver essa contingencia, instituiu, como auxiliares do juiz, um medico psychiatra e um pedagogo, de cujos serviços se infere a indiscutivel valia. (Mineiro, op.cit., p.376)

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O Código de 1927 realmente definiu, na sua parte especial, um espaço de atuação do médico psiquiatra no juízo de menores, ao qual caberia realizar uma inspeção médica capaz de contribuir para o conhecimento do menor e para seu encaminhamento. Fica, assim, clara a inter-relação entre práticas médicas e jurídicas na definição do menor como objeto institucional39. Vejamos, no próximo item, de que modo o Código de Menores pode ser visto como a cristalização de todas as transformações discursivas estudadas até aqui.

39

Mineiro cita uma interessante discussão sobre emenda apresentada ao Senado Federal por Mello Mattos e pelo médico psiquiatra Martim Francisco Bueno de Andrade Filho, que criava um “Instituto MedicoPsychologo Infantil”. Na justificativa dessa emenda, os autores afirmavam que o exame médico, físico e mental dos menores delinqüentes e abandonados era o ponto de partida das medidas a serem aplicadas pelo juiz de menores. Ao médico caberia não apenas reconhecer as anomalias, mas também desvendar suas causas e os remédios a serem utilizados, remédios apenas físicos ou também disciplinares e pedagógicos. A ele caberia distinguir os normais ou anormais, e entre os anormais, diria quais seriam recuperáveis e quais seriam irrecuperáveis. Ajudariam também na orientação do ensino profissional através do conhecimento prévio das aptidões de cada menor, o que permitiria o encaminhamento para a profissão adequada. (Cf. Mineiro, op.cit., pp.416-423) Fica clara, assim, a participação essencial do médico como peça chave do novo projeto institucional: ele ajudaria no diagnóstico das causas do abandono ou da delinqüência, indicaria aqueles que seriam recuperáveis e os encaminharia para o trabalho apropriado. Da definição da carência à reeducação pelo trabalho, o menor estaria acompanhado na sua trajetória institucional o tempo todo pelo médico. Sem dúvida, higiene do corpo e da alma. Segundo Fausto (1984, p.98), o Código Penal de 1890 já havia aberto caminho para a introdução do saber médico na prática penal, ao isentar de responsabilidade os que se achassem em estado de completa privação dos sentidos e da inteligência na ocasião do crime. Fausto afirma, contudo, que esse dispostivo era promíscuo, ao não distinguir as fronteiras entre a perturbação transitória da razão e perturbações permanentes ligadas a doenças mentais. O Código de Menores é, portanto, apenas um dos muitos momentos de convergência entre as práticas médicas e as jurídicas.

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IV.6. – O Código de Menores e a estruturação da prática institucional referente ao menor

Art.1º O menor, de um ou outro sexo, abandonado ou delinquente, que tiver menos de 18 annos de idade, será submettido pela autoridade competente ás medidas de asssistencia e protecção contidas neste Codigo. Codigo dos Menores de 1927

Pudemos acompanhar, analisando os textos que discutiam a necessidade de uma nova justiça especial para menores no Brasil, a maneira como um novo projeto institucional, visando a infância e adolescência, foi se constituindo. Para que esse projeto se concretizasse, porém, era necessário um mecanismo capaz de estruturar, de modo global, as novas práticas referentes à menoridade. Esse mecanismo é o Código de Menores de 1927. Resultado de toda a discussão, levada a cabo durante o início do século, sobre os problemas ligados à infância e adolescência abandonadas ou delinqüentes, essa lei sintetizará o novo projeto institucional que então emergia. Para a análise desse Código, no entanto, faz-se necessária a explicitação de alguns conceitos interpretativos que tomamos emprestado dos trabalhos de Albuquerque (1978). Esse autor, ao estudar o processo de institucionalização em suas determinações específicas, elaborou uma série de conceitos apropriados à análise institucional. Assim,

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Albuquerque define em seu trabalho alguns elementos estruturantes das práticas institucionais. Resumidamente, e tentando aplicar esses conceitos ao nosso objeto de estudo, podemos distinguir os seguintes elementos de análise: a) O mandato institucional Segundo Albuquerque, uma instituição deve a legitimidade de sua atuação a um ator individual ou coletivo em nome de quem ela age. Em nosso caso, é o Estado que passa a ser o mandatário das instituições que visam os menores, pois, como vimos anteriormente, a tarefa da assistência, embora ainda possa contar com a assistência privada, torna-se também atributo do Estado, que passa a dirigir e centralizar toda a institucionalização da infância e da adolescência. b) Definição da clientela A posição da clientela no processo institucional é ocupada por aqueles que são institucionalizados diretamente, no presente caso, os menores. Mas, com o Código de 1927, sob essa categoria “menor”, passa a ser visado um número muito maior de indivíduos, ou seja, a clientela se expande significativamente em relação às antigas formas de institucionalização da infância abandonada e delinqüente. Segundo Mello Mattos, a assistência pública não se dirigirá mais apenas aos expostos, mas também a todos os menores material ou moralmente abandonados. Com isso, qualquer indivíduo que ainda não tenha atingido a maioridade passa a ser alvo dessa nova estratégia institucional, ao menos potencialmente. c) O objeto institucional Toda clientela é definida como carente de algo que a instituição pode prover. O objeto institucional é aquilo de que a clientela carece e de cuja propriedade a instituição reivindica o monopólio e a legitimidade:

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Definir-se como instituição é, portanto, apropriar-se de um objeto. Nesses termos, o objeto institucional não pode ser um objeto material, como os recursos de uma organização, mas imaterial, impalpável, e o processo de apropriação desse objeto é permanente, como processo de desapropriação dos indivíduos ou de outras instituições, no que concerne ao objeto em questão. (Albuquerque, op.cit., p.70)

Com o Código de 1927 o objeto institucional passa a ser amplo e totalmente abstrato, como requer o processo institucional: passa a ser a proteção da vida, da saúde e da moralidade dos menores. Esse objeto institucional, ou melhor, sua carência por parte dos menores abandonados ou delinqüentes e sua apropriação pelas instituições, é que definirá a relação básica que se constitui no processo que ora estudamos, a relação de tutela do Estado em relação a esse segmento da população. d) Âmbito institucional Trata-se aqui do conjunto de relações sociais sobre as quais recai a ação institucional e que sustentam o objeto institucional. Esse âmbito é definido também em relação às outras instituições que disputam o mesmo campo de atuação. Com a nova definição de assistência pública colocada pelo Código de 1927, o Estado, graças à nova definição do objeto institucional, ao mesmo tempo em que aumenta o seu raio de ação em relação à institucionalização da menoridade, restringe o campo das instituições privadas – subordinadas ao Estado – e da própria família. Se o Código de 1927 cristaliza um novo mecanismo de institucionalização da infância, como pretendemos demonstrar aqui, devemos ser capazes de distinguir os elementos estruturantes das práticas institucionais, anteriormente descritos, em seu

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texto. Acompanhemos, assim, ao longo do Código, como se estruturam esses elementos40. Com o Código de Menores, como já dissemos, o Estado passa a ser o mandante institucional das instituições de assistência e proteção aos menores:

“DECRETO N.17.943 A – de 12 de outubro de 1927. Consolida as leis de Assistência e Protecção aos menores. O Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, usando a autorização constante no artigo 1º do decreto n.5083, de 1 de dezembro de 1926, resolve consolidar as leis de assistencia e protecção aos menores, as quaes ficam constituindo o Codigo de Menores, no têor seguinte: (...)”

Com essa legislação, também o Estado unificava as leis e regulamentos referentes à primeira infância, aos expostos, aos abandonados e delinqüentes, além de disciplinar e de centralizar as atribuições e funções dos diversos órgãos administrativos e judiciários que davam conta dessa questão até aquele momento. Embora em relação à menoridade ainda permanecessem matérias pertinentes ao Código Civil e ao Código Penal, já temos um dispositivo especial para os menores41. Seguindo o texto do Código, temos:

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Utilizaremos, nas próximas citações de artigos do Código de Menores de 1927, a já citada edição completa do decreto n.17.943-A (Rio de Janeiro, 1928). Utilizaremos também a edição comentada por Mineiro (op.cit.) porque nela cada artigo é acompanhado de um comentário que esclarece seu conteúdo. 41 Mineiro afirmava que enquanto nos outros países os mesmos assuntos eram tratados por leis avulsas, o Brasil parecia ser o primeiro país a fazê-lo em código especial (Cf. Mineiro, op.cit., p.24). Embora não tenhamos confirmação, fica ressaltado o caráter pioneiro que se atribuía na época ao Código. O Código possuía uma parte geral, aplicável a todo o território nacional, e outra parte especial, concernente ao Distrito Federal. Respeitavam-se a competência dos Estados para a legislação processual, a determinação das autoridades a que deveriam ser submetidos os sujeitos, a organização judiciária, etc. (Cf. Mineiro, op.cit., pp.25-28)

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“CAPÍTULO I DO OBJECTO E FIM DA LEI Art. 1º O menor, de um ou outro sexo, abandonado ou deliquente, que tiver menos de 18 annos de idade, será submettido pela autoridade competente ás medidas de assistencia e protecção neste Codigo.”

Acima temos a definição mais geral da clientela visada pelo Código: todo menor, de um ou de outro sexo, abandonado ou delinqüente, que tiver menos de 18 anos. Nos artigos seguintes, essa clientela será subdividida em várias outras categorias, mas a categoria menor já se torna a mais englobalizante, incluindo as antigas denominações como “expostos”, “enjeitados”, etc. Após essa definição mais geral, começa da diferenciação da clientela:

“CAPÍTULO II DAS CREANÇAS DA PRIMEIRA IDADE Art. 2º Toda creança de menos de dous annos de idade entregue a criar, ou em ablactação ou guarda, fóra da casa dos paes ou responsaveis, mediante salario, torna-se por esse facto objecto da vigilancia da autoridade publica, com o fim de lhe proteger a vida e a saude.”

O Estado assume a vigilância das crianças na primeira idade, no caso de estarem sob cuidados longe da família. Se a família é considerada a primeira instituição responsável pela infância, o Estado intervém na circulação de crianças fora da família.

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Os parágrafos 3º, 4º, 5º e 6º estabelecem mecanismos de registro e fiscalização dessas crianças entregues a ablactação ou guarda de terceiros. Segundo o comentário de Mineiro, o Estado intervém aqui nos cuidados da primeira infância, inspirado na lei francesa, isto porque “O Estado tem o imperioso e sagrado dever de intervenção, para salvar tão numerosas vidas, conservando essas crianças á actividade nacional do futuro.” (Mineiro, 1929, p.30) Os parágrafos seguintes, de 7º a 10º tratam da idoneidade necessária a aqueles que recebem essas crianças, sendo que os artigos 11º, 12º e 13º tratam da organização da vigilância instituída pelas leis nos Estados e no Distrito Federal. O capítulo seguinte trata dos infantes expostos:

“CAPÍTULO III DOS INFANTES EXPOSTOS Art. 14. São considerados expostos os infantes até sete annos de idade, encontrados em estado de abandono, onde quer que seja. Art. 15. A admissão dos expostos á assistencia se fará por consignação directa, excluindo o systema das rodas.”

Define-se, pois, mais uma parte da clientela, os expostos, crianças até sete anos encontradas em estado de abandono, sendo que se estabelece, para essas crianças, um novo tipo de assistência que acaba com o mecanismo da Roda, considerado ultrapassado. Interessante é que já começa a ser delineada a carência atribuída aos institucionalizados, que, nos dois casos vistos, define-se pela ausência (momentânea, no

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caso das crianças de primeira idade entregues temporariamente a terceiros, e permanente, no caso dos expostos) dos cuidados da família. Nos artigos seguintes, no capítulo III, são estabelecidos também mecanismos de registro e de controle em relação aos expostos. Aqui, uma nova forma de institucionalização é proposta claramente em oposição às antigas formas representadas pela Roda dos Expostos. Posteriormente são definidos os menores abandonados:

“CAPÍTULO IV DOS MENORES ABANDONADOS

Art. 26. Consideram-se abandonados os menores de 18 annos: I – que não tenham habitação certa, nem meios de subsistencia, por serem seus paes fallecidos, desapparecidos ou desconhecidos ou por não terem tutor ou pessoa sob cuja guarda vivam; II – que se encontrem eventualmente sem habitação certa, nem meios de subsistência, devido a indigencia, enfermidade, ausencia ou prisão dos paes, tutor ou pessoa encarregada de sua guarda; III – que tenham pae, mãe ou tutor ou encarregado de sua guarda reconhecidamente impossibilitado ou incapaz de cumprir os seus deveres para com o filho ou pupillo ou protegido; IV – que vivam em companhia de pae, mãe, tutor ou pessoa que se entregue á pratica de actos contrarios á moral e aos bons costumes; V – que se encontrem em estado habitual de vadiagem, mendicidade ou libertinagem;

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VI – que frequentem logares de jogo ou moralidade duvidosa, ou andem na companhia de gente viciosa ou de má vida; VII – que, devido á crueldade, abuso de autoridade, negligencia ou exploração dos paes, tutor ou encarregado de sua guarda sejam: a) victimas de máos tractos physicos habituaes ou castigos immoderados; b) privados

habitualmente

dos

alimentos

ou

dos

cuidados

indispensaveis á saude; c) empregados em occupações prohibidas ou manifestamente contrarias á moral e aos bons costumes, ou que lhes ponham en risco a vida ou a saude; d) excitados habitualmente para a gatunice, mendicidade ou libertinagem; VIII – que tenham pae, mãe ou tutor, ou pessoa encarregada de sua guarda, condemnado por sentença irrecorrivel: a) a mais de dous annos de prisão, por qualquer crime; b) a qualquer pena como co-autor, cumplice, encobridor ou receptador de crime commetido por filho, pupillo ou menor sob sua guarda, ou por crime contra estes.”

A outra parte da clientela, os menores abandonados, é definida pela ausência de habitação certa, pela falta de meios de subsistência, por um estado habitual de vadiagem ou mendicidade, por ser vítima de maus tratos, privada de alimentação ou de cuidados indispensáveis à saúde, etc. No comentário, Mineiro define em termos gerais a clientela visada pelo Estado com essa legislação:

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É fóra de duvida que merecem a protecção e assistencia do Estado: os orphãos, os expostos, os abandonados materialmente, os abandonados moralmente ou que se acharem em perigo moral, os pequenos operários, os que são victimas de attentados ou explorações á sua fraqueza, saude ou moralidade, os anormaes. (Mineiro, op.cit., p.38)

A carência, o abandono moral ou material, vem do comportamento inadequado dos pais ou responsáveis, classificados em incapazes, negligentes ou indignos. (Cf. Mineiro, op.cit., p.40) Mais algumas figuras do abandono são posteriormente definidas como “menores vadios”, “mendigos” e “libertinos”:

“Art. 28. São vadios os menores que: a) vivem em casa dos paes ou tutor ou guarda, porém se mostram refractarios a receber instrucção ou entregar-se a trabalho sério e util, vagando habitualmente pelas ruas e logradouros publicos; b) tendo deixado sem causa legitima o domicilio do pae, mãe ou tutor ou guarda, ou os logradouros onde se achavam collocados por aquelle a cuja autoridade estavam submettidos ou confiados, ou não tendo domicilio nem alguem por si, são encontrados habitualmente a vagar pelas ruas ou logradouros publicos, sem que tenham meio de vida regular, ou tirando seus recursos de occupação immoral ou prohibida. Art. 29. São mendigos os menores que habitualmente pedem esmola para si ou para outrem, ainda que este seja seu pae ou sua mãe, ou pedem donativo sob pretexto de venda ou offerecimento de objectos.

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Art.30. São libertinos os menores que habitualmente: a) na via publica perseguem ou convidam companheiros ou transeuntes para a pratica de actos obscenos; b) se entregam á prostituição em seu proprio domicilio ou vivem em casa de prostituta, ou frequentam casa de tolerancia, para praticar actos obscenos; c) forem encontrados em qualquer casa, ou logar não destinado á prostituição, praticando actos obscenos com outrem; d) vivem da prostituição de outrem.”

Vadios, mendigos e libertinos são resultado também do estado de abandono moral ou material. Mas aqui as categorias começam a se articular em torno de um outro eixo. Esses menores definem-se pela ausência de trabalho ou educação, destino de todos os menores que não estejam em abandono. E, para o menor que não esteja estudando ou trabalhando, o caminho que se apresenta é o da delinqüência: mendicidade, vadiagem e libertinagem, embora em relação aos menores não sejam consideradas contravenções, mas sim resultado do estado de abandono a que se deve responsabilizar os pais ou tutores, são fontes da delinqüência juvenil, segundo esse discurso. Por isso, o complemento necessário de todas as categorias vistas até agora, e que articula todo o mecanismo de produção da clientela menor, sendo o resultado possível de todas as situações de abandono, é a categoria do menor delinqüente.

“Art.68. O menor de 14 annos, indigitado autor ou cumplice de facto qualificado crime ou contravenção, não será submettido a processo penal de especie alguma; a autoridade competente tomará sómente as

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informações precisas, registrando-as, sobre o facto punivel e seus agentes, o estado physico, mental e moral do menor, e a situação social, moral e economica dos paes ou tutor ou pessoa em cuja a guarda viva.”

No comentário sobre esse artigo:

(...) além de não considerar criminoso o menor de 14 annos, nem crime ou contravenção a infracção da lei penal por elle commettida, o legislador manda estudar as influencias physicas, moraes, mesologicas e pathologicas, que possam ter levado o infante á pratica do acto qualificado crime ou contravenção. Essas medidas acauteladoras do menor e da sociedade visam ao estudo e ao combate dos principaes factores da criminalidade infantil. (Mineiro, op.cit., p.84)

Assim, está estabelecida uma inter-relação entre abandono e delinqüência: a infração leva a se examinar as possíveis carências do menor (materiais e morais), mas inversamente, as carências apontam todo o tempo para a possibilidade da delinqüência. Os artigos citados já nos dão uma idéia clara do tipo de clientela visada pelos dispositivos do Código. Esquematicamente essa clientela se definirá nos seguintes termos:

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CLIENTELA

CARÊNCIA

Crianças de primeira idade

Estão fora da casa do pai ou responsável.

Infantes expostos

Encontrados em estado de abandono. Ausência de habitação certa, de meios de subsistência ou

em

estado

libertinagem;

de

vadiagem,

maltratados

devido

mendicidade ao

abuso

ou de

Menores abandonados autoridade ou negligência dos pais; que tenham os pais condenados a sentença irrecorrível ou incapacitados, etc. Refratários ao trabalho ou a educação, exercendo Vadios, mendigos e libertinos

ocupações imorais ou proibidas, sem domicílio fixo, vagam pelas ruas, etc.

Menores em geral

Vítimas do abandono e da delinqüência.

A clientela se define pelo abandono moral ou material causado pela ausência ou deficiência dos cuidados da família, que é a instituição que primeiro deve garantir a vida e a saúde dos menores, ou por sua impossibilidade de orientar o menor para o caminho da educação e do trabalho. A delinqüência aparece como resultado do estado de abandono, mas também é a categoria que dá unidade a todas as figuras do abandono, expostos, abandonados, vadios, mendigos e libertinos, pois todas trazem em comum a possibilidade da delinqüência, a possibilidade da criança não se desenvolver de modo saudável e honesto.

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Assim, o Estado assume, através da assistência pública e do juízo de menores, o cuidado das crianças e dos adolescentes, ou seja, apropria-se da clientela (os menores) quando a instituição considerada básica para a socialização da criança, a família, ou outro responsável, mesmo a escola e o trabalho, não dão conta do objeto institucional em jogo: a proteção da vida, da moralidade e da saúde dos menores. Está sendo definido, portanto, um novo tipo de institucionalização da infância e da adolescência por parte do Estado brasileiro. Uma institucionalização muito mais ampla do que as antigas formas (como a dos expostos), e que passa a visar todos os menores em estado ou em perigo de abandono, o que aumenta efetivamente a clientela visada para todo o contingente das crianças das classes pobres e, virtualmente, para todas as crianças da sociedade. Uma institucionalização que tem no seu horizonte não apenas assistir gratuitamente os desafortunados, mas também combater a delinqüência, fruto do abandono, e criar, assim, cidadãos saudáveis, tanto moral como fisicamente. Uma institucionalização que define o menor tal como o conhecemos ainda nos dias de hoje: aquele que, em decorrência das condições de abandono que o distanciam da educação e do trabalho, é sempre considerado como um delinqüente em potencial. Essas transformações implicam também uma redefinição do âmbito institucional, pois a legislação passa a cobrir um leque muito mais amplo de relações sociais, avançando, inclusive, no campo de outras instituições. Abre-se, assim, combate em duas frentes: contra a família e contra as antigas instituições de caridade. Mas não há apenas confronto com essas instituições, já que o Estado pretende uma acomodação com as instituições privadas, desde que essas se aliem às novas diretrizes. Apenas em relação às Rodas existe uma radicalização, já que são vistas como um tipo de institucionalização ineficiente.

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Em relação à família, o Código de Menores implica uma restrição do pátrio poder. Simões (1983), ao discutir essa questão, coloca que há uma destituição dos direitos absolutos dos pais através do Código de Menores, e que essa destituição é parte de um longo processo que está nas raízes da sociedade burguesa. Ainda segundo esse autor, se antes a relação de poder entre pai e filhos era privada, na sociedade burguesa ela passa a ser de responsabilidade pública, e com isto os pais são destituídos do poder total sobre os filhos, que, desde o nascimento, passam a ter uma existência pública. Com a legislação brasileira, podemos perceber transformações nesse sentido. As relações de sujeição entre pai e filhos, relações, no geral, privadas anteriormente, passam, com o Código, a envolver essencialmente o Estado. Este, além de ser fonte da tutela sobre os menores – pois é quem deve garantir, segundo os discursos, em última instância, o novo objeto institucional em jogo, a garantia da saúde, moralidade e segurança dos menores – tem também poderes para fiscalizar aqueles que, sob seu mandato, exercem a ação da tutela, sejam pais, tutores ou instituições assistenciais. É assim que há um capítulo do Código dedicado a essa questão:

“CAPÍTULO V DA INIBIÇÃO DO PATRIO PODER E DA REMOÇÃO DA TUTELA Art.31. Nos casos em que a provada negligencia, a incapacidade, o abuso de poder, os máos exemplos, a crueldade, a exploração, a perversidade, ou o crime do pae, mãe ou tutor podem comprometter a saude, segurança ou moralidade do filho ou pupillo, a autoridade competente decretará a suspensão ou perda do patrio poder ou a destituição da tutela, como no caso couber.”

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O comentário desse artigo esclarece bem os motivos que justificam a ação de destituição da tutela dos pais; a questão da infância é uma questão pública, mas nem sempre os pais, por serem agentes privados, cumprem com seus deveres no sentido da conservação da infância:

Nem sempre os paes usam dos seus direitos no interesse ou para o bem dos filhos: ha paes que abusam de suas nobres prerrogativas em detrimento destes. É preciso defender os interesses do menor contra os abusos e as faltas do patrio poder. (Mineiro, op.cit., p.50)

Os interesses do menor são também os interesses da sociedade. Por isso ela pode se voltar contra o pátrio poder. O menor vai se definindo mais e mais nos discursos como uma superfície sem dimensão, na qual a sociedade vê refletida seus interesses, pois até mesmo a delinqüência não pode ter origem na vontade dos menores, já que é vista como resultado da ação negligente dos pais que não zelam pela moralidade dos filhos. Comentando ainda o artigo 31 já citado, Mineiro coloca:

Tem sido reconhecido que os delictos dos infantes e adolescentes geralmente são devidos á negligencia dos paes, aos maus exemplos dados por elles, á falta de vigilancia de sua parte, sendo menos frequente os casos em que a creança, embora cercada dos cuidados paternos ou maternos, tenha uma inclinação innata para o vicio, que a leve a commeter infracções. É dever do Estado soccorrer o menor em tempo util por medidas tutelares, não só porque a educação individual e a protecção dos menores interessa no mais alto grau a ordem

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publica, da qual é guarda, como porque intervindo para emendar o menor pervertido antes que a sua propria repressão se torne ineficaz, ou tomando medidas de prevenção para que elle não se torne criminoso, ao mesmo tempo que salva o futuro delle, preserva e garante o seu proprio. Hoje ninguem mais contesta ao Estado o direito de se substituir inteira ou parcialmente á familia em certos casos; ao contrario, é universalmente reconhecido que isso é um dever humanitario e social, ao qual o Estado não pode subtrair-se. (Mineiro, op.cit., pp.51-52)

O Código de 1927 também regulamenta as novas práticas institucionais dirigidas à menoridade, não mais práticas repressivas, mas sim recuperadoras, preventivas, disciplinares. Em relação aos abandonados, são colocadas medidas, principalmente de distribuição dos menores, que lhes garantam assistência, educação, preservação e vigilância por parte do Estado:

“CAPÍTULO VI DAS MEDIDAS APLICAVEIS AOS MENORES ABANDONADOS Art.55. A autoridade, a que, incumbir a assistencia e protecção aos menores, ordenará a apprehensão daquelles de que houver noticia, ou lhe forem presentes, como abandonados, os depositará em logar conveniente, e providenciará sobre sua guarda, educação e vigilancia, podendo, conforme a idade, instrucção, profissão, saude, abandono ou perversão do menor, e a situação social, moral e economica dos paes

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ou tutor, ou pessoa encarregada de sua guarda, adoptar uma das seguintes decisões: a) entregal-o aos paes ou tutor ou pessoa encarregada de sua guarda, sem condição alguma ou sob condições que julgar uteis á saude, segurança e moralidade do menor; b) entregal-o a pessoa idonea, ou internal-o em hospital, asylo, instituto de educação, officina, escola de preservação ou de reforma; c) ordenar as medidas convenientes aos que necessitem de tratamento especial, por soffrerem de qualquer doença physica ou mental; d) decretar a suspensão ou a perda do patrio poder ou a destituição da tutela; e) regular de maneira differente das estabelecidas nos dispositivos deste artigo a situação do menor, se houver para isso motivo grave e fôr do interesse do menor.

O Estado, assim, apreende as crianças em estado de abandono, recolocandoas em lugares onde estejam garantidas suas condições de educação e de assistência, ficando o menor, de qualquer modo, sob sua vigilância. No comentário, menciona-se que essa vigilância deve ser antecedida de medidas que visam conhecer o menor:

A primeira cousa, que tem a fazer a autoridade encarregada da assistencia e protecção aos menores, depois de deposital-o em logar seguro, é proceder a exame medico, para conhecer da saude physica e

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mental do menor; depois proceder a investigação sobre os seus antecedentes e sobre a situação social, moral e economica e os antecedentes da familia. Só assim poderá conhecer as causas do abandono, as condições pessoaes do menor e a especie de soccorro de que elle precisa. (Mineiro, op.cit., p.68)

Juntamente com a apreensão do menor, portanto, faz-se necessária uma investigação sobre as causas do abandono. Mas, é em relação ao menor delinqüente que se ressalta mais a novidade da nova ação da justiça, que deve abandonar qualquer prática punitiva, segundo os discursos. Mineiro, comentando o artigo 68, já citado, sobre menores delinqüentes, afirma:

A suppressão absoluta da prisão, mesmo da preventiva, e a substituição da repressão penal por medidas de educação e reforma são outros preceitos basicos do moderno systema de tratamento dos menores pervertidos e delinquentes. A prisão é, evidentemente, funesta e cheia de perigos para o menor. (...) Igualmente, se supprime a pena, substituida agora pela educação: a idéa de repressão desapparece, para dar logar á idéa de educação ou reforma. Em vez de prisões ha escolas, onde o menor se regenere pela instrucção e pelo trabalho... Tal como estatue a nova lei, o menor passa muito mais tempo, e mais proveitosamente na escola do que na prisão pelo systema do Codigo Penal, cumprindo ainda notar que anteriormente o jury absolvia systematicamente os pequenos criminosos, impunidade altamente prejudicial aos mesmos, pois os

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predispunha á reincidencia ao passo que, pelo novo regimen, elles se regenerarão e se tornarão uteis a si e á sociedade. (Mineiro, op.cit., pp.105-106)

O novo sistema recuperador, portanto, pretende ser mais eficiente do que as antigas formas penais, pois levaria à reabilitação dos menores para a vida social, evitando também a impunidade42. Esta ênfase na mudança das práticas da justiça em relação aos menores cristaliza-se no art.86 do Código:

“Art.86. Nenhum menor de 18 annos, preso por qualquer motivo ou apprehendido, será recolhido a prisão commum.”

E mesmo na inexistência de estabelecimentos reformadores especiais para menores, esses devem ser separados dos prisioneiros comuns:

“Art.87. Em falta de estabelecimento apropriados á execução do regimen criado por este Codigo, os menores de 14 a 18 annos sentenciados a internação em escola de reforma serão recolhidos a prisões communs, porém, separados dos condemnados maiores, e sujeitos a regimen adequado: – disciplinar e educativo, em vez de penitenciario.”

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Uma das críticas de Evaristo de Moraes ao “falso critério do discernimento” é que este, justamente, não permitia uma correta classificação dos menores, submetendo todos, assim, a um mesmo tipo de tratamento (Cf. Moraes, op.cit., p.68). A preocupação com a classificação, pelo contrário, estará o tempo todo presente nas disposições do Código de 1927.

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Nesta ênfase na separação entre menores e prisioneiros maiores, podemos entrever a vontade dos reformadores em distinguir seu novo sistema das antigas práticas consideradas punitivas em relação aos menores. Mas essa diferenciação das práticas em relação aos menores não se restringe à aplicação das penalidades, na medida em que atingem também o próprio processo, como podemos perceber na questão da não publicidade das audiências:

“Art.88. O processo a que forem submettidos os menores de 18 annos será sempre secreto. Só poderão assistir ás audiências as pessoas necessárias ao processo e as autorizadas pelo juiz.”

O processo judicial em relação aos menores acaba sendo apresentado como algo que deve ser totalmente diferente das práticas da justiça comum. Daí o comentário que acompanha esse artigo:

A não publicidade da audiência é motivada pela propria natureza da jurisdição, de alguma sorte familiar; o que não se concilia com a presença do publico. O juiz póde dessa maneira influenciar facilmente o espirito do menor por seus conselhos, suas censuras ou ameaças, seus encorajamentos ou carinhos. Tem sido notado que, quando o publico não está presente, as palavras do juiz têm um effeito feliz, tanto sobre os menores quanto sobre os paes ou responsaveis por elles: os menores confessam sinceramente os seus segredos, abrem o coração, e ficam commovidos com os conselhos ou reprehensões, que recebem, ao passo que nas audiencias publicas elles se mostram

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retrahidos e reservados, pouco falam ou ficam calados e recebem mal as palavras do juiz. (Mineiro, op.cit., p.151)

Uma ação paternal, educativa, dentro do âmbito da família, é essa a imagem que os criadores do Código querem transmitir, como se a justiça para menores pudesse se distanciar impunemente dos procedimentos jurídicos clássicos que viam no caráter público e objetivo das práticas jurídicas algo de essencial para sua realização. Outro exemplo da oposição em relação aos procedimentos tradicionais, é a defesa das penas indeterminadas para menores43. Os instrumentos para a concretização dessas novas práticas, visando os menores delinquentes e abandonados, serão o Juizado Privativo de Menores e os Institutos Disciplinares, definidos na parte especial do Código, referente ao Distrito Federal. Em relação ao Juízo de Menores, temos:

“Art.146. É creado no Districto Federal um Juizo de Menores, para assistencia, protecção, defesa, processo e julgamento dos menores abandonados e delinquentes, que tenham menos de 18 annos.”

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Uma das propostas mais arbitrárias de tratamento dos menores era aquela que defendia as penas indeterminadas. Face à indeterminação das penas, o discernimento não parece tão cruel, mas os reformadores que defendiam a nova legislação colocavam a indeterminação das penas como algo decorrente do novo tratamento correcional e da necessidade de maior individualização do tratamento. Evaristo de Moraes, por exemplo, afirmava que a indeterminação das penas fazia parte do tratamento moderno da delinqüência precoce: “De quanto temos resumidamente exposto, já se deve ter deduzido que o systema moderno adopta a indeterminação do tempo durante o qual será applicada a medida educativa. É a dosagem preestabelecida pelos codigos incompativel com a orientação actual, visto como, tendo-se por escopo educar o abandonado ou delinquente, modificando-lhe as tendencias ou transformando-lhe a indole, deve-se comtar com a maior ou menor resistencia offerecida por elle proprio. E só quando os que estiverem em contacto directo com o educando informarem estar elle preparado para a vida livre, poderá cessar a medida de protecção individual e de defesa social, que tiver sido adoptada.” (Moraes, 1927, p.156) O tratamento preventivo, assim, acaba se constituindo como muito mais cruel do que o tratamento punitivo antigo.

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Um juiz especializado deve atuar como Juiz de Menores, um juiz bastante diferenciado dos juízes tradicionais, já que deve atuar mais como tutor do que como autoridade fria e objetiva44. Segundo o comentário:

Sua obra (do juiz de menores) é toda feita de protecção, de vigilância, de preservação ou de reforma. A autoridade de que é revestido apresenta antes de tudo um caracter tutelar, e sua acção é essencialmente preventiva. Suas decisões são animadas de um espírito novo e visam um fim novo: preservar e salvar a infancia moralmente abandonada e pervertida, e, ao mesmo tempo, impedil-a de se tornar criminosa; e, quando já criminosa, reerguel-a e reformal-a. Sua missão é escolher a medida mais conveniente ao caracter e ao meio do menor, ensinam os especialistas; secundal-o em seus esforços, seguil-o até completa cura; moralizar, emendar, corrigir. Sua norma de procedimento cinge-se em actuar com amor, brandura e serenidade, em vez de rispidez, penitencias e torturas. Elle tem que dar ao tratamento dos jovens delinquentes um caracter nitidamente educador, e não esterilmente penal; salval-os das consequencias funestas de sua primeira falta, evitando que ellas se tornem irreparaveis; impedil-os, por sua educação séria e apropriada,

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Interessante notar que a diferenciação do papel do juizado de menores leva também à diferenciação do perfil pessoal do juiz, passando-se à exaltação de suas qualidades “paternais”. Como exemplo, num artigo da Gazeta de Notícia de 3 de fevereiro de 1924, citado por Mineiro, uma cena muito peculiar é descrita para comprovar os grandes méritos pessoais do juiz Mello Mattos: “Uma pobre mulher esforçava-se, com afflicção, por fazer calar o choro de uma creança de peito; ao entrar Mello Mattos na sala de audiencias, porém, o pequerrucho redobrava seus protestos. Mello Mattos approximou-se sorridente da desesperada creaturinha e a tomou nos braços com terno gesto. A criança contemplou com assombro aquelle desconhecido personagem, que a afagava com tanto amor, e tanta confiança lhe inspiraram seus nobres olhares e meigo sorriso que cessaram os soluços e lhe sorriu entre lagrimas. Se o juiz de menores tiver medo que as creanças lhe sujem o elegante vestuario, é melhor declaral-o dispensado do seu cargo. (apud. Mineiro, op.cit., p.381)

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de tornarem-se uma carga para a sociedade, uma ameaça constante para a segurança publica: em uma palavra transformal-os em honestos e uteis cidadãos. (Mineiro, op.cit., p.377)

Para isso, são definidas as competências do juiz de menores:

“Art.147. Ao juiz de menores compete: I – processar e julgar o abandono de menores de 18 annos, nos termos deste Codigo e os crimes ou contravenções por elles perpetrados; II – inquirir e examinar o estado physico, mental e moral dos menores, que comparecerem a juizo e, ao mesmo tempo, a situação social, moral e economica dos paes, tutores e responsaveis por sua guarda; III – ordenar as medidas concernentes ao tratamento, collocação, guarda, vigilancia e educação dos menores abandonados ou delinquentes; IV – decretar a suspensão ou a perda do patrio poder ou a destituição da tutela, e nomear tutores; V – supprir o consentimento dos paes ou tutores para o casamento de menores subordinados á sua jurisdicção; VI – conceder a emancipação nos termos do artigo 9º , paragrapho único, n.1, do Codigo Civil, aos menores sob sua jurisdicção; VII – expedir mandado de busca e apprehensão de menores, salvo sendo incidente de acção de nullidade ou annullação de casamento ou de desquite ou tratando-se de casos da competencia dos juizes de orphãos;

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VIII – processar e julgar as infracções das leis e dos regulamentos de assistencia e protecção aos menores de 18 annos; IX – processar e julgar as acções de soldada dos menores sob sua jurisdicção; X – conceder fianças nos processos de sua competência; XI – fiscalizar o trabalho de menores; XII – fiscalizar os estabelecimentos de preservação e de reforma, e quaesquer outros em que se achem menores sob sua jurisdicção, tomando as providencias que lhes parecerem necessarias; XIII – praticar todos os actos de jurisdicção voluntaria tendentes a protecção e assistencia aos menores de 18 annos, embora não sejam abandonados, ressalvada a competencia dos juizes de orphãos; XIV – exercer as demais attribuições pertencentes aos juizos de direito e comprehensivas na sua jurisdição privativa; XV – cumprir e fazer cumprir as disposições deste Codigo, applicando nos casos omissos as disposições de outras leis, que forem adaptaveis ás causas civeis e criminaes da sua competencia; XVI – organizar uma estatistica annual e um relatorio documentado do movimento do juizo, que remetterá ao Ministro da Justiça e Negócios Interiores.”

O juiz de menores é, assim, o agente privilegiado de todo o novo mecanismo de institucionalização da menoridade proposto pelo Código. É ele que, com sua atuação, tornará possível a manutenção do objeto institucional em jogo: a proteção da vida, da saúde e da moralidade dos menores. Para tanto, estará habilitado a processar, julgar, inquirir, examinar, vigiar e todas as outras ações necessárias para controlar tudo

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aquilo que diz respeito aos menores. Todas estas ações, sob seu comando, têm também como lugar privilegiado de realização, um novo espaço, diferenciado e reformador: os asylos e institutos disciplinares. O isolamento do menor num espaço diferenciado, propício à reforma, é tão essencial que o próprio Mello Mattos o coloca como primeiro momento da lei:

O que a lei ordena, como primeiro acto de assistencia ao abandonado, não é a nomeação de tutor, é o recolhimento daquelle ao Abrigo, ou conveniente estabelecimento para subsequente instauração do respectivo processo. (...) Com a entrada para um estabelecimento adequado, o menor fica desde logo protegido, porque está sob o poder e vigilancia do juiz, que é seu primeiro e maior protector (...) (Mattos, entrevista para o jornal A Noite, apud Mineiro, op.cit., p.398)

Daí a preocupação de legislar também, na parte especial do Código, sobre os abrigos, institutos e escolas para menores:

“CAPÍTULO III DO ABRIGO DE MENORES

Art.189. Subordinado ao Juiz de Menores, haverá um Abrigo, destinado a receber provisoriamente, até que tenham destino definitivo, os menores abandonados e delinquentes.”

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Esse abrigo é definido, no comentário, como um estabelecimento de trânsito, onde os menores são observados e classificados antes de serem distribuídos em institutos de assistência e de proteção (Cf. Mineiro, op.cit., p.442) Mesmo nesse abrigo, o juiz de menores continua sendo o agente privilegiado:

O Juiz de Menores não póde deixar de ter acção directa sobre o Abrigo de Menores e sua directoria. A elle cabe precipuamente a responsabilidade da guarda e destinação dos menores, figurando o director apenas como um depositario ocasional. Dahi a necessidade deste receber ordens directas daquelle, e de ser excluida a intervenção do Ministro da Justiça ou de qualquer outro membro do Governo. Mais logico até seria que o director do Abrigo de Menores fosse de livre nomeação e demissão do Juiz de Menores. (Mineiro, op.cit., p.447)

Em seguida, são definidos os Institutos Disciplinares:

“CAPÍTULO IV DOS INSTITUTOS DISCIPLINARES Art.198. É creada uma escola de preservação para menores do sexo feminino, que ficarem sobre a protecção da autoridade publica. Art.199. Essa escola é destinada a dar educação physica, moral, profissional e litteraria ás menores, que a ella forem recolhidas por ordem do juiz competente. (...)

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Art.203. A Escola Quinze de Novembro é destinada á preservação dos menores abandonados do sexo masculino. Art.204. Haverá uma escola de reforma destinada a receber, para regenerar pelo trabalho, educação e instrucção, os menores do sexo masculino, de mais de 14 annos e menos de 18, que forem julgados pelo juiz de menores e por este mandado internar.

A escola Quinze de Novembro havia sido fundada em 1899. A escola de reforma, citada, foi chamada Escola João Luiz Alves (Cf. Mineiro, op.cit., p.452). Como instituições produtivas e disciplinares, os espaços da escola de reforma deveriam ser diferenciados:

“Art.205. A Escola de Reforma será constituida por pavilhões proximos, mas independentes, abrigando cada qual tres turmas de internados, constituida cada uma por numero não superior a 20 menores, para uma lotação de 200 delinquentes. Haverá também pavilhões divididos em compartimentos destinados á observação dos menores, á sua entrada no estabelecimento, e á punição dos indisciplinados.”

As demais instituições, segundo o Código, poderiam ser constituídas pela iniciativa privada:

“Art.208. O Governo póde confiar a associações civis de sua escolha a direcção e administração dos institutos subordinados ao Juizo de Menores, exceptuadas a Escola 15 de Novembro e a Escola João Luiz

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Alves, entregando-lhes as verbas destinadas ao custeio e manutenção delles.”

Mas todas as instituições deveriam obedecer ao novo tratamento disciplinar:

“Art.213. No regulamento das escolas se estabelecerá o regimen de premios e punições applicaveis aos educandos. Paragrapho único. São expressamente prohibidos os castigos corporaes, qualquer que seja a fórma que revistam.”

******

Entre o texto de Tobias Barreto e o de Mello Matttos, um novo discurso de assistência e de proteção à infância e à adolescência emerge. Do discernimento ao Código de Menores de 1927, um novo dispositivo legal se constitui. O discurso da assistência e proteção aos menores e o Código de 1927 definem um novo projeto jurídico e institucional voltado para a menoridade. Nesse projeto, uma justiça especial para menores – não punitiva, recuperadora, disciplinar, tutelar e paternal – estará articulada a uma reorganização da assistência – mais ampla e sistemática, preventiva, organizada cientificamente pelo Estado. Os tribunais para menores serão a instância chave de ligação entre a nova justiça e as novas formas de assistência45. Um novo estilo

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Para exemplificar a importância que o juizado de menores adquiriu enquanto instância de distribuição dos menores, basta observar que na pesquisa já citada do CEBRAP, em 1971, o juizado de menores era a principal instância de encaminhamento dos menores às instituições públicas, embora em relação às instituições privadas sua participação fosse mínima (Cf. CEBRAP, op.cit., pp.68 e 275)

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penal definirá a atuação desses tribunais, onde a disciplina e a tutela irão substituir a repressão e a penalização. Uma estratégia institucional produtiva, e não apenas repressiva ou excludente, visará a produção de crianças e jovens como indivíduos economicamente produtivos, moralizados e politicamente submissos. Uma série de mecanismos de vigilância, de apreensão, de classificação, de julgamento e de distribuição de crianças e adolescentes, garantirão a produção e reprodução de uma nova clientela institucional, os menores. Visando essa institucionalização, novas relações tutelares serão conceituadas. O eixo da tutela em relação aos menores se deslocará da família em direção ao Estado46. Este intervirá na relação entre os menores e suas famílias, toda vez que a saúde e moralidade daqueles estejam ameaçadas. Enfim, o menor, como categoria jurídica e institucional, estará plenamente individualizado. Assim, a legislação que estudamos até aqui não deve ser vista apenas como mais uma lei social, mas sim como um amplo dispositivo de poder que produziu o menor como sujeito histórico. Vejamos o que implica essa conceituação no próximo capítulo.

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A competência do juiz de menores será distinta da competência dos antigos juízes de órfãos, assim como a tutela em relação aos menores será muito mais ampla que a tutela dos órfãos. (Sobre a tutela dos órfãos, consultar Camargo, 1891).

V – A SUJEIÇÃO DO MENOR

V.1. – A justiça para menores como um dispositivo de poder V.2. – A “questão do menor” e a “questão social”

“E assim, a legislação teve que mudar a sua linguagem envelhecida e reprovada, ao mesmo passo que soffreu renovação nos seus meios correccionaes. As

idéias

de

discernimento,

culpabilidade,

responsabilidade, penalidade, estão definitivamente banidas das leis novas relativas aos infantes e adolescentes. À descabida noção de pena houve de se substituir a medida educativa-disciplinar, mais elevada e mais humana, porque a lei deve pensar em educar e regenerar, antes que em reprimir e punir. Felizmente para os nossos fóros de nação culta o Brasil já possue a esse respeito as mais adeantadas disposições legislativas, consolidadas no Codigo dos Menores. E acham-se fundados e funccionando normalmente, como apparelhos de execução do novo regimen, os indispensaveis institutos de assistencia, prevenção e reforma no Districto Federal e nas capitaes dos principaes Estados. Mas, ainda resta muito a fazer. MELLO MATTOS

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V – A SUJEIÇÃO DO MENOR V.1. – A justiça para menores como um dispositivo de poder

Vimos de que modo, a partir da crítica ao dispositivo legal do discernimento no fim do século XIX, um novo discurso sobre a infância abandonada e delinqüente se constituiu, culminando com a promulgação do primeiro código especial para menores do Brasil, em 1927. Com esse código, um amplo dispositivo de institucionalização de crianças e de jovens emerge enquanto projeto, direcionado pelo Estado, mas amplamente articulado à benemerência privada. Pudemos acompanhar algumas transformações discursivas que tornaram possível esse projeto. Cabe agora perguntar, porém, qual o sentido mais geral dessas transformações estudadas. Um primeiro problema que se coloca é o da relação entre essas transformações que ocorriam no Brasil e transformações similares que ocorriam em outros países. Embora não possamos fazer aqui um amplo estudo comparativo das transformações da legislação sobre a menoridade em vários países, podemos, ao menos, seguir algumas pistas. Todo o discurso que estudamos até aqui sobre a nova legislação para o menor no Brasil, se articulava em torna de idéias e de práticas que estariam ocorrendo em outros países. Os nossos reformadores não pretendiam ser inovadores nesse campo, mas, pelo contrário, baseavam-se em transformações que acreditavam estar ocorrendo em outros lugares, principalmente nos Estados Unidos e na Europa, durante o século XIX e início do XX.

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Alguns estudos já enfocaram essas transformações. Platt (1982) estudou a constituição dos primeiros tribunais para menores nos Estados Unidos. A partir da criação do primeiro tribunal oficial para menores em Illinois, em 1899, Platt elabora um amplo e interessante panorama do movimento dos “salvadores da criança”, como ele chama o grupo de reformadores que realizaram um movimento destinado a subtrair os jovens dos processos do direito penal e a criar programas especiais para crianças delinqüentes e abandonadas nos Estados Unidos no fim do século XIX. Segundo Platt, a lei que criou os tribunais para menores em 1899 foi resultado de quase trinta anos de esforços dos reformadores que participavam do movimento pela infância no Estado de Illinois. Esse movimento de salvação da infância era conservador e de classe média, tendo também o apoio econômico e político dos setores mais poderosos e ricos da sociedade americana. O autor mostra, também, que a criação desses tribunais para menores não contribuiu para a humanização do tratamento penal de crianças e adolescentes. Pelo contrário, ao inscrever as reformas em prol da infância num movimento muito maior de reforma das instituições, visando satisfazer as necessidades do sistema capitalista, Platt mostra que a ação dos salvadores da criança criou novas instâncias de controle social e ajudou a diversificar e a centralizar o poder do Estado. Tendo como preocupação essencial a identificação e o controle do comportamento juvenil discrepante, o principal resultado das reformas da legislação sobre a menoridade foi, ainda segundo Platt, fazer chegar ao controle do governo toda uma série de atividades juvenis anteriormente ignoradas, ao definir e regular um estatuto de dependência da juventude, e ao despolitizar a questão da delinqüência. Apesar da generalidade de certas colocações de Platt, seu trabalho é essencial para a compreensão dos primeiros tribunais para menores dos Estados Unidos, pelo fato de mostrar que a

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nova justiça para menores já nasceu, mesmo em seu país de origem, como instrumento de controle social. Acreditamos que a criação de uma justiça para menores aponta também para transformações mais gerais nas práticas de poder das sociedades capitalistas. Através dos trabalhos de Foucault, podemos inscrever as mudanças sobre a menoridade num horizonte mais amplo de transformações. Foucault (1977), ao estudar as transformações das práticas penais na França, ocorridas no fim do século XVIII, mostra de que modo a punição deixou, cada vez mais, o corpo para se inscrever em campos abstratos, como o dos direitos gerais, da consciência, da motivação dos atos, enfim, daquilo que ele chamará de “alma” como “prisão do corpo” (Cf. Foucault, op.cit., p.32). Nesse processo, o objeto “crime” também se modifica:

(...) o objeto “crime”, aquilo que se refere a prática penal, foi profundamente modificado (...) julgam-se também as paixões, os instintos, as anomalias, as enfermidades, as inadaptações, os efeitos de meio ambiente ou de hereditariedade. (Foucault, op.cit., p.21)

Com essa modificação, as atenções irão se dirigir para o criminoso enquanto um campo de conhecimento, no qual diferentes elementos se cruzam, sendo que as práticas jurídicas passarão a ser correlativas de muitos campos de saber: “Um saber, técnicas, discursos ‘científicos’ se formam e se entrelaçam com a prática do poder de punir.” (Foucault, op.cit., p.26)

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Com isso, cada vez mais os poderes punitivos irão buscar apoio no discurso verdadeiro, como se a lei só pudesse encontrar, a partir de então, nos discursos verdadeiros, seja da medicina, psiquiatria, psicologia ou sociologia, seu ponto de apoio. A legislação sobre a menoridade também irá procurar apoio em conceitos “verdadeiros”. A justiça para menores não só procurará apoio em disciplinas auxiliares, o que a tornará eminentemente multidisciplinar, com também irá se mascarar por trás desses discursos, tentando aparecer como recuperadora, pedagógica, não punitiva. A justiça penal para menores (e nunca se tratará de algo diferente, na verdade, de uma legislação penal) encontra seus instrumentos e, ao mesmo tempo, se esconde por trás de disciplinas científicas. A vergonha de punir será encoberta pela verdade. Não é difícil deduzir o papel que a questão da menoridade desempenha nessas transformações de práticas de poder punitivas para práticas de poder disciplinares. No processo de constituição do criminoso como suporte de novas relações de poder e de conhecimento, não devemos esquecer que o menor deve aparecer com destaque, por ser ele a matriz do futuro criminoso: se é necessário conhecer o criminoso, é necessário conhecê-lo desde a infância. Historicamente, também não parece ser difícil comprovar esse novo papel da infância e adolescência. Perrot (1988), por exemplo, mostra que há uma relação entre as reformas dos sistemas penitenciários na Europa e o interesse pela criança:

A reflexão sobre o sistema penitenciário na Europa (...) fez da prisão o “coração” da penalidade, e a organização do espaço uma arte de governar as massas. Deu-se uma importância cada vez maior para a criança, centro do círculo da família e pivô da futura sociedade, mas

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cuja situação jurídica e penitenciária deixava muito a desejar na França. (Perrot, op.cit., p.117)

Durante o século XIX surgem, na França, instituições destinadas apenas às crianças, que visavam retirá-las das más influências da família e do meio, submetendoas a um controle disciplinar, instituições como a Petite-Roquette, instituição “panóptica”47 estudada por Perrot. Esses e outros trabalhos parecem indicar que, ao menos na França, a criança começa a sair do seu anonimato a partir das novas estratégias de sujeição, que, então emergiam. Meyer (1977) estudou justamente a construção da infância na França como resultado da ação do Estado. Esse autor inscreve o surgimento de um direito da criança como parte de um processo de uniformização e de controle da sociedade pelo Estado. Para ele, a atomização da sociedade em famílias, a emergência da infância como problema e a infância inadaptada são acontecimentos solidários. Para Meyer, a legislação francesa sobre o discernimento já apontava, embora de maneira tímida, para um direito de exceção para os menores, em torno do qual a família passará a ser disciplinada, visando-se mais o delinqüente do que o delito, mais a família do que a própria criança. O discernimento abriu caminho, segundo ele, à noção de irresponsabilidade dos menores, o que tornou possível a criação dos tribunais para menores, surgidos na França em 1912. Donzelot (1980) estudou mais detidamente a questão desses tribunais, observando seu surgimento dentro de um processo que ele chama de “ascensão do

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Ou seja, instituição de vigilância total, onde um olhar central exerceria um controle ininterrupto das atividades dos internos. Foucault utiliza essa expressão para designar uma nova tecnologia de poder, que surge no século XVIII, baseada na visibilidade total. O termo vem da obra Panopticon de Jeremy Bentham (Cf. Foucault, 1977, pp.173-199).

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social”. O social, para Donzelot, é uma nova figura híbrida de público e privado, um novo campo, historicamente constituído, no qual se reúnem problemas diversos, instituições específicas e todo um pessoal qualificado, assistentes sociais, educadores especializados, orientadores, etc., todos ligados ao “trabalho social”. Esse novo campo se constituirá, na França a partir do século XVIII, no entrecruzamento de várias iniciativas, visando as práticas familiares existentes, tais como o ataque contra as nutrizes e a criadagem; a autonomização dos valores conjugais em relação aos valores propriamente familiares; e o desengajamento da autoridade paternal ou marital da chefia da família. Todo um “complexo tutelar” passa a se articular, assim, em torno da família, visando novas estratégias de controle das classes pobres:

(...) a suspensão do poder patriarcal permitirá o estabelecimento de um processo de tutelarização que alia os objetivos sanitários e educativos aos métodos de vigilância econômica e moral. Processo de redução da autonomia familiar, portanto, facilitado pelo surgimento, nesse final do século XIX, de toda uma série de passarelas e conexões entre a Assistência Pública, a justiça de menores, a medicina e a psiquiatria. (...) (Donzelot, op.cit., pp.84-85)

A questão da tutela também foi problematizada por Castel (1978). Esse autor mostra como a medicalização do louco na França, a partir do século XVIII, levou à cristalização de novas relações sociais, relações de tutelarização. Segundo Castel, com a sociedade contratual configurada com a Revolução Francesa, o louco passa a ser um problema:

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Sobre o pano de fundo da sociedade contratual instaurada pela Revolução Francesa, o louco é uma nódoa. Insensato, ele não é sujeito de direito; irresponsável, não pode ser objeto de sanções; incapaz de trabalhar ou de “servir”, não entra no circuito regulado das trocas, essa “livre” circulação de mercadorias e de homens à qual a nova legalidade burguesa serve de matriz. Núcleo de desordem, ele deve, mais do que nunca, ser reprimido, porém, segundo um outro sistema de punições do que o ordenado pelos códigos para aqueles que voluntariamente transgridem as leis. Ilha de irracionalidade, ele deve ser administrado, porém, segundo normas diferentes das que designam o lugar às pessoas “normais” e as sujeitam a tarefas em uma sociedade racional. (Castel, op.cit., p.19)

Em torno da figura do louco vão se estabelecer novos mecanismos de sujeição, cujos efeitos se espalham pela sociedade, levando, por exemplo, a uma gestão técnica dos antagonismos sociais. Ou seja, a partir da medicalização do louco, caminhase do contrato para a tutela. As contradições que o louco colocava para a sociedade contratual levam a mudanças do registro da lei para o da norma. Segundo Castel:

Estas contradições introduziram uma prática de perícia no centro do funcionamento das sociedades modernas. Uma avaliação fundada na competência técnica vai impor, a certos grupos “marginais”, um estatuto que terá valor legal embora seja constituído a partir de critérios técnico-científicos e não de prescrições jurídicas inscritas em códigos. Um processo de corrosão do direito por um saber (ou por um pseudo-saber, mas essa não é a questão), a subversão progressiva do

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legalismo por atividades de perícia, constituem uma das grandes tendências que, desde o advento da sociedade burguesa, opera os processos de tomada de decisão que engajam o destino social dos homens. Do contrato à tutelarização. (Castel, op.cit., pp.19-20)

Nesse processo de tutelarização da sociedade, Castel indica também que os destinos de crianças e de loucos estão articulados. Os loucos são comparados a crianças não gratuitamente, mas sim porque colocam problemas semelhantes para a sociedade burguesa e seus mecanismos de sujeição:

O indivíduo é sujeito autônomo enquanto for capaz de se dedicar a intercâmbios racionais. Ou então sua incapacidade de entrar num sistema de reciprocidade o isenta de responsabilidade e ele deve ser assistido. O fundamento contratual do liberalismo impõe a aproximação entre o louco e a criança (...) a grande analogia pedagógica da medicina mental, no seio da qual, toda sua história vai se desenvolver. (...) (Castel, op.cit., p.46)

Já Donzelot pretende mostrar, justamente, que os tribunais para menores são peça chave desse processo de tutelarização do menor. Segundo esse autor, os tribunais para menores, desde seus primórdios nos Estados Unidos, no final do século XIX, levaram a deslocamentos fundamentais das práticas jurídicas. Com esses tribunais, o patriarcalismo familiar é destruído em proveito de um patriarcalismo de Estado, um “Estado-família” próprio da sociedade tutelar48. O próprio aspecto da justiça para

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Badinter (1985, pp.288-291) comenta como, desde o século XIX, o Estado se preocupa cada vez mais com as crianças e, por isso, passa a vigiar a ação dos pais para com elas. O Estado, assim, acaba

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menores foge das representações e dos mecanismos da justiça clássica. Um resumo de Donzelot sobre os aspectos desses tribunais indica todas essas transformações:

(...) O tribunal de menores só aplica as penas seletivamente. No essencial ele administra as crianças sobre as quais pesa a ameaça de aplicação de uma punição. A razão oficial do caráter não público do tribunal é essa vontade de prevenção. Ele opera uma discreta diluição da pena, em vez de concentrá-la. A ação preventiva visa cercar o corpo delituoso em vez de estigmatizá-lo ostensivamente. Nas diferentes possibilidades de sanção que dispõe o tribunal de menores, a prisão fechada constitui, em princípio, uma exceção. Quando aplicada o mais freqüente é que seja acompanhada de sursis, com período de experiência ou liberdade vigiada. É nesse espaço aberto pelo caráter suspensivo da pena que se estabelece a medida educativa. (...) É preciso ver as duas faces dessa origem penal das medidas educativas, e não só uma, como se faz habitualmente. Num certo sentido, ela “dá oportunidade” ao menor culpado condenando-o apenas a medidas de controle. Num outro sentido, dissolvendo a separação ente o assistencial e o penal, ela amplia a órbita do judiciário para todas as medidas de correção. Se quisermos compreender as relações mútuas entre as instituições relativas à infância irregular, é necessário imaginá-las encaixadas umas nas outras segundo um princípio de superposição que tem seu apoio

assumindo a autoridade do pai, que é substituído por novos personagens que passam a desempenhar o papel de autoridade frente às crianças: o professor, o juiz de menores, o assistente social, o educador, etc. Lasch (1983, pp.193-228) mostra que, em contrapartida, esse processo leva ao colapso da própria noção de autoridade, substituída por uma visão terapêutica da sociedade e do Estado.

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decisivo, e seu fim último no tribunal para menores. (Donzelot, op.cit., p.102)

Assim, acreditamos que os estudos anteriormente vistos mostram que os tribunais para menores devem ser inscritos dentro das novas formas de controle e de sujeição, colocadas pela ascensão dos mecanismos tutelares nas sociedades capitalistas na Europa e Estados Unidos. A nova legislação para a menoridade que começa a emergir nesses países a partir do século XIX aponta para uma nova articulação da lei e da norma, da punição e da disciplina. Já mencionamos anteriormente de que modo Foucault, ao fazer o amplo painel das mudanças punitivas que ocorriam na Europa desde o século XVIII, mostrava a inter-relação cada vez mais constante entre os poderes punitivos e os discursos verdadeiros. É nesse processo que também emergem as disciplinas49. Para Foucault, o poder e o direito na sociedade capitalista já não estarão mais restritos ao registro da soberania. A soberania, segundo o autor, centrada na figura do rei, estabelecia os direitos legítimos do soberano e a obrigação legal da obediência, eliminando a questão da dominação e suas conseqüências. Mas a dominação nas sociedades capitalistas, nas suas aplicações terminais, cotidianas, desenvolveu mecanismos de exclusão, aparelhos de vigilância, de medicalização dos conflitos, etc., estabelecendo um novo tipo de relação de poder que já não cabe mais no discurso e na prática do direito tradicional, ligado à soberania. Essas novas relações de poder são relações disciplinares:

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Para uma discussão detalhada do conceito de “disciplina” (Cf. Foucault, op.cit., pp.125-204)

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Este novo tipo de poder, que não pode mais ser transcrito nos termos da soberania, é uma das grandes invenções da sociedade burguesa. Ele foi um instrumento fundamental para a constituição do capitalismo industrial e do tipo de sociedade que lhe é correspondente; este poder não soberano, alheio à forma da soberania, é o poder disciplinar. (Foucault, 1979, p.188)

Mas Foucault coloca, logo a seguir, que, embora a princípio alheios um ao outro, poder e disciplina acabarão se tornando complementares: a soberania dará ao poder disciplinar um discurso no qual ele não aparecerá como poder, e em compensação irá retribuir com uma eficácia concreta muito mais minuciosa e abrangente:

Um direito de soberania e um mecanismo de disciplina: é dentro destes limites que se dá o exercício do poder. (...) Nas sociedades modernas, os poderes se exercem através e a partir do próprio jogo de heterogeneidade entre um direito público da soberania e o mecanismo polimorfo das disciplinas. (Foucault, op.cit., p.189)

A concepção jurídica do poder50, assim, estará articulada a um outro campo heterogêneo, o campo da disciplina:

As disciplinas são portadoras de um discurso que não pode ser o do direito; o discurso da disciplina é alheio ao da lei e da regra enquanto efeito da vontade soberana. As disciplinas veicularão um discurso que

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Loschak (1984) comenta a questão do direito em Foucault, analisando a tensão entre a representação jurídico-discursiva do poder e as práticas disciplinares.

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será o da regra, não da regra jurídica derivada da soberania, mas o da regra “natural”, quer dizer, da norma; definirão um código que não será o da lei, mas o da normalização; referir-se-ão a um horizonte teórico que não pode ser de maneira alguma o edifício do direito, mas o domínio das ciências humanas; a sua jurisprudência será a de um saber clínico. (Ibidem)

Lei e norma, punição e disciplina, contrato e tutela, embora sendo campos de práticas heterogêneas, irão se encontrar naquilo que Foucault chama de sociedade de normalização. Acreditamos que o conceito da teoria de Foucault que melhor dá conta da articulação entre essas linhas heterogêneas, entre lei e norma, é o conceito de dispositivo de poder (Cf. Foucault, 1980). Um dispositivo de poder, segundo Foucault, é um conjunto heterogêneo formado por discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis e medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais e filantrópicas, articuladas de forma a responder uma urgência histórica determinada. Assim, podemos pensar a justiça para menores como um dispositivo de poder. O novo tratamento jurídico e institucional da menoridade, tal como o estudamos até aqui, parece ser um dos momentos privilegiados do encontro da norma com a lei. O menor, tutelado por excelência, será, a partir de então, um dos sujeitos mais visados pelos mecanismos disciplinares e normativos. O caráter híbrido da justiça para menores, sua vergonha da punição, seu sustentáculo em proposições científicas, filosóficas e morais, tudo isso a coloca entre a norma e a lei, ou melhor, articula esses dois níveis num complexo dispositivo de poder. A legislação brasileira, disposta num amplo código exclusivo para a menoridade, plena de disposições

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disciplinares e normativas no próprio texto legal, indica claramente seu caráter de dispositivo, mais talvez do que a legislação de outros países. Mas, em se tratando de um dispositivo de poder, quais as condições históricas que o tornaram possível? Quais os objetivos visados por ele? A que outros conjuntos de práticas ele remete? A que urgências históricas ele é resposta? Algumas dessas questões já tivemos oportunidade de abordar, ao analisarmos a forma pela qual se constituiu o menor como categoria jurídica e institucional, com a emergência do Código de Menores de 1927. O Código, todavia, é um acontecimento único, tanto na sua forma como em sua articulação específica com o contexto histórico da Primeira República. Retornemos, assim, ao contexto de emergência dessa legislação para tentarmos esclarecer algumas das questões colocadas51.

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As idéias que constituíram o código, portanto, não eram apenas “idéias foras do lugar”, na expressão de Schwarz (1988). Mello Mattos, ao idealizar uma nova estratégia de institucionalização da menoridade, sem dúvida se inspirava nas idéias provenientes dos Estados Unidos e da Europa, assim como todos os outros autores analisados. No entanto, ele se baseava também na sua própria experiência como criminalista, filantropo e juiz de menores, para adaptar a nova legislação à realidade brasileira. O resultado foi a produção de um dispositivo de poder original. Para ressaltar as diferenças com o processo de menorização na França, a título de ilustração, basta observar que as mudanças institucionais foram muito mais intensas nesse país do que no Brasil. As Rodas dos Expostos, por exemplo, deixarão de existir na França já na metade do século XIX (Cf. Donzelot, op.cit., p.30). Essas diferenças nos impedem, também, de pensar, como Meyer, que o dispositivo da menoridade apenas faz parte da ação organizadora do Estado em relação à sociedade. Ignatieff (1987), ao fazer um balanço crítico dos estudos acerca das instituições totais, alerta para a preocupação de que não devemos considerar o Estado como criador da ordem social, já que a relação entre sociedade e Estado é complexa, e o tecido social não é nem uma massa amorfa onde a ação do Estado atua sem impedimentos, nem lugar de uma resistência autônoma com respeito ao poder central, uma vez que complexos intercâmbios se estabelecem entre ambos. Se a análise de Meyer ainda pode ser explicativa para a realidade francesa, não podemos pensar, no caso brasileiro, o primado total do Estado na sujeição do menor, pois é na própria relação Estado/sociedade que o discurso sobre a menoridade emerge no Brasil. As explicações de Platt, no trabalho já citado sobre os tribunais para menores nos Estados Unidos, também só nos fornecem explicações muito gerais. A pista que nos parece mais rica é a colocada por Donzelot, quando este fala na “invenção do social”, que poderia ser aplicada para se analisar a emergência da “questão social” na Primeira República.

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V.2 – A “questão do menor” e a “questão social”

Vimos, no capítulo sobre o contexto histórico, de que modo as mudanças na legislação sobre a menoridade, no século XIX e início do século XX, no Brasil, podiam ser articuladas a mudanças nas formas de institucionalização da infância e da adolescência. Essas mudanças institucionais são acompanhadas, também, de uma série de novos campos de problematização, envolvendo questões relativas à higiene infantil, ao abandono de crianças, à criminalidade precoce, ao trabalho infantil nas fábricas, etc. No cruzamento desses vários campos é que se constitui a discussão jurídica em torno de uma legislação de assistência e proteção aos menores. Voltemos agora ao contexto, após analisarmos a trama discursiva que tornou possível a emergência do Código de Menores de 1927, para abordar as transformações estudadas dentro do campo mais amplo do que se convencionou chamar “questão social” na Primeira República. Como já mencionamos, no fim do Império a questão social emerge com a crise da antiga estrutura social, que era baseada na escravidão e na grande propriedade territorial. A estrutura social se diferencia principalmente nos grandes centros urbanos (Cf. Cardoso, 1985). Classe trabalhadora e burguesia industrial passam a ocupar espaços como forças sociais importantes, levando a uma reorganização social, econômica e política do país. A intensificação da luta social, principalmente após a Primeira Guerra Mundial, estará intimamente ligada às insatisfações das populações urbanas em geral, o

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que também incluía as camadas médias urbanas52. Pinheiro, por exemplo, comenta a este respeito:

O desenvolvimento urbano, que se acelera depois da guerra, provocará a expansão do pequeno comércio nos centros mais importantes do país, assim como de pequenas indústrias. Há o aumento das antigas classes médias – pequenos comerciantes artesãos, pequenos industriais, alfaiates, carpinteiros e sapateiros – e das novas classes médias – funcionários públicos, assalariados. A urbanização ocorrerá simultaneamente com o crescimento da burocracia dos serviços públicos como resultado de um processo que está caracterizado pelo alargamento da área de intervenção do Estado na economia, a extensão da área geográfica efetiva na qual a ação governamental se exercia e pela dilatação do sistema administrativo do país (...). (Pinheiro, 1977, p.16)

Acreditamos, assim, que o que se denomina de “questão social” refere-se, principalmente, a um novo conjunto de problemas ligados à formação da classe operária e as novas camadas médias num contexto urbano. Estas transformações eram mais intensas no Rio de Janeiro e em São Paulo e, por isso, limitaremos novamente nossas considerações a estes dois centros urbanos. A ação do Estado em relação aos conflitos advindos desse novo contexto não se restringe ao enfrentamento da questão social apenas como uma questão policial, e, embora o Estado utilize largamente da violência

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Usamos o termo “camadas médias urbanas” justamente para salientar a dificuldade de definição desses novos agentes que emergiam no contexto urbano. Sobre a dificuldade de conceitualização das classes médias cf., por exemplo, Oliveira (1988).

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contra as classes trabalhadoras e na gerência dos conflitos urbanos, não devemos esquecer que novas formas de controle institucional também se constituem no período. Novas estratégias de sujeição irão emergir, articuladas ou não diretamente ao Estado. Acreditamos que o dispositivo da menoridade que estudamos faz parte dessas novas sujeições. Assim é que, juntamente com a ascensão do social enquanto campo de confronto de antigas e novas forças sociais, começa a se esboçar, também, um campo do “social” agora no sentido colocado por Donzelot: todo um conjunto de instituições e mecanismos visando desorganizar as classes consideradas perigosas, disciplinando e naturalizando os conflitos. Novas formas de filantropia e de assistência social 53 parecem indicar uma ampla estratégia assistencialista de abordagem da questão social, visando justamente a despolitização dos conflitos sociais urbanos. Dentro destas estratégias é que podemos pensar o dispositivo do Código e a ascensão de outros mecanismos disciplinares que visavam basicamente o controle social do espaço urbano. Dois trabalhos que tematizam as novas práticas disciplinares voltadas para a cidade no início do século, são os de Rago (1985) e de Cunha (1986). Cunha estudou o hospício do Juquery e a psiquiatria em São Paulo, a partir do final do século XIX até a década de 30. Articulando a história deste asilo ao novo contexto urbano emergente em São Paulo, a autora mostra como o alienismo se incorporou às estratégias disciplinares de controle da cidade. O asilo passa a ser um instrumento entre outros de individualização dos agentes que haviam sido deslocados de seus antigos contextos:

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Para um histórico do serviço social no período cf. Iamamoto (1988).

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(...) Ao lado dos negros, outros setores da população perdem, na cidade que cresce e altera as rotinas da vida cotidiana, os seus espaços tradicionais. Setores improdutivos, como a velhice e os “menores”, certos tipos de doentes, débeis mentais, deficientes de várias qualidades terão reinventado o seu lugar. Na cidade, eles tenderão a deixar de ser uma questão afeta ao grupo familiar ou social mais diretamente concernido, para constituírem um problema efetivo para a administração pública. Alguns destes setores encontrarão no hospício, ao lado dos loucos, o seu definitivo “lugar de repouso”. (...) A configuração espacial da cidade – lugar por excelência das novas relações sociais de produção em que o assalariamento substitui a escravidão como base no princípio da “igualdade” entre os indivíduos – desenha a nova dimensão da desigualdade social: criam-se espaços diferentes para classes desiguais. (...) (Cunha, op.cit., pp.31-32)

Nessa disciplinarização dos espaços urbanos, a medicina higiênica passa a ter papel fundamental, segundo a autora, instituindo discursos sobre todas as instâncias da vida, passando a questão sanitária a ser um problema central. Aí é que estratégias alienistas configurarão o louco como doente mental, sendo guiadas pelo lema (já por nós amplamente conhecido) de que será mais interessante prevenir do que curar. Rago também estudou a disciplinarização dos espaços urbanos na Primeira República, centrando sua atenção nas novas disciplinas impostas aos trabalhadores na fábrica. Segundo a autora, com a imigração e a constituição do proletariado urbano principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, tem lugar uma vasta empresa de moralização, tendo como eixo principal a formação de uma nova figura do trabalhador como dócil e submisso, mas economicamente produtivo, empresa esta levada a cabo

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pelos médicos higienistas, mas também por autoridades públicas, por setores da burguesia industrial, por filantropos e por reformadores sociais, nas décadas iniciais do século XX. Esta ação se desdobra em múltiplas estratégias de disciplinarização, mecanismos de controle e de vigilância que atuam nas fábricas, mas que também se expandem para a regulação da moradia operária, de sua sexualidade, saúde, educação, etc., sendo realizada por agências do poder público e também de iniciativa privada. E, uma das principais metas dessas práticas normativas, é a redefinição da família, a construção de um modelo imaginário de mulher54 voltada para a intimidade do lar, e um cuidado especial para com a infância, direcionada, ainda segundo a autora, para a escola ou para institutos de assistência social. Nasce, assim, a possibilidade da “intimidade operária”. Rago explicita, porém, que as classes dominantes enfrentam, nesta cruzada disciplinar, a resistência dos trabalhadores, o que transparece principalmente nas concepções libertárias. A autora mostra, assim, que a preocupação com a infância estava também presente na imprensa operária, mas num sentido totalmente divergente daquele colocado pelas classes dominantes55. Os artigos anarquistas denunciavam a indústria como local da exploração dos menores, desmistificando a função moralizadora do trabalho, colocada pelos patrões. O movimento libertário se preocupava com a degeneração física e moral e da infância operária nas fábricas:

A estratégia disciplinar de confinamento das crianças no interior das unidades produtivas, retirando-as das ruas ameaçadoras ou do abandono dos asilos e dando-lhes uma ocupação profissional

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Lopes (1985; 1987) estudou especificamente a formação da mulher como trabalhadora urbana no início do século. 55 Moura (1982, pp.104-121) também cita as reivindicações operárias frente ao problema do trabalho infantil.

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justificava-se como meio de formar o novo trabalhador, modelando seu caráter desde cedo. Num campo oposto, o discurso operário denunciava a exploração do trabalho infantil, economicamente mais barato e politicamente mais submisso, desmistificando as vantagens do tipo e adestramento que a atividade fabril poderia propiciar à infância: exaurir suas forças, enfraquecê-las, embutir sua inteligência, atrofiar seus músculos, impedir seu crescimento físico e espiritual. (Rago, op.cit., p.140)

As concepções libertárias, segundo a autora, iam contra as formas de disciplinarização da infância nas fábricas, nas escolas e na própria família. Toda uma discussão sobre uma nova pedagogia libertária, por exemplo, se desenvolvia nos jornais anarquistas durante os anos vinte, juntamente com tentativas de criação de escolas e de entidades que defendiam novas formas de educação na infância, iniciativas como a criação, em 1917, do Centro Libertário de Agitação Contra a Exploração dos Menores nas Fábricas. Assim, a partir das iniciativas anarquistas podemos entrever a resistência à disciplinarização imposta pelo trabalho industrial e pelas novas estratégias de dominação, emergentes nos centros urbanos. Esses dois trabalhos mostram, assim, estratégias disciplinares de controle do espaço urbano que emergiam no início do século, ressaltando-se nesse processo o papel da intervenção médica na normatização da sociedade. Mas, se a própria medicina higiênica contribuiu para a normatização da infância, acreditamos que foram os juristas analisados anteriormente que articularam de modo decisivo a lei e a norma, de modo a tornar possível a emergência do menor como sujeito histórico. O dispositivo de poder

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criado em torno da questão da menoridade, se constituirá também como um instrumento potencialmente importante de controle da “desordem urbana”. Não devemos, no entanto, dicotomizar a análise pensando apenas numa estratégia geral de dominação da burguesia sobre a classe trabalhadora. As relações de dominação não se resumem a um mero confronto entre a burguesia e o proletariado, já que este confronto se inscreve num contexto mais complexo que inclui também outros segmentos sociais56. Uma legislação, mesmo instrumentalizada pelas classes dominantes, também reflete os interesses dos dominados. Para mostrar a complexidade do Código de 1927, enquanto legislação social, analisemos mais detalhadamente a questão da regulamentação do trabalho infantil por ele colocada57. A regulamentação do trabalho infantil era uma das reivindicações do trabalhadores durante a Primeira República58. Dada a grande quantidade de menores que, como vimos, trabalhavam nas indústrias da época, e dadas também as péssimas condições de trabalho, esse era efetivamente um dos pontos importantes das

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Rago, no texto que comentamos, parece às vezes cair nessa redução do momento histórico, que acaba sendo visto apenas como um amplo confronto entre os dominados (o proletariado urbano) e as classes dominantes em geral. Poderíamos aqui mencionar a mesma crítica que Fausto (1988) dirige ao trabalho de Decca (1982): “Um dos problemas mais sérios da análise de Edgar De Decca consiste em praticamente não levar em conta a história social do país, o que equivale a dar as costas a determinações objetivas como a natureza do Estado, o peso dos diferentes grupos e classes, a inserção da classe trabalhadora na estrutura social e, sobretudo, a forma de constituição da sociedade capitalista. Isto se reflete na busca de conflitos polares classe a classe como chave de explicação do Brasil nos anos 30”. (Fausto, 1988, p.17) Ou seja, os conflitos sociais na Primeira República não podem ser resumidos apenas a um confronto classes dominantes/proletariado, devendo mesmo a análise das disciplinas estar mais articulada à complexidade do contexto. 57 É preciso não reduzir a lei a um mero fenômeno de superestrutura, ou considerá-la apenas como instrumento de dominação de classe. Thompson (1987, pp.348-361) faz uma discussão extremamente interessante sobre o tema. 58 Cf. Pinheiro, 1977, pp.160 e 162, por exemplo. Até o início do século XX poucas eram as leis que regulamentavam o trabalho de menores no país. A República, sob o Governo Provisório, promulgou o decreto n.1313, de 17 de janeiro de 1891, que estabelecia providências para regularizar o trabalho de menores nas fábricas da Capital Federal, mas este projeto não entrou em vigor nem foi regulamentado. Mais tarde, o Governo Municipal do Distrito Federal promulgou uma lei regulando o trabalho dos menores nas fábricas, oficinas e empresas industriais, decreto n.1801 de 11 de agosto de 1917, que também ficou sem execução (Cf. Mineiro, op.cit. pp.173-178). Assim, as poucas leis existentes também não eram executadas. O Código dos Menores aparecia na época, consequentemente, como a mais completa iniciativa até então realizada, de regulamentar todas as modalidades de trabalho dos menores.

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reivindicações dos trabalhadores. O Código de Menores reflete essas reivindicações. Pode-se argumentar que a legislação era muito tímida, mas acreditamos que para o contexto da época já era uma iniciativa importante, pois, ao menos já se estabelecia uma regulamentação. O Código proibia o trabalho dos menores de 12 anos, dos menores de 14, que ainda não tivessem sua instrução primária concluída, regulamentando, no máximo, uma jornada de seis horas, e proibindo o trabalho em circunstâncias perigosas, entre outras regulamentações:

“CAPÍTULO IX DO TRABALHO DOS MENORES Art.101. É prohibido em todo o territorio da Republica o trabalho aos menores de 12 annos. Art.102. Igualmente não se póde occupar a maiores dessa idade que contem menos de 14 annos e que não tenham completado sua instrucção primaria. Todavia, a autoridade competente poderá autorizar o trabalho destes, quando o considere indispensavel para a subsistencia dos mesmos ou de seus paes ou irmãos, comtanto que recebam a instrucção escolar, que lhes seja possivel. Art.103. Os menores não podem ser admittidos nas usinas, manufacturas, estaleiros, minas ou qualquer trabalho subterraneo, pedreiras, officinas e suas dependencias, de qualquer natureza que sejam, publicas ou privadas, ainda quando esses estabelecimentos tenham caracter profissional ou de beneficencia, antes da idade de 14 annos. (...)

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Art.104. São prohibidos aos menores de 18 annos os trabalhos perigosos á saude, á vida, á moralidade, excessivamente fatigantes ou que excedam suas forças. (...) Art. 108. O trabalho dos menores aprendizes ou operários, abaixo de 18 annos, tanto nos estabelecimentos mencionados no art.103, como nos não mencionados, não póde exceder seis horas por dia, interrompidas por um ou varios repousos cuja duração não póde ser inferior a uma hora. Art.109. Não podem ser empregados em trabalhos nocturnos os operarios ou aprendizes menores de 18 annos. (...)”

No parecer de Mello Mattos, o Estado tinha o direito e, ao mesmo tempo, o dever de regulamentar e fiscalizar o trabalho dos menores. Essa regulamentação não feria, segundo ele, a liberdade de trabalho dos menores, já que estes não tinham ainda vontade própria e nem força de resistência para exercer sua liberdade. Também não feria o pátrio-poder, pois este só deveria ser exercido em proveito dos filhos e, quando isto não ocorresse, o Estado deveria intervir para preservar as crianças. Infelizmente, ainda segundo Mattos, os pais operários acabavam, por necessidade, explorando os filhos. Caberia ao Estado, nesses casos, substituir o pátrio-poder para evitar a dupla exploração da infância, pelos industriais e pelos pais, preservando, assim, o interesse geral da sociedade. A instrução para os menores também deveria ser garantida, conciliando-a com a necessidade do trabalho infantil para a subsistência das famílias pobres (apud Mineiro, op.cit., pp.164-168). Os empresários, no entanto, se colocaram contra essa regulamentação. O fim do trabalho infantil, segundo eles, prejudicaria não só a produção, mas também a

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possibilidade de sobrevivência das famílias operárias, que ficariam sem os proventos dos menores, permanecendo estes, ainda, sujeitos ao abandono e à delinqüência nas ruas. O empresário Jorge Street já em 1917 discutia a regulamentação do trabalho infantil, afirmando que no Brasil não era possível o fim do trabalho dos menores, já que inexistiam leis que evitassem o abandono e garantissem a escolarização (Cf. Pinheiro, 1981, pp.179-184) Em 1929 o Centro Industrial do Brasil repudiava a regulamentação do trabalho infantil pelo Código de Menores, usando basicamente a mesma argumentação: a regulamentação do trabalho infantil colocaria em risco não só a produção, mas também a subsistência das famílias operárias e a segurança dos menores que, sem o trabalho, ficariam ociosos na rua; e, caso a lei não fosse ao menos suavizada, só restaria a saída da dispensa dos menores (Cf. Pinheiro, op.cit., pp.223-235). Efetivamente, a maioria dos empresários acabaram não cumprindo a legislação (Cf. Vianna, 1978, pp.81-83). Gomes (1979, pp.183-184) afirma ainda que, entre 1928 e 1929 foram sucessivos os problemas com a ação dos juízes de menores do Rio de Janeiro e de São Paulo, em razão das multas cobradas por ocasião da fiscalização. A mobilização dos empresários, no entanto, parece ter surtido efeito, neutralizando a regulamentação estabelecida pela Código, chegando inclusive as pressões dos industriais cariocas a conseguir o afastamento do juiz Mello Mattos (Cf. Gomes, op.cit., p.184) Nossa hipótese, consequentemente, é que a legislação de assistência e proteção aos menores, no aspecto relativo ao trabalho dos menores, satisfazia, em certa medida, os interesses dos trabalhadores, o que desagradou os empresários que a ela se opuseram. A legislação do Código, assim, não pode ser vista apenas como mero

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instrumento de dominação, já que essa lei não estava livre das correlações de força do próprio contexto59. Mesmo assim, defendemos a abordagem do Código de Menores como um dispositivo de poder porque nele não eram centrais nem a questão do trabalho nem a questão da educação60, mas sim a questão da delinqüência. A ênfase na regulamentação do trabalho dos menores e no seu direito à educação teria tornado essa legislação um instrumento importante para as classes trabalhadoras na época. Mas não é em torno do trabalho e da educação que todo o discurso sobre a menoridade que estudamos adquire sua coerência, mas sim em torno do controle da criminalidade. “Menor”, desde então, é aquele que se inscreve privilegiadamente no campo do abandono e da delinqüência. Por isso, mesmo não sendo respeitado nos aspectos referentes à regulamentação do trabalho, o Código pôde permanecer em vigência por tanto tempo61. A eficácia do Código não residiu na regulamentação do trabalho infantil ou no direito à sua educação, mas sim na institucionalização do menor enquanto possível delinqüente. Institucionalizou-se aí o menor a partir da consolidação de um mecanismo tutelar, passando a questão da criminalidade e da assistência a estarem intimamente articuladas: as crianças e jovens fora do trabalho ou da escola, em situação de abandono ou delinqüência, passam a serem visadas pelo Estado que, juntamente com instituições privadas, deverá recuperálos. O dispositivo da menoridade, no entanto, virá mais para normalizar os desvios em

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É verdade que a proteção ao trabalho dos menores também garantia a reprodução da força de trabalho necessária para o desenvolvimento capitalista (Cf. Lopes, 1985, p.37). O que queremos destacar, no entanto, é que a legislação não foi identificada pelos industriais da época como correspondendo a seus interesses. É necessário, portanto, problematizar as mediações existentes entre os interesses de grupos e classes sociais e as leis ou dispositivos de dominação. Se não realizamos essa problematização, não podemos compreender, por exemplo, como Evaristo de Moraes, advogado que defendia interesses dos trabalhadores, pudesse também defender uma legislação especial para a menoridade que implicava novas formas de controle social. Não pretendendo aqui uma análise detalhada dos agentes identificados com o dispositivo da menoridade, deixamos o problema levantado para pesquisas futuras. 60 Sobre a questão da educação durante a Primeira República, cf. Nagle, 1977, pp.261-291). 61 O Código de Menores de 1927 foi revogado apenas em 1979.

[EC3] Comentário: Pode ou pôde?

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relação ao trabalho (miséria, crime, vadiagem, etc.) do que propriamente para recuperar para o trabalho. A ênfase no conceito de “recuperação” apenas tornou possível uma institucionalização mais ampla da clientela, pois, juntamente com o conceito de “prevenção”, tornou possível a disciplinarização de indivíduos que não haviam cometido crimes precisos62. A legislação sobre a assistência e proteção aos menores, portanto, sem mecanismos concretos que garantissem o fim do trabalho infantil, e generalizassem o acesso à escola, constituiu-se principalmente como um dispositivo disciplinar de controle da criminalidade. Se a atividade policial no Rio de Janeiro e em São Paulo durante a Primeira República ia além do simples controle da criminalidade, visando também um amplo controle social dos grupos urbanos considerados perigosos, com o Código de Menores o Estado passaria a ter a sua disposição um mecanismo legal de controle social. A associação positiva entre abandono e deliqüência abria um amplo espaço de controle das populações urbanas63. Toda a problemática da vadiagem poderia ser disciplinarizada, não mais por razões econômicas, mas sim visando o controle social. Se durante a segunda metade do século XIX, como vimos, a preocupação com a vadiagem estava ligada à formação de um mercado de trabalho livre, no momento da emergência do dispositivo da menoridade o objetivo visado será a normalização e identificação do contingente populacional que estava fora do mundo do trabalho. Não mais disciplinar para o trabalho apenas, mas sim disciplinar também o não-trabalho, ou

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Se o discurso de “recuperação” do menor não se realiza na prática, não devemos pensar numa contradição entre teoria e prática. Devemos, pelo contrário, buscar a eficácia desse discurso num outro plano. O conceito de “recuperação” permitiu a criação de práticas de poder produtivas em relação à menoridade, ou seja, permitiu a institucionalização do menor abandonado ou delinqüente. 63 Bresciani (1987) mostra como nos grandes centros urbanos do século XIX o pobre, o criminoso e o trabalhador passarão a ser identificados pelas elites, como fazendo parte de um mesmo campo de problematização. Dispositivos de controle da criminalidade e das classes pobres poderão surgir nesses novos contextos urbanos. Fausto (1984), ao estudar a criminalidade em São Paulo, no início do século, mostra como a atividade policial, na época, visava não apenas o controle da criminalidade, mas também um amplo controle social. Ainda sobre esse tema, Rodrigues (1989) faz um levantamento interessante de vários trabalhos que analisaram o papel da polícia no Brasil como agente de controle social.

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seja, a pobreza, o crime e a vadiagem64. Outros trabalhos já mostraram a importância que a “identificação”, enquanto técnica policial de controle da população urbana, adquire no início do século no Brasil65. O dispositivo da menoridade que estudamos constituiu-se como um instrumento importante, ao menos potencialmente, de identificação e individualização de todo um contingente populacional ainda não institucionalizado. O processo de menorização da infância levado a cabo nas primeiras décadas do século XX levou o Estado a poder identificar e controlar todo um segmento fora da produção, que não estivesse ainda vinculado a qualquer forma institucionalizada de educação e trabalho. Nos detemos aqui, porém, no efeito principal de todo esse processo: a emergência do menor enquanto sujeito do discurso jurídico e institucional. Com a emergência de um discurso de proteção e assistência aos menores abandonados ou delinqüentes e com a promulgação do Código de Menores de 1927, emerge também o “menor” como sujeito, segundo a conceitualização colocada na introdução metodológica: uma série de mecanismos discursivos e institucionais constituirão indivíduos concretos, até então não institucionalizados plenamente, em sujeitos submetidos a relações de dominação. Crianças e jovens das classes pobres serão vistos como menores abandonados ou delinqüentes caso não se enquadrem nas normas

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Fausto (op.cit., p.43) coloca justamente a idéia de que a pressão sobre a vadiagem na cidade de São Paulo, no início do século, já não se liga mais a razões econômicas, pois não havia mais o problema da falta de mão-de-obra. É pensando nessa mesma hipótese que afirmamos que o dispositivo do Código de Menores não visava mais a produção de mão-de-obra, mas sim a disciplinarização dos não-trabalhadores. É verdade que o trabalho será o parâmetro maior de recuperação, pois o que permitirá a reintegração do menor será a sua aptidão, adquirida nas escolas ou instituições de recuperação para o trabalho (Cf., por exemplo, o art.219 do Código de Menores de 1927). Mas essa ênfase no trabalho, embora pudesse ter um caráter normativo para toda a sociedade, já não tinha um caráter econômico claro, pois a recuperação dos menores para o trabalho era apenas um subproduto insignificante do novo dispositivo. 65 Cf. Corrêa (1982a, 1982b); Carrara (1984).

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do trabalho e da educação. Ser menor, para esses indivíduos, será apenas uma “evidência”. A sujeição do menor estará, a partir de então, plenamente definida.

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CONCLUSÃO

A justiça não deve ser para os infantes e adolescentes a velha figura allegorica de olhos vendados, armada da balança e espada, adoptando para julgamento delles o falso, obscuro, indefinivel, enigmatico, perigoso criterio do discernimento, e considerando-os apenas pequenos homens; ella deve ser, como a quer Helena Troyano*, uma imagem real, como Christo no celebre Evangelho: protectora, tutelar, maternal. Elles devem comprehender que a justiça é feita não só de direito, mas também de caridade, indulgencia e bondade; que se interessa por elles com benevolencia, embora sem fraqueza; que, sem aplicar penas repressivas, não favorecerá, todavia, a impunidade; empregará medidas de assistência e protecção, bem como medidas de educação, as quaes podem ser energicas, e até, em caso de necessidade, severas. (Mineiro, op.cit., p.376)

O texto acima transcrito, de Beatriz Sofia Mineiro, resume bem a trama discursiva que tentamos reconstruir aqui. Ele começa com a crítica ao discernimento, *

Autora do livro Les jurisdictions spéciales pour les Mineurs, citada várias vezes por Mineiro.

[EC4] Comentário: Compreender ou comprehender?

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propõe uma nova justiça para menores, protetora, tutelar e maternal. E, sintomaticamente, acaba ameaçador, alertando para medidas severas quando necessário. Os reformadores que modificaram a legislação sobre a menoridade no Brasil do início do século estavam imbuídos de “boas intenções” para com a infância e a adolescência, mas criaram, acima de tudo, um novo dispositivo de disciplina e controle de um segmento da população que antes parecia ainda indiferenciado, disperso entre as figuras dos expostos, enjeitados, infantes trabalhadores, crianças pobres em geral, que, a partir do Código de 1927, passarão a giram em torno de uma categoria discursiva e institucional única – o menor. Este, assujeitado por um novo projeto de institucionalização, definido pela lei, e que articulava de modo elaborado a ação de instituições estatais e de instituições privadas, passa a ser sujeito de uma nova trajetória jurídica e institucional, que hoje já conhecemos bastante. Este sujeito, partindo das classes pobres, terá no seu horizonte o trabalho ou a delinqüência. Para garantir essa trajetória, a lei concebe os parâmetros gerais, e as instituições garantem a reprodução concreta do processo de sujeição. Assim, a articulação entre abandono e delinqüência, tão evidente nos dias de hoje66, aparece no momento em que emerge e é institucionalizada, deixando de ser evidência. Onde hoje só vemos o menor, a análise histórica mostra uma série de outros agentes e práticas esquecidas, mas que objetivaram novos projetos de sujeição. Estas sujeições apontam também para relações mais amplas, constitutivas da própria história do país. Com isso, a “questão do menor” deixa de ser uma questão à parte, para se

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O discurso da menoridade continua muito presente no país. As idéias de “prevenção” e “proteção” foram a base da “modernização” do tratamento institucional do menor, levada a cabo nas décadas de 60 e 70. A atualidade da crítica ao Código de Menores de 1927 pode ser indicada pelo fato de que alguns juristas ainda o consideram mais perfeito que o Código atualmente em vigor (Cf., por exemplo, Nogueira, 1985, p.XIII)

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inscrever no conjunto da história, mas não na forma já tão gasta da crítica, que a coloca como uma falsa questão, mas sim como um conjunto de práticas específicas que sem dúvida estão articuladas com o contexto histórico mais amplo. A simples denúncia apaixonada, ou a crítica vazia do especialista que afirma, sem maiores reflexões, que são as condições sociais que levam à delinqüência, aparecem, no fim de nossa trajetória analítica, como formulações muito próximas do discurso sobre a menoridade que emergiu com o primeiro Código de Menores, tão próximos que devemos perguntar se não fazem parte dos mecanismos de produção e reprodução desse amplo projeto de sujeição do menor. Nosso trabalho, porém, não quer se inscrever numa ampla denúncia da mistificação que envolve o problema do menor, pois isto nos levaria de volta ao discurso e às práticas que queremos criticar. A crítica, como nós a compreendemos, só é eficaz se for rigorosa, evitando generalizações sem apoio empírico. Se a interpretação proposta neste trabalho é possível, é porque já podemos equacionar o problema da menoridade em outros termos. Se interpretamos é porque estamos reagindo à pobreza dos enunciados atuais ao colocarmos a possibilidade de novos discursos e de novas práticas. Assim, a dissolução da trama discursiva e institucional que nos impede de pensar as práticas relativas à menoridade só avança com o avanço das próprias pesquisas, e são os caminhos para os quais apontam nosso trabalho que mais interessam em termos de conclusão. Recuperamos aqui apenas um fio do processo de constituição de um novo discurso e de novas práticas institucionais, ligadas à menoridade. A ampliação das pesquisas aponta para muitos caminhos possíveis de análise. Podemos, no momento, indicar dois desses caminhos. O primeiro consistiria numa pesquisa histórica sobre as

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instituições disciplinares67 voltadas para os menores abandonados e delinqüentes, que começam a surgir no início do século no Brasil. O segundo consistiria numa análise do funcionamento dos tribunais para menores, definidos pelo Código de 1927. Esses dois caminhos, amplos o suficiente para comportarem inúmeras pesquisas, são complementares ao trabalho por nós realizado e podem contribuir mais para a compreensão do processo de sujeição da menoridade. Mesmo a teia discursiva por nós estudada, deve ser ampliada, não apenas através da busca de novos textos no campo das discussões jurídicas da época, mas também através do estudo da articulação desses discursos com outros campos discursivos, como o discurso médico, já por nós mencionado. Estes e outros caminhos podem ser seguidos, no futuro, por novas pesquisas68.

67

A análise das práticas disciplinares no Brasil coloca muitos problemas que ainda não foram satisfatoriamente equacionados. A violência, por exemplo, parece atuar aqui, ao lado dos mecanismos disciplinares. O próprio Mello Mattos mostrava sua insegurança em relação ao novo projeto disciplinar de institucionalização dos menores, ao manifestar seu temor de que a reforma dos delinqüentes sem castigos corporais fosse apenas um “sonho irrealizável” (apud Mineiro, op.cit., p.468) Mesmo os processos de tutelarização dos agentes sociais se mostram bastante complexos para a análise, já que as práticas tutelares se constituem aqui num contexto histórico onde as relações contratuais não se consolidaram plenamente. 68 O trabalho de Fonseca (1989), sobre a circulação de crianças na cidade de Porto Alegre, no início do século, aponta para um caminho interessante de pesquisa relativo ao tema por nós estudado. Também o projeto de pesquisa de Netto (1988), sobre o tratamento dado à infância desvalida na cidade de São Paulo, entre 1910 e 1930, pode esclarecer novos aspectos relativos à institucionalização da menoridade.

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