A Era do Rádio - Uma História da Música Popular de Porto Alegre - Capítulo IX

September 20, 2017 | Autor: Arthur de Faria | Categoria: Radio, Música Popular Brasileira, Rádio No Brasil
Share Embed


Descrição do Produto

A Era do Rádio Dante Santoro, Radamés Gnattali e Paulo Coelho foram os primeiros grandes nomes porto-alegrenses de uma geração que viu nascer e crescer o mais importante veículo de comunicação de música em qualquer canto do mundo: o rádio. Do final dos anos 1920 até o começo da década de 50, ele foi tão importante para o desenvolvimento da cultura brasileira que a época ficou conhecida como A Era do Rádio. *

*

*

Ainda que desde 6 de abril de 1919 já existisse a Rádio Clube de Pernambuco (antes mesmo da primeira emissora norte-americana), a data oficial da estreia da radiofonia brasileira é 23 de abril de 1923, quando o doutor Roquete Pinto inaugurou a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro. Pouco mais de um ano depois, sete de setembro de 1924, em Porto Alegre, era inaugurada a Rádio Sociedade Rio-Grandense, com 300 sócios e fundada por, entre outros, o Coronel J. Ganzo e o jornalista Décio Coimbra, do jornal A Federação. Além do compositor Tasso Corrêa, várias vezes diretor do Conservatório de Música de Porto Alegre. Três anos depois - oito de fevereiro do mesmo 1927 em que é inaugurada a Usina do Gasômetro - Carlos Ribeiro de Freitas bota pra funcionar a segunda emissora local, a Rádio Sociedade Gaúcha. As transmissões só iniciariam dia 19 de novembro, no sexto andar do edifício do Grande Hotel, esquina da Rua da Praia com a Caldas Júnior. Nem auditório a emissora tinha, e sua programação original, ainda que recebesse artistas convidados para apresentações ao vivo, basicamente reproduzia discos na frente de um microfone segurado pelo locutor na frente da corneta do gramofone. Quase sempre música erudita. Radamés Gnattali estava sempre ali. Uma orquestrinha regida por Sotero Cosme tocou na inauguração. (Na verdade, se poderia até começar essa história muito antes, com o padre e físico (!!!) porto-alegrense Landell de Moura. Ele foi o autor da primeira transmissão de ondas eletromagnéticas, em plena Avenida Paulista, na São Paulo de 1894. Suas ondas percorreram oito

quilômetros de perplexidade causando, nesta ordem: espanto, susto, repressão, indiferença e esquecimento. Mas isso já é outra história…). Cada vez menos precária a Rádio Gaúcha reinaria absoluta por quase uma década, com direção musical da maior estrela de então, nosso velho conhecido Octavio Dutra. Mais Paulo Coelho (piano), Nilo Ruschel e Alcides Gonçalves (cantores), Paulino Mathias (sax e clarinete) e atrações como o Regional do Piratini – um verdadeiro ninho de cobras, com Dutra no violão, Piratini na flauta, seu irmão Periquito na outra flauta, clarinete, sax alto e sax tenor, Carne Assada no cavaquinho e, no pandeiro, o futuro cantor Caco Velho, aquele mesmo que vendia cigarros batucando no tabuleiro e chamou a atenção de Paulo Coelho. Octavio sairia da rádio em 1934, e o lendário Regional se transferiria para a Rádio Difusora, que justamente nesse ano acabava com a hegemonia da Gaúcha – a Rádio Sociedade Rio-Grandense transmitira, de forma intermitente, por poucos meses. Na nova emissora, a formação seria menor – um quarteto – e um pouco diferente: Carne Assada, Caco Velho e Piratini, mais Japonês no violão. Filho de italianos (seu pai era cantor lírico), Piratini nasceu Antônio Francisco Amábile, em 20 de setembro de 1906, em Porto Alegre. Morador do então 4º Distrito, tocava flauta desde criança, com 16 anos fundara o bloco carnavalesco Passa Fome e Anda Gordo, e entrou pra rádio não como músico, e sim como contador de anedotas. Corriam os anos 20 e ele dirigia um grupo de atores amadores que tinha, entre outros, os futuramente famosos irmãos Walter e Ema D‘Ávila. Até se estabelecer como flautista, tentou as profissões de ator e jornalista – editou um jornalzinho em italiano, chamado D´A Guria, do qual se intitulava diretor, redator, entrevistador, filósofo, senador e engraxate. Mas, a partir do regional, ganhou tanto nome que logo tomaram o caminho mercosulista tão comum para os músicos portoalegrenses das mais variadas épocas: foi-se a tocar em Buenos Aires. Contratados pela Radio Belgrano, em 1938 os rapazes cumpriram uma exitosa temporada de cinco meses pela Argentina, Uruguai e Paraguai. Na volta, vão parar na Rádio Farroupilha, onde Piratini fica até sua morte, em 29 de julho de 1953. Morte tão sentida que a rádio tocou música clássica o dia inteiro, de luto. Afinal, ele era então uma das maiores estrelas da radiofonia local, graças ao seu programa de calouros A Hora do Bicho, apresentado por décadas, sempre aos

domingos – um dos mais populares dos anos 40 e 50 (no A Hora do Bicho, desfalcado de seu líder, que assumia a apresentação, o Regional do Piratini se transformava no Regional do Carne Assada).

Mais uma puta matéria legal chupada da Revista do Globo... Lê aí que vale a pena

Piratini também compôs algumas canções conhecidas em seu tempo, como Mãe Preta e Navio Negreiro, e pelo menos um clássico: (Cevando o) Amargo, em parceria com Lupicínio Rodrigues. Chegou também a realizar o primeiro filme falado do estado, em 1940 – um curta-metragem chamado Cachorricídio. De quebra, ainda fundou a Casa do Artista Rio-Grandense, destinada a auxiliar músicos já de alguma idade, que já tiveram melhores dias na vida. Um empreendedor.

/ Caco Velho feliz da vida no Baixo Acústico Já seu pandeirista Caco Velho nasceu Mateus Nunes, em 12 de março de 1909, em Porto Alegre. Estreou como músico nesse regional, em 32, e, cheio de suíngue e nascido pra sambar, logo soma ao cargo de pandeirista o posto de crooner. Foi um grande boêmio, membro da mesma turma que reunia Lupicínio Rodrigues, Alcides Gonçalves e seus irmãos, Johnson e outros tantos. Ainda na Gaúcha, se transformaria num curinga de primeira, se virando como pianista, contrabaixista ou baterista. Foi uma das principais causas do sucesso da excursão do Regional do Piratini por terras hermanas, e seu momento alto era justamente a interpretação do samba Caco Velho, de Ary Barroso, que lhe rendeu o apelido. Em 37, como vimos anteriormente, era pandeirista e cantor do jazz do pianista Paulo Coelho, que tocava então no Bar Florida. Em 1940, vai tentar a vida em São Paulo e se dá muito bem. Começa na orquestra de um cassino, três anos depois é contratado pela Rádio Tupi PRG 2 e começa sua consagração graças a vocalizações que lhe rendem os epítetos de O Sambista Infernal e O Homem Com Uma Cuíca na Garganta. Já era uma das maiores estrelas da emissora quando estreou em disco, no ano seguinte, cantando o amigo Lupicínio Rodrigues — o samba Briga de Gato, a que se sucede, no ano seguinte, Que Baixo!, parceria de ambos. O que se ouve ali é um cantor de um suíngue bastante diferente de qualquer outro surgido antes dele – Cyro Monteiro incluído. Improvisando polirrítmicas imitações de uma cuíca de uma forma tão

musical que nunca parece número de circo, volta e meia o cara explode em improvisos vocais que serpenteiam nos intervalos da melodia como um ensandecido jazzista. Sem perder nunca a perspectiva do samba.

Caco já coroa, e ainda cheio de chinfra Caco Velho hoje é um nome quase esquecido, a não ser por alguns fanáticos cultores que o guardam como uma seita. Vale procurar. Seu maior sucesso foi o samba Meu Fraco é Mulher. E, como tudo que ele gravou, é nada menos que espantoso. Não é à toa que tanto Túlio Piva quanto Wilson Simonal diziam que o cara era o cara. E considerado moderníssimo, a verdadeira vanguarda paulista da virada dos 40 pros 50, sempre acompanhado pelos melhores grupos, como o lendário regional do violonista Rago. Ou então como vocalista da orquestra do maestro Georges Henri, que tocava na Boate Oásis, ao lado de feras como o saxofonista Bolão e o trombonista e futuro chefe de orquestras paulistas Osmar Milani. Ao longo da década de 50, aparece em filmes clássicos como Carnaval Atlântida e vira habituée de jam sessions de jazz no clube L´Amiral (tocando, e bem, contrabaixo). Emplaca como cantor e compositor o hit Porto Rico, um samba-rumba, e faz eventuais apresentações no Rio de Janeiro, onde também é conhecido, amigo de gente como Dorival Caymmi e Ângela Maria – chegam a dividir os três um show na boate carioca Casabanca em 1951, onde Caymmi lançava Ângela. Aí pinta uma oportunidade em Paris, e lá vai ele. Fica dois anos por lá e, quando volta, se surpreende com o fato de que as portas pareciam todas fechadas.

Grava alguma coisa, como um compacto só com músicas de Túlio Piva, pela Copacabana, em 1961. Mas não consegue retomar a carreira e passa a se dedica a administrar casas noturnas paulistas. Desiludido, vai novamente pro exterior. Mora uns tempos em Los Angeles, outros em Lisboa, até que, em 1970, volta definitivamente para São Paulo. Bate novamente em antigas portas, em busca de shows ou oportunidade de gravar, mas o cenário havia mudado definitivamente. Mais uma vez, ninguém se interessou. Morre em 14 de setembro de 1971, novamente dono de casa noturna. Como compositor, deixa pelo menos um clássico: Mãe Preta, parceria com nosso conhecido Piratini, Antônio Amábile, gravada até pela portuguesa Amália Rodrigues (que mudou a letra para Barco Negro, e, com essa canção, no filme Os Amantes do Tejo, se tornou um nome internacional). *** Eram cinco e meia da tarde do dia três de outubro de 1930 quando as forças comandadas por Osvaldo Aranha e Flores da Cunha saíram do Quartel da Brigada, atravessaram a Rua da Praia e invadiram o Quartel General do Exército. Enquanto o governador Getúlio Vargas se fazia de morto e trabalhava normalmente no Palácio Piratini, Aranha e Flores almoçaram tranquilamente no Grande Hotel e depois saíram a passear pela rua principal da cidade, dissolvendo, assim, as preocupações dos comandantes da 3ª Região Militar, então alarmados com os boatos de que uma revolução estava pra estourar. A coisa começara a esquentar em março, quando Getúlio perdeu as eleições pro paulista Júlio Prestes, o que deixou mineiros, gaúchos e paraibanos especialmente descontentes. E aí, assassinam João Pessoa, em um crime que uns dizem que foi passional, outros, político. Não importava: o paraibano era o candidato a vice do gaúcho, e era o pretexto que faltava para incendiar a revolta.

Washington Luis se mandando Mais de 50 mil gaúchos se alistam nas forças revolucionárias, pra marchar ao Rio de Janeiro e tomar o poder. Incendiado o estopim nesse dia três, em 24 de outubro de 1930 Washington Luís estava deposto (a posse de Julio Prestes seria a 15 de novembro) e Vargas assumiria as rédeas do país por um looooongo tempo. Falando em rédeas, alguns dos gaúchos que chegaram com a revolução amarraram seus cavalos no obelisco da Avenida Rio Branco, num supremo desaforo. Mais simbólico, impossível. Com Vargas no poder, o Brasil mudaria radicalmente. Em todos os aspectos. E isso inclui até mesmo a música da capital do estado de onde ele partiu para a capital federal.

Sente o drama: isso era o que o DIP fazia...

Getúlio sempre soube do grande potencial do rádio e estimulou de todas as formas o seu crescimento. No governo federal, amplo de poderes, começou mais uma revolução: em 1932 (mais precisamente, no decreto 21.111, promulgado dia primeiro de março), autoriza que até 10% da programação das rádios seja ocupada por publicidade (os reclames). Num meio que até então vivia num universo de amadorismo, sustentado por idealistas e/ou visionários, Getúlio apostava na segunda opção: em 1936, seu homem de confiança Lourival Fontes – que viria a ser diretor-geral do poderosíssimo DIP, o Departamento de Imprensa e Propaganda – escrevia na revista A Voz do Rádio: Dos países de grande extensão territorial, o Brasil é o único que não tem uma estação de rádio “oficial”. (…) Essas estações servem como elemento de unidade nacional. (…) Não podemos desestimar a obra de cultura realizada pela rádio e, principalmente, a sua ação extraescolar. Quatro anos depois, em 1940, o governo compra a falida Radio Nacional e transforma seus inimagináveis 50 kW em tudo isso que já estava lá nas entrelinhas do texto de Lourival…

Gaúchos amarram cavalos no Obelisco: a mística caudilhesca tão típica do RS A ver… Peguemos o repertório das rádios da capital na virada dos anos 1950 pros 60. O repertório era vastíssimo: tudo em grandes quantidades. Muita música centro-americana, do Caribe ao México, com uma avassaladora quantidade de boleros e toda a variedade de ritmos cubanos agrupada sob o rótulo de ―salsa‖. Uma onda forte de guarânias paraguaias, muitíssima música pop norte-americana de então (swing, fox, temas de filmes, standarts variados), tangos dos anos 1930 e 40 e todos os sucessos da música brasileira de todas as épocas. Os ―estrangeirismos‖ eram tantos que exigia-se dos locutores

– muitos deles contratados por concurso – conhecimentos de francês, inglês e italiano (além de empostação de voz, boa presença de palco e alguma noção de música erudita). Pois então: por música brasileira entendia-se aquela feita 90% no Rio de Janeiro, por cariocas, baianos, mineiros e um que outro paulista ou pernambucano. Com todas as rádios e orquestras gaúchas, a situação era a mesma. Nesse repertório variado, a partir do final dos anos 1930, o único compositor local a entrar nesse repertório era Lupicínio Rodrigues (além de sucessos isolados que estourassem nacionalmente, como o Fiz a Cama na Varanda). Entre os anos 1930 e 50, um E.T. que baixasse no Rio Grande do Sul concluiria que os gaúchos tinham uma curiosa espécie de bloqueio que os impedia de compor música que tocasse no rádio ou virasse disco. O próprio Lupi, já em 1939, reclamava na Revista do Globo: Um sambista, no Rio, à primeira composição, já vê o seu nome enchendo as páginas das revistas, ecoando pela rua, e, mais do que isso, passa logo a ganhar dinheiro… Mas aqui não acontece o mesmo. É preciso um autor fazer sucesso para que se acredite nas suas possibilidades. Os próprios meios radiofônicos da capital não ajudam o compositor a aparecer. Como já vimos, pouco tempo antes não era assim. Até meados dos anos 30, a cidade fervilhava de bons e populares compositores como Octávio Dutra, fazendo uma música que começava a soar original, a ter uma cara porto-alegrense. Algo houve para que fosse assim.

Getúlio recém-entrado no Palácio do Catete

A explicação defendida aqui tem a ver com os dois: Lupicínio e Getúlio. A partir do sucesso do primeiro e do nacionalismo unificatório e programático do segundo, de uma hora pra outra, os compositores gaúchos passaram a querer ser ―brasileiros‖ (com todas as aspas possíveis). Mesmo que já, obviamente, o fossem. E, na verdade, estivessem tentando ser… cariocas. Em seu fundamental O Mistério do Samba, o antropólogo Hermano Vianna analisa a questão a partir do ponto de vista da capital federal. A sua pergunta é: como, em poucos anos, o samba passa de artigo perseguido pela polícia a fator de unidade e orgulho nacional? O segredo, segundo ele, é Vargas, um político espertíssimo e, desde seus tempos de deputado estadual, muito ligado aos artistas. Getúlio se aproxima dos músicos sediados no Rio e adota o samba como bandeira da unidade cultural, que é essencial para seu projeto nacionalista. Afinal, esse é o mesmo governo que em 1937 vira uma ditadura – o Estado Novo – cuja primeira atitude simbólica é proibir os hinos e queimar as bandeiras de todos os estados da União. O novo governo instalado aí seria dos mais centralizadores da história nacional. Por exemplo: os 17 jornais em alemão (das mais variadas tendências políticas) que circulavam no Rio Grande do Sul foram proibidos de circular e/ou tiveram suas redações invadidas e destruídas. O mesmo com os 22 escritos em italiano – tudo em nome da unidade nacional. Obviamente, essa adoção do samba como ―ritmo oficial‖ não era por Getúlio ter algum trauma com milongas ou valsas campeiras da sua São Borja natal. Era, simplesmente, porque o samba era, ao lado do choro, a grande música do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa. A Capital da República. A cidade onde também estavam as principais gravadoras e rádios, distribuindo suas ondas e seus produtos para todo o Brasil. Como bem sintetiza Hermano: No campo da música, o samba vira símbolo nacional, ao passo que as canções “caipiras” paulistas e os ritmos nordestinos começam a ser vistos como fenômenos regionais. A música do Rio Grande do Sul então, nem vista era… Apesar da evidente ligação com o fascismo italiano e o nazismo alemão (passeatas com centenas de jovens ostentando bandeiras com a suástica aconteceram em várias cidades do Estado, incluindo Porto Alegre; 500 militantes nazistas vieram da Alemanha diretamente para a capital gaúcha ao longo da década de 1930), a política de

unificação persegue violentamente atitudes vistas como ―separatismo étnico‖. Um exemplo basta para esclarecer o nível de estupidez xenófoba a que se chegou. O compositor e cantor porto-alegrense Cláudio Levitan conta que seu pai e seu tio faziam parte de um grupo de russos, poloneses e húngaros, muitos deles judeus, que ensaiava num salão sobre o Clube Xangri-lá, esquina da General Câmara com a Rua da Praia. Tocavam e cantavam música russa, com um grande coro e uma orquestrinha formada por violinos e todos os tipos de bandolins e balalaicas. Juntando-se a eles, um grupo de dança, cujos bailarinos também tocavam. Uma bela noite, a polícia política de Vargas invadiu o local, quebrou todos os instrumentos e prendeu alguns russos, que desapareceram para sempre. É mole? E então Lupicínio. Parafraseando Caetano Veloso falando de Raul Seixas, em Lupicínio tudo o que não é portenho & tangueiro é carioca demais. Claro, há exceções, como o xote Felicidade e Cevando o Amargo e Jardim da Saudade. Mas foram, na maioria, obras de juventude, feitas quando ele servia ao exército em Santa Maria. E certamente não foi com seus xotes que Lupi se tornou o músico gaúcho mais conhecido até então: Eu adoro a guarânia, adoro tango e adoro bolero. Taí. Genial como era – e, a partir dos anos 40, também bemsucedido – Lupi fez escola. E fez escola ignorando totalmente o convívio que teve com os mesmos músicos que, nas décadas de 1910 e 20, misturavam schottischs, polcas, valsas, mazurcas, habaneras, batucadas negras, tarantelas italianas, fandangos ibéricos e algumas das quase extintas raízes açorianas. Ele conta vários desses momentos em suas crônicas publicadas em jornal, décadas mais tarde: Fechei os olhos e comecei a ver desfilar em minha mente todo o Carnaval do passado. Carnaval do Prof. Octavio Dutra, do Mestre Alberto. (…) Ver um mestre Alberto se dar ao luxo de formar para o Bloco dos Tesouras uma frente com cem violinos acompanhados por mais de duzentos instrumentos de corda, fora os metais e a bateria. (…) Pelotas e Rio Grande, aonde sempre foi o Q.G. do carnaval do Rio Grande do Sul. Ou: Deixei por último, como sobremesa, o maior de todos eles, o professor de quase todos que citei nesta relação: o velho maestro Otávio Dutra, o rei da valsa (…) Vejam, meus amigos, a fartura de ontem e a miséria de hoje.

Só que, mesmo somando a isso tudo o fato de ter um pai músico amador (de choro), ele cresceu sob a sombra da consagrada geração de Ary Barroso e Noel Rosa. Pra complicar, ainda tem a vinda de Noel a Porto Alegre, em 1932, integrando os Ases do Samba. Já consagradíssimo, foi apresentado ao garoto de então 17 anos, que já tinha até ganho prêmios como compositor. Ouviu as primeiras pérolas lupicínicas e decretou: esse menino vai longe. Aí, abençoado por deus, queriam o quê? Que ele fosse compor milonga? Em 1936, o escritor gaúcho Odacir Beltrão já definia o Brasil como ―terra do samba e do golpe‖. Lupicínio também contava que, ao final de uma excursão por estas terras sulistas, Benedito Lacerda lhe revelara seu espanto com a fidelidade com que se fazia samba no Rio Grande do Sul. Tão bem quanto no Rio de Janeiro. E completava Lupi, deixando escapar um orgulho de rapper com boné de marca americana: Naquele tempo, nós chamávamos os paulistas de “quadrado”. O samba paulista é de há muito pouco tempo. Na mesma ocasião – a histórica entrevista para o Pasquim, na década de 70 –, ainda faria uma diferenciação entre seu trabalho e o de Teixeirinha que vale por um resumo do que se disse acima: A diferença é que eu faço música popular. O Teixeirinha faz música regional. Música popular = samba carioca. *

*

*

O mesmo fenômeno da nacionalização na marra se dá no carnaval porto-alegrense. Como já comentamos, até o começo dos anos 1930, o dito-cujo era pulado ao som de charlestons, polcas, schottischs, tangos e até valsas. E todos esses ritmos, em pouquíssimo tempo, passam a ser vistos com ―estranheza‖: no final da década, a festa já era definitivamente do samba e da marchinha, produzidas industrialmente na Capital Federal para o consumo intenso das províncias. A coisa radicaliza no Estado Novo, quando Getúlio ordena a obrigatoriedade dos enredos históricos nos desfiles das Escolas de Samba cariocas − dando-lhes em troca polpudas subvenções, que rapidamente transformam as escolas em modelo a ser copiado por todo o território nacional. Nesses mesmos anos, os jazz gaúchos tinham, em sua maioria, pelo menos um violino e, muitas vezes, um bandoneon, necessários para enfrentar o repertório de tangos, valsas e milongas tão sulistas.

Pois em 1940, a coisa já está tão incorporada que, no concurso de carnaval promovido pela prefeitura de Porto Alegre, havia apenas duas categorias: samba − vencida por Cada Vez Que Te Vejo, de Lupicínio Rodrigues (chamado então pela Revista do Globo de ―O Filósofo da Cadência‖, numa nítida alusão a Noel Rosa, ―O Filósofo do Samba‖); e marcha – onde Johnson e Caco Velho levam o primeiro lugar, por Palhaço. Hoje parece óbvio: Carnaval = marchinhas e sambas. Até então, ao menos no Rio Grande do Sul, não era.

Um livro fundamental, "O Mistério do Samba", do Hermano Vianna

Feche-se o raciocínio sobre a unificação da música brasileira com dois argumentos. Primeiro, Hermano Vianna: ―Um samba bastante conhecido diz: ‗Quem Não gosta de samba bom sujeito não é, é ruim da cabeça ou doente do pé‘. (…) Na cartilha dessa ortodoxia, o samba nacional, produto do relacionamento de diferentes grupos sociais, acabou se transformando em agente ‗colonizador‘ interno, em regra de boa conduta, em possibilidade única de ser brasileiro. O indefinido tornou-se a regra da definição“. O outro é um testemunho de época – o que é sempre muito interessante porque contextualiza uma realidade concreta para quem, décadas depois, procura agulhas em palheiros abandonados. Quando morre Octavio Dutra, em 1937 – curiosamente, mesmo ano do Estado Novo −, a revista gaúcha A Hora da Saudade publica em seu necrológio um rápido artigo, não assinado, que diz muito sobre identidade. Comenta do recém-finado que era um dos mais typicos cultores e creadores da música popular porto-alegrense. Observem que não dissemos brasileira, mas porto-alegrense. Mas, portoalegrense, brasileira é! − hão de retorquir-nos. Perfeitamente, mas, dentro da música popular brasileira cabe um gênero, uma expressão, que é nossa, exclusivamente nossa, portoalegrense. É a música que em princípios deste século − valsas, mazurkas, chorinhos − se fazia

ouvir nos bailes familiares da então inconfundível Cidade Baixa, ou nas saudosas serenatas, que constituirão um capítulo destas crônicas, Pois bem: foi desta música porto-alegrense, com frases bem nossas, embora brasileiras, que Octavio Dutra se fez. (…) Dotado de um (…) um grande poder de interpretação do lyrismo porto-alegrense, ele criou um tipo de valsa que fez escola. (…) Pode-se dizer que a valsa porto-alegrense (grifo meu) perde, com a morte de Octavio Dutra, a sua expressão mais típica. O quadro de aborto dessa música porto-alegrense que então possivelmente se gerava fica mais grave a partir da década de 40. Com a indústria do disco solidificada em terras cariocas, não se tem nem sombra de um estúdio onde se pudesse registrar a música feita na cidade. Durante 40 anos, os porto-alegrenses que não saíram do estado simplesmente não gravaram. Como se não bastasse, a Rádio Nacional, encampada por Getúlio em 1940 – mesmo ano da criação do salário mínimo −, se transforma n‘O Himalaia dos Índices de Audiência, definindo, transmitindo e ensinando, de Natal a Pelotas, o que deveria ser ―A Música Brasileira‖. Às rádios locais só restava copiar não só o estilo, mas até mesmo o repertório da Rádio Nacional.

Outro livro fundamental: "Rádio Nacional: o Brasil em Sintonia", de Luiz Carlos Saroldi e Sonia Moreira

À música escrita na capital e no interior do Rio Grande do Sul restavam o esquecimento – para trabalhos mais urbanos – ou uma crescente interiorização – para os que, de alguma forma, pertencessem ou pudessem se aproximar do universo criollo, folk, galponeiro ou seja lá o nome que se queira usar. E é só graças à essa música que a situação esboça uma reação no Pós-Guerra. Em 1947, os interioranos Barbosa Lessa e Paixão Côrtes, estudando na capital

e loucos de saudade do pago, fundam o Departamento de Tradições Gaúchas do Grêmio do Júlio de Castilhos. No ano seguinte, inauguram o seminal CTG 35. Eram rapazes orgulhosos e saudosos de sua cultura, que sentiam totalmente reprimida pela política getulista e soterrada pelo American Way Of Life empurrado goela abaixo pela Política de Boa-Vizinhança norte-americana (entre 1937 e 1950, tal política fez Hollywood produzir nada menos que 78 filmes sobre o tema da integração!). Barbosa, Paixão e sua turma começam então a recuperar e sistematizar a cultura interiorana − mas a partir da capital, e preenchendo tanto com informação como com criatividade os espaços em branco. Não estariam sós. A mesma década ainda vê nascer os primeiros volumes do fundador O Tempo e o Vento − do gaúcho de Cruz Alta Érico Veríssimo, cujo último volume sairia só em 1963. E tanto a republicação dos esquecidos Contos Gauchescos, do pelotense Simões Lopes Neto, quanto a criação do Grupo Quixote, de poesia − obcecado, que nem o Partenon Literário (lembram?), por uma poesia nossa, com características nossas. (Também é dessa década a popularização do aspecto mais curioso do Carnaval porto-alegrense: as tribos carnavalescas. Nascidas em 1945 com a pioneira Tribo dos Caetés - campeã por oito anos consecutivos – a coisa seguiu com os Xavantes e os Tapuias. Hoje quase extintas, as tribos tinham fantasias e coreografias que eram uma espécie de paródias dos índios do sul – o que é ainda mais espantoso quando se sabe que, muitas vezes, as tribos são formadas por índios ‗de verdade‘, o que gera peculiares espetáculos de autoparódia. Nos anos 60, já em declínio, foram trocando o samba e marcha-rancho originais pelo que Renato Maciel de Sá Jr. definiu no segundo volume do seu Anedotário da Rua da Praia como ―ritmos primários e inexpressivos, oriundos das sessões de baixo batuque (!!!)‖. E aí começaram a fazer a misturança com índios americanos de filme de bangue-bangue.)

Em busca da raízes... do bangue-bangue: a Tribos dos Comanches!

Voltando ao CTG 35: o que todo o Estado, a partir da capital, vai conhecer a partir dele já é uma música nova, recriada a partir dos ritmos que, muitas vezes, tinham saído de Porto Alegre rumo ao interior há menos de 50 anos. Agora, faziam o caminho inverso. O vanerão, por exemplo, já vinha com a cara que foi tomando ao longo de décadas de interiorização pelas diferentes regiões do Rio Grande − chegava ainda habanera ou, no máximo, vanera (o próprio nomevanerão é uma das tantas criações do movimento tradicionalista). O mesmo havia acontecido com o xote (ex-schottisch), a polca, a mazurca… Aí, em plena década de 1950, depois de apenas uma geração, ninguém na capital queria lembrar como era que se compunha nos tempos de Octávio Dutra. Nem haveria mais como imaginar, a partir das suas descendências, o que seria um vanerão urbano, um xote urbano, ou sabe-se lá que gênero novo que poderia ter sido gerado. A música de Porto Alegre estava suspensa como um gênero próprio, soterrada pelo talento de uma genial e geograficamente distante geração de duas dúzias de cariocas (ou mineiros e nordestinos migrados para o Rio), que sistematizaram uma mistura de elementos urbanos em forma de samba e de marcha − em todas suas infinitas variantes. E que soterraria, na nascente indústria cultural brasileira, muitas das nascentes manifestações regionais. Pra fechar, matéria da Folha da Tarde de sete de junho de 1941: Agora, é preciso que exista (sic) meios eficientes para que os nossos compositores sejam mais conhecidos. Não possuímos aqui uma gravadora de discos. Que fazer, então? O rádio é o veículo indicado. Os compositores de Porto Alegre começam a aparecer vitoriosamente. Depois que LUPISCINIO RODRIGUES (sic) abriu o caminho, demonstrando que as melodias nascidas aqui poderiam também percorrer todo o Brasil com sucesso, notou-se um

interessante movimento entre os autores locais. Disto resultou aparecer uma série de coisas bonitas em matéria de música popular. Sambas, principalmente. E a coisa pegou, Hoje, já se enumera uma boa parcela dos que compõem entre nós as melodias populares do Brasil. (…)Tudo isso está muito bem. Agora, é preciso que exista (sic) meios eficientes para que nossos compositores sejam mais conhecidos. Não possuímos aqui uma gravadora de discos. Que fazer, então? O rádio é o veículo indicado. É assim que deve ser. Os cantores de Porto Alegre devem criar para si os seus próprios repertórios integrados unicamente por melodias de compositores porto-alegrenses. Não aconteceu. *

*

*

Quem entra arrebentando, no ano do centenário da Revolução que lhe dá nome – 1935 –, é a Rádio Farroupilha. E chega querendo tudo do bom e do melhor, tanto que já chega tirando da Gaúcha o Jazz de Paulo Coelho e o maestro italiano Salvador Campanella – que vai ser figura central da emissora ao longo das décadas seguintes. A quarta emissora de Porto Alegre entra em cena como a mais potente do Brasil: são 25 kW, que só seriam superados dois anos depois, pelos 26 kW da Tupi de São Paulo (ambas do mesmo dono, o poderoso Assis Chateaubriand, chefe das Emissoras Associadas, então aliado do governo de Getúlio). A inauguração da emissora conta com as presenças ilustríssimas de Carmen Miranda e Mário Reis, dois dos maiores cantores do momento, importados da capital federal para o evento. Já o elenco contratado pela autointitulada ―A Mais Potente‖ vai reunir Paulo e sua orquestra, Horacina Corrêa e, entre outros, o grande cantor Alcides Gonçalves – que vai, inclusive, armar com Coelho a dupla ―O Gordo e o Magro‖. Nesse mesmo ano de 1935, dois escritores dividem os comentários literários na cidade. Erico Verissimo, que lançava seu segundo romance, Caminhos Cruzados – e ganha com ele o prêmio nacional de romance do ano dado pela Fundação Graça Aranha. Por outro lado, seu então amigo Dyonélio Machado causava impacto com o revolucionário Os Ratos. O livro de Dyonélio seria um clássico, o de Érico ficaria como um detalhe em sua obra – mas, mesmo assim, seu

sucesso seria imensamente maior que o do amigo. Os dois nunca resolveram bem a questão.

Erico em 1937, um lorde

Dyonelio em 1935, comunista, preso político anos a fio

Em 1937, Getúlio acha que sete anos no poder não foram suficientes e dá um golpe, instituindo o Estado Novo. No Rio Grande do Sul, o governo intensifica o combate aos cassinos, com aprovação da imprensa conservadora, e vários deles fecham – ainda não como irá acontecer em 1946, quando são postos fora da lei pelo presidente Eurico Gaspar Dutra. Neste mesmo 37 morre uma lenda da fotografia da cidade: Virgílio Calegari, que desde 1893 foi o principal responsável pelos registros clássicos que hoje se tem da Porto Alegre da Belle Époque.

Seu Atelier Calegari forneceu material pras principais revistas da cidade – Máscara, Kodak e a gloriosa Revista do Globo. Sem falar nas medalhas: ouro e prata na Exposição de Saint Louis (EUA), em 1904; Paris, 1906; Londres, 1907; Rio de Janeiro, 1908; Roma, 1911… E ainda tem na parede o título de Cavaliere do Império Italiano ganho do próprio rei Vitor Emanuel III. Que tal? Agora, uma pequeníssima palhinha da genialidade do cavaliere Calegari:

A Praça da Matriz em 1890

Os últimos acendedores de postes de gás da cidade, em 1901

Olha o que é essa foto reunindo o pessoal da associação dos ciclistas, em 1900

E essa aqui, com o velho sátiro se fazendo de inocente, o título é "retrato de moças"

Virgílio, o próprio

A cidade vivia também o florescer da geração boêmia que vai reinar até meados dos anos 1960. Por quatro décadas, a vida seria uma festa para nomes como Johnson, Rubens Santos, Alcides Gonçalves ou o já tão citado Lupicínio – que formavam uma espécie de confraria, com eventuais associações e dissidências. Outro da turma era Ovídio Chaves, já citado como um dos incontáveis discípulos de Octavio Dutra. Nascido dia 27 de julho de 1910 na então minúscula Lagoa Vermelha (320 km ao norte de Porto

Alegre), Ovídio trabalhava como músico desde os 15 anos, começando como um dos violinistas da orquestra que tocava no cinema de sua cidade. Sai de lá só em 1932, para estudar no Conservatório de Música de Porto Alegre. Acaba estudando violão com Dutra e virando jornalista do Correio do Povo, como seu irmão, o também compositor Hamilton Chaves. Já tinha lançado três livros de poesia quando, em 1939, tenta pela primeira vez compor alguma coisa. E arrasa: aos 29 anos, sua primeira canção é justamente um dos maiores sucessos nacionais já saídos de Porto Alegre: Fiz a Cama na Varanda, parceria com a cantora maranhense (nascida em Viana, em 25 de setembro de 1913, mas criada em Porto Alegre) Dilú Mello.

Dilú Mello

Formada em violino pelo mesmo Conservatório aos 13 anos de idade (com medalha de ouro), é Dilú quem, em 1943, registra a canção pela primeira vez. Neste momento, depois de formar-se também em canto lírico e pesquisar o folclore gaúcho, ela já está no Rio de Janeiro e agravação é sucesso instantâneo: Fiz a Cama… foi regravada dezenas de vezes, por gente tão diferente quanto Nara Leão ou Inezita Barroso (além de mais de uma versão rock-balada, e até uma tradução de sucesso para o francês). Ovídio nunca repetiu o sucesso da primeira iniciativa, mas teve cerca de duas dezenas de músicas gravadas por artistas de alcance nacional – só Dilú gravaria mais cinco, até 1955. E nos mais variados estilos: de toadas de jangadeiros de nítida inspiração caymminiana, até uma gauchesca Meia-Canha.

Nos anos de 1950, foi dono de meia dúzia de casas noturnas, como o Clube da Música e o Piano Drink – que ficava sobre palafitas dentro do Guaíba, e cuja ponte se levantava quando a casa enchia… ou quando se aproximada um chato. Mas a mais famosa empreitada foi o mitológico Clube da Chave, frequentado por Lupicínio Rodrigues e João Gilberto, onde cada sócio tinha uma chave e só entrava com ela. Foi a primeira boate da cidade que não poderia ser confundida com um cabaré ou bordel. As pessoas iam ali para beber (sua própria bebida, que ficava num armário também chaveado), conversar, ouvir música e, no máximo, armar uma parada a ser resolvida em outro lugar.

Ovídio em meados dos anos 50

Já com 51 anos de idade, mudou-se para o Rio, onde trabalhou como redator na Rádio Nacional, ficou algum tempo preso durante a ditadura militar, virou hippie já sessentão (daqueles que fazem e vendem artigos de couro em feirinhas) e morreu dia três de agosto de 1978 (dois anos antes, seu sexto de livro de poesia, ABC de Paquetá, lhe deu o prêmio de poesia Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras). Seu irmão Hamilton Chaves também foi uma figura múltipla. Como jornalista, trabalhou na Revista do Globo, na Última Hora, n‘O Clarim e na Rádio Gaúcha. Como compositor, além de parceiro de Lupicínio Rodrigues (falaremos mais sobre ele no capítulo de Lupi), chegou a ganhar alguns festivais de música. E ainda se arriscou no cinema, em diversos cargos públicos e até na diretoria do Grêmio Foot-Ball Porto-Alegrense.

Hamilton coordenando a imprensa durante a legalidade. De paletó e gravata, ao lado do Brizola

E se falamos de músicos que, de uma forma ou de outra, chegam a se estabelecer com algum renome, também há o outro lado. Ao longo dos anos 1930 e 40, quem quisesse entrar na vida artística da capital – principalmente se viesse do interior –, tinha que, quase invariavelmente, pagar um pedágio: os cafés do Mercado Público. Era nas mesas de mármore de estabelecimentos como o Java e o Naval que conjuntos improvisados na hora sabatinavam os novatos. O processo era uma seleção natural de crueldade darwiniana: sempre que chegava alguém novo, chamavam pra roda e davam um jeito de puxar o tapete do sujeito. Se ele escapasse de errar feio, tinha alguma chance. ―Tinha muito banditismo…‖, lembrava em 1999 Zezinho Baptista: nos anos 1950 e 60, baterista da lendária Orquestra de Karl Faust; nos anos 40, um guri de Osório tentando a vida na capital com um pandeiro debaixo do braço. Das três da tarde até as nove da noite, aquilo parecia um show de variedades. Tinha de tudo, com os músicos passando o pires ao final de cada apresentação e conseguindo pelo menos garantir a janta e, talvez, a pensão. A coisa durou até 1953, quando o último pires foi passado – pelo cantor e acordeonista Marino Coronel. Se fossem aprovados nesse teste inicial, os aspirantes podiam até conseguir uma vaga nas rádios da cidade. Foi assim que apareceram figuras importantes como o notável arranjador e multiinstrumentista (tocava piano, guitarra, trompete, clarinete e todos os saxofones) Alcides Macedo, o futuro Maestro Macedinho. Nascido em Tupanciretã (389 km a noroeste de Porto Alegre), Macedinho vai pra capital no começo da década de 1930, indo

procurar adivinhem quem? O onipresente Octavio Dutra. Octavio o introduziu na roda do Café Gaúcho, uma das mais prestigiosas do Mercado. A partir daí, o tupanciretanense passa 20 anos de trabalho duro, fazendo um pouco de tudo, até conseguir o posto de diretor do Regional da Rádio Farroupilha – o que contava com feras como Arthur Elsner no acordeom e Antoninho Maciel no violão. Sairia dali no final da década de 1950, para integrar, com destaque, a Orquestra de Karl Faust, na Rádio Gaúcha (e quem assume a sua vaga no regional é um jovem flautista de assombroso talento: Plauto Cruz). Com o fim das orquestras, Macedo só tem nova chance em 1979, quando é convidado para ser maestro da Banda Municipal de Porto Alegre. Ali, vai reger muitos dos melhores músicos de sua geração, todos já na terceira idade, mas ainda fazendo miséria. Para a banda, escreveu grande parte de seus melhores arranjos e músicas – nos mais variados ritmos, sempre com brilho, conhecimento de causa e originalidade (ainda que, a bem da verdade, não fosse exatamente o regente mais perfeccionista do mundo…) O único disco da Banda – lançado pela prefeitura em LP na década de 1990 – tem unicamente composições de Macedo, que morreu pouco depois.

Primeira formação da banda, em 1927

O raríssimo LP da Banda já coroa, com quase 70 anos de idade

(Surgida em 1926 por ordem do intendente Otávio Rocha, a Banda Municipal de Porto Alegre teve como primeiro maestro José Leonardi, e uma curiosa formação composta por sopros, percussão, violoncelos e contrabaixo. Chegou a ser Banda Sinfônica nos anos 40, teve até um maestro cego – Arthur Elsner, claro – e acabou esvaziada com a criação da OSPA, nos anos 50. Só bem mais tarde é que retomou o prumo, com uma formação que tinha figuras lendárias da música da capital como o baterista Natalício, o tubista Lola e o Maestro Lua no trompete. Hoje, com uma idade média bem mais jovem, segue garbosa e faceira, em projetos como o Encontrabanda.) *

*

*

Falta descrever o dia na Porto Alegre dos anos 1930 a 50. O programa obrigatório era o footing na Rua da Praia, descrito à perfeição por um sujeito que nem era nascido na época, o jornalista e escritor Rafael Guimaraens. Tá lá no seu livro Rua da Praia – Um Passeio no Tempo: Mulheres, homens e crianças, todos praticavam o footing. Mas o protagonismo é delas, das mocinhas sorridentes que desfilam pela passarela realçada de vitrines elegantes, coração palpitando sob os olhares e galanteios dos engravatados que se agrupam ao longo da Rua da Praia. Recato e malícia marcam encontro. O flirt está no ar. Elas saem em grupos ou se fazem acompanhar por senhoras vigilantes. A programação depende do dia. Se é sábado, as lojas estão abertas. (…) Uma boa parada na Krahe, (…) Casa Louro ou a Sloper (…) perfumes importados da Casa Lyra. (…) As joias e relógios da Masson cintilam. A vitrine da bombonière convida ao pecado da gula. Diante da Livraria do Globo, senhores circunspectos passam a limpo as vicissitudes do mundo. (…) Poucos passos adiante, os calçados finos da Casa Seabra complementam-se com o variado sortimento de meias da Casa Coelho. Quase grudadas, a Casa Victor e a Coates disputam quem oferece as últimas novidades em eletrodomésticos. Segue o footing rumo à Praça da Alfândega, para um sorvete no Café

Colombo (às vezes era chamada de café, às vezes de confeitaria) ou alguma guloseima na Confeitaria Central. É bom lembrar que, de 1937 a 1943, na primeira administração Loureiro da Silva (foram duas), Porto Alegre se remodelou. Loureiro ganhou o apelido de ―O Poeta da Cidade‖: abriu a Farrapos - ligando o Centro à Zona Norte -, plantou jardins, ergueu monumentos, redesenhou ruas e avenidas. Tocou o redirecionamento e a canalização do Arroio Dilúvio, o Hospital de Pronto-Socorro, o Centro de Saúde Modelo e a Prefeitura Nova. Estreou as sinaleiras e quebrou o monopólio da luz e dos bondes, que era todo da Cia Brasileira de Força Elétrica, subsidiária da americana Electric Bond & Share. Isso, pelo lado bom. Pelo mau, o cara se aproveitou da ditadura do Estado Novo e usou as leis de exceção do momento para desapropriar sem dó mais de 900 casas de gente pobre. Quando um coitado era visitado por ―João Macaco‖ – o funcionário público João Pereira Duarte – já sabia que em instantes chegaram as pás e picaretas pondo tudo abaixo, mesmo quando os moradores se recusavam a sair. Resultado: cinco quilômetros de Farrapos custaram míseros 12 mil contos, incluindo obras, iluminação e desapropriações. Em 1935, o Viaduto da Borges, por exemplo, tinha custado 35 mil contos para os intendentes Otávio Rocha e Alberto Bins. Não era jeito, era força.

Borges, 1938

*

*

*

Onze da noite, início dos anos 40, Largo dos Medeiros: Luiz Telles e seus amigos dali seguiam pros cabarés. Telles corria de cabeça pra baixo, plantando bananeira (com uma pequena ajuda dos seus amigos para a aterrissagem), só pra chamar a atenção e sacanear os sonolentos que olhavam pelas vidraças dos cafés. Ainda falaremos muito dele.

O Largo, numa foto clássica do Virgílio Calegari

Era o Largo dos Medeiros a primeira Esquina Democrática da cidade, como bem lembrou Rafael Guimaraens no seu livro sobre a Rua da Praia. Nos anos 1920, era ali que, fora do expediente, seriam certamente encontrados tanto Getúlio Vargas, Osvaldo Aranha e Flores da Cunha quanto figuras diferentes, como o Barão de Itararé Aparício Torelly ou o Padre Landell de Moura. Seria assim pelas quatro décadas seguintes. Afinal, nos quatro vértices do Largo estavam a Livraria Americana, as confeitarias/cafés Colombo e Central (cujos donos eram os irmãos Medeiros que deram nome ao Largo) e o Edifício Chaves Barcellos. Foi ali que se comemorou a greve geral de 1917. Ali se concentraram as comemorações pela Revolução de 30. Ali se protestou contra o nazismo em 1942. E, como conta Rafael, ali o pessoal ia nem que fosse para ouvir pelo alto-falante a voz do locutor Mendes Ribeiro, da Rádio Guaíba, narrando a vitória do Brasil contra a Suécia na Copa de 1958. Confeitarias, cafés e bares. A Colombo – também chamada de Café Colombo –, com seus três andares, reinaria absoluta em luxo e refinamento desde os anos 1910 até os 30. Pra se ter uma ideia, nos anos 20 tocava na sua orquestra Alessandro Gnattali, o pai de Radamés. Nos anos 30, Paulo Coelho e sua turma. Tudo com o plus

a mais de estar situada no Edifício Chaves Barcellos, a primeira obra porto-alegrense do genial arquiteto alemão Theo Wiederspahn.

O prédio da Central. Não era um gênio esse Theo?

Perto dali, havia ainda o bar Antonello, onde se conheceram Erico Verissimo e Mario Quintana; o Bela Gaúcha, sede do jovem Lupicínio; e o ―17‖, ao lado do Clube do Comércio, onde a música era das típicas e só se tocava tango. Roteiro boêmio dos anos de 1930 a 60: Chalé da Praça XV, Gambrinus, Treviso, Hubertus, Pelotense, Bela Gaúcha e, daí… pros cabarés.O Clube dos Caçadores era o top: chiquérrimo, caríssimo e com cassino. Era frequentado por tipos como Flores da Cunha, Osvaldo Aranha, Raul Pilla e Getúlio Vargas e animado, em sua melhor época, pelo Jazz-Band de Paulo Coelho. Memórias de Carlos Reverbel: Embora funcionasse como cabaré e casa de jogo, o Clube dos Caçadores era de tal categoria, ostentava tanta classe, que sua qualificação como clube, mesmo no sentido britânico da expressão, não chegava a tornar-se chocante, sendo aceita com algumas reservas e poucas restrições somente pelos frequentadores mais conspícuos e por uns poucos sobreviventes da era vitoriana. Foi, sem dúvida, um dos redutos mais apetecidos e apetitosos da extinta civilização porto-alegrense.

Nos salões dos Caçadores o uso de cocaína era quase público. Não havia muitos consumidores habituais, mas quem costumava cheirar tal pó não era mal visto, pois o hábito ainda não estava revestido do aspecto criminoso conferido pelo tráfico. (…) Pelo contrário. A droga até emprestava certo status aos que tinham condições de adquiri-la.

O lendário clube, onde o pessoal caçava uma fauna das mais sortidas e diferenciadas...

Inaugurado em 1926, o prédio de seis andares do Clube é hoje o Centro Cultural CEEE Érico Veríssimo. E, apesar do que conta Reverbel, acabou derrubado pela tradição e a família gaúchas: apelidado de Palácio das Lágrimas pelos mais conservadores (que choravam de desespero – desejo? – com tanto laissez-faire), acabou fechado. Seus donos se mandaram pro Rio e, com o knowhow adquirido, fundaram nada menos que o Cassino da Urca. Bom. Depois dos Caçadores, em diferentes épocas dessas três décadas, vieram algumas casas mais bacanas: a Boite Marabá – que tinha, além de orquestra e típica, um pequeno combo de meia dúzia de figuras, liderado por Marino dos Santos. O Maipú – da Margot, que começou sua carreira no Cabaret da Margot –, animada por feras como Arthur Elsner e o bandoneonista Juvenal de Paula Guedes. Mais o Istambul e o American Boite. Todos com um jazz (com o tempo, inflados para orquestra) e uma típica de tango.

Falando de Marino, nos anos 30 ele fazia parte de uma turma inseparável: o violonista Boquinha, o cantor Sadi Nolasco e os sempre presentes Paulo Coelho e Alcides Gonçalves. Saíam dos cafés e das rádios e invariavelmente iam pra noite e pras serenatas, que podiam terminar às oito da manhã. Mais Reverbel: Nas noites do Treviso a camaradagem não tinha preconceitos. Os pais das moças bem-nascidas confirmariam com satisfação a teoria de que os jornalistas não davam bons maridos ao se depararem inadvertidamente com um grupo de repórteres em animado bate-papo com as estrelas dos cabarés da cidade. As prostitutas bebiam ao nosso lado, nos contavam suas vidas e muitas vezes se tornavam nossas amigas. E não era incomum a situação de um estudante de parcos recursos ser sustentado pela namorada prostituta e com ela frequentar bares e restaurantes. Era um espécie de redistribuição de renda: a moça tirava dinheiro do senhor rico e repassava parte dele para o rapaz pobre. O vínculo, pelo menos entre a jeunesse dorée, dava um certo prestígio e criava uma aura de marginalidade poética. Sigamos anos 30 adentro, com uma cidade cujas opções musicais já variavam do samba feito na Ilhota e no Areal da Baronesa até a Rádio Gaúcha tocando discos com Stravinsky regendo a sua Petrouchka. Coluna Rádio, Folha da Tarde, 12 de junho de 1936: Em microphone não adeanta botar voz. Já se foi o tempo em que o cantor p’ra ser bom necessitava rebentar suas cordas vocaes e os tympanos da gente ao mesmo tempo. A questão hoje está toda Ella na melodia. Quanto melhor a voz se justapor ao microphone, melhor será o cantor. Pode-se dizer, por ahi, que Fulano tem boa voz. Mas não adeanta. O principal é saber si elle fez intimidade com a rodellinha Metallica, si sua voz passa por dentro della como si fosse um desdobramento de sua própria garganta. Tomemos como exemplo o sr. Edgar Lafourcade (…)tem uma voz de respeito, optima para o palco. O microphone, porém, faz questão de blandícia, serenidade, smorzamento, sussuro, beijos de melodia na bôcca do apparelho. Do contrário elle estrilla.

Novos tempos, realmente. Onde o rádio não para de ganhar importância não só como veículo de entretenimento como também numa verdadeira revolução estética e de costumes. Se em 1935 juntou um povo em volta da Farroupilha pra ver Carmen Miranda e Mário Reis inaugurando a emissora, em maio de 1937, 30 mil pessoas vão ver o jazz de Clóvis Mamede tocando em festa promovida pela Folha da Tarde – então com um ano de vida – em parceria com a Difusora. E chegamos a 1937. Estado Novo. Getúlio proíbe o funcionamento de todos os partidos políticos. Ironicamente, isso obviamente inclui o PPR, Partido Republicano Rio-grandense, onde nasceu, cresceu e se criou o então ditador. Um dos resultados imediatos é o fechamento do lendário A Federação, jornal que desde 1883 era a voz oficial da cidade e do Estado. Fundado por Julio de Castilhos, teve uma série de diretores futuros nomes de rua: Venâncio Ayres, Octavio Rocha e Maurício Cardoso. Sempre combativo e alinhadíssimo ao governo e ao partido que só então abandona o poder, depois de quase meio século. Já quem cresce na parada é o Correio do Povo, que, coerente com a postura que sempre terá, não disfarçou sua simpatia pelo novo governo autoritário – ainda que lá no em seu primeiro editorial, de 1º de outubro de 1895, seu chefão Caldas Junior afirmasse, do alto dos seus 27 anos de idade, que Independente, nobre e forte – procurará sempre sê-lo o Correio do Povo, que não é órgão de nenhuma facção partidária, que não se escraviza a cogitações de ordem subalterna. (Caldas Junior começara sua carreira como redator do A Reforma, principal inimigo d‘A Federação, ligado ao Partido Liberal de Silveira Martins, a principal oposição aos positivistas que mandavam na área. Tinha a ideia de fazer um jornal novo, efetivamente desligado do eterno maniqueísmo gaúcho, na época representado por positivistas e antipositivistas. Só que morre em 1913, de overdose de um remédio experimental para ―limpar o sangue‖ (!). E aí quem vai marcar o século como O Homem do Correio é seu filho, Breno Caldas, que assume a empresa em 1933 e ali se torna o Poderoso Chefão da Caldas Junior – que, no seu auge, reunia Rádio Guaíba, TV Guaíba, Folha da Manhã, Folha da Tarde, Correio do Povo. Só sairia do posto em 1984, quando seu império veio abaixo.) *

*

*

Cinemas trocavam a programação a cada três dias. E estamos chegando ao ápice da Pequena Broadway: o trecho da Rua da Praia entre a General Câmara e a Payssandu (futura Caldas Junior).

Olha o furdunço na frente do Cinema Central, em 1932.

O Clube de Cinema de Porto Alegre só seria fundado – por uma turma liderada pelo jornalista P. F. Gastal – em 1948. Mas tudo começava ali, 10 anos antes: uma grande agitação em torno da sétima arte, que começa a explodir em 1913, com a inauguração do primeiro cinema propriamente dito da cidade, o Guarany – mais um belíssimo prédio assinado por Theo Wiederspahn (hoje Banco Safra). Na sequência, vão chegando o Cinema Central (1921, o ―cinema das elites‖, onde homem só entrava de terno e gravata e Radamés Gnattali era uma das figuras da então considerada melhor orquestra de cinema da cidade), o Imperial (1931), o Cine Rex (1936) – que antes fora o Petit Casino e a Sala Beethoven – e o Roxy (1938). Além disso, havia os que já existiam para outras finalidades e viraram cinemas: Variedades (1908), o já citado Recreio Ideal(1908, destruído para a construção do prédio do Imperial), o Smart-Salão (1909), o Odeon(1910) e o Íris (1913). Todos ali: Rua da Praia, no entorno da Praça da Alfândega.

Já perguntei antes: não era um gênio esse Theo?

(Sala Beethoven: tinha como sócios o maestro Tasso Corrêa, diretor do Conservatório de Música, e o empresário Arthur Pizzoni. Inaugurada em 1931, queria combinar loja de instrumentos e partituras com sala de concertos destinada à música de câmara. Inaugurou com, entre outros, Radamés Gnattali. Fechou, poucos meses depois, com o último concerto do ídolo maior de Radamés, Ernesto Nazareth. Os porto-alegrenses não estavam lá muito interessados em concertos de música de câmara. A Beethoven virou loja apenas, e mudou várias vezes de endereço. Segue em atividade, numa galeria da Senhor dos Passos.) A inauguração do Imperial Cine Theatro, com suas 1.632 poltronas, seu prédio de 11 andares (o primeiro arranha-céu da cidade) e a exclusividade de projeção de Romance, primeiro filme falado de Greta Garbo, ficou na história. Nilo Ruschel conta no seu livro Rua da Praia: A massa humana jogava-se com violência contra os gradis de separação e os que vieram atrás levavam tudo por diante. Ferros e bronzes retorcidos, vitrines espatifadas, espelhos partidos. E lá dentro, finalmente, a estraçalhada satisfação dos sobreviventes.

Um concerto do Club Haydn no Imperial.

O Imperial vai ser por décadas o principal cinema da cidade. E, na condição de Cine Theatro, vai receber, por exemplo, a já citada excursão dos Ases do Samba (Mário Reis, Francisco Alves & Cia). Antes de ser o último dos grandes cinemas do centro a fechar as portas, em 2005, vai ser pioneiro no Cinemascope (1954), no projetor de 70 mm e no som quadrifônico. Em 2012, o prédio se prepara para ser a sede da Caixa Cultural.

E o desenho do primeiro arranha-céu da cidade.

*

*

*

O cartaz completamente art decó - como aliás, toda a exposição

Em 1939 é finalmente desmontada a hollywoodiana Exposição do Centenário da Revolução Farroupilha, que finalmente urbanizou o Parque da Redenção – mudando seu nome para Parque Farroupilha (que, diga-se, até hoje não emplacou totalmente). A exposição em si foi do vinteeeee de seteeembro ao 20 de dezembro de 1935. Um milhão de pessoas passaram por ali. Só olhando as fotos pra ter noção da grandeza da coisa: mais de três mil expositores vindos de oito estados, do Uruguai e de várias cidades do Rio Grande do Sul, numa ação conjunta entre o governador Flores da Cunha e o prefeito Alberto Bins. Tinha até cassino! Sem falar nos grandiosos pavilhões (dos quais ainda há lembranças em vários recantos do Parque), iluminados por SEIS VEZES mais lâmpadas que o total existente então no resto da cidade.

O grandioso cassino

No censo de 1940, Porto Alegre já tá toda grandinha: 272 mil habitantes. Destes, 132 mil homens e 140 mil mulheres – apenas sete mil trabalhando fora de casa, que a cidade era terra de gente direita! Duzentos e trinta mil brancos, 19 mil negros e 22 mil… pardos (!) – além de, contados um a um, 92 amarelos (!!!). Eram 228 mil católicos, 21 mil protestantes, 12 mil espíritas e quatro mil israelitas (exceto este, os outros números foram ligeiramente arredondados pelo pouco metódico autor destas mal-traçadas).

A Av. João Pessoa à esquerda, o resto quem conhece deduz fácil

Todo esse pessoal vivia em 50 mil residências, a maioria – 29 mil – de madeira. Um terço da população era analfabeta: 60 mil portoalegrenses acima de 10 anos. Achou ruim? A média nacional era muito pior: mais da metade (55%) dos 41 milhões de brasileiros não sabia nem ler nem escrever em 1940. Vinte e quatro mil operários trabalhavam em 675 fábricas. As principais, invariavelmente, de descendentes alemães: Renner, Wallig, Gerdau, Neugebauer, Bier e Bopp. Além disso, havia 2.104 casas comerciais, com 20 mil funcionários, oito mil funcionários públicos, seis mil servindo no exército, brigada militar e polícia civil, e três mil profissionais liberais – na sua maioria advogados, médicos, dentistas e contadores. Mas quem eram os grandes músicos porto-alegrense (residentes ou não na cidade) nesses anos 40?

Haja fords... O dia da Inauguração

Vista aérea geral

Haja lâmpada

*

*

*

Originalmente a banda da casa do luxuosíssimo Hotel-Cassino Quitandinha (em Petrópolis, no Rio), que lhe batizara, o Quitandinha Serenaders foi um dos melhores conjuntos vocais de uma época – anos 1940 e 50 – onde os piores já eram muuuito bons. Os Serenaders competiam taco a taco com Os Cariocas, Os Titulares do Ritmo, Quatro Ases e Um Coringa, Anjos do Inferno e mesmo o já pleistocênico Bando da Lua. Podiam não ser os mais populares, mas arrasavam no vocal, no glamour, charme e elegância. Com todos esses atributos somados aos olhos e ouvidos das moçoilas, chegaram ao posto de campeões de cartas da Revista das Moças, o que não era pouca balaca.

Alberto, galã

Pois o grupo tinha nada menos que três gaúchos: Luiz Telles, o futuro galã de cinema Alberto Manuel Miranda Ruschel (Estrela, 21/02/1918 – Rio, 18/01/96) , futuro astro de O Cangaceiro e outros 32 filmes) e Francisco „Chico‟ Pacheco. Já o quarto elemento era um carioca de peso: o violonista e compositor Luiz Bonfá, futuro craque da Bossa Nova. Nem com a proibição do jogo e o fechamento dos cassinos, em 1946, os caras desistiram. Desceram de Petrópolis paro o Rio e seguiram cantando e vestindo de tudo, mas sempre com ênfase nas canções gaúchas – folclóricas ou não – interpretadas de bombacha e lenço! Eram uma espécie de Conjunto Farroupilha, mas com um repertório um pouco mais aberto. Em 47, por exemplo, causaram grande frisson nos cinemas porto-alegrenses ao aparecerem num filme da Atlântida (quase certamente Este Mundo é um Pandeiro) lançando para o sucesso um xote de Lupicínio Rodrigues. Sim! E que xote: Felicidade, o futuro clássico. Quando, em 1953, Bonfá decidiu partir para carreira solo, o grupo acabou. Mas, antes, Telles ainda tentou encaixar um desconhecido e talentoso protegido seu, chamado João Gilberto. Tentou… mas o baiano reclamava de tudo, achava tudo careta. Quem acabou assumindo, ainda que durante um curto período, foi Paulo Ruschel, irmão de Alberto e autor do clássico absoluto Os Homens de Preto, deixando o quarteto 100% gaúcho. E nada mais natural. Afinal, Alberto, Luiz e Paulo haviam começado juntos na música, em 1942, em Porto Alegre, no Conjunto Universitário. Foi justamente esse trio que chegou ao Rio em 1943 junto com a Caravana Universitária do RS para a VI Olimpíada Universitária de Jogos e Esportes. E lá decidem ficar, para tentar a vida… como músicos. Paulo, aliás, merece mais que um parêntese: nascido em Passo Fundo (280 km a noroeste de Porto Alegre), dia 11 de maio de 1919, além de cantor e compositor, foi ator e escultor, premiado e tudo. Cruzando suas artes, criou o troféu da Califórnia da Canção, a Calhandra. Além de Os Homens… compôs mais pelo menos dois outros clássicos regionais: Roda Carreta e Iemanjá. Quando se desmancha definitivamente o Quitandinha, bate aquela inexorável saudade do pago e ele se manda de volta para o interior do Rio Grande do Sul, estabelecendo-se numa fazenda em Cruz Alta. Ali, trabalha como escultor e compõe canções regionalistas. Ainda na década de 50, mora uns tempos em São Paulo, trabalhando em rádio

e TV. Mas volta definitivamente para Porto Alegre e morre de ataque cardíaco em 1974, dia seis de junho – ou cinco de julho, os registros variam. Tinha apenas 55 anos e decidira há pouco retomar a carreira musical. Estava no meio de uma turnê pelo interior do estado junto com a cantora lírica Déa Mancuso).

A Calhandra de Ouro

Já Luiz Telles, do qual pouco se sabe, morreu em 1984, com 69 anos. Os anos 50 também foram os do sucesso de Alcides Gerardi e Osmar Safety. Especialista em Dorival Caymmi, Alcides (Rio Grande, 15/05/1918 – Rio, 01/03/1978) emplacou em 58 a melosa Cabecinha no Ombro (aquela mesmo…) e virou cantor de guarânias e boleros. Já Osmar Lima dos Santos “Safety” era trompetista e compositor. Nasceu em Pelotas em 1917 e foi o maior especialista local em música cubana, num dos períodos mais populares dos sons caribenhos por estas terras subtropicais. E há Tatuzinho. Nascido Ary Valdez, por volta de 1906, mudouse pra terras cariocas não se sabe exatamente quando. Era tão convicto no seu analfabetismo que, no lugar da assinatura, desenhava um tatu. Mesmo assim, conseguiu algum sucesso – tocava bem e chegou a ser reserva de Noel Rosa no Bando dos Tangarás, em 1930. Gravou discos, fez parte do regional de Dante Santoro, e tornou célebre um número de humor no Cassino da Urca: entrava com um enorme estojo de violoncelo e, dali, tirava seu minúsculo cavaquinho. Hoje parece bobo. Na época também parecia, mas o pessoal já tava bêbado mesmo… Só que, pra inveja geral, em 39 casou-se com a belíssima Elizeth Cardoso. Tiveram um filho, mas o tatu fugiu da toca já na lua-de-mel, e

nunca nem conviveu com a criança. Ao longo dos anos começou a alternar estados de depressão e insanidade, até voltar pro sul nos anos 1950. Empregou-se tocando violão elétrico em algumas casas noturnas, o que fazia com tanta dedicação quanto a que usava para sustentar usinas e mais usinas de álcool, geralmente em parceria com o amigo Lupicínio Rodrigues. Morreu no comecinho da década de 60, cada vez mais biruta (foi internado algumas vezes, e volta e meia saía pelado pelas ruas). Jessé Silva também é dessa geração. Nascido em Erebango (339 km a norte de Porto Alegre, perto de Erechim) dia 26 de agosto de 1919, esse era fera. Décadas passadas de sua morte, seu mito segue intocado entre os chorões da cidade, e não é pra menos. Aos 10 anos de idade tinha estudado violino, teoria e solfejo com Olga Fossati, mandava bem também no violão, bandolim e cavaquinho e já ganhava um dinheirinho acompanhando os filmes, ainda mudos, do Cine Erechim (registre-se: aprendeu a ler música antes de aprender a ler palavras escritas). Outras das peculiaridades do guri era o jeito com que muitas vezes tocava o violino: com um palito de fósforo usado como se fosse uma palheta. Compositor inspirado desde os 11 anos de idade (sério: o que é que botavam no leite dessas crianças do começo do século XX?!?), mudase com a mãe primeiro para Porto Alegre – onde vai estudar, claro, com Octávio Dutra – e, logo depois, em 1937, para o Rio de Janeiro. Lá, o que lhe ajudou muito foi ser sobrinho de Pery Cunha. Chorão, gaúcho e ex-integrante d‘Os Ases do Samba – Francisco Alves, Noel Rosa, Mário Reis e o pianista Nonô –, Pery era, naquele momento, o bandolinista mais importante do país. Tinha ido para o Rio no final dos anos 1920, e logo estava no grupo Os Gaturamos, rival do Bandos dos Tangarás, de Noel e Almirante. Inspirado no seu ídolo, o bandolinista pernambucano Luperce Miranda, Pery se tornou um dos mestres fundadores da linguagem do instrumento na música brasileira. No fim da vida, voltou a Porto Alegre e, em 1972, era um dos integrantes do regional comandado pelo Professor Darcy no bar Chão de Estrelas. Voltando a Jessé. Em 1940, ele entra pra FAB (Força Aérea Brasileira) como piloto e radiotelegrafista. Nessa condição, corre o Brasil e chega a viajar até os Estados Unidos antes de se aposentar aos… 27 anos – com mais de três mil horas de voo e o posto de sargento. Logo se concentraria no raro violão de sete cordas e conheceria Jacob do Bandolim, com

quem tocaria em rádios, teatros, saraus e estúdios de gravação – gravaram juntos pelo menos três 78 rpm, num total de seis músicas. É como contou na clássica entrevista de Lupicínio Rodrigues ao Pasquim na década de 1970 (entrevista onde ele, Jessé, também falou muito): minha formação musical foi aqui no Rio de Janeiro. Eu sou gaúcho mas vim beber água e aprender violão aqui, na fonte. Via Jacob, chegou a Pixinguinha, e acabou, em 1958, no Grupo da Velha Guarda. Tava tudo certo, mas teve o primeiro ataque de saudade e voltou pro interior do Rio Grande do Sul. Não aguentou muito tempo: em 1962 (ou 63, as fontes variam), se muda pra Porto Alegre. Com o currículo que tinha, foi imediatamente contratado pela Rádio Gaúcha e eleito vice-presidente do Sindicato dos Músicos. De quebra, se casa. Mas a época era de vacas magras pro choro. O negócio foi se entrosar com o pessoal do samba, Lupicínio e Túlio Piva à frente. Jessé: Eu, chegando no Rio Grande do Sul, tinha que procurar o Lupicínio. O problema foi meu: procurar e encontrar o Lupicínio. Em 1965, juntou nada menos que 50 violonistas para acompanhar Orlando Silva num show no Auditório Araújo Viana, numa façanha de grande repercussão na mídia local. Mas vai ser só em meados da década de 1970, com o renascimento do seu gênero preferido, que volta a se apresentar com frequência em shows e recitais por todo o Rio Grande do Sul. Chega até a ganhar o prêmio de Melhor Arranjo na IV California da Canção de Uruguaiana, em 1974. Em 1977, Meu Pensamento, composto e interpretado por ele (e gravado anos mais tarde, no álbum coletivo Porto Alegre 84), leva um honroso segundo lugar no I Festival Nacional do Choro – Brasileirinho, com que a Rede Bandeirantes de TV celebrava o renascimento do gênero. No ano seguinte, no mesmo festival, não vai tão longe, mas classifica outra obra sua: Sinuoso. A partir daí, foi se aproximando de uma nova geração, e monta o regional Vibrações com, entre outros, os netos de Túlio – Rodrigo e Rogério Piva – o pandeirista Giovanni Berti e Lúcio do Cavaquinho. O regional tocou muito numa década de ouro do chorinho na capital: os anos 1980. Também é sócio-fundador do Regional do Theatro São Pedro, junto com Lúcio e Giovanni, mais Plauto Cruz (flauta), Ayrton do Bandolim, Fernando do Ó (surdo) e o Professor Darcy Alves (violão). Com esse grupo,

acompanhou de Altamiro Carrilho a Ademilde Fonseca, e sedimentou sua lenda. Morreu de câncer, no auge, como referência central do samba e do choro da sua cidade, dia 15 de setembro de 1988. Tinha 69 anos, tocava violão havia 60. Pra tristeza geral, a doença o impediu de gravar todos os violões de seu segundo LP (o primeiro fora Sambas e Sambas, nos anos 60), lançado naquele ano, junto com uma biografia escrita pelo jornalista Danilo Ucha.

O único LP de Jessé

Durante toda sua vida Jessé estudou violão, diariamente, horas a fio. O repertório ia, tranquilo, de Bach a Villa-Lobos, passando, evidentemente, por Pixinguinha e Jacob do Bandolim. Tocava de tudo, mas sua paixão era efetivamente o virtuosismo harmônico e melódico do chorinho. O cara viu o gênero entrar e sair de cena mais de uma vez. E repetia: O choro não morreu, nem vai morrer. Mas está na UTI. De vez em quando toma um fôlego. *

*

*

Relembrando e ordenando: em oito de fevereiro de 1927 estreia a primeira emissora da cidade, a Rádio Gaúcha. Em 27 de outubro de 1934, sete anos depois, vem a Rádio Difusora Porto-Alegrense. No meio disso, em 32, tem o decreto aquele do Getúlio que libera a propaganda no novo meio de comunicação. E aí, em 35, já num mundo novo de possibilidades, a Farroupilha entra rachando.

1936, Rádio Difusora. Tango rolando a mil.

Porto Alegre terá então, por 22 anos, as mesmas três emissoras – até a inauguração da Rádio Guaíba, em 1957. E a coisa fica assim: em 1950, segundo o Anuário do Rádio, Gaúcha em primeiro, Farroupilha e aí Difusora. Oito anos depois, já segundo o IBOPE, é Farroupilha em primeiro lugar (38%), a estreante Guaíba em segundo (20%) e Gaúcha em terceiro (9%). E dados de Ibope começam a fazer sentido, já que, meses antes, fora inaugurada a primeira moderna agência de publicidade da cidade, a MPM, e muita coisa vai mudar a partir daí. É bom lembrar que estamos em pleno governo Juscelino, com o PIB crescendo quase 10% ao ano, desenvolvimentismo e um Plano de Metas investindo pesado no crescimento na industrialização do país. O mundo está mudando, o Brasil está mudando, Porto Alegre está mudando. Essa transição marca o auge da popularidade dos programas de auditório. O Auditório Associado, usado basicamente pela Farroupilha, ficava na rua Siqueira Campos esquina com a Leonardo Truda, e era frequentadíssimo – a rádio também era dona de um grande sobrado nos altos do viaduto Otávio Rocha, na Duque de Caxias com a Borges de Medeiros. Já o da Gaúcha – inaugurado em 1950 – tinha 660 m2, 237 lugares, e ficava no décimo primeiro andar do Edifício União, na mesma Borges, ainda melhor posicionado: menos de 100 metros do Mercado Público, ponto de encontro oficial de músicos em busca de o que hoje se chamaria uma ―gig‖, um trampo, um bico, um trabalho praquela noite.

O Auditório da Gaúcha nos anos 50.

A Farroupilha e a Difusora, desde 1943, pertenciam a Assis Chateaubriand, fazendo parte da sua rede de Emissoras Associadas, opositoras ao então ditador Getúlio Vargas. Já a Gaúcha havia sido comprada em 1951 por um grupo bastante ligado ao então presidente recém-eleito para voltar ao poder nos braços do povo. Isso dava uma barbada pra emissora: os artistas contratados pela poderosa e estatal Rádio Nacional do Rio de Janeiro eram emprestados pra Porto Alegre. Até Francisco Alves, o mais popular cantor do Brasil, pintava na área, facinho, facinho. Aí, em 1952, Chateaubriand manda pra Porto Alegre o pernambucano Jesuíno D‘Ávila com uma missão: bombar (no bom sentido) a Farroupilha. O cara começa revalorizando o time de primeira que a emissora já tinha: uma orquestra de 38 músicos e um elenco de radioteatro com 45 atores. Mais um acervo de 19 mil discos, com 600 novos comprados a cada mês. Na música, as maiores estrelas eram os maestros: o italiano Salvador Campanella, o alemão Alfred Hülsberg (que foi se agauchando como poucos, e fez escola como arranjador de música regional) e o gaúcho Roberto Eggers (veterano nascido em 1899, respeitado na área erudita, autor de óperas e de pelo menos um sucesso popular: Tango de Amor). Além disso, claro, havia o grupo vocal da casa, o sensacional… Conjunto Farroupilha.

Rádio Farroupilha, anos 1950. Jeito e força.

Começa a lotar o auditório da emissora. A Grande Orquestra era a mais completa do broadcasting local: a base era uma big band com todos os naipes fechados no padrão Glenn Miller (o grande referencial da época, com cinco saxes, quatro trompetes, quatro trombones, guitarra/violão, piano, contrabaixo e bateria, mais ritmistas e cantores). Acrescente uma orquestra de câmara (primeiros violinos, segundos violinos, violas, cellos, contrabaixos, oboé, clarinetes, fagote, trompa). Segundo o radialista Glênio Reis, chegaram a ser mais de 60 músicos. E pelo menos uma curiosidade, revezando-se entre cello e sax alto: o suíço Walter Smetak, que depois se radicaria na Bahia e seria um vanguardista compositor e inventor de instrumentos, um dos mentores dos tropicalistas.

O Conjunto Farroupilha, anos 1950. Muita manha.

Esse timão se subdividia, conforme as necessidades, no Jazz de Breno Baldo, Conjunto Melódico ou Trio. E não era a única fonte de músicos da rádio. Tinha também o Regional de Antoninho Maciel e a típica de tango. Só pianistas contratados, a rádio tinha três, cada um para uma especialidade. Além de uma infinidade de cantores, com vários especialistas para cada ritmo ou estilo. Sua arma maior era justamente o gigantismo. Hülsberg e seu concorrente Karl Faust – da Gaúcha – tinham algo em comum: todos foram parar na cidade em 1954, a convite do maestro húngaro Pablo Komlós, que estava montando a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre e precisava de músicos para completar naipes que não tinham grande oferta (Faust era violista, Hülsberg, oboísta). Desde a década de 40, e indo até o início dos anos 60, havia uma grande rivalidade entre quem cantava, tocava ou integrava as orquestras da Farroupilha e da Gaúcha. Também, pudera…

Regional de Antoninho Maciel. Com uma cantorinha que, aos 14 anos, já era bi campeã dos melhores do ano no rádio gaúcho. Elis, 1959.

*

*

*

E 1954 é também o ano de quê? Muito bem! – suicídio de Getúlio Vargas. Manhã do dia 24 de agosto. Na medida em que chega à população a notícia do acontecido, uma comoção popular sem precedentes toma a capital. Quando, às 10 da manhã, vai pra rua a edição extra da Folha da Tarde com a manchete Suicidou-se Getúlio Vargas, o povo, ensandecido, sai quebrando tudo que pudesse estar ligados às ―forças ocultas‖ a que o finado creditava seu ato final na carta de despedida rapidamente divulgada.

Reza a lenda que quem começou a confusão foi um lavador de carros apelidado Pirata, porque tinha um olho só. Ele teria gritado ―– Vamos pro Diário!”. E lá se foi a massa ensandecida rumo aoDiário de Notícias, uma das empresas de Chateaubriand, a força oculta mais aparente. Entram na redação, quebram geral, jogam tudo pela janela e ainda tascam fogo. Animadaço, o pessoal segue: sede da UDN, redação do jornal O Estado do Rio Grande, consulado dos Estados Unidos e até as pobres das Lojas Americanas que não tinham nada a ver com isso – só o nome. Ok, Rua da Praia tava justiçada.

Capa da Última Hora, no calor da mesma.

Aí a massa sobe pela Borges rumo a mais uma empresa das Associadas de Chatô: a Farroupilha. Desta vez a ordem foi um pouco diferente: invadiram igual, mas primeiro incendiaram as coisas, e só depois atiraram pelas janelas. O acervo de 78 rpms (o maior do Estado) provocou uma verdadeira metáfora de invasão marciana: uma nuvem de discos voadores voou pelo vão do viaduto. A Difusora e o auditório da Siqueira Campos também entraram no rolo: no total, 40 prédios foram invadidos e quebrados. Passionais, os porto-alegrenses? Nada! Só tinham repetido o terror e pânico de 1917, quando, em função da Primeira Guerra Mundial, quebraram tudo que fosse ou parecesse alemão: a livraria Krahe, a Sociedade Germânia, a Bromberg, o Novo Hotel Schmidt e por aí vamos. E repetiram a dose em 1942, com a Segunda Guerra e

de novos os alemães como inimigos: Casa Lyra, Laboratório Bayer, de novo a Krahe e por aí vamos. *

*

*

Pois, em 1957, quem estava bastante alquebrada era a velha Gaúcha – quase falindo, mas mantendo as aparências. É quando o jovem animador de auditório Maurício Sirotsky Sobrinho e três sócios compram a empresa. Chega cheio de ideias e mais ainda de ambições. Contrata muita gente e aposta numa rádio com forte interação com o público, em transmissões ao vivo não só nos seus auditórios – então com entradas disputadas quase aos tapas entre as macacas de auditório –, mas também teatros e cinemas. Era assim o seu Programa Maurício Sobrinho, quando transmitido pela Farroupilha, do auditório da Siqueira Campos. Agora, com a troca de emissora, ele iria para o Cine Castelo da Avenida Azenha, muito maior. A primeira investida de Maurício na Gaúcha é a mesma de Jesuíno na Farroupilha, anos antes: valorizar os funcionários. Começa por seus 36 atores de radioteatro e pela big band de 18 músicos dirigida por Karl Faust. Karl, a princípio, iria trabalhar na OSPA e na Farroupilha, mas alguma coisa o fez mudar de ideia. E tava certo: já em 1956 sua orquestra foi eleita a melhor do rádio pela Revista da TV (sim, antes mesmo de haver televisão na cidade já havia a Revista da TV – o pessoal meio que se precipitou – e era a quinta revista a tratar desse showbizz: Revista do Rádio, Rouxinol, Radiolândia e Revista do Globo).

Primeira formação da Ernani-Marino, ainda na Gaúcha, 1941.

Melhor para a Gaúcha, que naquele momento havia acabado de perder a prestigiosa Orquestra de Ernani & Marino, que se dissolvera. Aproveitando muitos dos músicos que ficaram pendurados no pincel, a grande inovação da orquestra do alemão foi o capricho com que ―Fausto‖ – como foi apelidado imediatamente – trabalhava. Arranjo novo era primeiro passado com todo mundo. Aí cada naipe ia para uma sala, ensaiar separadamente cada respiração, cada acento, cada mínimo detalhe que fizesse quatro ou cinco músicos soarem como um só. Era um padrão de excelência inédito até então. Por isso, não foi de espantar que, na virada dos anos 50 pros 60, eles levassem por seis anos consecutivos o título de Melhor Orquestra. Além disso, encantavam os artistas de fora que vinham se apresentar na rádio acompanhados por eles. E a Gaúcha ainda aproveitava os talentos individuais do pessoal para compensar com qualidade a falta de quantidade de elementos do seu cast.

Formação clássica da Ernani-Marino, 1952.

Um exemplo perfeito era o primeiro sax alto da orquestra (e, anos depois, claronista e timpanista da OSPA) Giovanni Porzio . Giovanni tocava sax na orquestra, atacava de pianista de jazz, de música erudita, de música brasileira ou de tango, com amplo domínio de cada uma das linguagens – que, diga-se, tem até hoje. Além disso, os músicos que passaram pela orquestra de Fausto eram, em grande parte, o que havia de melhor então. Já se falou antes do saxofonista Macedinho e do baterista Zezinho. Mas no piano, por exemplo, se alternaram feras como Délcio Vieira e o então muito jovem Ruy Barros. Na guitarra e violão, também trazido da Farroupilha, Paulo Coelho (nada a ver com o pianista e compositor de décadas anteriores muito menos com o mago de décadas depois). E, é claro, o veterano e consagrado Marino dos Santos, importado

com as maiores honras direto do Rio de Janeiro. Maurício também contrata da principal concorrente Primo e Seu Conjunto Melódico e uma jovem cantora revelada pelo Clube do Guri: Elis Regina. A reação vem rápido: em 1958, n‘Os Melhores do Rádio da prestigiada Revista do Globo, quase todos os escolhidos são da Gaúcha. Melhor arranjador e melhor orquestra para Karl Faust, melhor instrumentista para Paulo Coelho, melhor cantora para… Elis Regina. Já. Aos 13. Ainda falaremos dessa menina. Em 1959, na eleição da Revista TV, Elis e Karl repetem o feito. Faust ganha Melhor Maestro. Alfred Hülsberg leva Arranjador. Demosthenes Gonzalez, Compositor. E Norberto Baldauf, Conjunto Instrumental – o mais importante de todos os conjuntos melódicos, montado, ensaiado e experimentado aos poucos nos corredores da rádio. Outros de quem ainda falaremos muito. Correndo por fora na briga entre as duas emissoras vinha a Difusora, que não tinha lá um imenso plantel, mas era onde começara a já citada Orquestra de Ernani & Marino. Também lá atuaram como pianistas, desde o final dos anos 40, craques como Arthur Elsner, Aderbal D‟Ávila e o próprio Norberto Baldaulf. E era na Difusora que se tocam os arranjos de nosso velho amigo Armando Albuquerque, lembram dele? (É interessante pensar como se trabalhava numa época em que viajar com uma banda era muito caro e playbacks eram inimagináveis. Cada cantor de renome nacional embarcava no avião com uma pastinha, onde havia a partitura de seus acompanhamentos e as partes extraídas para cada instrumento. Chegava na hora – muitas vezes na hora mesmo, sem nenhum ensaio prévio –, distribuíam as partes e era isso: Deus ajudava se quisesse. Por isso era tão importante a leitura de partituras à primeira vista. Aliás, era comum a pergunta ―você é músico?‖ querendo dizer ―sabe ler partitura?‖) Todas as rádios tinham programação ao vivo, nesses moldes, todas as noites. Além de horários variados ao longo do dia e quase tudo ao vivo no final de semana. Emprego não faltava. *

*

*

E há de se falar com mais vagar dos nossos cantores e cantoras do rádio. Afinal, eles viviam uma realidade muito peculiar e quase esquizofrênica: não eram heróis nacionais como os astros das emissoras cariocas, mas faziam muito sucesso local, basicamente,

cantando um repertório já consagrado por esses intérpretes. O que hoje seria chamado de cover. No mais das vezes, até a escolha do repertório do sujeito era feita pela direção artística da rádio, que também se encarregava de encomendar os arranjos a este ou aquele maestro. Ao intérprete, restava pouco mais que escolher o tom. Salvador Campanella, por exemplo, recebia a programação mensal das emissoras associadas e, a partir desse playlist, definia o que seria tocado na Farroupilha, por quem e com quais arranjos. Como hoje os radialistas de emissoras pop comerciais fazem com as paradas da Billboard.

Salvador Campanella, chamado carinhosamente pelos músicos da orquestra de Nossa Senhora da Bronca

Além disso, sempre que podiam, as emissoras locais importavam os Franciscos Alves, Nelsons Gonçalves, Ângelas Marias, Marlenes, Emilinhas, Caubys e Hebes. Tratados como milagres que os santos de casa jamais fariam. Mas foram muitos os cantores nos anos 1930 a 1960. Alguns alcançaram fama e popularidade regional, eram figurinhas carimbadas da Revista do Rádio e só não foram além porque empacavam na velha dificuldade em gravar um disco (uns poucos foram ao Rio ou a São Paulo e lá registraram algo, mas sem maior repercussão nacional). De qualquer forma, eram os maiores heróis da nossa Era do Rádio. Num levantamento superficial, deixando muita gente de fora e colocando lado a lado artistas de diferentes gerações: Fernando Collares, estrela de programas como as Grandes Audições Panambra-Bendix, na Farroupilha; Os irmãos Guilherme e

Gilberto Braga; Roberto Giannoni – outra descoberta do Clube do Guri; Edy Polo; Sérgio Dias – irmão de Rubens Santos; Vaine Dutra; Renê Martins; Zé Bode; Francisco Lopes; Valdir do Carmo; Teresinha Monteiro; Gessy Dávila; Neusa Teresinha; Lucy Natália; Alvaiade; El Chamaco – que só cantava boleros, merengues e salsas; Heitor Barros – o moreno da voz loira (!!!); Armando de Alencar – o Príncipe do Rádio.

Fernando Collares, pouco antes de falecer, ao lado de um compositor de quem falaremos: Luiz Mauro

Sem contar precursores, como Alcides Gonçalves – de quem muito falaremos – e Horacina Corrêa, de quem já falamos. Também da turma de Lupicínio, Johnson– o boxeur-cantor – e Sady Nolasco, o homem do chapéu de palha. E o mítico Alberto Dias, o Carusinho. Esse, tinha originalmente a voz que lhe rendeu o apelido mas, não contente, fazia qualquer coisa pra chamar atenção: cantar comendo – de cabeça pra baixo – era apenas uma delas. Emendar canções por 48 horas sem parar foi outra. Resultado: a danada da voz, se sentindo explorada, pediu as contas. O jeito foi seguir apenas como compositor – pelo menos emplacou dois sucessos: Na Aldeia, gravada por Sílvio Caldas, e Segura o Bonde, hit local de Horacina. Pra segurar as contas, virou especialista em tratamento de calos. Nem ao menos eram calos vocais: eram calos dos pés mesmo.

Reunião de heróis de uma geração: Guilherme Braga e Ary Rêgo, século XXI, no programa de Glênio Reis

Passando Elis Regina pra categoria hors-concours, o grande nome desse mundo que sobreviveu ao seu fim foi outra moça que também iniciou carreira muito jovem, e nos mesmos anos 1950: a santa-mariense (286 km a oeste de Porto Alegre) de quatro de janeiro de 1938 Antônia Lourdes Bretas Rodrigues, que entrou no terceiro milênio adentro como o grande nome ainda em atividade dessa geração, lenda da boemia porto-alegrense. Lourdes surgiu no programa Colégio Musical, apresentado pelo mesmo Ary Rêgo d‘O Clube do Guri, e com uma ideia parecida: valorizar os talentos infantis. Aí, em 1952, ganhou o concurso A Mais Bela Voz Estudantil do Rio Grande do Sul. Resultado: foi parar no mais importante e assustador programa de calouros do Brasil: o de Ary Barroso, naquele momento na TV Tupi do Rio. Ganhou de novo. Tinha 14 anos. A partir daí, só foi. Contratada da Farroupilha, praticamente uma criança, era a única voz feminina do programa de rádio Roteiro de um Boêmio, do ―padrinho‖ Lupi – na verdade, Lourdes é que, anos mais tarde, seria madrinha de Lupinho, o filho de Lupicínio. Sobre seus tempos na Farroupilha, um depoimento da própria, bastante esclarecedor:

O LP Utopia, e Lourdes Rodrigues, nunca relançado em CD

Nós éramos assim as maiorais no Rio Grande do Sul, tudo era a rádio Farroupilha. Então todo mundo queria cantar na rádio Farroupilha, tocar na rádio Farroupilha, atuar nos programas, muita gente fazia testes em novelas (…). A rádio Farroupilha comandava tudo. E assim nós éramos rivais e os fãs clubes se pegavam mesmo. O fã clube da Lourdes Rodrigues, o fã clube da cantora Guacira – da rádio Gaúcha –, Vera Lúcia, fora a Nilza Terezinha que depois veio trabalhar conosco. Tinha umas outras cantoras também. A rádio Itaí também criou um cast de cantores e músicos muito bom. (…) Aí vieram para a rádio Farroupilha, porque (…) quem era bom a rádio Farroupilha contratava. E havia rivalidade muito feia, mesmo, brigas de auditório. Era uma beleza.

O único CD de Lourdes, esgotado

Com o declínio do rádio, Lourdes ganha um programa seu na TV Piratini chamado nada menos que A Rainha Canta. Depois, com a entrada do videotape, foi lady crooner de vários conjuntos de baile até se radicar na noite, na boemia, num meio eminentemente masculino, mas onde sempre se impôs pelo vozeirão e o talento. Ao longo das décadas de 1960 e 70 se tornou uma das figuras centrais da turma, firmando seu jeito absolutamente pessoal de cantar. Clube dos Cozinheiros, Batelão, Chão de Estrelas, Gente da Noite, Clube da Saudade, Vinha D’Alho… Lourdes era uma estrela em todas essas casas. Paralelamente, ia levando a vida de professora e, mais tarde, de funcionária de cartório. E acumulando títulos: Rainha do Rádio, Rainha do Carnaval, Favorita dos Estudantes, Favorita dos Militares, A Voz Morena da Radiofonia Sulina, A Patativa do Rio Grande… Sem contar os prêmios de melhor intérprete na imensidão de festivais regionalistas dos anos 1980 e 90.

Lourdes no século XXI

Em 2000, foi um dos maiores destaques do CD Porto Alegre Canta Tangos, coprodução portenho-portoalegrense lançada com shows de grande repercussão (e sempre destacando sua performance) em Porto Alegre, Buenos Aires e no Festival de Tango de Roma. No mesmo ano, lançou, também pela Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre, Dona Divergência, produzido e arranjado por Toneco da Costa e com alguns dos melhores músicos de variadas gerações da cidade. Inexplicavelmente, apenas seu segundo trabalho, numa longa carreira como a dela – há ainda o LP Utopia, gravado em 1985, só com músicas de dois compositores que provavelmente bancaram o lançamento independente, Flávio Soares e Paulo Rogério. Em 2012, completa cinquenta anos de carreira. *

*

*

Outro sobrevivente boêmio dessa era é Plauto Cruz. O Flauto da Plauta nasceu Plauto de Almeida Cruz, em São Jerônimo (57 km a oeste de Porto Alegre), no dia 15 de novembro de 1929. Filho de um flautista de cinema mudo, quase um bebê já assoprava flautinhas feitas de taquara. Aí, aos oito, ganhou uma flauta de verdade e só foi: como Lourdes Rodrigues, aos 14 anos já impressionava o pessoal em Porto Alegre. Mas não ficou muito tempo: o juizado de menores cortou o seu barato e o remédio foi voltar pra junto da família, em São Jerônimo, indo trabalhar numa fábrica de facas. Pra alguma coisa serviu: em 1949, quando volta a tentar a sorte na Capital, garante um emprego de chapeador num estaleiro. Ainda bem, porque levou três anos pra conseguir a primeira grande chance: uma canja na Rádio Itaí. Estamos em 1952, Porto Alegre só tem três emissoras e Plauto é imediatamente contratado. O óbvio convite da muito mais poderosa Farroupilha chega em 1956. Vai então integrar o regional da emissora, recém-desfalcado do sopro de Alcides Macedo, que, como já vimos, fora contratado por Karl Faust para a orquestra que estava montando na Gaúcha. Com o regional (flauta, cavaco, dois violões, pandeiro, contrabaixo e acordeon), acompanha deus-e-todo-mundo, e desponta como uma versão local de um de seus maiores ídolos, o expatriado Dante Santoro, flautista do Regional Master Plus do Brasil, o da Nacional. Tanto a menina Elis Regina (n´O Clube do Guri) quanto o veteraníssimo Vicente Celestino tem a alegria de emoldurarem-se pelos virtuosísticos contracantos de sua flauta. Em 1961 é a vez dele ir pra Gaúcha, no Regional do Paraná: Paraná no violão-tenor, Almirante no violão, Nadir „Cachorrão‟ no trombone e Azeitona de ritmista. Ao mesmo tempo, ataca – tocando basicamente flautim – na curiosa e divertida Banda dos Carijós, liderada pelo clarinetista Hardy Vedana. O clima é de bandinha de coreto do começo do século XX, interpretando maxixes, dobrados e outras (já então) velharias. Criado pra tocar na Rua da Praia, patrocinada pelos comerciantes do seu entorno, quando lança seu segundo disco, em 1962, o grupo tem uma ideia das mais originais: passa a tocar na boleia de um caminhão que circulava pela capital – começava ali a sanha passadista de Vedana que, nos anos 1980, montou uma versão jazz do mesmo conceito antropológicomusical: a Hardy Vedana and his Subtropical Jazz Band.

O impecável primeiro LP de Plauto

Lá pelo meio dos anos 1960 sua carreira tem o mesmo destino de todos seus colegas de geração. Você vai ler de novo: com as rádios em decadência, o lance é migrar para as boates, que logo também entram em crise, com as mudanças de costumes ao longo da década de 1970. Chega a tentar a vida em Curitiba, mas volta pra Porto Alegre e começa o circuito noturno que vai seguir pelos próximos 40 anos: bares, restaurantes e churrascarias, com eventuais e sempre destacadas aparições em outros contextos, como as Califórnias da Canção. Eventualmente, aparições nacionais, como nos festivais de choro promovidos pela Rede Bandeirantes em 1977 e 78 (aqueles mesmos onde brilhou Jessé Silva) ou o Festival da Tupi, de 1979, onde nasceu a dupla Kleiton & Kledir cantando uma Maria Fumaça arranjada e iluminada por Plauto. Reconhecido por muitos como um dos maiores nomes nacionais de seu instrumento no choro, sofreu a sina de nunca ter saído de Porto Alegre. Aí, em vez de ter, sei lá, 30 discos gravados, foram apenas dois LPs e alguns CDs. O primeiro é de 1977, foi gravado na Isaec, e se chama O Choro é Livre – e é não só a estreia solo de Plauto, como de boa parte de sua turma de chorões já então cinqüentões.

Indissociáveis: o Flauto da Plauta

Em compensação, perdeu a conta dos prêmios de melhor instrumentista, ou as milhares de horas de palco e estúdio com gente que vai de Orlando Silva a Nelson Coelho de Castro, de Jessé Silva a seu amigo e rival em virtuose chorona Altamiro Carrilho. Um mestre que em 2012 completa 68 anos de carreira, 60 deles de forma profissional. Como mestres foram o saxofonista Breno Baldo e o clarinetista Marcelino Corrêa. Baldo era um dos principais solistas da orquestra da Farroupilha nos anos 50 e, na década seguinte, liderou alguns grupos pequenos, sempre com seu nome à frente. Durante muito tempo seu sax era uma das maiores atrações da orquestra. Não, não era ele que se destacava. Era seu sax mesmo: todo remendado com cordinhas e pedaços de arame, cujo milagre era soar afinado. E soava… Como Breno não ganhava muito dinheiro nem tinha grana de família, nunca pôde arrumar o instrumento nem comprar outro melhor. Até que teve de fazer uma operação de emergência e, na volta às atividades, recebeu de presente seu velho sax… totalmente reformado! Quem pagou foi uma vaquinha dos 45 músicos e quatro maestros, e o resultado é que o cara levou um mês para conseguir tocar aquele instrumento tão perfeito. Estava acostumado às imperfeições. Acontece. Já o compositor Marcelino Corrêa é um segredo guardado a sete chaves por alguns dos antigos chorões de Porto Alegre. Nascido em Santa Vitória do Palmar (500 quilômetros ao sul de Porto Alegre), em seis de abril de 1900. Aos 18 anos, se alistou no exército, em Jaguarão, sendo logo transferido para Juiz de Fora, em Minas Gerais. Lá, virou músico só pra ter melhores condições na tropa. Aprendeu primeiro clarinete e, anos depois, sax alto. Se estabeleceu em Belo Horizonte mas, acometido da inevitável – e, como vimos e veremos,

recorrente – saudade do pago, volta para o sul em 1934, estabelecendo-se na capital. A partir daí, chega a atuar profissionalmente até pelo menos 1949. Mas o que gostava mesmo era das infinitas rodas-de-choro com canjas de alguns dos músicos mais importantes das duas décadas seguintes, a quem sempre impressionou com suas elaboradas e muitas vezes estranhas composições. Em alguns casos, elas chegavam a mudar alucinadamente de tom, derrubando qualquer músico desavisado. Marcelino nunca fez sucesso, nunca foi muito conhecido, mas é uma lenda entre os poucos que conhecem essas composições – como o pesquisador, amigo e obcecado divulgador póstumo Hardy Vedana, responsável pela única gravação de alguma música sua, a valsa Horizontina, no LP que gravou com a sua bandinha Os Carijós. O clarinetista morreu em nove de outubro de 1986, compondo ininterruptamente – músicas que dificilmente alguém iria tocar – até os 80 anos de idade. Já doente, sua penúltima composição foi um choro chamado, ironicamente, Breve Fechará. *

*

*

Antes de seguir adiante, voltemos umas casinhas no jogo. Primeiro, pra lembrar das tantas casas, casinhas, prédios e edifícios arruinados com a enchente de 1941. Toda a população, incluindo dezenas de artistas em shows beneficentes, se organizou para ajudar os flagelados. As chuvas chegaram com a Páscoa e custaram a parar. mas aí, quando pararam, o Guaíba continuou subindo, graças à água que descia dos afluentes. Dia oito de maio a cheia alcançou seu ponto máximo: o lago, estuário, rio (ou como queira o amigo chamá-lo) estava quatro metros e 76 centímetros acima de seu leito. Parou tudo: 70 mil flagelados, 50 milhões de dólares de prejuízo. Foi aí que decidiram pela construção do muro da Mauá, que separa o centro de Porto Alegre das águas que viram a cidade nascer. Curiosamente, ele só seria construído 30 anos depois, na ditadura seguinte (entre 1971 e 74, prefeitura de Thompson Flores).

Porto Alegre, a Veneza brasileira

Também passamos batido o crescimento da Livraria do Globo, que se tornara uma das maiores editoras do país. Olha o time: Mario Quintana – que estreara em livro ali, em 1940, com Rua dos Cataventos –, Erico Verissimo (que publicaria nela suas mais de 30 obras), Dyonélio Machado, Darcy Azambuja, Vianna Moog, Athos Damasceno Ferreira. Mais as traduções, onde a editora sedimentaria sua fama de pioneira, em obras como Admirável Mundo Novo, do Aldous Huxley, e As Vinhas da Ira, do Steinbeck, ambas vertidas ao português por ninguém menos que Erico Verissimo. Ou Baudelaire, Thomas Mann, a Comédia Humana de Balzac, Em Busca do Tempo Perdido, do Proust… tudo isso aparecendo no país pela primeira vez, traduzido por Mario Quintana. Por três décadas seria a principal editora nacional, com um catálogo de mais de dois mil títulos. E isso que não podia ter começado de forma mais modesta: em 1899, editando – pense no lugar e no momento – Augusto Comte, o pai do positivismo. Numa oficininha nos fundos da livraria, fundada por Laudelino Pinheiro Barcellos e Samuel Alves Pinto em 1883. Em 1918 havia já o Almanaque do Globo e, com a morte de Laudelino, José Bertaso entra

como sócio. Seu filho, Henrique Bertaso, será a peça-chave para que a editora se torne o que foi. É quando ele assume a coordenação que chega a turma da pesada: Mansueto Bernardi, Erico e Quintana.

A livraria nos anos 1920 e nos anos 1940.

Tanto quanto dos livros, a fama da casa vem da Revista da Globo, que começa a ser editada em 1929 (há duas versões para seu surgimento, e ambas envolvem Getúlio Vargas, então Presidente do Estado e, como sabemos, um grande interessado em qualquer mídia – em troca, a revista não só vai apoiar sua candidatura à presidência da República como também a subsequente Revolução de 30, seguindo na fé getulista ao longo de todo o Estado Novo). A revista só para de circular em 1967, mas aí já não tinha quase nada da importância que teve entre os anos 1930 a 1950.

Décadas de capricho gráfico.

Outro ponto que não pode passar batido é o mundo dos cabarés. Havia grandes, médias e pequenas casas nesse ramo de carnes que, principalmente nos anos 1920, animavam as noites quase que exclusivamente ao som de tangos. Tango que, na cidade, entre os anos 1940 e 60 era sucesso até em bares como o Balú, nos altos do Chalé da Praça XV, e cuja maior estrela era aTípica do Maestro Zabalia (Zabalia ao bandoneon, Pajarito no violino, Marcelo Couto no piano e Zeno Ribeiro no contrabaixo). Mas aí os cabarés já tinham também os seus jazz – que, mais tarde, seriam trocados por pequenos grupos com formações das mais diversas. A fase mais rica musicalmente foi entre o final dos anos 30 e meados dos 50: toda casa que se prezasse tinha, além de cantores, bailarinos, mágicos – e,

é claro, putas – pelo menos dois grupos musicais de boa qualidade: o jazz, e a típica. Ambos com um número que variava entre cinco e 10 músicos cada. Mercado maior só o dos bailes. Neles, as melhores oportunidades apareciam, é claro, para quem tocava em alguma das rádios locais – e que, por consequência, tinha maior renome. Havia, claro, orquestras do interior que fizeram nome mesmo na capital, como o Conjunto João Roberto – de Cachoeira do Sulv ou Pedrinho e Seu Conjunto – de Bento. Mas as grandes vedetes eram mesmo as formações locais, como a Orquestra de Karl Faust. Esses chegavam a fazer 22 bailes num único mês. Jornadas de cinco horas de música, mas para as quais tinham várias regalias. Uma delas: se o lance fosse a mais de 250 quilômetros de distância de Porto Alegre, só iam de avião… Também exigiam um conjunto melódico, para revezar enquanto descansavam e faziam um das três trocas de figurinos de cada apresentação. Eram a culminância de uma época (entre meados dos anos 1920 e o final dos 60) que teve, só em Porto Alegre, mais de uma centena de orquestras e jazz bands. Um mundo rapidamente substituído pela febre local dos tais melódicos – mas isso é assunto para um capítulo vindouro. Enquanto uns ambientes cresciam, outros minguavam: o último café com música ao vivo – o it dos anos 30 – fechou suas portas em 1950. Era o Indiana, na Rua da Praia, onde tocava um sexteto all star de formação bastante curiosa: Chaguinha no trompete, Breno Baldo no sax e clarinete, Antoninho Gonçalves na guitarra, o Maestro Zabalia no bandoneón, Marcelus no piano e João Bandeira no contrabaixo. É justamente nessa década que o rádio chega ao auge da popularidade, profissionalismo e faturamento. Era o centro da sala, antes dos aparelhos portáteis. No horário das radionovelas noturnas, como hoje acontece com a TV, 92% dos aparelhos existentes em Porto Alegre estavam ligados. O impacto no interior só não era maior porque só um terço dos lares gaúchos tinha energia elétrica, e o rádio de pilha ainda não tinha se popularizado.

Anos 50: o lendário auditório da Farroupilha, com o time quase completo

Aqui, na escadaria, o time COMPLETO

A Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, fundada em 1950 pelo maestro húngaro Pablo Komlós, vem pra somar no cenário, empregando gente muito boa e experiente como o já tantas vezes citado Salvador Campanella: Quando entrei na OSPA eu já tinha bastante prática, porque na rádio é necessária muita tarimba, do contrário não se resolve nada. (…) Não dá tempo para nada, tudo é feito muito ligeiro. E eram cinco programas noturnos de meia hora, ensaio de duas horas. Então o negócio era feito assim: “Tá, tá, tá pronto, cuidado com o sinal.” O maestro Pablo Kómlos (…) ia lá para assistir a rádio e ficava bobo: como é que esse pessoal se arranja? (…) Saía bem porque os músicos eram de primeira categoria: (…) Breno Baldo, Rui Silva, eram 35 músicos. Foi lá da Rádio Farroupilha que surgiu a OSPA. Toda vez que a OSPA tinha algum concerto, despachava 22 músicos. Nós gravávamos o programa e a OSPA fazia o concerto. Foi quando me convidaram pra ser regente da OSPA. (…) E daí foi toda a orquestra junto. Esse ―foi toda a orquestra junto‖ aconteceria quando a coisa desandou, nos anos 1960. Já já falaremos disso. *

*

*

Mais um raro exemplo de cantora dessa geração que chegou ao disco é Maria Helena Andrade. Nascida em Porto Alegre dia 12 de maio de 1942, começou criança, como tantos dessa geração, lançando aos 15 anos pela gravadora Mocambo, de Pernambuco, dois 78 rpm com músicas de Rubens Santos, Hamilton Chaves e Lupicínio Rodrigues, acompanhada de Primo e seu Conjunto Melódico. Leon Barg, o recentemente falecido expert e dono da gravadora Revivendo, a definiu como uma cantora cuja discografia ficou muito aquém de suas qualidades. Maria Helena foi uma das últimas Rainhas do Rádio Gaúcho, em 1955 (aos 13!). Só voltou a gravar em 2007, quando lançou o CD Uma Luz a Brilhar.

O brotíssimo Maria Helena Andrade com o apresentador Salimen Jr.

Também é de se registrar uma das figuras mais curiosas do showbizz nacional: Carlos Machado. O cara fundou em 1939 Os Brazilian Serenaders de Carlos Machado, segundo suas próprias palavras, a única orquestra do mundo cujo maestro não sabe diferenciar um sol de um lá. Machado era sim bailarino, e dos bons, estrela dos cabarés da Paris dos anos 1930, partner da mítica Mistinguett, um entertainer de marca. Depois de sete anos na Europa, voltou para mostrar justamente o que fazia melhor: animar palco e plateia, fingindo que regia. Mas o time era de primeira e nem precisaria de maestro: até 1946, quando acabaram os cassinos e

muitas das orquestras, passou pela Brazilian Serenaders gente como Russo do Pandeiro, Copinha (flauta), Fafá Lemos (violino), Laurindo de Almeida (violão), Dick Farney (piano), Marlene, Emilinha Borba, Linda Baptista e Dalva de Oliveira. Tá bom? E há os casos de Gaúcho (da dupla Joel & Gaúcho - nascido Francisco de Paula Brandão Rangel, em Cruz Alta, 1911), Nelson Gonçalves e Cyro Pereira. Estes dois últimos, músicos geniais nascidos no Rio Grande do Sul mas – como o primeiro da lista - sem nenhuma ligação que justificasse sua inclusão numa história da música de Porto Alegre, como esta aqui. Só que também não dá pra deixar de citar.

Nelson, em Êxtase

Cyro, Maestro

Nelson nasceu Antônio Gonçalves Sobral, em Santana do Livramento, dia 21 de junho de 1919, mas logo a família se mudou para São Paulo. Até morrer, no Rio, em 18 de abril de 1998, foi um

dos maiores cantores brasileiros da Era do Rádio, chegando já no ocaso da estética do vozeirão, mas sendo tão bom que sobreviveu incólume à Bossa Nova e à MPB. E põe incólume nisso: difícil ter certeza de números absolutos, mas foi certamente um dos três maiores vendedores de disco da história pátria: vendeu inacreditáveis 78 milhões de cópias. Cyro teve uma trajetória parecida: aos 20 anos, se mandou direto de Rio Grande – onde nasceu em 14 de agosto de 1929 – para São Paulo, onde morreu em nove de junho de 2011, como regente titular da Orquestra Jazz Sinfônica. Só não entrou no rol dos grandes arranjadores brasileiros porque radicou-se em São Paulo e não no Rio. Tanto que só gravou seu primeiro disco em 1997, quando completou 50 anos de carreira entre o erudito e o popular (como Radamés Gnattali). E olha que até um ritmo ele inventou – em parceria com o paulista Mário Albanese: o jequibau, uma espécie de samba em 5/4. Sem falar que, contratado da TV Record em meados dos anos 60, era uma das estrelas da casa, regendo a Orquestra da emissora em programas como O Fino da Bossa ou nos míticos festivais de MPB. *

*

*

E há ainda que se falar em três importantes integrantes dessa geração de compositores tão pouco prestigiados: Jayme Lewgoy Lubianca (Porto Alegre, 1923), Alberto Bastos do Canto (Porto Alegre, 1923-2004) e Demosthenes Gonzalez (Porto Alegre, 08/1914 - 29/07/2000). Jayme, judeu, nasceu e cresceu na mesma avenida Osvaldo Aranha – coração do bairro judeu do Bom Fim – onde mora. Imortalizou-se com Porto dos Casais, gravada até por Elis Regina na série de discos Música Popular do Sul, da gravadora Marcus Pereira, em 1976.

Porto dos Casais, a partitura

Revista do Globo, 1961: Alberto do Canto

Já Alberto do Canto começou a tocar piano ainda criança, compondo já aos 14 anos de idade, sempre tendo como herói maior Paulo Coelho. Não seria descabido imaginar que o sucesso de Alto da Bronze (de Paulo) tenha sido a inspiração do foco das principais das suas mais de 200 obras – cantos de louvor à cidade: Porto Alegre – Cidade Sorriso, Parque da Redenção, Praça Quinze e o quase hino Rua da Praia, samba-canção gravado em 1954 pelo cantor Alcides Girardi na Odeon. Rua da Praia, que não tem praia, que não tem rio, Onde as sereias andam de saias e não de maiô. Rua da Praia, do jornaleiro, do camelô, Do estudante que a aula da tarde gazeou. Rua da Praia, da garotinha que quer casar, Do malandrinho que passa o dia jogando bilhar. Se as pedras do teu leito algum dia pudessem falar quantas cenas de dor e alegria haveriam de contar… Rua da Praia de alegres tardes domingueiras Quando as calçadas se enfeitam de gauchinhas faceiras.

Rua da Praia, da sede do Grêmio e Internacional, Que se embandeiram e soltam foguetes no jogo Gre-Nal. Provavelmente é desta época o compacto duplo Férias em Pôrto Alegre, só com canções de sua autoria: Férias em Pôrto Alegre, PôrtoAlegre – Cidade Sorriso, Rio Guaíba e uma homenagem ao maior de todos (junto com Radamés Gnattali) da primeira metade do século: No Tempo de Octavio Dutra. Em 1959, com apoio do prefeito (e ex-colega de escola Julio de Castilhos) Leonel Brizola, Alberto organiza o Primeiro Concerto de Música Popular Rio-Grandense, cujo repertório é totalmente composto de obras de… Alberto do Canto, interpretadas pela orquestra do maestro Salvador Campanella e por uma dupla dos melhores cantores da turma: Fernando Collares e Lourdes Rodrigues. Lotaram o Theatro São Pedro, repetindo o feito quase 20 anos depois, num concerto da OSPA, em 1977, com igual sucesso e o mesmo repertório. Alberto passou a vida trabalhando como advogado, formado que era pela mesma faculdade onde o bedel Lupicínio Rodrigues lhe incentivava a nascente produção sambística. E, apesar de escrever, basicamente, sambas-canção, era considerado por muitos um compositor semierudito. Com o que concordava: como encaro sériamente a arte musical, sinto que só poderei realizar-me nessa nobre arte quando palmilhar êste terreno, declarou à Revista do Globo em 1961. Por fim, Demosthenes Gonzalez (Porto Alegre, 1914-2000). Em 1956 o cara voltara para Porto Alegre como correspondente da Revista do Rádio no Rio Grande do Sul, redigindo as notas da coluna Rio Grande do Sul. Começara sua carreira 20 anos antes, no jornal carioca A Noite, tendo trabalhado no Rio e em São Paulo em veículos importantes como a revista Noite Ilustradae a lendária Revista do Rádio, da qual foi um dos fundadores. Paralelamente, formado em direito, como Alberto do Canto, escrevia contos, poemas e sambas – o primeiro data dos seus 12 anos de idade –, mas não mostrava pra ninguém. Até o cinema tentou, como ator! Quando, em 1951, teve – segundo ele – duas canções suas gravadas por Leny Eversong e creditadas a outros autores (Estranho, dada como de Osvaldo Nunes e Cabeção (!!!), e Vidas Iguais, creditada a Osvaldo Nunes e Ciro de Souza), achou que era a hora de levar o ofício de compositor a sério.

Em 1958, no LP Hora de Dançar, o Conjunto Norberto Baldauf grava Louca, um de seus maiores sucessos. Começa ali a ser reconhecido e já se anima a fundar o Clube dos Compositores, no qual batalhará pelo reconhecimento da profissão. Provando o ecletismo, em 1960 emplaca duas canções no LP Fandango no Galpão, da dupla Oswaldinho e Zé Bernardes: Baile de Lampião e Noite Escura – esta última, regravada por Ademar Silva, foi um de seus maiores sucessos. E segue: Gilberto Braga, Caco Velho, Teixeirinha, Mary Terezinha, Berenice Azambuja… gaúchos das mais variadas gerações e estilos passam a gravar suas composições. No total, foram mais de 200 canções feitas de ouvido, letra e música ao mesmo tempo, muitas vezes enquanto seu autor andava na rua ou de bonde. Aí corria para o amigo Alcides Macedo, o futuro Maestro Macedinho, que era quem colocava a nova composição no papel.

Demosthenes e J. Silvestre: O Céu é o Limite

Em 1957 ficaria famoso nacionalmente com mais uma das suas facetas: respondendo sobre Monteiro Lobato no programa de auditório O Céu é o Limite, de J. Silvestre. Em Porto Alegre, trabalharia no Correio do Povo e no Diário de Notícias. Militante de esquerda, foi preso – e torturado – muitas vezes durante as duas ditaduras brasileiras: o Estado Novo (ficou no presídio da Ilha Grande oito longos anos, até 1947, dois anos depois da ditadura acabar!) e o Golpe Militar de 1964. Com a morte do amigo de infância Lupicínio Rodrigues, meio que tornou-se depositário fiel da sua memória, o que resultou em colunas de jornal e duas homenagens de peso, ambas chamadas Roteiro de um Boêmio: um espetáculo de

sucesso encenado por três meses no Teatro Tereza Rachel, no Rio de Janeiro, e um livro lançado pela editora Sulina em 1986. Mesmo ano em que, na administração do pedetista Alceu Collares, começa a trabalhar na EPATUR, Empresa Porto-Alegrense de Turismo, de onde é cedido para a assessoria de imprensa das vindouras administrações petistas na Prefeitura de Porto Alegre.

A figura que o pessoal mais lembra dele: coroa bonachão

*

*

*

A televisão havia estreado no Brasil no dia 18 de setembro de 1950: era a Tupi, de São Paulo – seguida pela Tupi carioca, no ano seguinte. No extremo sul do país, a capital do estado inchara barbaramente: Porto Alegre tinha então 394 mil habitantes, quase um terço (120 mil pessoas) a mais do que apenas dez anos antes. 1951, como vimos, é o ano em que Getúlio Vargas volta ao poder – dessa vez nos braços do povo, para sair da vida e entrar na história no já citado agosto de 54. Tudo isso pra chegarmos em 1955, quando o mundo do showbizz radiofônico local apresenta a primeira rachadura: Assis Chateaubriand coloca 50 aparelhos de TV na Praça da Alfândega e transmite do Clube do Comércio a primeira demonstração da novidade. As telinhas mostram, a poucas dezenas de metros de

distância, o que há de melhor no escrete porto-alegrense das Emissoras Associadas: na música, a Grande Orquestra Farroupilha, regida por Salvador Campanella, o grupo Tropeiros da Tradição, dirigido por Paixão Côrtes e, é claro, o Conjunto Farroupilha.

O clássico indiozinho da Piratini

Não levaria nem cinco anos para essa experiência ser transformada numa emissora com tudo o que se tinha direito: a TV Piratini é inaugurada dia 20 de dezembro de 1959. Para os músicos que trabalhavam nas principais rádios, famosos, prestigiados e ganhando razoavelmente, o sonho começava a acabar. De forma ainda mais radical do que o que acontecera já duas vezes no século, com o cinema falado e a popularização do rádio. No começo, ninguém se deu conta: parecia apenas uma nova frente de trabalho que se abria, com gaúchos se mostrando pra gaúchos (ainda não havia o videoteipe e era tudo feito ao vivo, mais ainda do que no rádio).

Por aqui se entrava para o fascinante mundo da televisão (atualmente é o prédio da TVE)

Mas foi tão rápido que, olhado daqui, parece aquelas epidemias de filme-catástrofe americano: em menos de sete anos (no final de 1966) já não havia nenhum programa de auditório em nenhuma rádio da capital. O departamento de radioteatro da Gaúcha tampouco existia – e, no começo da década de 1970, a Farroupilha também fecharia o seu. Se, em 1950, 40% das verbas publicitárias brasileiras iam para o rádio e 1% para a TV, em 1969, a proporção era de 13% para 43%.

"Glamour!"

Bem que havia avisado a Revista TV, já em dezembro de 1959, pouco antes da inauguração oficial da Piratini: O advento da televisão em Porto Alegre é um fato consumado. Aí está o Canal 5 com sua imagem perfeita, plantando um marco pioneiro no Rio Grande do Sul. E com isso ganha nova força e atualidade a pergunta que vem sendo feita: irá a televisão abalar o prestígio mantido até aqui pelo rádio? Quase um ano antes, em janeiro de 59, tinha sido a Revista do Radio a perguntar em manchete: A Televisão Matará o Rádio?

Ué? Cadê o rádio que tava aqui?

Matar, não mataria, mas ia mudar radicalmente a sua estrutura. Em 29 de dezembro de 1962, Mauricio Sirotsky e seus sócios inauguram a TV Gaúcha, segunda emissora do Estado. E então, em 1963, o videoteipe aterrissa feito um Godzilla. A partir da primeira fita que viajou com um programa pronto, perdeu imediatamente o sentido manter um imenso escrete de artistas em cada estado, quando cada rede podia ter uma orquestra só, na sua sede – que, pra facilitar ainda mais, era onde moravam as estrelas de maior renome nacional. Era só gravar e mandar os teipes pras afiliadas.

Maurício Sirotsky à frente da sua TV

De uma só tacada, a Piratini demite todo o elenco de radio e teleteatro, dissolve a Grande Orquestra Farroupilha e manda embora até o Conjunto Farroupilha. Demosthenes Gonzalez: Quando as emissoras de rádio e televisão suprimiram as apresentações ao vivo de suas programações, foi uma calamidade. Músicos e cantores ficaram desempregados;

compositores ficaram sem uma vitrine para mostrar as suas composições. Artistas de fora não vinham mais. Era o império dos enlatados. A concorrência com o que se produzia no centro do país era desigual. Afinal, eram os tempos de, por exemplo, O Fino da Bossa (apresentado pela mesma Elis Regina que tinha acabado de sair de Porto Alegre) e Jovem Guarda (de Roberto Carlos & Cia). Sem falar nos festivais da canção que mobilizavam o Brasil. Não tinha como concorrer. Correndo por fora, havia também os enlatados americanos (os teipes, é bom lembrar, vinham em latas), como Bat Masterson. Ao mesmo tempo, com o rápido crescimento do número de lares com televisão, o rádio perde a posição de destaque na sala. No meio disso, a situação já mudara também do lado empresarial: em 1963, Maurício Sirotsky seria o único dos sócios a se manter quando a rede paulista Excelsior compra a Rádio e Televisão Gaúcha S/A. A TV Excelsior, que nascera já na era do videoteipe, era dos mesmos donos da companhia de aviação Panair, o que facilitava ainda mais a circulação das fitas com os programas gravados de São Paulo para o Rio (e vice-versa) – e Porto Alegre sem gerar nada, só recebendo latinhas. (Oposição de primeira-hora ao governo militar, a Excelsior não vai durar muito: resiste só até 1968 quando, perseguidíssima e à beira da falência, vende a Gaúcha para Maurício, seu irmão Jayme Sirotsky e Fernando Ernesto Corrêa. O trio se associa à crescente Rede Globo – aliada com os militares – e compram também o jornal Zero Hora, que era a antiga Última Hora, de Samuel Wainer, outro inimigo da ditadura.) Aí até a maior estrela internacional desse apogeu radiofônico local já tinha voltado pra casa: dois anos depois do videoteipe, em 1965, Karl Faust pega suas coisas e retorna à Alemanha, para um empregão que só atesta a sua excelência: produtor da gravadora Deustche Gramophon. Até o final dos anos 1980, assinará muitas dezenas de discos, principalmente na área de música erudita contemporânea, mas indo também de Beethoven e Chopin, dirigindo gravações de orquestras como a Filarmônica de Berlim e regentes como Claudio Abbado (e sem preconceitos: até com Brian Eno chegou a trabalhar). Quando se aposentou, ainda escreveu crítica de música erudita até o final do milênio. É possível que siga vivo. Se sim, é um

dos últimos remanescentes da, segundo muitos contemporâneos, melhor orquestra popular que a cidade já teve. Mais do que isso, de um mundo onde se, por um lado, a vida de compositor não era fácil, cantores, instrumentistas, locutores e radioatores viviam numa espetacular bolha de prestígio local. Um mundo muito mais simples, comunitário, provinciano. Para o bem e para o mal. Um mundo que se acabara para sempre. E olha que ainda nem falamos nos Beatles.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.