A epopeia privada e pequenina de A.M. Pires Cabral

May 29, 2017 | Autor: Tamy Macedo | Categoria: Poesia portuguesa contemporânea
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A epopeia privada e pequenina de A.M. Pires Cabral
Tamy de Macedo Pimenta (UFF)

[...] persistir na terra,
saliente por obra de piedosas
unidades de relva,
um gerador de seiva e pouco mais –
meu modo de durar.
(PIRES CABRAL, 2006, p.148)

Em "A tarefa do tradutor", Walter Benjamin assinala que a tradução, sendo posterior ao original, permite a continuação de sua vida: sua "pervivência", já que, segundo o pensador, nas traduções "[...] a vida do original alcança, de maneira constantemente renovada, seu mais tardio e mais abrangente desdobramento" (BENJAMIN, 2013, p.105). Acredito que, de maneira semelhante, textos que estabelecem diálogos com uma obra também contribuem para sua "pervivência", retomando e recriando suas ideias assim como as traduções. Nesse sentido, a obra de Luís de Camões "pervive" por meio de suas traduções (e aqui penso não só em suas versões em outras línguas, mas também em traduções para outras mídias, como a adaptação d'Os Lusíadas para a literatura de cordel ou a apropriação do soneto V pela canção da banda brasileira Legião Urbana) e por suas releituras praticadas por escritores que lhe são posteriores. Dentro dessa segunda vertente, encontram-se numerosos autores, sobretudo portugueses, dos quais destaco o poeta e romancista contemporâneo António Manuel Pires Cabral para os fins desta fala.
Quase quatro séculos separam o falecimento de Camões da publicação do primeiro livro de poemas de A.M. Pires Cabral, Algures a Nordeste, que marcou a estreia do poeta transmontano em 1974. Atualmente, apesar dos mais de trinta títulos publicados entre poesia, romance, contos e ensaios, a obra deste autor ainda desperta pouca atenção de leitores e críticos, como observa Joaquim Manuel Magalhães, que lhe reserva um espaço em Dois Crepúsculos argumentando que:
Se, no âmbito da poesia portuguesa mais recente, pudéssemos falar de autores mais esquecidos, António Manuel Pires Cabral seria um deles [...] Tenho a impressão de que uma outra vantagem, para lá de pertencer a uma geração votada ao alheamento, coloca a poesia de A.M. Pires Cabral num espaço onde as páginas literárias promocionantes não chegam: o afastamento do centro.
(MAGALHÃES, 1998, p.159)

Esse afastamento do centro, além de se referir ao âmbito biográfico do poeta (que nasceu e ainda reside em Trás-os-Montes, no nordeste português, onde atua ativamente como animador cultural), estende-se à sua obra, cuja temática atravessa os campos e montes tão distantes do "mar salgado" (PESSOA, 1934) português. Não se trata, entretanto, de uma poética regionalista, mas sim, como salienta MAGALHÃES (1998, p.160), de "[...] um olhar enraizado num real particular, mas perspectivando nele os ímpetos de presença do natural e do vivido, o vigor com que a vida irrompe das situações quotidianas, o fulgor com que as coisas humildes criam um espaço de resistência à degradação do mundo" através de "uma contida fala sobre as coisas, por uma distribuição do real pelas palavras de tal modo que delas se liberta uma ética da transformação e uma apaixonada solidariedade" (MAGALHÃES, 1998, p.163).
É dentro desse contexto que A.M. Pires Cabral dialoga com a escrita camoniana, trazendo alguns dos motivos desta para a vivência no campo e, dessa forma, recuperando "para uma leitura do seu próprio tempo alguma da visão do mundo expressa na poesia de Camões" (MAGALHÃES, 1998, p.166). Essa relação entre as duas obras é notável sobretudo em Trirreme, de 1978, em que o autor transmontano escreveu uma série de poemas intitulada "9 pretextos tomados a Camões". Cada um dos nove poemas parte do primeiro verso de algum soneto camoniano, que funciona quase como um mote, e a partir dele se desenvolve estabelecendo deslocamentos no âmbito prosódico e temático, conforme podemos perceber através da comparação entre os dois sonetos que se iniciam com "Não vás ao monte, Nise, com teu gado":
CAMÕES
AMPC
Não vás ao monte, Nise, com teu gado,
que eu lá vi que Cupido te buscava;
por ti somente a todos perguntava,
no gesto menos plácido que irado.

Ele publica, enfim, que lhe hás roubado
os melhores farpões da sua aljava;
e com um dardo ardente assegurava
traspassar esse peito delicado.

Fuge de ver-te lá nesta aventura,
porque, se contra ti o tens iroso,
pode ser que te alcance com mão dura.

Mas ai! que em vão te advirto temeroso,
se à tua incomparável fermosura
se rende o dardo seu mais poderoso!
Não vás ao monte, Nise, com teu gado.
Guarda o leito nos braços que constrangem
as dóceis tessituras desse corpo,
o qual verás melhor apascentado
que o gado que porfias em levar,
presa de amor e sono, a tal deserto.
Mais força traz amor pela manhã,
cevado do pretérito descanso.
Deixa o gado, de solto e não temente,
roer ervas e flores dos canteiros
de que usas enfeitar os teus cabelos.
Que a hora nos convoca para as brandas
paragens onde o monte te não lembre
e a ríspida grinalda entreteçamos.

Além de quebrar o esquema de rimas do soneto camoniano, o poema de AMPC enuncia um movimento contrário ao encontrado nos versos originais de "Não vás ao monte, Nise, com teu gado", já que, enquanto neste o eu lírico aconselha que Nise não vá ao monte para fugir da ira de Cupido (tentanto, dessa forma, escapar ao amor), nos versos pirescabralinos o argumento usado pelo sujeito vai ao encontro da experiência amorosa, que, segundo ele, permitirá ao corpo de Nise ficar "melhor apascentado/que o gado" que ela porfiria em levar. Assim, embora dirijam a Nise o mesmo conselho sobre não ir ao monte, a natureza das alegações distancia os sujeitos poemáticos dos sonetos de Camões e AMPC, tendo este último tecido um canto que apela à fruição da experiência amorosa, contrastando com o temeroso rogo do poema camoniano que em vão busca advertir Nise sobre as investidas do deus do Amor.
Esse deslocamento realizado por A.M. Pires Cabral de uma atitude sobretudo contemplativa e passiva do sujeito amante camoniano em direção à concretização do amor orienta sua reescrita dos poemas do autor das Rimas, como exemplarmente ilustra o soneto que se inicia com "Se me vem tanta glória só de olhar-te", ao qual AMPC contrapõe os versos seguintes:
CAMÕES
AMPC
Se me vem tanta glória só de olhar-te,
É pena desigual deixar de ver-te;
Se presumo com obras merecer-te,
Grão paga de um engano é desejar-te.

Se aspiro por quem és a celebrar-te,
Sei certo por quem sou que hei-de ofender-te;
Se mal me quero a mim por bem querer-te,
Que prémio querer posso mais que amar-te?

Porque um tão raro amor não me socorre?
Ó humano tesouro! Ó doce glória!
Ditoso quem à morte por ti corre!

Sempre escrita estarás nesta memória;
E esta alma viverá, pois por ti morre,
Porque ao fim da batalha é a vitória.
Se me vem tanta glória só de olhar-te -
o que dizer então de percorrer-te
e, usurpando-te o hálito indomado,
subir em espiral aonde acampa
o mais crítico instante de natura:
o derrame em si, suas espigas,
doação, escritura, testamento:
todos os actos prolongando a vida!
Se me vem tanta glória – o que dizer
de lateral jazer in/amorado,
após o impulso haver deixado livre
a via ao pensamento e seus sequazes;
buscar em meu lazer meu mantimento,
a lâmpada latente e devagar.

Embora parta da lírica para elaborar essa série de poemas, AMPC também se aproxima da epopeia camoniana em seus versos, sobretudo ao episódio da Ilha dos Amores, onde os deleites da consumação do amor são cantados. A Ilha, criada por Vênus no canto IX d'Os Lusíadas como um presente para os nautas lusitanos, é caracterizada de maneira voluptuosa, sendo aproximada de imagens corpóreas, como exemplifica a estrofe 54 do poema:
Três fermosos outeiros se mostravam
Erguidos com soberba graciosa,
Que de gramíneo esmalte se adornavam,
Na fermosa Ilha, alegre e deleitosa.
Claras fontes e límpidas manavam
Do cume, que a verdura te viçosa;
Por entre pedras alvas se deriva
A sonorosa linfa fugitiva.
(Lus., IX, 54)

De forma semelhante, a terra cantada por AMPC adquire contornos erotizantes ao longo de toda sua obra poética e, igualmente, na série de poemas aqui enfocada. Campo e corpo se confundem ao constituírem "todo o sentido e ambição" do sujeito poético, que encontra nesse amor seu "modo de durar" (PIRES CABRAL, 2006, P.148) e, por isso, é julgado como perdido pelo mundo desconcertado:
Julga-me a gente toda por perdido
só porque por meu campo elegi
aquele onde pôs amor quermesse
e eu todo o sentido e ambição.
Perdido – quem assim de mão rapace
e de memória estanque colecciona
todo o império e o pecúlio de
dois rios mutuamente tributários.
Perdido – se me acho em cada hora
descoberto de ti, apta pastora,
tomando o sumo das laranjas rasas
que o decúbito apouca no teu peito.
Perdido eu – achado em tais lençóis.
Vede do mundo o desconcerto e manha!
(PIRES CABRAL, 2006, p.174-175)

Os contornos da mulher amada, relacionada a figura de uma pastora, são emprestados à descrição da terra e vice-versa, de modo que se tornam um todo, um só objeto amoroso e desejante ao qual o sujeito dedica seus dias. Longe de um heroi coletivo e representante de um povo como Vasco da Gama o fora n'Os Lusíadas, esse sujeito almeja somente vivenciar as experiências – ora exultantes, ora árduas – proporcionadas por sua terra, construindo uma epopeia privada e pequenina digna de um ser que se sabe "um bicho da terra tão pequeno" (Lus., I, 106):

EPOPEIA PRIVADA

As armas e os barões
foi outra coisa.

Falo de mim e do
que em mim decorre.

Que não ultrapassei
a Taprobana.

Mas perenemente esforçado
em guerras guerras guerras

onde nada prometia
a força humana.

Minha epopeia
privada

pequenina. Nem sequer
ul/trapacear a Taprobana!
(PIRES CABRAL, 2006, p.160-161)




Bibliografia:
BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem (1915-1921). Organização, apresentação e notas de Jeanne Marie Gagnebin; tradução de Susana Kampff Lages e Ernani Chaves. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2013 (2ª edição).
CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Edição organizada por Emanuel Paulo Ramos. Porto: Porto editora, 1978.
______. Lírica Completa II. Prefácio e notas de Maria de Lurdes Saraiva. Vila da Maia: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1980.
MAGALHÃES, Joaquim Manuel. "Sobre a poesia de A.M. Pires Cabral". In: PIRES CABRAL, António Manuel. Artes marginais. Lisboa: Guimarães editores, 1998, p.159-169.
PIRES CABRAL, António Manuel. Artes marginais. Lisboa: Guimarães editores, 1998.
______. Antes que o rio seque: poesia reunida. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006.



Neologismo proposto por Haroldo de Campos (apud BENJAMIN, 2013, p.104)

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