A \" EROSÃO \" DOS PRINCÍPIOS DA AUTORIDADE DO CASO JULGADO E DO CASO DECIDIDO PELO DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA

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A “EROSÃO” DOS PRINCÍPIOS DA AUTORIDADE DO CASO JULGADO E DO CASO DECIDIDO PELO DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA RUI TAVARES LANCEIRO (*)

A) O PRINCÍPIO DA AUTONOMIA PROCESSUAL DOS ESTADOS MEMBROS E OS SEUS LIMITES 1. A execução e salvaguarda do Direito da União Europeia (UE) (1) cabe, em larga medida, aos Estados-Membros, tal como foi afirmado pelo Tribunal de Justiça (TJ) desde cedo, como decorrência do princípio da cooperação leal (2) (3), o que está hoje consagrado no artigo 291.º, n.º 1, do Tratado sobre o Funcionamento da UE (TFUE) (4). Isto significa que a União depende da

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Assistente convidado e doutorando da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. É adoptada a expressão «Direito da UE» que deve ser entendida como abrangendo o que se designava por «Direito Comunitário», tendo em conta a substituição e sucessão global da Comunidade Europeia pela UE operada através do Tratado de Lisboa [cfr. artigo 1.º, 3.º par., do Tratado da UE (TUE)]. A expressão «Direito Comunitário» é mantida em citações. (2) Consagrado genericamente no artigo 4.º, n.º 3, do Tratado da UE. Sobre o princípio da cooperação leal, cfr. R. T. LANCEIRO, “O Tratado de Lisboa e o princípio da cooperação leal”, in Cadernos O Direito — O Tratado de Lisboa, n.º 5, Coimbra, Almedina, 2010, pp. 265 ss.; FAUSTO DE QUADROS, Direito da União Europeia, Coimbra, Almedina, 2004, pp. 92 ss.; M. LUÍSA DUARTE, Direito da União e das Comunidades Europeias, vol. I, t. I, Lisboa, Lex, 2001, p. 215; IDEM, “O artigo 10.º do Tratado da Comunidade Europeia — expressão de uma obrigação de cooperação entre os poderes públicos nacionais e as instituições comunitárias”, in Estudos de Direito da União e das Comunidades Europeias, Coimbra, Coimbra Editora, 2000, pp. 81 ss. Cfr. também J. T. LANG, «The Core of the Constitutional Law of the Community — Article 5 EC», in Current and Future Perspectives on EC Competition Law, L. Gormley (ed.), Haia, Kluwer Law International, 1997, pp. 41-72; A. VON BOGDANDY, “Constitucional principles”, in Principles of European Constitutional Law, A. von Bogdandy e J. Bast (ed.), Oxford, Hart, 2007, pp. 49 ss. (3) A importância do princípio de cooperação leal, neste âmbito, é clara: na ausência de um dever geral de cooperação, os Estados-Membros poderiam bloquear a actuação da UE num número significativo de áreas. (4) Sobre a execução administrativa do Direito da UE pelos Estados-Membros, cfr. M. PRATA ROQUE, Direito Processual Administrativo Europeu, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, pp. 89 ss., especialmente 101 ss.; FAUSTO DE QUADROS, Droit de l’Union Européenne, Bruxelas, ( ) (1)

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actuação das administrações públicas nacionais, no âmbito do Direito da UE, para a implementação das suas próprias políticas. Mas não só. É também indispensável o papel dos tribunais nacionais enquanto tribunais comuns da ordem jurídica da União (5). São eles que controlam o respeito pelo Direito da UE por parte dos restantes intervenientes nacionais, tendo, por isso, um papel central como instrumentos de garantia e efectividade do Direito da UE. É por isso que se tem assistido a uma evolução jurisprudencial no sentido de uma maior responsabilização dos Estados pelo desempenho das atribuições dos tribunais no âmbito do Direito da UE, quer através da condenação de Estados-Membros por incumprimento devido a decisões judiciais (6), quer através da sua responsabilidade civil por essas decisões (7). 2. No âmbito da execução do Direito da UE pelos Estados-Membros, é também jurisprudência assente do TJ que, na ausência de normas de Direito da UE, devem as autoridades nacionais aplicar o respectivo direito nacional, quer se trate das regras do procedimento administrativo, do processo judicial, ou mesmo o próprio regime substantivo. Esta regra é uma decorrência do princípio da autonomia processual dos Estados-Membros (artigo 4.º, n.º 2, do TUE). O TJ reconhece que a dependência face ao direito nacional para a execução do Direito da UE pode fazer com que o regime aplicável varie, em certa medida, entre os diversos Estados-Membros — o que é considerado desvantajoso, mas inevitável, no estádio actual de desenvolvimento do Direito da UE — mas essa variação é limitada por dois princípios (8) (9): i) O princípio da equivalência (10), segundo o qual as regras aplicáveis ao procedimento de execução do Direito da UE devem ser as mesmas que seriam aplicadas a procedimentos equivalentes ou análogos

Bruylant, 2008, pp. 452 ss.; IDEM, “A europeização do contencioso administrativo”, in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano, Coimbra, Coimbra Editora, 2006, pp. 385-405, em especial, 391-392; R. AFONSO PEREIRA, “O Direito Comunitário posto ao serviço do Direito Administrativo”, in BFD, n.º 81, 2005, pp. 682 ss. (5) Cfr. FAUSTO DE QUADROS / A. M. GUERRA MARTINS, Contencioso da União Europeia, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2007, pp. 22-23. Cfr. também FAUSTO DE QUADROS, Droit de l’Union Européenne, pp. 496 ss.; J. L. CARAMELO GOMES, O Juiz Nacional e o Direito Comunitário, Coimbra, Almedina, 2006, em especial, pp. 23 ss. (6) Cfr. o acórdão do TJ (ac.) de 9/12/ 2003, Comissão c. Itália [reembolso de impostos], Proc. n.º C-129/00, Col. I-14637; e 12/11/2009, Comissão c. Espanha [IVA], Proc. n.º C-154/08, Col. I-187. (7) Cfr. ac. de 30/9/2003, Köbler, Proc. n.º C-224/01, Col. I-10239; e de 13/6/2006, Traghetti del Mediterraneo, Proc. n.º C-173/03, Col. I-05177. (8) Cfr., por exemplo, os ac. de 16/12/1976, Rewe, Proc. n.º 33/76, Col. 1989; de 21/9/1983, Deutsche Milchkontor, Proc. n.º 205-215/82, Col. 02633, n.º 21. (9) Cfr. M. PRATA ROQUE, Direito Processual Administrativo Europeu, pp. 84-86; FAUSTO DE QUADROS, Droit de l’Union Européenne, pp. 468-470. (10) Ou da não-discriminação.

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meramente internos; e ii) O princípio da eficácia (11), segundo o qual as regras aplicáveis não devem tornar excessivamente difícil ou virtualmente impossível a aplicação do Direito da UE. Estes limites têm como objectivo ressalvar a aplicação minimamente uniforme do Direito da UE e a garantir o seu primado (12). 3. A remissão para o direito nacional dos Estados-Membros das normas aplicáveis à execução do Direito da UE, na falta de regulamentação da UE, abrange também as regras procedimentais e processuais aí constantes relativas ao caso decidido (no sentido de acto administrativo cuja legalidade não é já impugnável face a um tribunal (13)) e ao caso julgado (no sentido de decisão judicial da qual já não cabe recurso ordinário (14)), tendo em conta o princípio da segurança jurídica (15). Note-se que as definições dadas têm um carácter tendencial, de mínimo denominador comum, dada a complexidade que decorre de existirem enquadramentos jurídicos distintos para estas realidades nos 27 Estados-Membros. No entanto, se os actos e decisões assim consolidados forem desconformes com o Direito da UE, surge um conflito entre este e o direito nacional. Neste conflito encontramos, de um lado, os princípios da autonomia dos Estados-Membros e da segurança jurídica e, do lado oposto, da garantia de uniformidade na aplicação do Direito da UE em toda a União, bem como do primado deste Direito. É jurisprudência assente do TJ que o princípio da segurança jurídica, bem como os princípios da autoridade de caso julgado e da consolidação do caso decidido, que dele decorrem, são princípios comuns à ordem jurídica da UE e

Também designado na jurisprudência do TJ como princípio da eficiência ou da efectividade. Optou-se pela expressão eficácia por se considerar que esta exprime de forma mais correcta a ideia que se pretende transmitir. (12) Sobre o primado do Direito da UE cfr., por exemplo, os ac. de 5/2/1963, van Gend & Loos, Proc. n.º 26/62, Col. I; 15/7/1964, Costa v. Enel, Proc. n.º 6/64, Col. 549; 17/12/1970, Internationale Handelsgesellschaft, Proc. n.º 11/70, Col. 1127; 9/3/1978, Simmenthal, Proc. n.º 106/77, Col. 243; e Parecer n.º 1/91, Espaço Económico Europeu, Col. I-6079. (13) Por decurso do prazo de interposição de recurso administrativo, de acção judicial ou de recurso judicial. Neste caso também se pode dizer que o administrativo acto se consolidou na ordem jurídica, tendo-se tornado definitivo. Quanto à controvérsia relativa à eventual sanação da invalidade do acto pelo decurso do prazo, cfr. infra nota 78. (14) Por decurso do prazo de interposição de recurso judicial ou por a decisão ser do órgão judicial de última instância. (15) Não se pretende sufragar a teoria de um valor jurídico do caso decidido similar ao do caso julgado, mas tão-somente designar a situação dos actos administrativos consolidados por inimpugnabilidade. Sobre esta questão cfr. M. REBELO DE SOUSA/A. SALGADO MATOS, Direito Administrativo Geral — Actividade administrativa, t. III, Lisboa, D. Quixote, 2007, p. 85, § 37, e p. 175, § 244. (11)

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às ordens jurídicas nacionais (16). O respeito por estes princípios, que protegem os actos administrativos ou as decisões judiciais após o esgotamento das vias de recurso disponíveis ou decorridos os prazos previstos para a sua impugnação, tem como objectivo a garantia tanto da estabilidade do Direito e das relações jurídicas como de uma boa administração da justiça (17). Tendo em conta este entendimento, o TJ concluiu pela não incompatibilidade com o Direito da UE das regras processuais internas que confiram força de caso julgado a decisões judiciais ou de caso decidido a actos administrativos, mesmo quando a desaplicação destas regras permitiria reparar uma violação do Direito da UE (18). No entanto, o princípio da autonomia processual dos Estados-Membros tem os dois limites que conhecemos: o princípio da equivalência e o princípio da efectividade (19). Foi através da fiscalização do cumprimento destes limites que a jurisprudência do TJ tem vindo a estabelecer limites ao princípio da segurança jurídica (e da autoridade do caso julgado e consolidação do caso decidido). 4. Tem-se verificado uma evolução jurisprudencial recente por parte do TJ no sentido de intensificar o controlo do cumprimento por parte dos tribunais nacionais (em especial dos que decidem em última instância) do Direito da UE. A este nível, as decisões judiciais são equiparadas aos actos das outras funções do Estado, o que implica uma desvalorização (mesmo que parcial) da força de caso julgado dessas decisões. Esta evolução é acompanhada de uma outra, em que o TJ é confrontado com regras procedimentais e processuais dos Estados-Membros que, tendo em conta o princípio da segurança jurídica, protegem actos contrários ao Direito da UE, devido à passagem de um determinado período de tempo ou por deles já não existir a possibilidade de recurso. Estas duas linhas de evolução estão relacionadas com a necessidade de garantia de uniformidade na aplicação do Direito da UE em toda a União, bem como do primado deste Direito — e da sua efectiva aplicação e plena eficácia. O objectivo é a garantia de que a administração e os tribunais (especialmente os de última instância) nacionais cumprem o seu dever de aplicação primacial do Direito da UE. Face a este desiderato, encontramos o princípio da segurança

(16) Cfr., v. g., quanto ao caso julgado, os ac. de 1/6/1999, Eco Swiss, Proc. n.º C-126/97, Col. I-3055, n.os 46-47; e Köbler, n.º 38, e, relativamente ao caso decidido, os ac. de 13/1/2004, Kühne & Heitz, Proc. n.º 453/00, Col. I-837, n.º 24; e de 12/2/2008, Kempter, Proc. n.º C-2/06, Col. I-411, n.º 37. (17) Cfr., v. g., ac. de 16/3/2006, Kapferer, Proc. n.º C-234/04, Col. I-2585, n.º 20; de 3/9/2009, Fallimento Olimpiclub, Proc. n.º C-2/08, Col. I-7501, n.º 22; de 6/10/2009, Asturcom, Proc. n.º C-40/08, Col. I-9579, n.º 36. (18) Cfr., e.g., ac. Kapferer, n.º 21; Fallimento Olimpiclub, n.º 23; e Asturcom, n.º 37. (19) Cfr., e.g., ac. Kapferer, n.º 22; Kempter, n.º 57; Fallimento Olimpiclub, n.º 24; e Asturcom, n.º 38.

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jurídica, que implica a consolidação de certos actos e dos seus efeitos por efeito de passagem do tempo — em especial, a ressalva das decisões judiciais transitadas em julgado. Assim, da recente evolução da jurisprudência do TJ, resulta um progressivo questionamento ou “erosão” das regras relativas ao caso decidido e do caso julgado, face ao “império” do Direito da UE.

B) A “EROSÃO” DO PRINCÍPIO DO CASO DECIDIDO E DO CASO JULGADO: MITO OU REALIDADE? 5. Proceder-se-á, de seguida, ao estudo destas correntes da jurisprudência do TJ com consequências ao nível do enfraquecimento do princípio da segurança jurídica depositada em actos administrativos ou decisões jurisprudenciais nacionais — com maior incidência no princípio da força do caso julgado. Neste âmbito, faz-se referência à condenação dos Estados-Membros, por incumprimento do Direito da EU, por decisões judiciais. De seguida analisa-se a possibilidade de responsabilidade civil extra-contratual dos Estados-Membros por decisões judiciais contrárias ao Direito da EU. Posteriormente analisa-se a evolução jurisprudencial relativa ao reexame de actos administrativos consolidados e de decisões judiciais com força de caso julgado. Depois são analisadas as consequências neste âmbito dos princípios da equivalência e da efectividade, como limites à autonomia processual dos Estados-Membros. Por fim, analisa-se a consequência da violação dos limites de competência dos tribunais nacionais, à luz do Direito da UE. a) Incumprimento do Direito da UE por decisão judicial 6. O TJ, por iniciativa da Comissão, começou recentemente a fiscalizar o cumprimento do Direito da UE pelos Estados-Membros, ex vi artigo 258.º TFUE, com fundamento nas decisões jurisdicionais nacionais. Esta evolução parece representar o abandono de algum pudor inicial de apreciação destas decisões, motivado pela independência do poder judiciário nas ordens jurisdicionais dos Estados-Membros (20). Esta nova orientação foi inaugurada no processo Comissão c. Itália (21), em que o TJ analisou a interpretação dada a determinado preceito pelos tribunais italianos face aos limites à autonomia processual dos Estados-Membros: os

(20) Cfr. Conclusões do Advogado Geral (AG) Cruz Villalón de 10/6/2010, Elchinov, Proc. n.º C-173/09, Col. 0, n.º 24. (21) Cfr. ac. Comissão c. Itália [reembolso de impostos], ref. supra na nota 6.

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princípios da equivalência e da eficácia (22). O TJ acabou por condenar Itália por violação deste último, porque a interpretação judicial em causa tornava o exercício do direito ao reembolso de impostos incompatíveis com o Direito da UE praticamente impossível ou, pelo menos, excessivamente difícil para o contribuinte. 7. A condenação do Estado-Membro por incumprimento devido à actuação dos seus tribunais é baseada em dois grandes argumentos pelo TJ. Por um lado, é relembrado que o incumprimento pode ser declarado «qualquer que seja o órgão do Estado cuja acção ou omissão esteja na origem do incumprimento, ainda que se trate de uma instituição constitucionalmente independente» (23). Esta jurisprudência, originariamente desenhada para afastar a invocação da independência do Parlamento num processo de incumprimento (24), é aplicada aqui ao poder judicial. Por outro lado, o TJ refere que os preceitos de direito nacional não valem por si, devendo o seu alcance ser apreciado tendo em conta a interpretação que delas fazem os órgãos jurisdicionais nacionais (25). Antecipando críticas de estar a ignorar a natureza independente do poder judicial nas ordens jurídicas dos Estados-Membros, e de promover a interferência do poder político nas decisões dos tribunais (pois só assim poderia o Governo evitar a condenação por incumprimento), o TJ utiliza um argumento adicional. Se existem interpretações jurisprudenciais divergentes relativas a um preceito legal, e pelo menos algumas delas é incompatíveis com o Direito da UE, então é porque «essa legislação não é suficientemente clara para assegurar uma aplicação compatível» com o Direito da UE (26). Assim, o incumprimento é responsabilidade do legislador, que deve alterar o preceito em causa para garantir a sua compatibilidade com o Direito da UE (27). 8. O TJ, no entanto, precisou que, para efeitos da aferição do incumprimento do Estado-Membro por actuações do judicial ele não tomará em conta «as decisões judiciais isoladas ou francamente minoritárias num contexto jurisprudencial marcado por diversa orientação, ou ainda uma interpretação des-

(22) (23)

Cfr. ac. Comissão c. Itália [reembolso de impostos], n.º 27. Cfr. ac. Comissão c. Itália [reembolso de impostos], n.º 29; Comissão c. Espanha

[IVA], n.º 125. (24) Cfr. ac. de 5/5/1970, Comissão c. Bélgica [discriminação fiscal], Proc. n.º 77/69, Col. 237, n.º 15. (25) Cfr. ac. Comissão c. Itália [reembolso de impostos], n.º 30-31, de 8/6/1994, Comissão c. Reino Unido [direitos dos trabalhadores], Proc. n.º C-382/92, Col. p. I-2435, n.º 36. (26) Cfr. ac. Comissão c. Itália [reembolso de impostos], n.º 33. (27) A Itália é condenada por não alterar um preceito que «é interpretado e aplicado pela Administração e por uma parte significativa dos órgãos jurisdicionais» de forma contrária ao princípio da eficácia. Cfr. ac. Comissão c. Itália [reembolso de impostos], n.º 41.

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mentida pelo órgão jurisdicional nacional supremo». No entanto, deverá ser por si apreciada «uma interpretação jurisprudencial significativa não desmentida pelo referido órgão jurisdicional supremo, ou mesmo por este confirmada» (28). Assim sendo, não bastam decisões jurisdicionais isoladas para que o TJ considere estar perante o incumprimento do Estado-Membro, mas também não é necessário que exista uma jurisprudência assente ou uniforme no Estado em causa — esta deve ser significativa, no sentido de ser amplamente aceite (29). No entanto, é o papel desempenhado pelos tribunais de última instância — identificados como os agentes máximos com a responsabilidade de cumprir e fazer cumprir o Direito da UE — que é determinante para o incumprimento do Estado-Membro em causa (30), sendo especialmente relevante a sua opção por submeter uma questão prejudicial ao TJ e os termos em que tenha aplicado a jurisprudência Cilfit (31). 9. Este entendimento veio a ser confirmado num acórdão posterior, o Comissão c. Espanha (32), que incide sobre um acórdão do Supremo Tribunal de Espanha, de 12 de Julho de 2003, para fixação de jurisprudência — relativamente à sujeição ou não da actividade dos “registradores de la propiedad” ao regime do IVA —, que acolhia uma interpretação contrária à consagrada pelo TJ. Reafirma-se, neste acórdão, que uma decisão judicial, ainda que transitada em julgado, não é invocável contra uma norma, disposição ou acto comunitários, de forma a justificar o incumprimento (33). De facto, o poder judicial é considerado parte integrante do Estado-Membro no que respeita à responsabilidade deste perante a União ex vi artigo 258.º TFUE (34), pelo que uma decisão judicial, ainda que transitada em julgado, nunca pode prevalecer sobre uma norma, disposição ou acto da UE, tal como acontece com qualquer outro acto do poder legislativo ou executivo do Estado-Membro (35). 10. Esta posição é problemática a vários níveis (36). Desde logo porque se poderia argumentar que os tribunais, neste caso, funcionam igualmente como

(28)

Cfr. ac. Comissão c. Itália [reembolso de impostos], n.º 32; Comissão c. Espanha [IVA],

n.º 126. A versão em inglês do acórdão utiliza a expressão widely-held. Cfr. Conclusões do AG Cruz Villalón, Elchinov, n.º 24. (31) Cfr. ac. de 6/10/1982, Cilfit, Proc. n.º 283/81, Col. 3415. Foi no ac. Cilfit que o TJ estabeleceu as situações em que o órgão judicial de última instância está dispensado da obrigação de colocação de questão prejudicial, ex vi artigo 263.º, 3.º par., do TFUE. (32) Cfr. ac. Comissão c. Espanha [IVA], ref. supra na nota 6. (33) Cfr. Conclusões do AG Cruz Villalón de 9/9/2010, Comissão c. Eslováquia [Frucona], Proc. n.º C-507/08, [2010] Col. 0, n.º 44. (34) Cfr. ac. Comissão c. Itália [reembolso de impostos], n.º 29. (35) Cfr. Conclusões do AG Cruz Villalón, Comissão c. Eslováquia [Frucona], n.º 44. (36) Cfr. Conclusões do AG Cruz Villalón, Comissão c. Eslováquia [Frucona], n.º 45. (29) (30)

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poder judicial da União — dificultando a imputação do seu comportamento ao do Estado-Membro. Este argumento pode, no entanto, ser afastado porque quando a administração pública nacional executa o Direito da UE, também se constitui como administração ordinária da União (na mesma medida em que os tribunais nacionais se tornam tribunais da UE), sem que isso evite a responsabilização do Estado-Membro em causa pela sua actuação desconforme com o Direito da UE. Um outro problema prende-se com a desvalorização da independência do poder judicial para efeitos da imputação da sua actuação ao Estado. Esta tem por base a sua analogia com o poder legislativo — cuja independência também é desvalorizada para este efeito. Ora, por força da posição que geralmente ocupam nos sistemas constitucionais dos Estados-Membros (em termos de independência institucional e funcional), os tribunais não se encontram numa posição análoga à do órgão legislativo. De facto, se num sistema parlamentar democrático se pode garantir o paralelismo entre a vontade da maioria parlamentar e do Governo (que assegura a respectiva representação junto da UE, assumindo o dever de execução do seu Direito), os tribunais estão, regra geral, constitucionalmente protegidos de qualquer intervenção dos executivos dos Estados-Membros. A resposta dada pelo TJ a esta questão tem passado pela valorização da intervenção do decisor político através da emissão de normas jurídicas (substantivas ou processuais) — garantindo dessa forma, na sua opinião, o respeito pela independência do poder judicial. A verdade, porém, é que a situação pode estimular pressões do poder político sobre o judicial inadmissíveis à luz do princípio da separação de poderes. No entanto, existe ainda a crítica possível por o enunciado do TJ parecer ignorar os princípios da segurança e certeza jurídicas — que têm como corolário o princípio do respeito pelo caso julgado — apesar de o TJ sempre os afirmar como princípios de Direito da UE. De facto, a equiparação entre decisão judicial transitada em julgado e os outros actos do poder legislativo ou executivo tem como consequência imediata a sua desvalorização e a “erosão” do seu valor. A questão aqui em causa, i.e. a relevância da força de caso julgado para a determinação dos termos da responsabilidade dos Estados em face das suas obrigações para com a União, tem implicações mais profundas, relativas à definição do sistema de articulação entre os direitos nacionais e o da UE. O TJ acaba por concluir que o caso julgado — uma característica determinante das decisões judiciais transitadas, que reclama para estas um tratamento específico, diferente do que normalmente merecem outros actos e disposições internas —, não dá origem a um qualquer tratamento privilegiado por parte do Direito da UE, sendo de aplicar a jurisprudência existente em matéria de incumprimentos causados pelas autoridades administrativas e legislativas dos Estados-Membros. Isto significa que, apesar do caso julgado, subsiste a obrigação do Estado de conformar a sua actuação com o Direito da UE, devendo este encetar eventuais

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procedimentos de superação da decisão que beneficiava de força de caso julgado (37). Estes procedimentos poderão implicar a necessidade de uma intervenção legislativa sobre a matéria em questão — em sentido contrário ou corrector ao da jurisprudência estabelecida — ou, relativamente à legislação processual, que em determinados casos, se permita a revisão de uma decisão contrária ao Direito da UE, mesmo após o trânsito em julgado. b) Responsabilidade civil extra-contratual por acto judicial 11. Uma outra inovação recente do TJ foi o reconhecimento da existência de responsabilidade civil extra-contratual dos Estados-Membros por actos do poder judicial. De facto, de acordo com jurisprudência assente do TJ, resulta da ordem jurídica da UE que os Estados-Membros devem responder civilmente pelos danos causados a particulares por violações do Direito da UE que lhes sejam imputáveis (38) (39). Esta responsabilidade existe em relação a qualquer violação do Direito da UE pelo Estado-Membro, desde que estejam preenchidos três requisitos: i) a norma violada tem por objecto conferir direitos; ii) a violação dessa norma é suficientemente caracterizada; e iii) há um nexo de causalidade directa entre a violação e o dano sofrido pelos particulares. A aplicação destes requisitos cabe, prima facie, aos órgãos jurisdicionais nacionais, em conformidade com as orientações fornecidas para o efeito pelo TJ (40).

Cfr. Conclusões do AG Cruz Villalón, Comissão c. Eslováquia [Frucona], n.º 42. Segundo o TJ, trata-se de um princípio inerente ao sistema dos Tratados em que a UE se funda. Cfr., neste sentido, v. g., os ac. de 19/11/1991, Francovich, Proc. n.º C-6/90 e C-9/90, Col. I-5357, n.º 35; de 5/3/1996, Brasserie du pêcheur e Factortame, Proc. n.os C-46/93 e C-48/93, Col. I-1029, n.º 31; de 26/3/1996, British Telecommunications, Proc. n.º C-392/93, Col. I-1631, n.º 38; de 23/5/1996, Hedley Lomas, Proc. n.º C-5/94, Col. I-2553, n.º 24; de 8/10/1996, Dillenkofer, Procs. n.os C-178/94, C-179/94 e C-188/94 a C-190/94, Col. I-4845, n.º 20; de 26/1/2010, Transportes Urbanos y Servicios Generales, Proc. n.º C-118/08, Col. I-00635, n.º 29. (39) Cfr. ac. Transportes Urbanos y Servicios Generales, n.º 30; e de 25/11/2010, Günter Fuß, Proc. n.º C-429/09, Col. 0, n.º 47. Cfr., e. g., H. OLIVEIRA, “Jurisprudência comunitária e regime jurídico da responsabilidade extracontratual do Estado e demais entidades públicas — influência, omissão e desconformidade”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, vol. IV, Coimbra, Coimbra Editora, 2010, pp. 619 ss.; C. AMADO GOMES, “O Livro da Ilusões: A responsabilidade do Estado por violação do Direito Comunitário apesar da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro”, Revista do Centro de Estudos Judiciários, 1.º Semestre 2009 — N.º 11, pp. 295 ss.; M. J. RANGEL DE MESQUITA, O Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas e o Direito da União Europeia, Coimbra, Almedina, 2009, pp. 33 ss.; C. FERNANDES CADILHA, Regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas anotado, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pp. 128 ss. e 260 ss. (40) Cfr. v. g., ac. Brasserie du pêcheur e Factortame, n.º 55-58; British Telecommunications, n.º 41; de 17/10/1996, Denkavit, Procs. n.os C-283/94, C-291/94 e C-292/94, Col. I-5063, (37) (38)

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12. Foi no acórdão Köbler (41) que o TJ reconheceu que também a actuação do poder judicial podia dar origem a responsabilidade civil extra-contratual do Estado-Membro em causa, por violação do Direito da UE. O TJ começou por relembrar que, de acordo com a sua jurisprudência, esta responsabilidade se verifica independentemente da entidade do Estado-Membro cuja acção ou omissão está na origem do incumprimento (42). Para além disso, a responsabilidade baseia-se no papel central desempenhado pelo poder judicial na protecção dos direitos de particulares previstos em normas da UE — em especial, por parte do órgão judicial de última instância. A protecção dos referidos direitos (e a eficácia das normas) seriam postas em causa caso não existisse a responsabilidade (43). O TJ estabelece, assim, que a responsabilidade civil extra-contratual dos Estados-Membros por violações do Direito da UE que lhes são imputáveis é igualmente aplicável devido a uma decisão de um órgão jurisdicional, desde que este decida em última instância. O TJ determina que as condições para a responsabilização referidas na jurisprudência Francovich se aplicam também neste caso, com uma especificidade quanto à necessidade de suficiente caracterização da violação da norma: é necessário que o tribunal nacional tenha ignorado de modo manifesto o direito aplicável. Para aferir tal facto, deve-se aferir todos os elementos que caracterizam a situação, designadamente o grau de clareza e de precisão da regra violada, o carácter intencional da violação, o carácter desculpável ou não do erro de direito, a atitude eventualmente adoptada por uma instituição comunitária, bem como o não cumprimento, pelo órgão jurisdicional em causa, da sua obrigação de colocação de uma questão prejudicial — e, em especial, se houve uma violação manifesta da jurisprudência do TJ (44). n.º 49; de 12/12/2006, Test Claimants in the FII Group Litigation, Proc. n.º C-446/04, Col. I-11753, n.º 210; e Günter Fuß, n.º 48. (41) Cfr. ac. Köbler, ref. supra na nota 7. Cfr., e. g., H. OLIVEIRA, “Jurisprudência comunitária…”, pp. 627-631; A. ALBORS-LLORENS, “The principle of state liability in EC law and the supreme courts of the member states”, in Cambridge Law Journal, 66, 2007, pp. 270-273; C. AMADO GOMES, “O Livro da Ilusões…”, pp. 295 ss.; M. J. RANGEL DE MESQUITA, O Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado…, pp. 54 ss.; C. FERNANDES CADILHA, Regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado…, p. 214; FAUSTO DE QUADROS, “A europeização do contencioso administrativo”, pp. 392-396. (42) Cfr. ac. Brasserie du pêcheur e Factortame, n.º 32, e Köbler, n.º 31. (43) Cfr. ac. Köbler, n.os 33-36; e Traghetti del Mediterraneo, n.º 31. (44) Cfr. ac. Köbler, n.os 51-56; e Traghetti del Mediterraneo, n.º 32. O TJ já decidiu que o Direito da UE se opõe a um regime legal nacional que exclua, de uma forma geral, a responsabilidade do Estado por violação do Direito da UE pelo facto de essa violação resultar de uma interpretação de normas jurídicas ou de uma apreciação dos factos e das provas efectuada por esse órgão jurisdicional (ac. Traghetti del Mediterraneo, n.º 33, 36, 40, 44, 46)

A “EROSÃO” DOS PRINCÍPIOS DA AUTORIDADE DO CASO JULGADO E DO CASO DECIDIDO…

13. Confrontado com a alegação de que estaria a violar o princípio da autoridade do caso julgado, o TJ responde, desde logo, que esse é um princípio genérico também de Direito da UE. O TJ considera que a responsabilidade civil não põe em causa a força de caso julgado da decisão judicial em causa, uma vez que este processo tem por objecto responsabilizar o Estado — não tendo, assim, o mesmo objecto e as mesmas partes do que o processo onde ocorreu a violação danosa da norma da UE. Neste caso, refere o TJ o demandante da acção de indemnização pode obter a condenação do Estado «no ressarcimento do dano sofrido, mas não necessariamente que seja posta em causa a autoridade do caso definitivamente julgado da decisão judicial» — ou seja, não existe obrigação de revisão da decisão judicial que causou o dano (45). A reafirmação do princípio da autoridade do caso julgado como princípio genérico do Direito da UE é proclamatória se não acompanhada de consequência efectivas em termos do seu regime. É certo que não existe uma violação directa do caso julgado no caso da responsabilidade do Estado aqui prevista, na medida em que os seus efeitos são formalmente mantidos. No entanto, a verdade é que se pretende ressarcir os danos causados pela violação do Direito da UE pelo poder judiciário, o que implicará apagar, pelo menos em parte, as consequências da decisão judicial incorrecta. Só desta forma se poderá garantir os direitos dos particulares resultantes do Direito da UE e a sua eficácia. 14. A regulação da forma processual e do órgão competente para a efectivação desta responsabilidade cabe à ordem jurídica dos Estados-Membros (46), com os limites já referidos do princípio da equivalência e do princípio da eficácia (47). Assim, deve aplicar-se à responsabilidade civil extra-contratual do Estado português por violação do Direito da UE o regime previsto na Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, que estabelece o regime geral da responsabilidade civil do Estado. Este regime sofre, no entanto, de diversas desconformidades com o Direito da UE, o que tem como consequência a necessidade de se fazer uma interpretação conforme com este Direito, bem como a desaplicação das normas

ou que limite essa responsabilidade aos casos de dolo ou de culpa grave do juiz, se essa limitação levar a excluir a responsabilidade do Estado-Membro em causa noutros casos em que se tenha verificado uma violação manifesta do direito aplicável (ac. Traghetti del Mediterraneo, n.os 42-44, 46). (45) Cfr. ac. Köbler, n.º 38-39. (46) Cfr. ac. Köbler, n.º 50. (47) Nesse domínio, o TJ já decidiu que o princípio da equivalência obriga a que o regime aplicável à responsabilidade civil extra-contratual por violação do Direito da UE não seja injustificadamente diferente do regime aplicável à mesma responsabilidade por violação da Constituição. Cfr. ac. Transportes Urbanos y Servicios Generales, n.os 33, 36, 43-46, 48.

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que sejam desconformes com o Direito da UE (48). Não nos alongaremos sobre o assunto, por exceder o âmbito da presente investigação. c) Dever de reexame de acto administrativo consolidado 15. De seguida estudaremos as consequências de uma outra orientação jurisprudencial do TJ com consequências ao nível da tutela do princípio da segurança jurídica — a existência de um dever de reexame de acto administrativo consolidado ou de decisão judicial passada em julgado, quando desconformes com o Direito da UE. 16. Num primeiro momento, o TJ decidiu, no acórdão Ciola (49), que os órgãos administrativos se encontram obrigados a assegurar o primado do Direito da UE afastando, se necessário não só qualquer norma nacional que a ele se oponha (50), mas também qualquer acto administrativo, mesmo se definitivo (51). No âmbito da recuperação de auxílios de Estado indevidamente prestados, o TJ também tem vindo a decidir pela não consolidação dos actos administrativos em causa, pois esta não pode ser justificada pelo princípio da tutela da confiança, dada a impossibilidade de existência da confiança legítima por parte do operador na situação em causa (52) (53). 17. A jurisprudência do TJ conheceu uma evolução significativa com o acórdão Kühne & Heitz (54), que diz respeito a um acto administrativo conso-

(48) Cfr. as críticas formuladas por C. AMADO GOMES, “O Livro da Ilusões…”, pp. 296 ss., em especial, p. 282; C. FERNANDES CADILHA, Regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado…, p. 265; M. J. RANGEL DE MESQUITA, O Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado…, pp. 44 ss., especialmente, 54 ss. e 62 ss. (49) Cfr. ac. de 29/4/1999, Ciola, Proc. n.º C-224/97, Col. 2517. (50) De acordo com a orientação iniciada com o ac. Simmenthal e concretizada, no que diz respeito à administração, no ac. de 22/6/1989, Fratelli Costanzo, Proc. n.º 103/88, Col. 1839. (51) Esta jurisprudência deve ser, no entanto, compatibilizada com a linha jurisprudencial que admite que as normas processuais nacionais aplicáveis no âmbito da execução do Direito da UE (com os limites já referidos dos princípios da equivalência e da efectividade) podem fixar “prazos razoáveis” para o exercício de certas faculdades ou direitos dos administrados, sob pena de caducidade, no interesse da segurança jurídica (ac. Kempter, n.º 57) — cfr. infra § 35. (52) Cfr. ac. de 20/3/1997, Alcan, Proc. n.º C-24/95, Col. I-1591, n.º 25. Cfr. também o ac. de 21/9/1983, Deutsche Milchkontor, Proc. n.º 205-215/82, Col. 2633; de 24/2/1987, Deufil, Proc. n.º 310/85, Col. 901; de 20/9/1990, Comissão c. Alemanha [BUG-Alutechnik], Proc. n.º 5/89, Col. I-03437, n.º 14. Cfr., também, e.g., ac. de 14/1/2004, Fleuren Compost, Proc. n.º T-109/01, Col. II-127, n.º 135; de 11/11/2004, Demesa e Álava, Procs.. n.os C-183/02 e C-187/02 P, Col. I-10609, n.os 44-45; de 12/9/2007, Itália e Brandt, Proc. n.os T-239/04 e T-323/04, Col. II-3265, n.º 154. (53) Cfr. FAUSTO DE QUADROS, Droit de l’Union Européenne, pp. 482 ss.; R. AFONSO PEREIRA, “O Direito Comunitário posto ao serviço do Direito Administrativo”, pp. 691 ss. (54) Cfr. ac. Kühne & Heitz, ref. supra nota 16, n.º 21; Kempter, n.º 35.

A “EROSÃO” DOS PRINCÍPIOS DA AUTORIDADE DO CASO JULGADO E DO CASO DECIDIDO…

lidado por decisão judicial. O litígio que originou este acórdão incide sobre a interpretação de disposições da pauta aduaneira comum (55). No âmbito de um primeiro litígio judicial entre a empresa e a administração aduaneira holandesa sobre essa interpretação, o órgão jurisdicional de última instância considerou que estava dispensado da obrigação de submeter uma questão prejudicial ao TJ, por entender que a interpretação do Direito da UE aplicável não suscitava qualquer dúvida. Posteriormente o TJ veio a adoptar a interpretação defendida pela empresa. Esta reclamou os montantes que tinha pago como taxas aduaneiras à administração como consequência da decisão judicial, dando origem ao litigo que provocou a questão prejudicial relativa ao processo Kühne & Heitz. 18. O TJ, no âmbito deste processo, parte de duas premissas, decorrentes da sua jurisprudência. Por um lado, que a interpretação que o TJ faz de uma norma de Direito da UE, no âmbito do contencioso das questões prejudiciais, esclarece e precisa o significado e o alcance desta norma, tal como a mesma deve ser ou devia ter sido entendida e aplicada desde o momento da sua entrada em vigor (56). Ou seja, neste caso, o acórdão do TJ não tem valor constitutivo, mas puramente declarativo, na medida em que os seus efeitos remontam, em princípio, à data da entrada em vigor da norma interpretada (57). Por outro lado, incumbe às autoridades dos Estados-Membros assegurar o respeito das normas de Direito da UE no âmbito das suas competências (58). Prima facie, pode concluir-se destas duas premissas que a interpretação do TJ determinada através de questão prejudicial vincula e deve ser a aplicada pelos tribunais e órgãos administrativos nacionais, no âmbito das suas competências, mesmo a relações jurídicas constituídas antes do acórdão em causa (59). Esta conclusão não é propriamente revolucionária face à jurisprudência anterior. A inovação do acórdão Kühne & Heitz prende-se com a apreciação do TJ da eventual vinculação da administração a reexaminar actos

Em especial, a interpretação da expressão «coxas de aves de capoeira». Cfr., v. g., os ac. de 27/3/1980, Denkavit italiana, Proc. n.º 61/79, Col. 1205, n.os 16-17; e de 10/2/2000, Deutsche Telekom, Proc. n.º C-50/96, Col. I-743, n.º 43. (57) Cfr. ac. de 19/10/1995, Richardson, Proc. n.º C-137/94, Col. I-3407, n.os 31-33; e Kempter, n.º 35. (58) Cfr. ac. Kühne & Heitz, n.º 20, e Kempter, n.º 34. Cfr. também, v. g., os ac. de 12/6/1990, Alemanha c. Comissão [apoios a produtores de gado], Proc. n.º 8/88, Col. I-2321, n.º 13. (59) Cfr. ac. Kühne & Heitz, n.º 22. Cfr. também, v. g., os ac. de 2/2/1988, Blaizot, Proc. n.º 24/86, Col. 379, n.º 27; de 11/8/1995, Roders, Procs. n.os C-367/93 a C-377/93, Col. I-2229, n.º 42; 4/5/1999, Sürül, Proc. n.º C-262/96, Col. I-2685, n.º 107; de 3/10/2002, Barreira Pérez, Proc. n.º C-347/00, Col. I-8191, n.º 44; de 17/2/2005, Linneweber e Akritidis, Proc. n.º C-453/02 e C-462/02, Col. I-1131, n.º 41; e de 6/3/2007, Meilicke, Proc. n.º C-292/04, Col. I-1835, n.º 34; e Kempter, n.º 36. (55) (56)

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administrativos (60) que tenham adquirido carácter definitivo que sejam, à luz da interpretação posterior do TJ, desconformes com o Direito da UE (61). 19. O TJ começa por equacionar a sua jurisprudência relativa à vinculação das administrações públicas nacionais à sua interpretação, no caso das decisões administrativas consolidadas, com o princípio da segurança jurídica (62). A este nível, o TJ conclui que o Direito da UE não exige que um órgão administrativo seja, em princípio, obrigado a revogar um acto administrativo que já adquiriu carácter definitivo — pelo decurso de prazos de recurso razoáveis ou por esgotamento das vias de recurso —, uma vez que este é uma decorrência do princípio da segurança (63). Este princípio proíbe que se coloquem indefinidamente em causa actos administrativos que produzam efeitos jurídicos (64). 20. Apesar deste ponto de partida, o TJ acaba por concluir que, em determinados casos, pode haver um limite ao princípio da segurança jurídica e à protecção por si conferida aos actos administrativos consolidados. De facto, o TJ decide in casu que o órgão administrativo estava obrigado a reapreciar a sua decisão. De acordo com o TJ, o princípio da cooperação leal (artigo 4.º, n.º 3, TUE) impõe que um órgão administrativo, ao qual foi apresentado um pedido nesse sentido, reexamine um acto administrativo definitivo à luz da interpretação entretanto feita pelo TJ, quando se encontrem reunidas quatro condições (65): i) O órgão administrativo dispõe, segundo o respectivo direito nacional, do poder de revogação do acto administrativo; ii) O acto tornou-se definitivo em consequência de um acórdão de um órgão jurisdicional de última instância; iii) O referido acórdão incorre numa interpretação errada do Direito da UE face a jurisprudência posterior do TJ, sem que tivesse sido submetida uma questão prejudicial (66); e iv) O interessado se dirigiu ao órgão administrativo imediatamente depois de

(60) A jurisprudência do TJ utiliza a expressão «decisão administrativa». Prefere-se o termo «acto administrativo» por melhor corresponder à realidade do ordenamento jurídico português. (61) Cfr., ac. Kühne & Heitz, n.º 23. (62) Cfr. ac. Kühne & Heitz, n.º 24; Kempter, n.º 37. (63) Cfr. ac. Kühne & Heitz, n.º 24; Kempter, n.º 37; de 19/9/2006, i-21 e Arcor, Procs. n.os C-392/04 e C-422/04, Col. I-08559, n.º 51. (64) Cfr. ac. i-21 e Arcor, n.º 51. (65) Cfr. ac. Kühne & Heitz, n.º 26 e 28; Kempter, n.º 38; i-21 e Arcor, n.º 52. (66) Não é necessário que o recorrente no processo principal tenha invocado o Direito da UE no âmbito da impugnação judicial do acto em causa (ac. Kempter, n.º 40-46). Para que esta condição esteja preenchida, basta que a questão controvertida de Direito da UE, cuja interpretação se tenha revelado errada à luz de posterior acórdão do TJ, tenha sido examinada pelo órgão jurisdicional nacional que decide em última instância ou que pudesse ter sido suscitada oficiosamente por esse órgão (ac. Kempter, n.º 44). Recorde-se que os órgãos jurisdicionais nacionais são obrigados a conhecer oficiosamente da violação de uma norma comunitária vinculativa quando, por força do direito nacional, estes têm a obrigação ou a faculdade de o fazer em relação a uma norma vinculativa de direito nacional (ac. Kempter, n.º 45).

A “EROSÃO” DOS PRINCÍPIOS DA AUTORIDADE DO CASO JULGADO E DO CASO DECIDIDO…

ter tido conhecimento da referida jurisprudência posterior do TJ. As condições dependem, assim, da ordem jurídica do Estado-Membro prever a possibilidade de revogação de um acto administrativo consolidado (67), do facto de o interessado ter esgotado as vias de recurso ordinárias (68), de o acórdão do órgão jurisdicional de última instância, por força do qual o acto administrativo impugnada se tornou definitivo, ser baseado numa interpretação errada do Direito da UE, face à posterior jurisprudência do TJ, adoptada sem que tivesse sido colocada uma questão prejudicial, e do pedido de reexame do interessado. 21. Repare-se que a verificação destas condições não leva a uma imediata obrigação de revogação do acto administrativo em causa. Nessa situação, a jurisprudência Kühne & Heitz retira do princípio da cooperação leal a obrigação do órgão da administração nacional de reexaminar (ou reapreciar) o processo à luz da interpretação da disposição pertinente do Direito da UE entretanto feita pelo TJ. Será em função do resultado desse reexame (69) que o órgão administrativo pode ver-se obrigado à respectiva revogação, caso se comprove a sua incompatibilidade com esse Direito. O TJ refere que esta revogação não deverá lesar os interesses de terceiros (70), o que significa que essa lesão impossibilita a revogação (mas não o processo de reexame) (71). Caso o órgão administrativo recuse o reexame ou a revogação, quando estes decorrem da jurisprudência Kühne & Heitz, podem os interessados recorrer aos tribunais.

Basta que se trate da possibilidade de revogação de um acto administrativo definitivo (ou inválido que já não seja passível de impugnação). Cfr., no caso do direito neerlandês, ac. Kühne & Heitz, n.º 25, e no caso do artigo 48.º, n.º 1, do CPA alemão (ac. Kempter, n.os 5 e 39, e i-21 e Arcor, n.º 50). (68) Apenas neste caso. Se o interessado não tiver esgotado as vias de recurso, a jurisprudência não tem aplicação (ac. i-21 e Arcor, n.º 53). O mesmo se diga relativamente ao cidadão que não recorreu do acto administrativo. Daqui podem decorrer situações de desigualdade. Apesar de estas serem aceitáveis como forma de “premiar” o cidadão que levou a sua pretensão até à última instância, já são mais complexas no caso do cidadão que não recorreu aos tribunais por confiar que a interpretação (contrária ao Direito da UE) subjacente ao caso julgado de decisão judicial (de última instância) também se lhe aplicaria. Nesse caso, o cidadão, por confiar na autoridade do caso julgado, perde o direito à aplicação da jurisprudência Kühne & Heitz. Para se poder valer desse direito deve recorrer sempre aos tribunais, até à última instância, com as inerentes consequências nefastas para a pendência dos processos e para a vida das pessoas. (69) E na sua medida — será de admitir o dever de revogação de apenas parte do acto, na medida da sua desconformidade com o Direito da UE. (70) Cfr. ac. Kühne & Heitz, n.º 27. (71) O que é lógico, pois apenas após o reexame poderá a administração concluir se a revogação do acto em causa lesa ou não direitos de terceiros. Em sentido contrário, indicando que pode impedir o reexame, FAUSTO DE QUADROS, Droit de l’Union Européenne, pp. 493-495 e “A europeização do contencioso administrativo”, p. 399. (67)

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22. A jurisprudência Kühne & Heitz representa o desenhar de um limite ao princípio da autoridade do caso julgado (como é admitido pelo TJ (72)), como consequência da aplicação incorrecta do Direito da UE pelo órgão jurisdicional de última instância. Assim, aí onde a legislação nacional do Estado-Membro permita a revogação do acto administrativo em causa (ainda que consolidado), existe o direito ao reexame desse acto por ter sido incorrectamente fiscalizado pelos órgãos judiciais. De facto, não se pode negar que no caso apreciado no acórdão Kühne & Heitz, o acto administrativo em causa já tinha sido considerado conforme com o bloco de legalidade pelos tribunais neerlandeses. Nesse sentido, essa conformidade é uma decorrência do caso julgado da decisão judicial. Assim, a admissão do reexame e revogação de acto administrativo precisamente por ilegalidade (desconformidade com o Direito da UE), quando a sua não invalidade estava comprovada por decisão judicial transitada em julgado, é o reconhecimento de que, neste caso, não se aplica o princípio da força do caso julgado (73). É aí que encontramos o quid diferenciador desta realidade face à mera aplicação do princípio da equivalência — que nos diria que podem ser revogados actos administrativos contrários ao Direito da UE nas mesmas condições em que podem ser revogados se violarem o Direito nacional — o afastamento da aplicação do princípio da força do caso julgado. A razão parece ser clara: a fim de assegurar a uniformidade da interpretação do Direito da UE nos Estados-Membros e o seu primado, é necessário garantir que os órgãos jurisdicionais nacionais cumprem o seu papel de tribunais comuns de Direito da UE. É especialmente relevante o papel do órgão jurisdicional de última instância. Quando este não cumpre a sua obrigação de recurso ao mecanismo das questões prejudiciais — levando ao incumprimento do Direito da UE —, existem formas de supressão desse incumprimento. Em primeira linha, a resposta ao incumprimento será feita pela responsabilidade civil do Estado e pode levar mesmo à sua condenação numa acção por incumprimento. No entanto, a jurisprudência Kühne & Heitz representa uma nova resposta possível ao mesmo problema — com a supressão da força de caso julgado de certas decisões judiciais desconformes com o Direito da UE, garante-se o cumprimento desse Direito. 23. É a jurisprudência Kühne & Heitz aplicável em Portugal? A resposta dependerá da verificação do preenchimento das quatro condições referidas,

Cfr. ac. Kempter, n.º 38, e i-21 e Arcor, n.º 52. Discorda-se, assim, de FAUSTO DE QUADROS, na medida em o caso não se configura como mera força de caso decidido — existe uma decisão judicial que consolida o acto administrativo em questão relativamente à sua legalidade, sendo esta precisamente a matéria que é objecto de reexame por força da jurisprudência Kühne & Heitz. Cfr. FAUSTO DE QUADROS, Droit de l’Union Européenne, pp. 493-495 e “A europeização do contencioso administrativo”, p. 399. (72)

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mas essencialmente da primeira condição. De facto, esta é a única que depende das características gerais do ordenamento português, dependendo as restantes das circunstâncias do caso concreto. A questão redunda portanto na possibilidade de revogação, de acordo com o Direito Processual português, dos actos administrativos consolidados por existir uma decisão judicial nesse sentido. A análise deve começar pela determinação do desvalor que cominará o acto administrativo inválido pela violação do Direito da UE (74), na medida em que esta tem repercussões relativamente ao regime aplicável (75). Ora, o Direito da UE é fonte de Direito Administrativo e faz parte do bloco da legalidade que serve de parâmetro à actuação da administração. Assim, qualquer acto que viole o Direito da UE poderá padecer de qualquer dos vícios previstos na legislação nacional, na medida em que esta for aplicável (76). Tendo em conta a inexistência de uma correspondência geral entre vícios e desvalores do acto administrativo, não é possível, portanto, em abstracto determinar qual o desvalor que decorre da violação do Direito da UE — devendo este ser determinado caso a caso, tendo em conta as regras dos artigos 133.º e 135.º do CPA (77). O acto administrativo anulável, consolidado por uma decisão judicial, pode, ainda assim, ser revogado. De facto, ao acto anulável consolidado é de aplicar o regime previsto para a revogabilidade dos actos válidos (artigo 140.º do CPA), na medida em que o vício em causa não poderá mais ser invocado para efeitos da impugnação do acto ou para a sua revogação (artigo 141.º do CPA), mas que o acto deverá poder ser revogado por outros motivos (não faria sentido ter um

Trata-se de uma questão polémica, que escapa ao âmbito do presente estudo. Cfr., por todos, M. PRATA ROQUE, Direito Processual Administrativo Europeu, pp. 73 ss. (75) Cfr. M. REBELO DE SOUSA/A. SALGADO MATOS, Direito Administrativo Geral, t. III, pp. 172 ss.; D. FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, II, Coimbra, Almedina, 2011, pp. 442 ss. (76) Cfr. M. REBELO DE SOUSA/A. SALGADO MATOS, Direito Administrativo Geral, t. III, pp. 154 ss. (77) Uma outra solução não teria em conta a necessária diferença de graduação de desvalor relativamente ao vício em causa — o que não é aceitável no nosso ordenamento jurídico-administrativo. Cfr. M. PRATA ROQUE, Direito Processual Administrativo Europeu, pp. 79 ss. Não se concorda, no entanto, com este Autor na distinção que faz entre situações de desconformidade imediata ou mediata do acto administrativo com o Direito da UE, conforme exista, ou não, uma norma nacional que fixe um padrão de legalidade administrativa. Na medida em que se admite que o Direito da UE é fonte directa do Direito Administrativo português e tendo em conta o princípio do primado, que vincula a administração, qualquer violação do Direito da UE acarreta um vício para o acto — independentemente da intermediação de um acto normativo nacional — e o consequente desvalor. Situação distinta será a do acto administrativo que, não sendo desconforme com o Direito da UE, executa acto normativo que é desconforme. (74)

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regime mais restritivo que o dos actos válidos) (78). É esta previsão suficiente para despertar a aplicação da jurisprudência Kühne & Heitz? Não será necessário que a ordem jurídica nacional preveja expressamente a revogação de actos consolidados por motivos de invalidade? Repare-se que a jurisprudência Kühne & Heitz não exige que a previsão de poder de revogação do órgão administrativo nacional esteja relacionada com a ilegalidade do acto: basta a previsão do poder de revogação do acto consolidado em abstracto (79). Assim, a resposta às questões colocadas vai no sentido da aplicação da jurisprudência Kühne & Heitz em Portugal. É verdade que o artigo 140.º do CPA não prevê o poder de revogação, com base na sua ilegalidade, de um acto administrativo cuja validade foi comprovada por uma decisão judicial. Essa é a inovação da jurisprudência Kühne & Heitz, tal como tem vindo a ser formulada: o afastamento da força de caso julgado. É como se a consolidação do acto nunca tivesse ocorrido — sendo, por isso, possível a sua revogação, com base no vício em causa, ainda que ao abrigo de um poder genérico de revogação dos actos por motivos distintos do da invalidade. Note-se que, de qualquer forma, o acto só poderá vir a ser revogado nos termos previstos no artigo 140.º do CPA — com as ressalvas aí estabelecidas — e se não lesar os interesses de terceiros (80). Caso o acto seja nulo por violação do Direito da UE e não tenha sido declarado como tal por decisão judicial nacional anterior à interpretação do TJ da qual decorre essa nulidade, é também aplicável a jurisprudência Kühne & Heitz (81). De facto, se a nulidade do acto tinha sido afastada por decisão jurisdicional, este também será revogável, em abstracto, como se fora um acto válido, ex vi artigo 140.º do CPA. Não é de esquecer, igualmente, que a nulidade é de conhecimento oficioso e é impugnável a todo o tempo — se a força de caso julgado é afastada, este será o regime a aplicar. 24. Pode, portanto, o cidadão afectado por um acto administrativo inválido por violação do Direito da UE, na medida em que se encontrem preenchidas as restantes condições Kühne & Heitz (82), dirigir-se ao órgão administrativo com-

(78) Cfr. D. FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, II, p. 489; M. REBELO SOUSA/A. SALGADO MATOS, Direito Administrativo Geral, III, p. 175, § 244, e p. 197, § 305. Relativamente à consolidação do acto pela passagem do prazo de impugnação, concordamos com os últimos Autores relativamente ao facto de esta não acarretar a sanação da invalidade (cfr. contra D. FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, II, p. 488). (79) É o que resulta do ac. Kühne & Heitz, n.º 25, e dos ac. Kempter, n.os 5 e 39, e i-21 e Arcor, n.º 61. (80) Cfr. ac. Kühne & Heitz, n.º 27. (81) A situação é em tudo semelhante à do acto cuja anulabilidade fora afastada por decisão judicial. (82) Ter impugnado o acto administrativo, ter esgotado as vias de recurso ordinárias, e que o acórdão do órgão jurisdicional de última instância incorra numa interpretação errada do

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petente, depois de ter tido conhecimento da referida jurisprudência do TJ, para pedir o reexame desse acto. A previsão de competência revogatória no artigo 140.º do CPA tem implícita a competência de reexame do mérito do acto. A jurisprudência Kühne & Heitz vem admitir a expansão desse poder para o reexame da sua legalidade, afastando a força de caso julgado. O órgão administrativo deve reexaminar a situação e se concluir que, de facto, o acto é anulável por violação do Direito da UE e que as condições previstas no artigo 140.º do CPA o permitem (83), deve considerar-se vinculado a revogar o acto administrativo em causa. Trata-se, no entanto, de uma revogação por invalidade ao abrigo do artigo 140.º do CPA — o que se encontra afastado pela letra do CPA (84). Mas encontramo-nos perante uma situação excepcional de afastamento da força do caso julgado, de acto correctamente impugnado, justificada pelo incumprimento do Direito da UE por parte do tribunal de última instância português. É a aplicação do Direito da UE, resultante da jurisprudência Kühne & Heitz, que vem alargar o âmbito de aplicação do artigo 140.º do CPA. Nesse sentido, trata-se de uma revogação anulatória, com efeitos ex tunc (85). Por seu lado, caso o órgão administrativo ou judicial de reexame concluir pela nulidade do acto, está vinculado à declaração dessa nulidade, nas condições previstas no CPA e no CPTA, — pois não poderá revogar o acto, na medida em que este é nulo (artigo 139.º, n.º 1, alínea a), do CPA) — implicando a jurisprudência Kühne & Heitz o afastamento da autoridade de caso julgado. A não ser assim, teríamos que concluir que, face à jurisprudência Kühne & Heitz seria possível a consolidação por decisão judicial de um acto nulo mas não de um acto anulável. Ora, na medida em que os vícios associados ao desvalor da nulidade são mais graves do que os relativos à anulabilidade, tal não faria sentido. 25. Se a administração recusar o reexame, bem como a revogação do acto anulável ou a declaração de nulidade do acto, tem o cidadão direito a recorrer à tutela jurisdicional para garantir a aplicação da jurisprudência Kühne & Heitz. A questão aqui será: pode o tribunal neste caso anular o acto em causa? Ou deverá condenar a administração a revogar? Devemos concluir da jurisprudência Kühne & Heitz que, neste caso, existe um limite à força de

Direito da UE face a jurisprudência posterior do TJ, sem que tivesse sido submetida uma questão prejudicial. (83) Na medida em que a aplicação da jurisprudência Kühne & Heitz depende do poder de revogação do acto da administração e este só existe nos termos do artigo 140.º do CPA. (84) Cfr. D. FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, II, p. 489; M. REBELO DE SOUSA/A. SALGADO MATOS, Direito Administrativo Geral, III, p. 175, § 244, e p. 197, § 305. (85) Cfr. D. FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, II, p. 472

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caso julgado. Se a invalidade funda a revogação pelo órgão administrativo, neste caso, não faria sentido não a poder invocar em tribunal — devendo este decidir, de acordo com as suas competências — até tendo em conta o princípio da tutela jurisdicional efectiva e o papel dos tribunais como garantes dos direitos concedidos pela ordem jurídica da UE. Assim, cremos que os tribunais poderão anular os actos administrativos em aplicação da jurisprudência Kühne & Heitz, se estes forem contrários ao Direito da UE. Até porque a diferença prática entre a anulação judicial ou a condenação da administração a revogar poderá ser inexistente. No entanto, podem existir casos mais duvidosos, nomeadamente no âmbito da discricionariedade administrativa, em que a administração deverá ser apenas condenada a reexaminar o acto em causa. Já relativamente ao poder judicial para a declaração de nulidade, não existem dúvidas, tendo em conta o que já referimos. De qualquer modo, podemos assim concluir que, da confluência do artigo 140.º do CPA com a jurisprudência Kühne & Heitz, resulta o alargamento dos poderes de controlo dos tribunais administrativos portugueses. 26. Caso não seja possível a revogação, por o regime do artigo 140.º do CPA não o permitir, resta ao cidadão lesado pela actuação desconforme com o Direito da UE do Estado — quer da administração, quer dos tribunais — a via da responsabilidade civil extracontratual, já referida. É também esta a via para o ressarcimento de danos por incumprimento do Direito da UE no caso de a jurisprudência Kühne & Heitz não ter aplicação por o cidadão, por exemplo, não ter recorrido até à última instância judicial. Está ainda por responder, no entanto, a questão da articulação entre os dois institutos — o da responsabilidade civil do Estado e o reexame do acto administrativo: são complementares, supletivos ou cumulativos? Cremos que a resposta que mais corresponde ao espírito do Direito da UE passa pela possibilidade de cumulação de pedidos — mesmo em casos em que o cidadão tem direito ao reexame e revogação do acto, poderá sempre pedir uma indemnização pelos danos entretanto sofridos. No entanto, a cumulação não poderá ser de molde a motivar o seu enriquecimento sem causa: o cidadão não deve ser indemnizado por danos que foram suprimidos com a revogação do acto. 27. Também neste âmbito, na falta de regulamentação da UE, cabe ao ordenamento jurídico de cada Estado-Membro estabelecer as regras relativas ao reexame do acto administrativo, com os limites já referidos do princípio da equivalência e do princípio da efectividade (86). Esta regra aplica-se ao prazo para a apresentação pelo interessado do pedido de reexame do acto administra-

(86)

Cfr. ac. Kempter, n.º 57.

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tivo ao abrigo da jurisprudência Kühne & Heitz (87). Dentro deste âmbito, a jurisprudência do TJ tem vindo a aceitar como compatível com o Direito da UE a fixação de “prazos razoáveis” para o exercício de certas faculdades ou direitos dos administrados, sob pena de caducidade, no interesse da segurança jurídica (88). O carácter “razoável” do prazo está relacionado com o princípio da efectividade, i.e., o prazo não deve ser susceptível de tornar impossível na prática ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica da UE (89). Assim sendo, os Estados-Membros podem estabelecer um prazo para o interessado pedir o reexame e revogação de acto administrativo, ao abrigo da jurisprudência Kühne & Heitz, findo o qual esta faculdade caduca, em nome do princípio da segurança jurídica — desde que o prazo seja “razoável” (90). Portugal ainda não utilizou esta possibilidade, pelo que não existe esse prazo. No entanto, cremos que de iure condendo, o prazo a adoptar deveria ser o prazo para a sua impugnação contenciosa, recorrendo ao art 141.º, n.º 2, do CPA (91), na medida em que é o prazo para a possibilidade de revogação do acto anulável — que deveria ser contado desde o conhecimento, pelo interessado, da interpretação do TJ que justifica o pedido de reexame. É verdade que a norma não se aplica aqui directamente, mas a proximidade de situações — na medida em que em ambos os casos a administração irá revogar um acto com base na sua invalidade (embora neste caso também por afastamento da força de caso julgado, por via da jurisprudência Kühne & Heitz). d) Dever de reexame de decisão judicial transitada em julgado 28. A jurisprudência Kühne & Heitz, relativa à possibilidade de revisão de actos administrativos consolidados, fez surgir a dúvida sobre as decisões judiciais passadas em julgado também deveriam ser revistas, quando se apure que são contrárias ao Direito da UE. Essa questão foi abordada no acórdão Kapferer (92), no qual esta cidadã austríaca processava uma sociedade de vendas por corres-

Não existe, no Direito da UE, um prazo específico. Apesar de o ac. Kühne & Heitz se referir à apresentação «imediata» do pedido, esta expressão não pode ser interpretada como a fixação de um prazo (ac. Kempter, n.os 54-60). (88) Cfr. neste sentido, os ac. Rewe, n.º 5; Comet, n.os 17 e 18; Denkavit n.º 23; de 24/9/2002, Grundig Italiana, Proc. n.º C-255/00, Col. I-8003, n.º 34; e Kempter, n.º 58. (89) Cfr. ac. Kempter, n.º 58. Cfr. também o ac. Grundig Italiana, n.º 34. (90) Cfr. ac. Kempter, n.º 59-60. (91) O prazo será, regra geral, o prazo de um ano para a impugnação do Ministério Público (artigo 58.º, n.º 2, alínea a), do CPTA). Cfr. M. REBELO DE SOUSA/A. SALGADO MATOS, Direito Administrativo Geral, t. III, p. 197, § 305. (92) Cfr. ac. Kapferer, ref. supra nota 17. (87)

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pondência alemã (93). Enquanto apreciava o recurso relativo à decisão sobre o fundo da questão, o órgão jurisdicional de 2.ª instância veio questionar o TJ sobre a aplicabilidade da jurisprudência Kühne & Heitz ao caso, uma vez que considerava uma decisão do tribunal de 1.ª instância relativa a uma excepção de incompetência, entretanto passada em julgado, poderia ser considerada contrária ao Direito da UE, tal como entretanto interpretado pelo TJ (94). Na sua análise da questão, o TJ reafirma o princípio da força de caso julgado como princípio comum à ordem jurídica da UE e às ordens jurídicas nacionais (95). O TJ conclui pela não incompatibilidade geral com o Direito da UE das regras processuais internas que confiram força de caso julgado a certas decisões — mesmo quando a desaplicação destas regras permitiria reparar uma violação do Direito da UE (96). 29. Curiosamente, o acórdão Kapferer não rejeita nem aceita expressamente a aplicação da jurisprudência Kühne & Heitz às decisões judiciais transitadas em julgado, apenas referindo que, «ainda que se admita que os princípios estabelecidos nesse acórdão sejam transpostos para um contexto que, como o do processo principal», as condições então expressas deveriam estar reunidas para que se aplicasse a obrigação de reexame da decisão — neste caso judicial (97). Ora neste caso, a primeira destas condições — o poder de revogação da decisão — não se verifica, pelo que também não se aplicaria a jurisprudência. Assim, a conclusão lógica é que a jurisprudência Kühne & Heitz é aplicável a decisões jurisdicionais, ainda que passadas em julgado, que devem ser reexaminadas, quando se verifiquem as condições aí previstas. Assim, se a ordem jurídica nacional admitir a possibilidade de um recurso extraordinário da sentença, a jurisprudência terá aplicação, uma vez verificadas as restantes condições. 30. A ordem jurídica portuguesa já prevê um caso de recurso extraordinário de revisão — aliás, precisamente para a situação em causa. De facto, o Código do Processo Civil (CPC) (98) prevê como causa de revisão da decisão judicial transitada em julgado o facto de esta ser «inconciliável com decisão definitiva de uma instância internacional de recurso vinculativa para o Estado

(93) O objecto da acção incidia sobre publicidade alegadamente enganosa, em concreto, de saber se a sociedade tinha ou não dado a entender que tinha atribuído um prémio a Kapferer. (94) Cfr. ac. Kapferer, n.º 17. (95) Cfr. ac. Kapferer, n.º 20. Cfr. também, e.g., ac. Eco Swiss, n.os 46 e 47, Köbler, n.º 38, Fallimento Olimpiclub, n.º 22, e Asturcom, n.º 36. (96) Cfr. ac. Kapferer, n.º 21. Cfr. também, ac. do TJ Fallimento Olimpiclub, n.º 23; e Asturcom, n.º 37. (97) Cfr. ac. Kapferer, n.º 23. (98) Esta possibilidade foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto.

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Português» (99). É de notar que o regime previsto no CPC é igualmente aplicável no âmbito do contencioso administrativo, por força do artigo 154.º, n.º 1, do CPTA, que determina a aplicação supletiva das regras do CPC, e que existe um regime equivalente no Código do Processo Penal (CPP) (100). A redacção que foi dada ao preceito do CPC é, no entanto, manifestamente infeliz (101). A referência a «instância internacional de recurso vinculativa para o Estado Português» é incorrecta, pois não existe “recurso” dos tribunais nacionais para nenhuma «instância internacional», nomeadamente para o TJ (102). De acordo com o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 303/2007, que introduziu este regime no CPC, o objectivo foi permitir o recurso extraordinário de revisão quando a decisão interna transitada em julgado viole a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) «ou normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte». Esta afirmação também parece ir longe de mais, porque interpretada literalmente significaria que existiria recurso extraordinário sempre que a decisão judicial fosse contrária a alguma norma emitida por qualquer órgão de qualquer organização internacional assim abrangida — o que é mais do que o que se pode retirar da letra do preceito legal do CPC (103). De qualquer forma, esta referência preambular permite-nos estabelecer a ligação entre o artigo 771.º, alínea f), do CPC, e a condenação do Estado português por violação da CEDH, necessariamente no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) — que é a instância internacional com competência nessa matéria. Ora, a acção a interpor no TEDH, apesar de pressupor a extinção das vias de recurso ordinário internas, não é um verdadeiro e próprio recurso. De facto, esta acção é um novo litígio, com partes distintas, que incide sobre a eventual violação da CEDH por parte do Estado. A redacção legal incorre e faz incorrer no erro de supor que existe uma “instância de recurso internacional” — quando tal não acontece (104). Assim, terá de se interpretar a expressão como

Cfr. artigo 771.º, alínea f), do CPC. O CPC estabelece limites temporais para a interposição do pedido de revisão (cfr. artigo 772.º, n.º 2, alínea b), do CPC). (100) O artigo 449.º, n.º 1, alínea g) —, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto. (101) Cfr., para uma análise crítica mais detalhada do preceito, M. J. RANGEL DE MESQUITA, O Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado…, pp. 67 ss. (102) Cfr. M. J. RANGEL DE MESQUITA, O Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado…, pp. 79 ss. (103) Assim, mal andou o legislador. Se tinha como objectivo o que se encontra no preâmbulo, não foi capaz de o transpor para a letra da lei. Se a letra da lei corresponde ao que pretendia, então não se explicou bem no preâmbulo. (104) A esse nível, é bem mais feliz a redacção do preceito equivalente introduzido no CPP, que se refere a «sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional [que] for inconciliável com a condenação ou suscitar graves dúvidas sobre a sua justiça». (99)

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querendo significar decisão de instância internacional judicial cujas decisões são vinculativas para o Estado português — onde se incluirá, sem dúvida, o TJ. Podemos assim concluir que uma decisão judicial transitada em julgado — no âmbito civil, penal ou administrativo — pode ser objecto de recurso extraordinário de revisão, nos termos do Direito Processual português, quando se revelar contrária ou incompatível com um acórdão do TJ (ou do TEDH, quando este vincular o Estado português). 31. Nestes termos, a jurisprudência Kapferer não é revolucionária para a ordem jurídica portuguesa. De facto, por um lado, resulta claramente do regime processual português (apesar das suas imperfeições). Por outro lado, corresponde à aplicação do princípio da equivalência — aí onde exista um recurso extraordinário por um motivo análogo ao da violação do Direito da UE, então esse recurso também será possível relativamente a decisões que incumpram o Direito da UE. A jurisprudência Kapferer nada traz de novo a este caso — de facto, o princípio da equivalência até é mais lato do que esta jurisprudência, pois não tem condições tão restritivas. A diferença entre as jurisprudências Kühne & Heitz e Kapferer é que, no primeiro caso, efectivamente se limitou a força de caso julgado, no sentido de permitir a revogação, quando a ordem jurídica nacional a permita (qualquer que seja o motivo), do acto administrativo consolidado por ser abrangido pelo caso julgado de decisão judicial, com base na sua desconformidade com o Direito da UE. Ou seja, a jurisprudência Kühne & Heitz veio permitir aos órgãos nacionais desconsiderar, nesse caso, efectivamente, o caso julgado. Por seu lado, na jurisprudência Kapferer esse afastamento não ocorre — é necessário que a ordem jurídica nacional contenha, ela mesma, a possibilidade de revisão da sentença, ou seja, a excepção ao princípio da força de caso julgado, neste caso, depende de tal excepção existir já na ordem jurídica do Estado-Membro. Se, no entanto, a ordem jurídica portuguesa (ou de um outro Estado-Membro), prevendo a possibilidade de revisão extraordinária da decisão, não a previsse especificamente por motivo de desconformidade com o Direito da UE, poder-se-ia então discutir a aplicação da jurisprudência Kapferer — no sentido da ampliação desse regime também para estes casos. Trata-se de um passo que ainda não foi dado pelo TJ, que prefere trilhar os caminhos mais familiares da aplicação do princípio da equivalência. e) O princípio da equivalência e o regime de recursos extraordinários 32. O princípio da equivalência, como se tem referido, é um dos limites à autonomia processual dos Estados-Membros, estabelecendo a necessidade de tratamento não discriminatório do Direito da UE.

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O princípio da equivalência exige que o conjunto das regras aplicáveis aos recursos, ordinários ou extraordinários, incluindo os prazos fixados para a respectiva interposição, se aplique indiferentemente aos recursos assentes na violação do Direito da UE e aos assentes na violação do direito interno (105). Assim, da sua aplicação decorrem consequências para a questão da consolidação das decisões transitadas em julgado. De facto, aí onde se preveja a possibilidade de reapreciação destas decisões por quaisquer motivos — inconstitucionalidade (106), contrariedade com a CEDH ou «porque se a manutenção do acto em questão for “simplesmente insuportável” à luz dos conceitos de ordem pública, de boa fé, de equidade, de igualdade de tratamento ou de ilegalidade manifesta» (107) — esta reapreciação também deverá ser feita por desconformidade com o Direito da UE. Por exemplo, quando o tribunal tenha o poder de conhecer oficiosamente, no âmbito de uma acção executiva, se uma cláusula arbitral é contrária às regras nacionais de ordem pública, incumbe-lhe igualmente apreciar oficiosamente o carácter abusivo dessa cláusula à luz do Direito da UE (108). Essa obrigação existe também quando o juiz nacional possui uma simples faculdade de apreciar oficiosamente se uma cláusula é contrária às regras nacionais de ordem pública (109). Assim, decorre do princípio da equivalência a aplicação ao Direito da UE, para a sua salvaguarda, de excepções ao princípio do caso julgado já existente na ordem jurídica dos Estados para outros fins. f) O princípio da eficácia e o efeito de caso julgado ou de caso decidido 33. O princípio da eficácia, paralelamente ao da equivalência, é o outro limite à autonomia processual dos Estados-Membros, estabelecendo que as suas regras não devem dificultar excessivamente ou impossibilitar a aplicação do Direito da UE. É através da sua aplicação que o TJ se tem pronunciado sobre o prazo para a produção de caso julgado ou os próprios efeitos do caso julgado. 34. De acordo com jurisprudência do TJ, o princípio da efectividade obriga a que se afira se determinada disposição processual nacional torna impossível ou excessivamente difícil a aplicação do Direito da UE (110). Este teste deve ser

Cfr. ac. i-21 e Arcor, n.os 61-62. Cfr. ac. Transportes Urbanos y Servicios Generales, n.os 33, 36, 43 a 46, 48. (107) Cfr. ac. i-21 e Arcor, n.º 8 e 63. (108) Cfr. ac. Asturcom, n.º 53. (109) Cfr. ac. de 14/12/1995, van Schijndel e van Veen, Procs. n.os C-430/93 e C-431/93, Col. I-04705, n.os 12, 13 e 22; Kempter, n.º 45; e Asturcom, n.º 54. (110) A jurisprudência sobre esta matéria é abundante, cfr., designadamente, ac. Rewe, n.º 5; Comet, n.os 13 a 16; de 14/12/1995, Peterbroeck, Proc. n.º C-312/93, Col. I-4599, n.º 12; van (105) (106)

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realizado analisando o preceito em causa à luz do lugar que ocupa no processo, visto como um todo, da tramitação deste e das suas particularidades, perante as várias instâncias nacionais. Se necessário, há que tomar em consideração, os princípios que estão na base do sistema jurisdicional nacional, como a protecção dos direitos de defesa, o princípio da segurança jurídica e a correcta tramitação do processo (111). Assim, cada regra procedimental ou processual nacional deve ser posta sob este escrutínio, devendo ser desaplicada caso falhe no teste do princípio da efectividade. 35. A obrigatoriedade de escrutínio também se aplica aos preceitos que estabeleçam o prazo para a interposição de uma acção judicial ou do recurso de uma decisão judicial (que dá origem à consolidação do caso julgado) ou administrativa. Assim, apesar de o TJ afirmar, através de jurisprudência consolidada, que a fixação de prazos de certas faculdades ou direitos dos administrados — como os referidos prazos —, sob pena de caducidade e de consolidação da situação jurídica produzida, por razões de segurança jurídica, não é incompatível com o Direito da UE, estes prazos devem ser razoáveis (112). O juízo sobre a razoabilidade do prazo remete-nos, de novo para a aferição de se este torna impossível, na prática, ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária (113). Está em causa o facto do período de tempo concedido permitir avaliar se existem motivos para contestar uma decisão e, eventualmente, preparar o recurso contra essa decisão, bem como o facto de o prazo apenas dever começar a correr após a notificação da decisão (114). O TJ entende que esse juízo deve ser feito caso a caso, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto — a sua tramitação e as suas particularidades, bem como a interpretação do preceito tendo em conta o conjunto do processo (115). Assim, serão as circunstâncias específicas do caso concreto que ditarão o juízo sobre a compatibilidade entre o prazo em causa e o princípio da

Schijndel e van Veen, n.º 17; de 10/7/1997, Palmisani, Proc. n.º C-261/95, Col. I-4025, n.º 27; de 20/9/2001, Courage e Crehan, Proc. n.º C-453/99, Col. I-6297, n.º 29; de 19/6/2003, Eribrand, Proc. n.º C-467/01, Col. I-6471, n.º 62; de 11/9/2003, Safalero, Proc. n.º C-13/01, Col. I-8679, n.º 49; 13/3/2007, Unibet, Proc. n.º C-432/05, Col. I-2271, n.º 43; e de 7/6/2007, van der Weerd, Proc. n.º C-222/05 a C-225/05, Col. I-4233, n.º 28. (111) Cfr. ac. Peterbroeck, n.º 14; Fallimento Olimpiclub, n.º 27; Asturcom, n.º 39. (112) Cfr., por exemplo, os ac. Rewe, n.º 5; Comet, n.os 17-18; Denkavit n.º 23; de 25/7/1991, Emmott, Proc. n.º C-208/90, Col. I-4269, n.os 16-17; Palmisani, n.º 28; Grundig Italiana, n.º 34; de 27/2/2003, Santex, Proc. n.º C-327/00, Col. I-1877, n.º 50-52; Kempter, n.º 58; Asturcom, n.º 41. (113) Cfr., por exemplo, os ac. Grundig Italiana, n.º 34; Santex, n.º 52; Kempter, n.º 58; e Asturcom, n.os 41-42. O TJ já declarou que um prazo de recurso de 60 dias não é, em si, criticável (cfr., ac. Peterbroeck, n.º 16; Santex, n.º 54). (114) Cfr., por exemplo, os ac. Santex, n.º 55; e Asturcom, n.os 44-45. (115) Cfr., por exemplo, os ac. Peterbroeck, n.º 14; e Santex, n.º 56.

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efectividade — o que significa que o tribunal nacional poderá decidir que o prazo não era suficiente em determinado caso concreto, independentemente de decisões anteriores sobre o preceito que estabelece aquele prazo, afastando o efeito de caducidade (ou quaisquer outros efeitos, como o de caso julgado) entretanto produzido (116). Isto significa, portanto, que nenhum prazo processual ou procedimental pode ser tido, a priori, como produzindo o efeito da caducidade ou extinção de um direito do particular derivado da ordem jurídica da UE. A sua desconformidade com o Direito da UE apenas pode ser aferida caso a caso. Assim, mesmo que um determinado prazo — para a interposição de uma acção ou para um recurso (judicial ou administrativo) — já tenha terminado, pode sempre ser invocado pelo interessado junto do órgão nacional competente a sua não razoabilidade, podendo o efeito de caducidade e estabilização da situação jurídica entretanto produzido (caso decidido ou caso julgado), ser posto em causa. O mesmo se diga relativamente ao decurso do prazo previsto no artigo 141.º, n.º 1, do CPA, para a revogação de actos administrativos inválidos. 36. O TJ tem reafirmado a importância do princípio da força do caso julgado, mas também tem vindo a esclarecer que a autoridade de caso julgado só abrange os elementos de facto e de direito que foram efectiva ou necessariamente dirimidos pela decisão jurisdicional em causa (117). Assim, os próprios efeitos do caso julgado — ou a forma como este é interpretado — têm vindo a ser analisados. No acórdão Fallimento Olimpiclub foi questionada a interpretação do princípio da força do caso julgado e do artigo 2909.º do Código Civil italiano feita pelos tribunais italianos, segundo a qual, em litígios em matéria fiscal, uma decisão de determinado processo transitada em julgado, quando tenha por objecto uma questão fundamental comum a outros processos, possui força vinculativa relativamente a estes, mesmo quanto a períodos de tributação diferentes. O TJ concluiu que esta interpretação não só impede que se ponha em causa uma decisão judicial transitada em julgado que comporte uma vio-

(116) No entanto, não é exigível que o órgão jurisdicional nacional compense a omissão processual de um cidadão que ignora os seus direitos ou que deva suprir integralmente a sua passividade total (cfr. ac. Asturcom, n.º 47. (117) Cfr., v. g., ac. de 19/2/1991, Itália c. Comissão [FEOGA — cereais], Proc. n.º C-281/89, Col. I-347, n.º 14; de 15/10/2002, Limburgse Vinyl Maatschappij, Procs.. n.os C-238/99, C-244/99, C-245/99, C-247/99, C-250/99 a C-252/99 e C-254/99, Col. I-8375, n.º 44; 12/6/2008, Comissão c. Portugal [Imposto sobre o volume de negócios], Proc. n.º C-462/05, Col. I-4183, n.º 23; de 29/6/2010, Comissão c. Luxemburgo [Protecção das águas — nitratos], Proc. n.º C-526/08, Col. 0, n.º 27; de 29/3/2011, ThyssenKrupp Nirosta, Proc. n.º C-352/09 P, Col. 0, n.º 123, bem como o Despacho do TJ de 28/11/1996, Lenz, Proc. n.º C-277/95 P, Col. I-6109, n.º 50.

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lação do Direito da UE, mas consolida essa violação, impedindo a sua reapreciação em outro processo judicial (118). Assim, uma violação ou uma interpretação incorrecta do Direito da UE torna-se impossível de corrigir. O TJ conclui que esta interpretação do efeito de caso julgado é um obstáculo à correcta interpretação do Direito da UE e que este não pode ser razoavelmente justificado pelo princípio da segurança jurídica, sendo, portanto, contrária ao princípio da efectividade (119). Assim, cada efeito do caso julgado, em determinada ordem jurídica nacional, deve ser sujeito a um juízo de ponderação entre o princípio da segurança jurídica e o princípio da efectividade do Direito da UE. Desta ponderação pode resultar o afastamento da força de caso julgado da decisão no caso concreto. g) A divisão de poderes entre UE e Estados-Membros a força de caso julgado 37. O caso mais extremo de controlo pelo TJ da actividade judicial dos Estados-Membros deu-se com o não reconhecimento da própria existência de caso julgado de uma decisão judicial no acórdão Lucchini (120). O caso Lucchini incide sobre a matéria de auxílios de Estado, regulada pelo TFUE (121), especificamente sobre um auxílio concedido pelas autoridades italianas antes da decisão da Comissão sobre a sua compatibilidade com as regras do mercado comum — que veio a ser desfavorável (122). Posteriormente, um tribunal italiano de 1.ª instância, no âmbito de uma acção entre a empresa Lucchini e as autoridades italianas, declarou que esta tinha direito a obter o auxílio em questão, sem que tivesse tomado em conta o Direito da UE. Essa decisão foi confirmada pelo tribunal de recurso, tendo adquirido força de caso julgado. As autoridades, que inicialmente cumpriram a decisão judicial, seguindo uma recomendação da Comissão, vieram a revogar o auxílio e a determinar o reembolso do prestado, o que foi impugnado pela Lucchini, com base na força de caso julgado da decisão judicial inicial. A questão chegou ao Consiglio di Stato que constatou a existência de um conflito entre o princípio da força do caso

Por exemplo, aquando da fiscalização judicial de outra decisão da autoridade fiscal competente respeitante ao mesmo contribuinte ou sujeito passivo, mas referente a outro exercício fiscal. (119) Cfr. ac. Fallimento Olimpiclub, n.º 28-31. (120) Cfr. ac. de 18/7/2007, Lucchini, Proc. n.º C-119/05, Col. I-06199. (121) Cfr. artigos 107.º ss. do TFUE, que prevêem, nomeadamente, poderes de controlo da Comissão sobre os Estados-Membros nesta matéria. (122) A Decisão n.º 90/555/CECA, de 20 de Junho de 1990. (118)

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julgado e o primado do Direito da UE e recorreu ao mecanismo das questões prejudiciais junto do TJ. O TJ começou por referir que os órgãos jurisdicionais nacionais têm competência para apreciar alguns actos da administração nacional no âmbito do regime dos auxílios de Estado (123), para logo reconhecer que essa competência é necessariamente limitada. Os tribunais nacionais não têm, nestes termos, competência para aferir da compatibilidade de um auxílio com o mercado comum, uma vez que esta apreciação deve ser feita pela Comissão (é da sua competência exclusiva), e que os actos da Comissão apenas podem ser fiscalizados pelo TJ (124) (125), nos prazos e termos previstos no TFUE (126). Na medida em que esse acto da Comissão não tenha sido impugnado junto do TJ, torna-se definitivo, não podendo a sua legalidade ser impugnada perante os órgãos jurisdicionais nacionais, por exemplo, numa acção dirigida contra as medidas de execução desse acto tomadas pelas autoridades nacionais (127). Estas regras decorrem do princípio do primado e do dever dos órgãos jurisdicionais nacionais de garantir a plena eficácia das normas de Direito da UE, não aplicando, se necessário e por força da autoridade que é a sua, qualquer disposição contrária da legislação nacional (128). Assim, o TJ acaba por concluir que, na medida em que as regras processuais italianas relativas ao caso julgado impediam, in casu, a aplicação do Direito da UE, ou seja, a recuperação do auxílio ilegal decidida pela Comissão, por força de uma decisão judicial ultra vires, estas regras não podem ser aplicadas (129) — não devendo ser reconhecida à decisão força de caso julgado. Assim, a disposição de direito nacional que consagra o princípio da força do caso julgado de decisões judiciais deve ser afastada por ser desconforme com o Direito da UE quando essas decisões excedem os limites da competência dos (123) Por exemplo, de classificação dos seus actos como auxílios à luz do TFUE. Cfr. ac. Lucchini, n.º 50, e também de 22/3/1977, Steinike & Weinlig, Proc. n.º 78/76, Col. 203, n.º 14; e de 21/11/1991, FNCE, Proc. n.º C-354/90, Col. I-5505, n.º 10. (124) Cfr. ac. Lucchini, n.º 50-51, e também os ac. Steinike & Weinlig, n.º 9, e FNCE, n.º 14. (125) Efectivamente, resulta de jurisprudência assente que a invalidade dos actos dos órgãos da UE, embora possa ser examinada pelos órgãos jurisdicionais nacionais, apenas pode ser declarada pelo TJ. Cfr. ac. de 22/10/1987, Foto-Frost, Proc. n.º 314/85, Col. 4199, n.º 20, e também de 21/2/1991, Zückerfabrik, Procs. n.os C-143/88 e C-92/89, Col. I-415, n.º 17; e de 10/1/2006, IATA, Proc. n.º C-344/04, Col. I-403, n.º 27. (126) Cfr. ac. Lucchini, n.º 54, e também de 9/3/1994, TWD, Proc. n.º C-188/92, Col. I-833, n.º 13; e de 22/11/2002, National Farmers’ Union, Proc. n.º C-241/01, Col. I-9079, n.º 34. (127) Cfr. ac. Lucchini, n.º 55, e também TWD, n.º 17 e 20; e National Farmers’ Union, n.º 35. (128) Cfr. ac. Lucchini, n.º 61-62, e também Simmenthal, n.os 21-24; de 8/3/1979, Salumificio di Cornuda, Proc. n.º 130/78, Col. 471, n.os 23-27; e de 19/6/1990, Factortame, Proc. n.º C-213/89, Col. I-2433, n.os 19-21. (129) Cfr. ac. Lucchini, n.os 59-63.

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órgãos judiciais nacionais que decorrem do Direito da UE, pelo menos no que diz respeito à matéria dos auxílios de Estado (130). É um caso de supressão absoluta da força de caso julgado. 38. A jurisprudência Lucchini veio a ser desenvolvida no processo Comissão c. Eslováquia (131), relativa à recuperação de auxílios de Estado ilegais prestados a uma empresa através do perdão de dívidas fiscais num processo de insolvência. A Eslováquia alegou que a recuperação do auxílio não era possível porque, quando intentou nos tribunais uma acção de cobrança, as decisões de primeira e de segunda instâncias recusaram dar-lhe provimento, devido ao trânsito em julgado da decisão judicial que homologava a insolvência da empresa, ocorrido antes da decisão da Comissão. O TJ distinguiu esta situação da do acórdão Lucchini. Desde logo porque neste caso a decisão judicial transitada em julgado é anterior à decisão da Comissão relativa à recuperação do auxílio — não existindo, assim, uma evidente desconsideração do Direito da UE pelos tribunais. Para além disso, o TJ reafirma a sua posição sobre a importância do princípio da força do caso julgado e a jurisprudência Kapferer, de respeito pelas regras nacionais que conferem força de caso julgado a uma decisão (132). 39. O processo Lucchini permanece, assim, como excepcional, por dar origem à cedência absoluta do principio da força do caso julgado — e da segurança jurídica — face à efectividade do Direito da UE (133). O que é único nesse caso é o facto de a decisão judicial consolidada, para além de ser posterior ao acto da UE que viola, por em causa a repartição de competências entre os Estados-Membros e a UE em matéria de auxílios de Estado. Nesta matéria, o TJ tem sido mais restritivo relativamente ao princípio da segurança jurídica, com o objectivo de garantir o primado do Direito da UE e o efectivo funcionamento do mercado comum — que pressupõe a livre concorrência e o consequente controlo dos auxílios de Estado. Assim, o ac. Lucchini será, provavelmente, um caso único de afirmação do “império” do Direito da UE e de destruição total dos efeitos de caso julgado.

Cfr. ac. Lucchini, n.º 52 e 62-63, e também Fallimento Olimpiclub, n.º 25. Cfr. ac. de 22/12/2010, Comissão c. Eslováquia [Frucona], Proc. n.º C-507/08, Col. 0. (132) No entanto, a Eslováquia foi condenada por incumprimento — não por causa da decisão judicial, mas por não ter fornecido elementos que demonstrassem que as autoridades utilizaram todos os meios colocados à sua disposição para recuperar o auxílio — nomeadamente a possibilidade de recurso judicial —, no prazo fixado. Cfr. Ac. Comissão c. Eslováquia [Frucona], n.os 61-65. (133) Cfr. Conclusões do AG Geelhoed, de 14/9/2006, Lucchini, Proc. n.º C-119/05, Col. I-06199, n.º 16, e as Conclusões do AG Cruz Villalón, Comissão c. Eslováquia [Frucona], n.º 48. (130) (131)

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C) CONCLUSÕES 40. Finda a presente investigação podemos concluir que existe uma progressiva “erosão” do princípio da segurança jurídica, nas vertentes de caso decidido e de caso julgado, no âmbito da aplicação do Direito da UE. De facto, apesar de o TJ invariavelmente proclamar estes princípios como integrantes do Direito da UE e ressalvar a sua importância, muitas das vezes parte dessa proclamação para estabelecer limites, excepções e derrogações aos mesmos. Assim, o acto administrativo desconforme com o Direito da UE consolidado pelo decurso do tempo poderá vir a ser posto em causa posteriormente — na medida, por exemplo, em que o prazo pode ser considerado não razoável e violador do princípio da efectividade, ou que, em matéria de auxílios de Estado, se considere que não existe confiança legitima a proteger com a sua consolidação. Mesmo o acto desconforme consolidado por decisão judicial transitada em julgado que estabeleça a sua legalidade não se encontra a salvo. Pode ser posto em causa no âmbito da jurisprudência Kühne & Heitz, por exemplo. Da mesma forma, também a decisão judicial transitada em julgado desconforme com o Direito da UE não se pode considerar consolidada. Pode ser objecto de recurso extraordinário de revista (por via das regras do direito nacional, do princípio da equivalência ou da jurisprudência Kapferer), ou podem os seus efeitos dever ser eliminados por via de responsabilidade civil extra-contratual do Estado ou da sua condenação por incumprimento do Direito da UE. A “erosão” verificada, à semelhança do fenómeno geológico, não é uniforme — desgastando mais o valor do princípio da segurança jurídica em determinadas matérias do que em outras — mas é inegável. Nestes termos, a proclamação do princípio da segurança como princípio da UE parece ser, cada vez mais, apenas isso, uma proclamação, quando no outro prato da balança se encontram princípios como o do primado ou da efectividade do Direito da UE.

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