A epistemologia de Ludwik Fleck e o ensino de Ciências: subsídios para um conceito de divulgação científica

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A epistemologia de Ludwik Fleck e o ensino de Ciências: subsídios para um conceito de divulgação científica Lucas Guimarães Barros

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Introdução Observa-se na pesquisa em Ensino de Ciências a ascensão de determinadas tendências pedagógicas, oriundas de reflexões sobre a existência de lacunas no aprendizado desta área. Uma dessas tendências é a inserção da História e Filosofia da Ciência no ensino, destinada a promover melhorias tanto no ensino como na compreensão dessa temática, a fim de estimular uma visão crítica da ciência e favorecer a formação de valores e atitudes do cidadão (FILHO, 2012, p. 66; ARAUJO, CALUZI, CALDEIRA, 2006, p. 31). Outra tendência recorrente na pesquisa atual trata do ensino de ciências em espaços não-formais e da divulgação científica, embora sejam comuns algumas dificuldades relacionadas ao conceito de divulgação, tendo em vista não ser uma expressão consensual entre os pesquisadores (MARANDINO et. al., 2003, p. 1), recebendo assim uma polissemia de significados. Como se não bastasse, na literatura, encontram-se termos e expressões equivalentes cujos significados também são os mais diversos e, por vezes, se confundem com o conceito de divulgação científica, tais como: popularização da ciência, comunicação pública da ciência, letramento científico, alfabetização científica, difusão científica, disseminação científica, vulgarização da ciência, etc. (MASSARANI, 1998; BARROS, 2014, p. 17). Foge ao objetivo deste trabalho, conceituar e problematizar cada um desses conceitos. No entanto, entendemos como necessário para o engajamento do cidadão em questões diretamente relacionadas ao seu cotidiano e à sociedade, a realização de atividades promotoras de cultura científica, sendo a divulgação da Ciência uma escolha que acreditamos ser possível para este fim. A discussão que segue neste ensaio, busca nas ideias de Ludwik Fleck (1896 – 1961) elementos a serem tomados como referência para discussão da educação em ciências. Especificamente se tratando do conceito de divulgação científica, onde a noção fleckiana de círculos (esotérico e exotérico) e de comunicação entre esses dois espaços, lança luz a um modo de fazer divulgação da Ciência no qual os conhecimentos sofrem processos de reelaboração, a fim de que se Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência / Faculdade de Ciências / Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. [email protected]. 1

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tornem inteligíveis ao público leigo. Indo de encontro a visões de senso comum sobre a atividade científica e a natureza da ciência (KOSMINSKY; GIORDAN, 2002), a concepção fleckiana de Ciência valoriza os aspectos históricos e sociológicos desta e, consequentemente, a maneira como ela está envolvida na sociedade, como também as implicações e desdobramentos sobre a mesma. Ludwik Fleck2 Considerado precursor da Sociologia da Ciência, e tido como “o Gregor Mendel da História e Filosofia da Ciência” (BONAH, 2002, apud STUCKEY et. al, 2015, p. 286), Ludwik Fleck foi um microbiologista judeu-polonês, nascido em 1896 na cidade de Lwöw, atual Ucrânia. Estudou Medicina na Universidade de Kazimierz (Lwöw), especializando-se em Microbiologia. Durante seus estudos na Universidade, foi assistente do famoso médico Rudolf Weigl, considerado especialista na época no tratamento de Tifo. Os primeiros escritos de Fleck surgiram em 1927, quando publicou seu primeiro trabalho envolvendo Filosofia da Medicina, intitulado Some Specific Features of the Medical Way of

Thinking, e, posteriormente em 1929, publicou Crisis of 'Reality', apresentando as primeiras ideias da sua epistemologia. Atribui-se às ideias deste último trabalho as influências da revolução Quântica, ocorrida naquele período (SEP, 2012).

Figura 1. Ludwik Fleck. Fonte: , acesso em: 27 ago. 2015

Em 1941, a cidade de Lwöw é invadida pelos nazistas alemães. Fleck, juntamente com sua esposa, foi preso e enviado posteriormente para o campo de concentração de Auschwitz, sendo colocado pelos nazistas para trabalhar com estudos bacteriológicos no hospital do campo de Uma biografia mais extensa de Ludwik Fleck pode ser consultada na Introdução de GDFC, escrita por L. Schäfer e T. Schnelle. 2

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concentração. Pouco tempo depois, seria enviado para outro campo de concentração, o de Buchenwald. Com a queda do Nazismo, Fleck retorna para Lwöw, deixando esta pouco tempo depois em função da ocupação soviética. Estabeleceu-se na cidade polonesa de Lublin, onde começou a trabalhar no instituto de microbiologia na Universidade Marie Skłodowska-Curie3. Em 1957, mudou-se com sua esposa para Israel a fim de ficar próximo do seu filho, tendo atuado por pouco tempo no instituto de pesquisas biológicas na cidade isralenese de Ness Ziona. Com a saúde debilitada, faleceu em 1961, vítima de um ataque cardíaco. Ao longo de sua trajetória, Fleck interessou-se pelos escritos de diversos filósofos e sociólogos. O seu principal trabalho, Gênese e Desenvolvimento de um Fato Científico4, lança uma compreensão da evolução do conceito de sífilis e do desenvolvimento de um padrão de testes para detecção desta, conhecido como Reação de Wassermann. Em GDFC, Fleck analisa os aspectos epistemológicos relacionados ao desenvolvimento de testes para tratamento desta doença. Principais conceitos Para Fleck, a teoria do conhecimento assume um significado estritamente coletivo ao invés de individual, uma vez que o sujeito está incluído em uma comunidade de pesquisadores que, por sua vez, está envolvida num complexo de atividades de pesquisa. Neste sentido, a concepção fleckiana opõe-se à ideia comum do cientista como um sujeito a frente do seu tempo, referindo-se ao pesquisador que, por esforço unicamente próprio e desenvolvimento individual da pesquisa, seria capaz de revolucionar a Ciência da sua época. Ao contrário, a produção do conhecimento científico está diretamente relacionada a um saber predominante no coletivo de pesquisadores. À pesquisa científica dessa comunidade estão atribuídas a cooperatividade, coletividade e interdisciplinaridade, onde a inserção e manutenção do sujeito nesse coletivo, está ligada a três fatores sociais que influenciam na atividade do conhecimento: 1) a educação (aprendizado adquirido); 2) a tradição (estabelecimento de novos conhecimentos a partir de conhecimentos anteriores) e; 3) o efeito da sequência do processo de conhecimento (o que está à margem das concepções decorrentes) (FLECK, 2010, p. 13 - 14). Surge a partir daí o conceito de Nesse período, Fleck publicou dois outros trabalhos, em polonês, intitulados Problems of Science of Science e To Look, To See, To Know. No entanto, esses trabalhos não acrescentariam algo à sua epistemologia, publicada na década de 1930 3

(SEP, 2012). Daqui em diante, abreviado pela sigla GDFC. Essa mesma obra foi publicada originalmente em Junho de 1935 na Suíça. Sua circulação, entretanto, foi bastante baixa: das 640 cópias impressas, apenas 200 foram vendidas na época. As ideias de Fleck passaram a ser reconsideradas após a publicação de A Estrutura das Revoluções Científicas, de Thomas S. Kuhn, nos anos 1960, que menciona no prefácio do seu livro a influência que recebeu do trabalho de Fleck. Pouco tempo depois, o livro é traduzido para o inglês (1976) e finalmente publicado em 1979 (STUCKEY et. al, 2015, p. 282). 4

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Coletivo de Pensamento, sendo este uma “comunidade de pessoas que trocam pensamentos ou se encontram numa situação de influência de pensamentos” (FLECK, 2010, p. 82). Nesse coletivo, os primeiros fatos, subordinados à história e à cultura, são conhecidos como protoideias, que posteriormente, mediante as atividades dos pesquisadores do coletivo, constituirão o corpus teórico do conhecimento científico, podendo ser descartadas no futuro5.

Figura 2: Formação do saber segundo a perspectiva fleckiana

No núcleo do coletivo de pensamento encontra-se a produção de conhecimento científico, vinculada aos pressupostos teóricos por ele adotados. Tais pressupostos constituem o chamado estilo

de pensamento, e são fundamentais para a construção do saber desse coletivo (FLECK, 2010, p. 19). O conceito de estilo de pensamento tenta abranger tanto os pressupostos a partir dos quais o grupo constrói seu estoque científico de conhecimento, quanto sua unidade conceitual e prática. Um estilo de pensamento formula não só o conhecimento que é considerado como garantido por um pensamento coletivo dado, mas também seu corpo de práticas: métodos e ferramentas usados no exame da evidência e critérios para julgar seus resultados. Ele define o que deve ser considerado como um problema científico e como lidar com este problema (LÖWY, 1993, p. 237).

Em oposição à tese empirista da concepção de um fato a partir do experimento, Fleck recorre à Psicologia da Forma (Gestaltpsychologie) para afirmar que o coletivo de pensamento exerce influência no modo como o indivíduo olha para o experimento, funcionando como uma espécie de “lente” que amplia a visão do observador. Além disso, a noção da não interferência da observação pela condição do sujeito que a realiza é criticada por Fleck, que a considera como um mito. Ao se comportar desta forma, o observador estaria agindo “como uma espécie de conquistador à maneira de Júlio César, que ganha suas batalhas seguindo a fórmula 'Veni, vidi, vici' [Vim, vi, venci]. Ele quer saber alguma coisa, No caso investigado por Fleck, o desenvolvimento do conceito da Sifilis, as primeiras concepções ou proto-ideias sobre a natureza da doença surgiram no final Idade Média. Num período marcado por guerras e catástrofes naturais, as primeiras concepções sobre a natureza da Sífilis provinham da Astrologia (afirmando como possível causa da doença efeitos da conjunção entre Saturno e Júpiter). Quanto ao mecanismo de cura da doença, utilizou-se inicialmente o Mercúrio para tratamento, sendo identificada a sua toxicidade posteriormente. 5

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faz a observação ou o experimento - e logo sabe” (FLECK, 2010, p. 133). Porém, haveria um padrão para o desenvolvimento de fatos científicos, conduzido a partir de uma percepção visual confusa até uma percepção da forma (Gestaltsehen), sendo esta última um distintivo importante do estilo de pensamento. Esse processo é dinâmico, e na medida que são constituídas certas capacidades de percepção de certas formas do estilo de pensamento, há o desaparecimento das faculdades de percepção de outras formas previamente estabelecidas (FLECK, 1935, p. 61). O coletivo confere ao indivíduo as regras e procedimentos necessários à observação, e o indivíduo passa a enxergar com os olhos do coletivo de pensamento do qual faz parte6. A frase “Schaudinn reconheceu spir. pallida7 como agente da sífilis'', sem qualquer acréscimo, carece de sentido unívoco, pois não existe “sífilis em si”'. Existia apenas um conceito da época, em cuja base Schaudinn atuou ampliando-a. Tirada desse contexto, não resta à “sífilis” nenhum sentido e nenhum “conhecimento”, de forma isolada, o termo diz tão pouco quanto “maior”' e “à esquerda” (FLECK, 2010, p. 82).

Na análise do surgimento da reação de Wassermann, Fleck identifica a sua construção como resultado da experiência do coletivo de pesquisadores, onde os primeiros resultados positivos no estudo de anticorpos da sífilis tinham percentual bastante baixo; só após o trabalho de colaboradores anônimos que se conseguiu um patamar muito maior de resultados positivos obtidos. Finalmente, o conceito de fato científico na concepção fleckiana opõe-se àquele considerado pelo empirismo lógico ao considerá-lo como: (…) uma relação de conceitos conforme o estilo de pensamento, que, embora possa ser investigável por meio dos pontos de vista históricos e da psicologia individual e coletiva, nunca poderá ser simplesmente construída, em sua totalidade, por meio desses pontos de vista (FLECK, 2010, p. 132).

No desenvolvimento do fato científico, o experimento tem caráter, a grosso modo, iterativo. O pesquisador vai a campo inicialmente tendo a expectativa de sucesso da atividade experimental, desconsiderando eventuais aspectos de natureza metodológica, conceitual, algorítmica, etc., e a manipulação do experimento torna-se um processo seletivo, organizado pela comunidade de pesquisadores reunidos em torno daquele assunto. Esses primeiros experimentos são categorizados

Na concepção Kuhniana, em contrapartida, os paradigmas originaram-se em pontos distintos no tempo, sendo que apenas um deles é estabelecido, e a comunidade científica torna-se, portanto, paradigmática. Kuhn entende o estabelecimento de um paradigma como o “desfecho” de uma análise de dois ou mais modos de pensamento. Fleck entende, entretanto, que os estilos de pensamento estão em constante mudança, exercendo certo grau de coerção sobre o pensamento científico. Enquanto Fleck endereça as principais questões relacionadas a produção do conhecimento, Kuhn inclina-se mais para o estabelecimento do conhecimento (STUCKEY et. al., 2015, p. 288). 6

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A Spirochaeta pallida corresponde ao micro-organismo causador da Sífilis em seres humanos.

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por Fleck como inacabados e importantes por não serem reproduzíveis8 e, portanto, ricos em diversos aspectos. A partir daí, emergem questões novas que, por sua vez, influenciam no sujeito do conhecimento. Ao se tornarem reprodutíveis, os experimentos “não são mais necessários para os verdadeiros fins de pesquisa, pois servem apenas para fins demonstrativos ou constatações específicas” (FLECK, 2010, p. 134). Se um experimento fosse claro, ele seria desnecessário: pois, para formar um experimento de maneira clara, deve-se conhecer seu resultado de antemão: caso contrário, ele não pode ser limitado, nem direcionado para um fim. Quanto mais rico em aspectos desconhecidos e quanto mais nova uma área de pesquisa, tanto mais confusos são os experimentos (FLECK, 2010, p. 135).

Paralelamente à observação, Fleck afirma que o experimento seria “uma observação já direcionada” (idem, p. 136). Em outras palavras, a observação deixaria de ser grosseira e caótica ao adquirir elementos que a direcione. Logo, a execução do experimento é parametrizada por novos elementos, originados a partir de ocasiões anteriores em que foi realizado. Conforme os novos fatos se organizam, novos experimentos são realizados, desencadeando novas observações, subordinadas aos resultados desses. O experimento se torna uma observação já direcionada pelo seu aspecto heurístico: hipóteses são levantadas previamente, conforme são feitas as observações, e parte-se com elas para a atividade experimental. Fleck cita como exemplo um estudo bacteriológico realizado com um estreptococo. Conforme eram obtidos os resultados, o trabalho se transformou num estudo de variabilidade de espécimes de estreptococos, ao passo que novos experimentos foram realizados para se constatar se as hipóteses levantadas por ele, em um determinado momento, eram verdadeiras ou não (FLECK, 2010, p. 137). À medida que novos experimentos são realizados, chega-se às respostas “definitivas”9 do problema estudado: nesse momento, a experiência em Fleck surge como termo que abrange a série de experimentos realizados anteriormente, culminando no estabelecimento de um conhecimento reconhecido pelo coletivo de pensamento (novo estilo de pensamento). Isso não significa, no entanto, que todas as questões previamente levantadas tenham sido respondidas, mas que algumas delas podem ser silenciadas enquanto se pode manter “estabilidade” ao estilo de pensamento, ou mesmo Nas sucessivas realizações do experimento, constatam-se novos fatos e novas variáveis vêm à tona, às quais serão somadas à realização do próximo experimento. Por essa razão, para Fleck, os primeiros experimentos (observações direcionadas) não são reproduzíveis, visto que “as designações e os conceitos surgidos durante os trabalhos não são adequados para a observação grosseira” (FLECK, 2010, p. 138). 8

O caráter “definitivo” das respostas para o problema investigado refere-se ao sistema recém-consolidado pelo coletivo de pensamento, que tende a resistir às contradições que possam surgir (FLECK, 2010, p. 69). Nem sempre isso acontece, pois a contradição pode estar dentro do estilo de pensamento, causando rompimento do período de “harmonia” do fato científico. (idem, p. 143). 9

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declaradas como impensáveis. Fleck cita como exemplo a consolidação da reação de Wassermann. Os relatos de Wassermann sobre sua reação somente apresentam a descrição da relação entre a sífilis e uma característica do sangue. No entanto, isso não é o mais importante, mas sim as experiências adquiridas por seus discípulos e os discípulos destes sobre o modo de uso e o potencial da sorologia, experiências sem as quais tanto a reação de Wassermann quanto muitos outros métodos sorológicos não teriam se tornado reprodutíveis nem aplicáveis (FLECK, 2010, p. 146, grifo nosso).

Divulgação científica As ideias de Fleck sobre a comunicação entre a esfera de pesquisadores e a esfera pública fornecem-nos alguns subsídios para esboçarmos um conceito para a divulgação científica. Começando pelo coletivo de pensamento, entende-se que o indivíduo pode pertencer a diferentes coletivos dos mais variados contextos (político, cultural, religioso, etc.), e essa multiplicidade é considerada como favorável à comunicação entre os círculos esotérico e exotérico. O círculo esotérico corresponde à comunidade científica, formada pelos especialistas que publicam seus trabalhos em periódicos de circulação na área. As informações veiculadas a esses trabalhos não são definitivas, mas analisadas, comentadas e criticadas pelos pares que avaliam esses trabalhos. No círculo esotérico também encontram-se os

especialistas gerais, são aqueles que difundem o conhecimento científico aceito entre a comunidade científica, geralmente em manuais e livros-texto. A figura abaixo apresenta dois exemplos da produção científica desses profissionais.

a)

b)

Figura 3. Produção de um especialista, divulgada em periódico especializado (3a), e produção de um especialista geral, amplamente difundida em forma de manual científico (3b).

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Já o círculo exotérico é formado10 por profissionais de outras áreas que têm contato com o conhecimento científico produzido pelos especialistas gerais. Ambos os círculos não são incomensuráveis11, mas trocam informações especialmente em situações em que emergem questões de implicações éticas, sociais, ambientais, entre outras. A fim de se tornar inteligível ao círculo exotérico, a informação que parte da comunidade esotérica sofre processos de seleção, simplificação, descrição e ilustração (BAUER, 2009, apud STUCKEY et. al., 2015, p. 286), tornando claro, fácil e evidente o conhecimento científico divulgado (idem, p. 286).

Figura 4. Modelo de interação entre a comunidade científica e população em geral. Fonte: Stuckey et. al, 2015, p. 294, tradução livre.

É importante destacar que a simplificação referida anteriormente não significa subtração deliberada de informações complexas ao público, mas sim a construção de um conhecimento científico que seja acessível ao público em geral. Participam desse processo diferentes agentes, sendo o mais popular deles os veículos midiáticos. Cada um desses veículos possui um discurso de divulgação científica próprio, sofrendo influências de diversas formas (SANTOS, 2007, p. 13 – 14). Tais influências

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Além desses o círculo exotérico é constituído pelo público em geral (leigo).

Nesse aspecto, a incomensurabilidade na concepção de Thomas Kuhn está mais ligada um conflito entre paradigmas concorrentes, enquanto que para Fleck não haveria conflito, mas sim uma dificuldade na comunicação entre coletivos de pensamento diferentes. Para maiores esclarecimentos, vide Peine (2011). 11

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estão diretamente ligadas ao objetivo preestabelecido para a divulgação da Ciência que, de acordo com a concepção fleckiana, espera-se agregar ao público uma visão crítica da natureza da ciência, dos modos em que o conhecimento científico é produzido, desenvolvido, aplicado e difundido entre a comunidade de especialistas e a sociedade como um todo. Finalmente, como reflexo dessas ações, objetiva-se o engajamento do público em diversas questões12. Por fim, com base nos principais conceitos do referencial fleckiano, poderíamos esboçar o conceito de divulgação divulgação científica como um empreendimento social pelo qual a comunidade

científica, constituída pelos pesquisadores inseridos em um círculo esotérico, difunde informações a um público leigo, utilizando uma linguagem acessível e clara ao círculo exotérico, tendo como principal objetivo o estímulo a uma concepção crítica sobre a natureza da Ciência, e como resultado a observação do engajamento público da sociedade em questões científicas, para o exercício da cidadania. Conclusão Seria a Ciência um empreendimento constituído pela produção individual de cientista? Segundo Ludwik Fleck, Não. Sempre que um novo fato científico é consolidado, está atrelado a ele um espectro de pesquisas realizadas ao longo de um período por uma comunidade de pesquisadores, cujos resultados são depois divulgados sob o formato de papers para que possam ser avaliados e discutidos, a fim de se tornarem consenso entre a comunidade científica. Quando se olha o lado formal do universo científico, sua estrutura social é óbvia: vemos um trabalho coletivo organizado com divisão de trabalho, colaboração, trabalhos preparativos, assistência técnica, troca de ideias, polêmicas, etc. Muitas publicações mostram o nome de vários autores que trabalham em conjunto. Além desses nomes, encontramos, nos trabalhos das ciências exatas, quase sempre o nome da instituição e seu diretor. Há uma hierarquia científica, grupos, adeptos e adversários, sociedades e congressos, periódicos, instituições de intercâmbio, etc. O portador do saber é um coletivo bem organizado, que supera de longe a capacidade de um indivíduo (FLECK, 2010, p. 83).

Uma vez consolidado o conhecimento entre a comunidade, a divulgação científica surge então como resposta à necessidade de comunicação entre a comunidade de pesquisadores e aquela a qual pertence o público em geral. Para isso, o conhecimento científico sofre alguns processos de

Essas questões remetem a temáticas controversas na Ciência que exigem do cidadão uma posição crítica e favorável ao bem comum da sociedade. São exemplos questões como a construção de usinas hidrelétricas em áreas de potencial risco de desastre ambiental, produção e consumo de alimentos transgênicos, uso de agrotóxicos na agricultura, entre outras. 12

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transformação a fim de que se torne cognoscível ao círculo exotérico. Há de se ter cuidado, no entanto, com possíveis simplificações que são feitas. Comentando as críticas de Martins (1998) a trabalhos que distorcem a História da Ciência, Filho (2012) alerta para os perigos de uma simplificação deliberada e exacerbada do conhecimento científico, ao passo que este se torne inteligível a um público em especial. Em se tratando da história e filosofia da ciência, a divulgação da Ciência se torna essa tarefa ainda mais complexa. Por fim, as ideias de Fleck têm ganhado crescente notoriedade entre os pesquisadores das mais diversas áreas, em trabalhos que discutem a natureza dos conhecimentos, tendo como pano de fundo a sua epistemologia. Como exemplo, há o interessante trabalho de Grzyboswski, Sak e Pawlikowski (2013), que, à luz das principais ideias de Fleck, analisa o desenvolvimento dos conceitos relacionados à visão na história da Oftalmologia. Através dessa análise, os pesquisadores identificaram três estilos de pensamento relacionados à evolução histórica dos conceitos da teoria da visão (Grzyboswski, 2013, p. 582): (1) Humoral: o olho era considerado um órgão da visão, cujos componentes mais essenciais deste eram os fluidos; as lentes eram consideradas como uma espécie de “cristal líquido”, que funcionariam como captadoras da imagem, enquanto o nervo óptico era concebido como um tubo de escoamento através do qual as impressões visuais eram comunicadas ao cérebro. O coletivo de cientistas desse estilo de pensamento é formado por Hipócrates, Galeno, Ptolomeu, Aécio de Amida, Hunayn ibn Ishaq, Avicena e William de Conches. (2) Iatromecânico13: lente concebida como “cristal líquido”, em que a luz a atravessa e esta capta a imagem; nervo óptico considerado como duto que transfere as impressões visuais para o cérebro. Além disso, o olho é considerado um bioinstrumento óptico. A visão é formada no fundo do olho (retina ou coroide). Coletivo de pensadores era formado por Andreas Vesalius, Leonardo da Vinci, Francesco Maurolico, Galileu Galilei, Renè Descartes, Johannes Kepler, Christoph Scheiner, Edme Mariotte. (3) Microtecido: olho concebido como bioinstrumento óptico; lentes consideradas como uma estrutura em que a luz a atravessa; a visão é formada no fundo do olho; há exploração microestrutural da retina, e o conceito de cones e bastonetes emerge na psicologia da visão. Principais pensadores desse coletivo foram Anthony van Leeuwenhoek, Francois Pourfour du Petit, Johann Gotfried Zinn, William Porterfield, Jean Mery, Herman Helmholtz e Samuel T. Soemmering.

Busca de explicações das doenças do corpo humano com base em processos puramente mecânicos. Maiores detalhes, vide: https://pt.wikipedia.org/wiki/Iatroquimica 13

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Em levantamento realizado recentemente sobre a inserção da epistemologia de Fleck na pesquisa em educação em Ciências no Brasil, Lorenzetti, Muenchen e Slongo (2013) encontraram 41 trabalhos entre dissertações (23) e teses (18), sendo que os primeiros estudos a respeito dessa epistemologia surgiram em meados da década de 1990. Os autores também identificaram que a área da saúde concentra a maior quantidade de trabalhos (total de 23), seguida da Educação em Ciências (13) e Filosofia da Ciência (5) (LORENZETTI; MUENCHEN; SLONGO, 2013, p. 185). Outros autores têm buscado no referencial fleckiano conceitos para se discutir questões de cunho sociocientífico (STUCKEY et al., 2015) ou para fundamentação de uma abordagem histórica no ensino de Ciências (DELIZOICOV e DELIZOICOV, 2012, p. 229). Referências ARAUJO, E. S. N. N.; CALUZI, J. J.; CALDEIRA, A. M. A. Divulgação e cultura científica. In: ARAUJO, E. S. N. N.; CALUZI, J. J.; CALDEIRA, A. M. As (orgs.). Divulgação científica e ensino de Ciências: estudos e experiências. São Paulo: Escrituras Editora, 2006 (Série Educação para a Ciência n. 7). BARROS, L. G. A formação do monitor para atividades de divulgação científica: o caso do Projeto “Astronomia no Recôncavo da Bahia”. Trabalho de Conclusão de Curso. Amargosa – BA: CFP/UFRB, 2014. BASTOS FILHO, J. B. Qual história e qual filosofia da Ciência são capazes de melhorar o ensino de Física? In.: PEDUZZI, L. O. Q.; MARTINS, A. F. P.; FERREIRA, J. M. H. (orgs.). Temas de História e Filosofia da Ciência no Ensino. Natal: EDUFRN, 2012, p. 65 – 83. CASTILHO, N.; DELIZOICOV, D. Trajeto do sangue no corpo humano: instauração – extensão – transformação de um estilo de pensamento. In: II Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências. Valinhos, 1999. p. 1 – 13. FLECK, L. Gênese e Desenvolvimento de um Fato Científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010. GRZYBOSWSKI, A.; SAK, J.; PAWLIKOWSKI, J. The history of scientific concepts of vision in relation to ludwik fleck’s thought-styles. Acta Ophthalmologica, v. 91, p. 579 – 588, 2013. KOSMINSKY, L.; GIORDAN, M. Visões de Ciências e Sobre Cientista Entre Estudantes do Ensino Médio. Química Nova na Escola, n. 15, mai. 2002. LORENZETTI, L.; MUENCHEN, C.; SLONGO, I. P. A recepção da epistemologia de fleck Pela pesquisa em educação em ciências no Brasil. Revista Ensaio: Pesquisa em Educação em Ciências, v. 15, n. 3, p. 181 – 197, set – dez 2013. LÖWY, I. Fleck e a Historiografia Recente da Pesquisa Biomédica. In: PORTOCARRERO, V. (org.). Filosofia, História e sociologia das Ciências. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1994, p. 233 – 249. 11

MARANDINO, M. et. al. A Educação Não Formal e a Divulgação Científica: o que pensa quem faz. Atas do IV Encontro Nacional de Pesquisa em Ensino de Ciências. Bauru – SP, 2003. MARTINS, R. A. Como distorcer a física: considerações sobre um exemplo de divulgação científica 2 Física moderna. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, Florianópolis, v. 15, n. 3, p. 265-300, jan. 1998. MASSARANI, L. A divulgação científica no Rio de Janeiro: algumas reflexões sobre a década de 20. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação). Rio de Janeiro: UFRJ, 1998. PEINE, A. Challenging incommensurability: What we can learn from ludwik fleck for the analysis of configurational innovation. Science & Education (Dordrecht), n. 49, p. 489 – 508, 2011. SANTOS, S. S. Ciência, discurso e mídia: a divulgação científica em revistas especializadas. Dissertação de mestrado. São Paulo: USP, 2007. SEP. Stanford Encyclopedia of Philosophy: Ludwik , acesso em: 28 ago. 2015.

Fleck.

Disponível

em:

STUCKEY, M. et al. The philosophical works of ludwik fleck and their potential meaning for teaching and learning science. Science & Education (Dordrecht), n. 24, p. 281 – 298, 2015.

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