A Errática tikmũ\'ũn_maxakali: imagens da Guerra contra o Estado

July 26, 2017 | Autor: Roberto Romero | Categoria: Amerindian Studies, Etnologia, Etnologia Indígena
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO (UFRJ) Programa de Pós-graduação em Antropologia Social (PPGAS) Museu Nacional

A Errática tikmũ’ũn_maxakali: imagens da Guerra contra o Estado

Roberto Romero Ribeiro Júnior

Rio de Janeiro 2015

 

 

 

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO (UFRJ) Programa de Pós-graduação em Antropologia Social (PPGAS) Museu Nacional

A Errática tikmũ’ũn_maxakali: imagens da Guerra contra o Estado

Dissertação de mestrado apresentada ao PPGAS, Museu Nacional, UFRJ como pré-requisito para obtenção do título de mestre em Antropologia Social. Autor: Roberto Romero Ribeiro Júnior Orientador: Eduardo Viveiros de Castro

Rio de Janeiro 2015

 

 

 

A Errática tikmũ’ũn_maxakali: imagens da Guerra contra o Estado. Roberto Romero Ribeiro Júnior

Dissertação submetida ao corpo docente do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (PPGAS/MN) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de mestre.

Aprovada por:

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Prof. Dr. Eduardo B. Viveiros de Castro (orientador)

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Profa. Dra. Luiza Elvira Belaunde Olschewski

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Profa. Dra. Rosângela Pereira de Tugny

Rio de Janeiro, fevereiro de 2015.

 

 

 

Ficha catalográfica

Romero, Roberto. A Errática tikmũ’ũn_maxakali: imagens da Guerra contra o Estado / Roberto Romero Ribeiro Júnior – Rio de Janeiro: UFRJ/PPGAS-MN, 2015. Orientador: Eduardo B. Viveiros de Castro Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro/Museu Nacional/ Programa de Pós-graduação em Antropologia Social. 2015. 1. Antropologia 2. Etnologia indígena 3. Tikmũ’ũn/Maxakali 4. Botocudo 5. Guerra indígena.   I. Viveiros de Castro, Eduardo B. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Museu Nacional. Programa de Pós- graduação em Antropologia PPGAS. III. A Errática tikmũ’ũn_maxakali: imagens da Guerra contra o Estado

 

 

 

Ũg xapexop pu Apne Yĩxux tu à te ã xak tãmnãg Para os meus amigos em Aldeia Verde com saudades

 

 

 

 

                 

AGRADECIMENTOS

Uma pesquisa é feita de encontros. No seu percurso, encontramos autores, ideias, lugares, mestres, amigos... Encontros que não são tanto a consequência, mas a motivação mesmo daquilo o que fazemos e sem os quais a concepção e realização dos nossos projetos se revelariam mesmo impossíveis. Sou, portanto, imensamente grato pelos encontros através dos quais esta pesquisa pôde se desenvolver - ou melhor dizendo, se iniciar - ao longo dos últimos dois anos. Ao Eduardo Viveiros de Castro, agradeço o interesse, a paciência, a leitura atenciosa e todos os estímulos à realização deste trabalho. Suas ideias e textos já me orientavam há algum tempo e de minha parte é um enorme prazer poder continuar esta orientação pessoalmente. Agradeço-lhe especialmente o conselho telegráfico e crucial: “vai nessa”. No PPGAS, agradeço a Marcio Goldman, Bruna Franchetto, Aparecida Vilaça, Carlos Fausto, Luiz Fernando Dias Duarte, Adriana Vianna, Giralda Seyferth e Renata Menezes pelos cursos e reflexões que me propiciaram. À Bruna, especialmente, agradeço por me preparar, sem que eu mesmo me sentisse preparado, para ouvir e exprimir outros sons e outros (muito outros) sentidos. Aos funcionários do Programa, agradeço a gentileza e a paciência com que sempre me receberam ou procuraram. Na Biblioteca Francisca Kelly, sou extremamente grato pela atenção e por toda a presteza da equipe em assistir um aluno talvez especialmente atrapalhado com impressoras, consultas e prazos. Agradeço à CAPES e à FAPERJ, pelos dois anos de bolsa e pelo financiamento desta pesquisa.  

 

 

Ainda no PPGAS, agradeço aos meus colegas de mestrado, Everton, Bárbara, Lucas, Aline, Marcela, Morena, Gustavo, Guilherme, Vlad e Daniel. Ao Vlad, especialmente, pela imensa generosidade, organização e eficiência que facilitaram imensamente o nosso percurso acadêmico e institucional. Ao Gustavo, pela cumplicidade em etnologia e conversas sempre estimulantes. A partir do PPGAS - e especialmente de todas as “sextas na Quinta” (e madrugadas de sábado no “Bar Azul”) - tive também a imensa felicidade de conhecer e conviver com pessoas como Beatriz Matos, Edgar Bolívar, Luisa Elvira Belaunde, Bruno Marques, Indira Caballero, Oiara Bonilla, Clarisse Kubrusly, Julia Sauma, Guilherme Heurisch, Marina Vanzolini, Ana Carneiro, Virna Plastino, Leonor Oliveira, Amanda Horta, Edgar Barbosa e Ana Morim. A todos eles devo momentos memoráveis, conversas inspiradoras, orientações valiosas, alegrias variadas. À Luisa, agradeço o entusiasmo com que sempre me ouviu e o aceite em participar desta banca. À Marina, por ter me apresentado às aulas de dança da querida G’leu Cambria, que fizeram de mim mais firme e dos últimos anos mais leves. Na mudança para o Rio de Janeiro, tive a imensa sorte de encontrar Julia Bernstein, minha anfitriã (hoje irmã) carioca, companheira de todas as horas, com quem tenho tido o prazer de compartilhar as dores e as delícias dos últimos tempos. A travessia entre BH e Rio, UFMG e Museu Nacional também não teria sido possível sem o apoio constante de Maria Luísa Lucas, desde a candidatura ao Programa até a difícil reta final da dissertação. Sua presença e companhia sempre foram um alento e uma inspiração. À Karen Shiratori, agradeço a recepção atenciosa, as conversas sempre instigantes, os almoços intermináveis no centro do Rio, toda sua sensibilidade e ternura. É uma sorte ser contemporâneo seu! À Ana Fiod, pela amizade, pelo carinho e por me acompanhar até os últimos instantes da dissertação. Ao Fernando Vieira e ao Maurício Siqueira, pela parceria e companhia igualmente fundamentais nessa transição. Em Belo Horizonte, agradeço ao Paulo Maia por acompanhar este percurso com incentivo e interesse sem iguais. Não teria concluído sem o seu apoio. À Júnia Torres, pela alegria e carinho que sempre me acolhem e me animam. Ao Ruben Caixeta de Queiroz, que despertou em mim o interesse pela etnologia. Aos amigos todos da Filmes de Quintal, que de diversos modos estão na origem e no percurso deste trabalho. Ao Pedro Leal, por sempre me visitar aqui e me receber aí. Aos meus pais, Cleuza e Roberto, pelo incentivo,

 

 

 

admiração, apoio e compreensão. Ao Bernardo, pela curiosidade em ouvir as conversas do irmão. No caminho até os Tikmũ’ũn, agradeço a Renata Otto, Milene Migliano e Carolina Canguçu, que me levaram a primeira vez até Aldeia Verde e que, de perto ou de longe, têm sido importantes companheiras desde então. À Rosângela de Tugny, por toda a motivação, confiança e generosidade. Sua sensibilidade e escuta são referências constantes para mim e espero que estejam de algum modo refletidas nesse trabalho. Agradeço-lhe ainda a valiosa participação nesta banca examinadora. À Marina Guimarães Vieira, sou grato pelo apoio, pelo interesse e por não medir esforços para colaborar com esta pesquisa. Em Teófilo Otoni, não tenho palavras para agradecer à Íris Rocha, cuja dedicação cotidiana aos Tikmũ’ũn é o motivo da minha maior admiração. Aos demais funcionários da Funai e Sesai, por facilitarem meu trabalho e especialmente meus deslocamentos. Sou ainda grato aos colegas Ricardo Jamal, Ana Estrela, Bruno Guanambi e Leonardo Pires Rosse pelos dias mais que agradáveis que passei em sua companhia no Pradinho. Por fim, porque mais importante, agradeço aos Tikmũ’ũn, por compartilharem comigo suas vidas, seus cantos, suas histórias. À Sueli e ao Isael, pela generosidade e paciência com que me receberam em sua casa e por todos os cuidados que a mim dispensaram. À mãy Maysa, pela acolhida sempre afetuosa e por me fazer sentir em casa. À xukux Noêmia, por me receber em sua aldeia. À xukux Delcida, por me ensinar as histórias dos Mõnãyxop. À Jupira e ao Zezão, por cuidarem de mim na aldeia e na mata. Aos amigos Voninho, Julinha, Elisângela, Paulinho, Elizabeth, Gilmar, Nestor, Sulamita, Tâmia, Bravinho, Rogério, Alexandre, Ian, Ronaldinho, Mudão, Zé Leão, Cassiano e Sessiano pela companhia sempre alegre. Aos professores Rominho e Pinheiro Maxakali, pela ajuda constante. No Pradinho, agradeço a recepção de Guigui, Marquinhos, Manuel Damázio, Marilton, Damazinho, Pequi e Toninho Maxakali. Aos pajés Mamey, Totó e Gustavo, por me receberem em seu kuxex e me ensinarem a cantar, comer e dançar com os Yãmiyxop.

           

 

 

         

Resumo: Até meados do século XIX, as extensas e densas matas dos Vales do Mucuri e Rio Doce permaneceram relativamente impenetráveis aos invasores portugueses. Os motivos eram vários, desde uma certo déficit demográfico inicial, passando pela difícil adaptação dos colonos aos revezes da vida tropical, esbarrando até mesmo num certo interesse político da metrópole em manter aquela zona como escudo geográfico contra as temidas invasões estrangeiras. Mas nenhum deles talvez se equipare ao verdadeiro “terror” que inspiravam aos colonos o vasto contingente populacional indígena que habitava desde há muitos séculos a região e que se tornaria o principal “dificultador” para a implantação da empresa colonial. A partir de uma coleção de relatos históricos de viajantes e administradores regionais e instigado por uma breve experiência etnográfica entre os Tikmũ’ũn (Maxakali) e por uma série de suas narrativas, o presente trabalho revisita aquela paisagem regional, articulando os temas da guerra indígena e da guerra contra os indígenas que ali tomaram lugar. Movimentos que, por sua vez, conduzem a reflexões em torno das relações entre os índios e seus outros (os brancos, inclusive) e das metamorfoses rituais tikmũ’ũn.  

             

 

 

 

             

Abstract: Until the midst of the 19th century, the extended and dense forests of the Mucuri and Rio Doce Valleys were kept relatively impenetrable to the Portuguese invaders. The reasons were many: starting with an initial demographic deficit, including the settlers’ difficult adaptation to the life in the tropics, and also a certain political interest in keeping that zone as a geographic barrier against the feared invasions of foreigner countries. But none of these are compared to the real “terror” inspired to the invaders by the vast contingent of indigenous people that had been living in that forest for centuries and that would turn to be the main obstacle to the settling of the colonial enterprise. Through a collection of historical records written by travellers and regional administrators and instigated by a brief ethnographic experience among the Tikmũ’ũn (Maxakali) and a series of their narratives, the present work revisits that regional landscape, articulating the themes of the indigenous war and of the war against the indigenous that took place there. Movements that leads to some thoughts on the relations between the Indians and their others (white people included) and their ritual metamorphosis.

             

 

 

 

                makayok xop pu com muita flecha xanet nãmi todo pintado ã te mõ ĩy mĩy eu vou matar tapu’ux ãpot hã preparando para o inimigo hax ã te mõ ĩy mĩy eu vou matar tapu’ux o inimigo ã te mõ ĩy mĩy eu vou matar tapu’ux o inimigo makayok xop hã com muita flecha tapu’ux xop pu xanet nami todo pintado para os inimigos ya ha i i i kõnũg | canto do putuxop (papagaio-espírito)  

 

 

 

 

 

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

13

CAPÍTULO 01: O ESTADO DE GUERRA

14

Entre-guerras

23

Os Tikmũ’ũn atacados

31

O imperativo da vingança

39

Controvérsias canibais

42  

CAPÍTULO 02: A GUERRA DE ESTADO

51

Da guerra anti-indígena

51

A conversão à lavoura

65

Conversão e reversão

69

CAPÍTULO 03: OUTROS, ENTRE OUTROS

81

Yãmĩyxop mutix | Entre Yãmĩyxop

81

O encontro inesperado com o diverso

89

Cantos-movimento

95

Relações perigosas

98

Os brancos canibais

103

CONSIDERAÇÕES FINAIS

112

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

116

 

 

 

 

 

 

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INTRODUÇÃO

“Errantes”, “vadios”, “vagabundos”, “corredores”, “índios do corso”, assim viajantes, naturalistas, missionários, comandantes, chefes de índios e administradores em geral costumaram caracterizar os povos que habitavam as extensas faixas de mata entre os Vales do Rio Doce e Mucuri, sempre com imenso desprezo por seu nomadismo, pela impermanência dos seus assentamentos, pela fragilidade das suas habitações, por seu gosto inveterado pela caça, pela pesca e pela vida na mata... Desprezo que, por sua vez, não deixava de ser revelador de um certo apego destes mesmos agentes por suas formas de vida sedentárias, pela rigidez e perenidade de suas edificações, pelas formas centralizadas de organização política, pelas práticas agrícolas e pastoris. Por muito tempo, é verdade, contrastes

como

esses

fomentaram

imagens

antropológicas

assimétricas

e

hierarquicamente ordenadas, de modo que os valores de uns (dos europeus) fossem projetados enquanto valores últimos dos outros (dos indígenas), isto é, ideais aos quais todos estes povos deveriam naturalmente aspirar ou ascender. O esquema é o evolucionismo clássico: a sociedade europeia como destino inexorável, o colonialismo como catalisador sociológico universal. Tudo o que é Outro, assim, não passa de uma forma “inferior”, “primitiva”, “arcaica” do Eu e doravante deve ser dominado, convertido, civilizado, assimilado, incluído... Fixação narcísica que por toda parte revelou-se uma fervorosa pulsão messiânica.

 

 

 

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Poucos autores combateram de modo tão contundente esses pressupostos quanto Pierre Clastres. Em A Sociedade contra o Estado (1974), o etnólogo criticava justamente toda tendência a encarar as “sociedades primitivas” como versões pálidas ou meros negativos das modernas sociedades ocidentais, rejeitando os motivos da falta e da escassez – sociedades “sem Estado”, “sem escrita”, “sem história” - como evidências teóricodescritivas. Rejeição que não deveria implicar, contudo, a dissolução das diferenças entre os diversos coletivos humanos, o impulso inverso e simétrico de apontar na vida dos outros a “lei”, a “ordem”, a “história”, como se a alternativa à concepção da diferença como inferioridade fosse a sua redução à identidade. Por isso, na “revolução copernicana” proposta por Clastres, o contraponto teórico e político ao “sem” não é o “com”, mas o “contra”. Passagem da “ausência” à “agência”, a positividade que o autor reivindicava na abordagem das instituições indígenas não se contentava, assim, em indicar o mesmo no outro – esta “outra face do etnocentrismo” – mas revelava-se, isto sim, um esforço de encarar os outros nos seus próprios termos. Um esforço semelhante é perseguido no artigo que dá título à sua segunda coletânea de ensaios, Arqueologia da violência (1977). Incomodado por uma certa omissão etnológica quanto à centralidade e universalidade da guerra e da violência entre as mais diversas sociedades primitivas ou por uma tendência a igualmente apercebê-las de um ponto de vista estritamente negativo, Clastres provocativamente afirmava: “as sociedades primitivas são sociedades violentas, seu ser social é um ser-para-a-guerra” (2011 [1977]: 217). A guerra era assim feita uma “estrutura”, uma “lógica”, um “modo de existência” ou de “funcionamento” dessas sociedades e não o sinal de sua ruína moral, econômica ou sociológica. Mas neste ensaio, ainda, as sociedades “para a guerra” encontravam as sociedades “contra o Estado”; estes eram mesmo dois movimentos indissociáveis na medida em que o efeito político da guerra era a dispersão e a fragmentação, a atualização permanente de uma “lógica centrífuga” que impedia justamente a unificação centralizadora, a exteriorização do poder político enquanto esfera autônoma, a captura do múltiplo pelo Um - em outras palavras, a irrupção do Estado. Por isso, concluía Clastres, “a sociedade primitiva é sociedade contra o Estado na medida em que é sociedade-para-aguerra.” (2011 [1977]: 250, grifo meu). Guerra e Estado são assim como duas forças antípodas: a primeira agindo pela dispersão, pela fragmentação, pela “multiplicação do múltiplo”; a segunda pela concentração, pela unificação e centralização. Para uma tal

 

 

 

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“relação de exclusão” já o havia atentado Hobbes ao propor que o “Estado é contra a guerra”. O que Clastres destacava nas últimas linhas do seu ensaio era que a proposição inversa também era verdadeira: “Que nos diz” – indagava – “a sociedade primitiva como espaço sociológico da guerra permanente? Ela repete, invertendo-o, o discurso de Hobbes, ela proclama que a máquina de dispersão funciona contra a máquina de unificação, ela nos diz que a guerra é contra o Estado.” (2011 [1977]: 250). Esta não é, com efeito, uma introdução à obra de Pierre Clastres. Mas este brevíssimo retorno me pareceu importante à guisa de introdução a este trabalho. Não porque ele consista exatamente numa releitura das teorias clastreanas (uma tal avaliação dependerá naturalmente do que se entenda por “releitura”), mas porque todo seu desenvolvimento é atravessado, por assim dizer, por preocupações clastreanas. Preocupações que orientam desde a sua eleição temática – a guerra e o nomadismo como fios condutores ou pontos de partida do percurso aqui proposto – como também uma manifesta atitude “epistemopolítica” interessada sobretudo nas consequências que aquela “revolução copernicana” (talvez já se possa dizer “clastreana”) instaurava não somente para uma antropologia “da” política, mas especialmente para uma política da antropologia, isto é, para a “compreensão de que qualquer antropologia é política” (Lima e Goldman, 2012 [2003]: 24). A recusa do “sem” em favor do “contra” era, desse modo, uma recusa igualmente em abordar as sociedades primitivas desde um ponto de vista totalmente exterior a elas - “sempre com referência ao nosso próprio mundo” (Clastres, 2012 [1977]: 202); um ponto de vista eminentemente “de Estado”. É uma semelhante recusa que me parece em questão na “rotação de perspectiva” (a expressão é de Florestan Fernandes) que Viveiros de Castro (1999) reivindicava como opção necessária rumo a uma antropologia na qual as sociedades indígenas não fossem o termo englobado pelos processos homogeneizantes postos em marcha pelos avanços do capitalismo global, do Sistema Mundial, dos Estados Nacionais ou das “sociedades envolventes”, mas antes o termo englobante, isto é, a perspectiva na qual a antropologia deveria forçosamente se fixar se almejasse se aproximar destas sociedades a partir das relações que as constituem e que só podem, por sua vez, ser constituídas por elas (Viveiros de Castro, 1999: 120). “A alternativa é clara”, distinguia então o autor, “ou se tomam os povos indígenas como criaturas do olhar objetivante do Estado Nacional, duplicando-se na

 

 

 

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teoria a assimetria entre os dois pólos; ou se busca determinar a atividade propriamente criadora desses povos na constituição do ‘mundo dos brancos’ como um dos componentes do seu mundo vivido (...)” (1999: 115; grifo meu). Trata-se, com efeito, de duas interpretações conflitantes e que, em termos mais familiares, poderiam ser assim resumidas: ou bem compreendemos os coletivos indígenas enquanto parte do Brasil (como naquela expressão “Índios do Brasil”), ou bem o “Brasil” enquanto uma “circunstância” ou “um dos componentes” dos mundos vividos pelos indígenas aqui situados (“Índios no Brasil”). Entre este “do” e este “no” há, portanto, uma diferença radical. Diferença que me remete justamente àquela inversão de perspectiva que a passagem do “sem” para o “contra” Estado colocava em causa. A questão, em ambos os casos, parece ser justamente a de escolher de que lado se está ou, como afirmou o mesmo Viveiros de Castro, “quem se vai trair” (2002: 15). O presente trabalho consiste no esforço de perseguir uma semelhante inversão tendo em vista uma paisagem histórica e etnográfica em particular: aquela dos povos indígenas que no momento da invasão portuguesa encontravam-se habitando a vasta região de floresta atlântica que se estendia entre os atuais estados de Minas Gerais, Espírito Santo e o sul da Bahia, predominantemente vinculados às famílias Botocudo e Maxakali, do tronco linguístico Macro-Jê. Deve-se notar que essa paisagem - ou, para usar uma expressão antiga, “área cultural” - não gozou de grande importância ou interesse entre os estudos etnológicos. A relativa escassez de fontes históricas (“relativa”, sobretudo, se comparada à vasta literatura descritiva disponível sobre os antigos tupi litorâneos), além da dizimação quase total daqueles povos antes das primeiras décadas do século XX talvez tenham se combinado para justificar um tal “desinteresse”. Além disso, o caráter algo dispersos dos relatos dos cronistas - a maioria deles naturalistas que percorreram a região durante breves viagens ao longo do século XIX - não pareceram suficientes para fomentar reconstituições etnológicas de maior fôlego acerca destes povos - aos moldes, por exemplo, de trabalhos como aqueles de Métraux (1979 [1928]), Fernandes (1989 [1948],  2006 [1948]), Clastres (1975), Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro (1985), Viveiros de Castro (1986, 2002a) e, mais recentemente, Sztutman (2012), a partir do material tupinambá.  

 

 

 

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Já, quando a partir de meados do século XX, os etnógrafos (não muitos, é verdade) visitaram os índios da região, voltaram suas atenções para essas fontes tendo em vista sobretudo uma reconstituição cronológica do contato, interessada no mais das vezes na trajetória histórica de grupos específicos (quando e onde foram vistos pela primeira e/ou última vez). Os verbetes sobre os povos Pataxó, Malali, Maxakali e Botocudo escritos por Nimuendaju e Métraux e publicados no Handbook of South American Indians (1946) ilustram bem essa preocupação. Por sua vez, os trabalhos publicados posteriormente - a maioria a partir da década de 1970 - costumaram usar estes verbetes como único ponto de partida, sem almejar o cotejo das fontes históricas e, sobretudo, sem se deter especialmente no quadro das relações mantidas, no passado, entre aqueles diversos povos. Assim procederam seja porque estavam mais interessados no histórico do contato entre índios e brancos (ver, nesse sentido, Rubinger, 1963, 1980; Marcato, 1980 ou Amorim, 1980 para os Maxakali) ou ainda numa caracterização de cunho mais estritamente etnográfico (como em Nascimento, 1984, Popovich, 1980, 1988; Álvares, 1992 ou Vieira, 2006 também entre os Maxakali). Não pretendo, evidentemente, desconsiderar as contribuições que ambas essas ênfases aportaram à etnologia da região, mas apenas sublinhar que como seu efeito o interesse por sua “história indígena” (Viveiros de Castro, 1993) ficou, me parece, um tanto relegado às pesquisas historiográficas, que, por seu turno, detiveram-se mais especialmente no processo de colonização daqueles “sertões” ou numa certa “história do indigenismo” local (Paraíso, 1998; Mattos, 2002)1. Influenciado por essas impressões gerais, este trabalho consiste num experimento em outra direção. Tratou-se, aqui, de revisitar os principais relatos e documentos históricos disponíveis sobre a região, colocando-os em relação tanto com algumas preocupações teóricas/etnológicas atuais, quanto com a etnografia dos índios Tikmũ’ũn, mais conhecidos como Maxakali. Ao longo do texto, portanto, tais movimentos se combinam e, por vezes, creio, se confundem, no esforço deliberado de evitar que um deles pudesse predominar ou englobar os demais redundando, assim, ou numa revisão bibliográfica/histórica que ignorasse a etnografia ou numa espécie de “linha do tempo” que visasse apenas situar os Tikmũ’ũn no seu interior. Desse modo, a estrutura perseguida ao longo deste texto reflete a                                                                                                                 1

Estou a fazer, naturalmente, um sobrevoo bibliográfico. Para uma apresentação mais detalhada dessas fontes, ver Vieira (2006). Entre os trabalhos historiográficos, de fato se destacam as teses de Maria Hilda Paraíso (1998) e Izabel Missagia Mattos (2002), mas há diferenças importantes entre ambos. Este último, vinculado à tradição de pesquisas em “etno-história”, representa um esforço considerável de aproximação do “ponto de vista” indígena sobre a colonização e foi uma referência fundamental para o presente trabalho.

 

 

 

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breve trajetória da própria pesquisa que alternou-se entre um período de campo entre os Tikmũ’ũn, uma certa imersão na literatura histórica e etnológica das regiões dos Vales do Rio Doce e Mucuri, além dos cursos que pude frequentar no PPGAS/Museu Nacional. Permitam-me então retraçar rapidamente esta trajetória antes que eu passe a uma apresentação mais detalhada do texto que se segue. *** Ingressei no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional em 2013 sem uma ideia prévia do projeto de pesquisa que iria então desenvolver. Várias ideias e destinos chegaram a me ocorrer, desde um estudo bibliográfico em torno dos usos do tabaco na América Indígena, passando por uma etnografia de uma currutela de garimpo no sudeste do Pará e ainda uma pesquisa sobre o avanço das hidrelétricas na Amazônia, a partir de uma comunidade indígena no Rio Tapajós. Por razões diversas, nenhum destes planos foram muito adiante e ao cabo do primeiro ano de mestrado o meu projeto era apenas um: passar um tempo (isto é, quanto tempo eu pudesse) em campo. Eu ansiava então pela oportunidade, mesmo que breve, de uma experiência de “imersão” etnográfica; algo que, de alguma maneira, pudesse me tirar do lugar... Eu havia, durante minha graduação na Universidade Federal de Minas Gerais, tido a oportunidade de conhecer os Tikmũ’ũn, durante a realização de uma oficina de vídeo em Aldeia Verde, em cuja equipe a antropóloga Renata Otto Diniz havia gentilmente aceitado me incorporar. Entusiasmado com a crescente produção audiovisual indígena, da qual eu me aproximava a partir das inspiradoras aulas de Cinema e Antropologia do professor Ruben Caixeta e do meu envolvimento com o Festival do Filme Documentário e Etnográfico - o forumdoc.bh – eu me encontrava então interessado em acompanhar uma oficina “na prática” e “nas aldeias”, a partir da qual eu pudesse observar os usos do vídeo entre os indígenas, os problemas e as soluções que um tal projeto suscitariam entre eles e entre nós, o que optariam por filmar e de que forma, como assistiriam a essas imagens e as fariam circular... A partir deste primeiro encontro, escrevi meu trabalho de conclusão de curso, O mundo como olhar: uma experiência audiovisual entre os Tikmũ’ũn_Maxakali (2012). Esta experiência foi então o mote para que Eduardo Viveiros de Castro me encorajasse afinal a voltar aos Tikmũ’ũn no mestrado e dar início entre eles a um projeto de longa duração, no âmbito do qual minha dissertação pudesse ser apenas um primeiro

 

 

 

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ensaio. O apoio de Rosângela de Tugny foi igualmente fundamental nesta decisão. Assim, em Janeiro de 2014 eu partia para o Vale do Mucuri por um período, à princípio, indeterminado. Os Tikmũ’ũn habitam atualmente três terras indígenas, situadas na região nordeste do estado de Minas Gerais. Entre os municípios de Santa Helena de Minas e Batinga, na fronteira com o estado da Bahia, está a TI Maxakali, onde cerca de 1.500 pessoas vivem ao longo de 5.306 hectares. No município de Teófilo Otoni, cerca de 70 pessoas vivem hoje na Reserva Cachoeirinha/Mundo Verde. Próximo dali, no município de Ladainha, está a Reserva Aldeia Verde, onde vivem aproximadamente 300 pessoas numa terra de 523 hectares. Apesar da curiosidade em conhecer as demais aldeias durante o período em que estivesse em campo, me encontrava então de fato mais inclinado a permanecer por um tempo maior numa delas, a partir da qual eu pudesse começar a me situar. Minha experiência anterior em Aldeia Verde e a acolhida calorosa do casal de professores Isael e Sueli Maxakali foram dois fatores decisivos para que eu decidisse lá me estabelecer. A visita de um pesquisador, especialmente nesta aldeia, estava longe de ser uma novidade. Nos últimos anos, os Tikmũ’ũn têm se engajado numa série de projetos associados desde a políticas educacionais do governo, à formação de professores indígenas nos cursos de “Formação Intercultural” da UFMG, ou ainda à realização de cartilhas, livros, filmes e exposições, dentre as quais se destaca a importante Imagem-corpo-verdade: trânsito de saberes maxakali, coordenada por Rosângela de Tugny entre 2005 e 2009. Com uma equipe que envolveu professores indígenas, linguistas, etnomusicólogos, antropólogos e cineastas, o projeto influenciou direta ou indiretamente uma série de pesquisadores que nos últimos anos contribuíram para um verdadeiro salto qualitativo nas pesquisas entre os Tikmũ’ũn, apoiado num trabalho minucioso de tradução e análise de alguns dos seus repertórios de cantos e por uma ênfase especial na relação entre os humanos e os espíritos, os Yãmiyxop (ver, nesse sentido, Alvarenga, 2007; Rosse, 2007, 2011, 2013; Campelo, 2009, Tugny, 2009a, 2009b, 2011a, Jamal, 2012). Logo que cheguei, portanto, em Aldeia Verde, ainda um tanto desajeitado e sem saber muito bem por onde começar, um amigo me interpelou: você veio passear ou trabalhar? E quando disse que tinha vindo à trabalho, apressou-se em convocar outros três homens e combinar um horário comigo na escola, onde eu deveria gravar as histórias que desejasse ouvir. Registrar cantos e histórias tornouse, assim, a minha primeira e principal atividade em campo.

 

 

 

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Mas se eu não tinha de fato nenhum projeto específico em mente, além do de permanecer um tempo lá, é verdade que eu fazia uma certa ideia do que eu não pretenderia fazer. Por um misto de incompetência, limitações de tempo e recurso e o desejo de me enveredar por algum tema menos enfatizado pelos trabalhos mais recentes, decidi não concentrar meu foco na descrição de algum ritual específico. Decidi, então, aguardar que ao longo da estadia em campo algo me chamasse a atenção. Nesse meio tempo, acompanhava os homens em suas atividades cotidianas, em suas excursões pelas (parcas) matas nos arredores da aldeia, em suas expedições (frequentemente frustradas) de caça e pesca e nos rituais praticamente diários, aos quais os Tikmũ’ũn em Aldeia Verde se dedicam com um ânimo verdadeiramente incansável. O pajé Mamey Maxakali assumiu a tarefa de me ensinar a língua, os cantos e as histórias dos Yãmĩyxop. Todos os dias, pela manhã, ele me esperava na casa de Sueli e Isael, onde fiquei todo o tempo hospedado, e num pequeno caderno pautado listava o nome de uma série de animais, que paciente e jocosamente me ajudava a memorizar. Com igual paciência e enorme experiência, Sueli e Isael me ajudavam com a tradução das histórias e cantos. Já não há, praticamente, animais nas pequenas porções de terra reservadas hoje aos Tikmũ’ũn. Não obstante, sem aprender-lhes os nomes ou alguns dos seus cantos eu certamente teria tido muito pouco o que conversar com eles. Muito pouco, pelo menos, que lhes interessasse. Desse modo, prolonguei minha estadia em Aldeia Verde até maio de 2014, quando retornei ao Rio com um punhado de anotações, algumas traduções e umas oitenta horas de áudio registradas. A convivência de quatro meses com os Tikmũ’ũn foi de um enorme impacto para mim. Não regressei muito certo quanto ao que iria desenvolver, mas várias ideias então me ocorriam e tudo o que se relacionava a eles e à etnologia em geral ganhava, aos meus olhos, um renovado interesse. Foi com este espírito, portanto, que passei a me debruçar sobre a literatura histórica e etnográfica da região, numa leitura que se revelava tanto mais estimulante porque especialmente motivada por tudo o que eu havia vivido e aprendido com eles. Muito cedo, porém, eu percebia que não seria o caso de procurar naquelas fontes simplesmente as continuidades históricas do “povo” estudado ou seu correlato teórico, suas “rupturas”. Naquelas páginas, eu me deparava, antes, com uma variedade de eventos, comentários e descrições a partir dos quais me parecia possível suscitar certos “temas”, dentre os quais a guerra e o nomadismo indígenas aos poucos se destacavam como contrapontos decisivos ao messianismo civilizatório oitocentista do qual a crônica da

 

 

 

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região é uma fiel expressão. Além disso, as importantes ressonâncias que estes temas encontravam na etnografia tikmũ’ũn criavam as condições para que eu intentasse perseguir na (re)leitura das fontes aquela “rotação de perspectiva” a que me referia acima. O experimento seria assim, para usar uma formulação de Sztutman, o de “(...) cruzar a história produzida pelos historiadores, com as concepções que os próprios indígenas possuem de sua ação – ou seja, cruzar a ‘história dos historiadores’ com os termos da outra história.” (2012: 141). Mas, o que me parece e o que certamente mais me estimulava nesta tentativa não era tão somente lançar mão destes cruzamentos enquanto uma combinação metodológica que pudesse com maior rigor iluminar o passado da região. Em outras palavras, não seria suficiente ler os cronistas esforçando-me apenas em “purificar” o seu discurso, submetendo-o ao crivo da etnografia. Ainda que desejável, este seria como que um efeito do trabalho. Mas seria preciso, além disso, que a leitura se fizesse contra os cronistas e, em certa medida, “contra a História”. Contra “a convicção complementar de que a história tem um sentido único, de que toda sociedade está condenada a inscrever-se nessa história e a percorrer as suas etapas (...)” (Clastres, 2012 [1974]: 202). Nesta “contra-leitura”, portanto, o “conteúdo ideológico” dos discursos dos cronistas não constituía nem tanto aquilo de que deveria a todo custo conseguir me livrar nem tampouco o foco principal da análise (uma “sociologia dos viajantes” ou algo do tipo). Tratava-se, antes, de perseguir nos discursos dos cronistas as possibilidades mesmas de invertê-los. Daí o interesse todo especial por tudo o que desprezavam, temiam ou que sobremaneira os escandalizava no convívio com os índios; por tudo aquilo, enfim, que os incomodava – dos mosquitos aos motins. Daí, igualmente, a opção por conduzir as reflexões aqui apresentadas a partir da guerra e do nomadismo, este par que achei apropriado chamar de uma “Errática”, isto é, uma “ciência do vestígio errático” como definiu Oswald de Andrade em A Crise da Filosofia Messiânica (1950). A expressão é aqui, com efeito, empregada um tanto largamente e creio que esteja melhor exemplificada do que definida ao longo do trabalho. Ela aparece, a meu ver, no movimento incessante destes povos pela mata, na temporalidade própria da vingança guerreira, na sua recusa obstinada em se deixarem fixar e sedentarizar, nos “percursos intensos” (Tugny, 2011a) que seus cantos dão a ver... Esta “ciência do vestígio errático” é, enfim, uma “ciência nômade” (Deleuze e Guattari, 1980).

 

 

 

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Mas passemos, finalmente, à estrutura da dissertação. No primeiro capítulo, O estado de guerra, motivado pela pregnância do tema da guerra indígena enquanto um “dificultador” da implantação da Colônia, introduzo a paisagem regional em foco e a configuração geral dos seus habitantes no momento da Invasão. Em seguida, a partir do relato de um antigo ataque botocudo a uma aldeia tikmũ’un e do cotejo da fontes históricas que escreveram sobre a região suscito alguns elementos para uma (re)caracterização da “guerra permanente” travada entre eles, movimento que introduz algumas questões cruciais desenvolvidas ao longo do trabalho, como as continuidades entre guerra, ritual, antropofagia e nomadismo. Passando da guerra indígena à guerra contra os indígenas, o segundo capítulo, A Guerra de Estado, retoma as características do avanço da colonização sobre os Vales do Mucuri e Rio Doce no século XIX, interessado sobretudo naquilo que contrariava ou impedia os planos do Império, especialmente no que dizia respeito ao projeto de “civilização” dos índios, isto é, da sua conversão em mão de obra. Por fim, o terceiro capítulo, Outros, entre outros, consiste num esforço de situar o encontro com os brancos e os problemas por ele suscitados a partir dos encontros que os Tikmũ’ũn travaram com uma multiplicidade de outros, os Yãmiyxop, e das suas concepções particulares de relação e transformação. A questão do “que significa tornar-se outro” (Vilaça, 2000) é feita ali então encontrar uma outra, “o que significa tornar-se tikmũ’ũn”?

 

 

 

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CAPÍTULO 01

O estado de guerra

Entre-guerras Até meados do século XIX, as extensas e densas matas dos Vales do Mucuri e Rio Doce permaneceram

relativamente

impenetráveis

aos

invasores

portugueses.

Houve,

naturalmente, quem se aventurasse por elas pelo menos desde as primeiras décadas após a frota de Pedro Álvares Cabral aportar nas praias de Porto Seguro, em abril de 1500. Logo nos primeiros anos da colonização, “a fama fantasiava ali imensas riquezas, terras resplandecentes de esmeraldas, rios levando diamantes, lagoas douradas.” (Timmers, 1969). Não tardou, portanto, para que as promessas de riqueza e fartura impulsionassem as primeiras expedições mata à dentro e que ali fossem abertas as rotas que permitiriam aos colonos aos poucos se estabelecerem no interior do continente, mais tarde Capitania de Minas Gerais. Se estas primeiras incursões não encontraram ali todas as pedras e preciosidades que ambicionavam, depararam-se, contudo, com um vasto contingente populacional indígena habitando desde há muitos séculos aquelas terras e que se tornaria a partir de então o principal obstáculo para os objetivos da empresa colonial.

 

 

 

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Fonte: Loukotka, 1955.

 

 

 

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A diversidade e as caracterizações destes povos vão se pintando (e se transformando) à medida em que se intensifica o contato com os invasores estrangeiros, entre os séculos XVI e XIX. A princípio generalizados enquanto Tapuias e Aimorés (como eram conhecidos os inimigos dos Tupiniquim, nos litorais sul da Bahia e Espírito Santo), aos poucos vão figurando na literatura como Kamakã-Mongoyó, Canarins, Pataxó, Malali, Maconi, Monoxó, Cumanoxó, Cutaxó, Pañame, Maxacali, Baeña, Puri, Gueren, Pojichá, Aranã, Naknenuk, Giporok, Krekmun, Poté, Krenhé, Bakuên, Urucu... As origens destas denominações são variadas: alguns povos recebem a alcunha que destinavam em seus idiomas aos seus inimigos2; outros serão chamados pelos nomes daqueles que, dentre eles, eram identificados como “líderes” ou “chefes” do “bando”; outros ainda passam a ser chamados por alguma corruptela em português de uma expressão que lhes fosse cara ou que utilizassem com frequência, quando não eram simplesmente tratados por um termo pejorativo estrangeiro, como ficaram mais conhecidos os “Botocudos”, assim chamados pelos portugueses devido ao costume que possuíam de adornar os lábios e as orelhas com botoques feitos com a madeira da Barriguda, árvore abundante na região. Logo nos primeiros anos da implantação da colônia, estes povos dariam provas de sua insatisfação e resistência ao esbulho de suas terras pelos invasores. Nas recentes capitanias de Ilhéus e Porto Seguro as notícias de ataques e revoltas indígenas eram incessantes. Um dos primeiros cronistas da região, Gabriel Soares de Sousa, assim descrevera a situação na segunda metade do século XVI: “A capitania de Porto Seguro e dos Ilheos estão destruídas e quase despovoadas com o temor destes bárbaros, cujos engenhos não lavram açúcar por lhes terem mortos todos os escravos e gente deles e a das mais fazendas, e o que escaparam de suas mãos lhe tomaram tamanho medo, que em se dizendo Aimorés despejam as fazendas, e cada um trabalha por se pôr em salvo, o que também fazem os homens brancos, dos quais têm

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Assim, “o etnônimo Naknenuk, literalmente “não da terra” (nak = terra, nuk = negação) pode estar associado ao fato histórico da fixação relativamente recente dos Botocudo naquela zona do Mucuri” e “Giporok – quase um xingamento, uma ofensa – teria o significado de ‘mau’, no sentido de ‘perverso’, sendo aplicado pelos Naknenuk aos seus sub-grupos rivais.” (Missagia de Mattos, 2002: 130). Já os Malali, Monoxó, Pataxó, Cumanoxó e Cutaxó, além da terminação comum à maioria deles, ‘xó’, que remete à partícula coletivizadora ‘xop’, recorrente nas línguas da família Maxakali, também se assemelham aos nomes de alguns grupos rituais destes últimos como Mã’ãy, Mõnãyxop, Putuxop ou Kõmãyxop, como sugeriu M. Hilda Barqueiro Paraíso (1994). Já Poté e Krekmun são provavelmente nomes de chefes indígenas, pelos quais seus grupos foram igualmente identificados.

 

 

 

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morto estes alarves de vinte e cinco anos a esta parte, que esta praga persegue estas duas capitanias, mais de trezentos homens portugueses e de três mil escravos.” (Soares de Sousa, 2010 [1587]: 75).

Os ataques prosseguiram, obstinados, nas décadas seguintes e ainda em 1673 os colonos convocavam o reforço de bandeirantes paulistas para que levassem à cabo a “guerra justa” contra os nativos, atividade regulamentada na colônia desde 1570 (Paraíso, 1992: 414). Todos os esforços da metrópole para conter os ataques e sublevações indígena da época foram, contudo, insuficientes. As Capitanias de Porto Seguro e Ilhéus faliram e a Coroa interrompeu os investimentos na área. Como resumiu o Frei Olavo Timmers, mais tarde: “(...) as correrias dos habitantes daquelas selvas, os ferozes Aimorés, atacando os poucos engenhos no litoral e destruindo afinal Porto Seguro, foram a causa de que ninguém mais se arriscava naquelas praias.” (Timmers, 1969: 4). E por ainda mais tempo não se arriscaram muito além delas. Outros fatores vieram, é claro, contribuir para este relativo “afastamento”: a descoberta das minas de ouro e diamante atraíram todas as atenções para as porções meridionais da futura Capitania, tornando os Vales do Mucuri e Rio Doce por um momento barreiras territoriais e humanas convenientes para a metrópole, que vivia sob constante ameaça de invasões estrangeiras e do contrabando de pedras preciosas. Ademais, não se dispunha àquela época de um contingente populacional expressivo capaz de se impor sobre a população indígena local e seu território já bastante hostil aos europeus. Como resumiu Teófilo Otoni sobre estas frentes pioneiras: “(...) nenhuma caravana, por mais numerosa que fosse, tinha podido sustentar-se na mata em frente dos seus habitadores; nenhuma se retirou sem pagar às flechas o seu tributo de sangue.” (Otoni, 2002 [1859]: 44). O viajante Johann Emanuel Pohl, no início do século XIX, também comentava o principal motivo para aquela contida expansão territorial: “temiam-se (...) encontrar muitas dificuldades e empecilhos por parte dos botocudos, que puniam com a morte qualquer incursão nas selvas que habitavam e consideravam como sua propriedade.” (Pohl, 1976 [1817-1821]: 343). Até o início do século XIX valeria, portanto, a observação de outro viajante e naturalista, Auguste de Saint-Hilaire, segundo o qual “dois motivos concorriam para afastar desta região aos que desejassem estabelecer-se nela: o pavor das doenças e dos botocudos.”

 

 

 

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(Saint-Hilaire, 1974 [1779-1853]: 89). Todo este pavor não impediu, contudo, que desde a recente fundação da colônia se praticassem as chamadas “caçadas” aos índios, com o objetivo de abastecer a mão-de-obra escrava na plantation canavieira e o intenso tráfico e comércio de mulheres e crianças que ali se travou durante pelos menos quatro séculos. Como comentava o engenheiro Pedro José Versiani em uma de suas cartas ao Inspetor de Terras e Colonização de Minas Gerais: “Está na memória de todos o modo bárbaro e cruel que tem sido empregado aqui em épocas bem recentes, para o extermínio da raça indígena, atraindo-se os índios exaltados a uma parte qualquer, cercados por muros ou por trincheiras, sob o pretexto de carnear um boi; e matandose sem distinção de sexo e de idade com o auxílio das armas do Governo Geral, que aqui tinha quase sempre um destacamento. Se roubavam mantimentos nas roças feitas em terras que consideravam suas, eram caçados e mortos como animais irracionais, sem que houvesse o menos vislumbre de processo.” (apud Palazzolo, 1973 [1873-1952]: 205).

Outros observadores acrescentam em detalhes as atrocidades perpetradas contra os índios e os métodos empregados por seus exterminadores: “A coisa se faz em geral como na capivara. Cerca-se a aldeia de noite – dá-se o assalto na madrugada. É de regra que o primeiro bote seja apoderarem-se os assaltantes dos arcos e flechas dos sitiados que estão amontoados no fogo que faz cada família. (...) Procede-se à matança. Separados os kurucas [crianças], e alguma índia moça mais bonita, que formam os despojos, sem misericórdia faz-se mão baixa sobre os outros, e os matadores não sentem outra emoção que não seja o do carrasco quando corre o laço no pescoço dos enforcados.” (Otoni, 2002 [1859]: 47). “As plantações de uma fazenda situada rio acima eram constantemente pilhadas pelos selvagens, até que o proprietário imaginou um meio curioso de livrar-se dos aborígenes hostis. Carregou um canhão de ferro, que havia na fazenda, com fragmentos de chumbo velho e ferro, adaptou-lhe um gatilho de espingarda, colocou-o na picada estreita por onde os selvagens costumavam vir em coluna, puseram um pedaço de pau atravessado na trilha, ligando-o ao gatilho por meio de um cordão. Os tapuias apareceram pelo crepúsculo e pisaram o pedaço de pau, como se esperava. Quando a

 

 

 

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gente da fazenda correu ao local para ver o resultado, encontraram o canhão arrebentado e trinta índios mortos e mutilados (...). Dizem que os gritos dos fugitivos ainda se ouviam a grande distância em redor.” (WiedNeuwied, 1958 [1815-1817]: 171). “(...) tudo preparado para o combate, o capitão Leonardo, prático em liquidar com os selvagens, lançou mão de estratagema de tocar um realejo, ao som do qual os botocudos foram se aproximando, desconfiados a princípio, mas por fim, sem maior receio penetrando no pátio. Nesse momento os portões foram imediatamente fechados, começando o ataque que terminou com a fuga dos bugres que deixaram numerosos cadáveres que foram cremados.” (Godofredo apud Missagia Mattos, 2002: 149).

Mas, apesar de sua supremacia bélica e afincada política de extermínio, os colonizadores não lograram sobre os índios vitória imediata. Ataques recíprocos foram registrados incessantemente entre os séculos XVI e XIX. Frequentemente, os índios liquidavam famílias inteiras de colonos que iam se assentando em suas terras, estimulados pela política de doação de sesmarias praticada pela administração colonial. Com igual ou maior frequência, saqueavam e destruíam as plantações que encontravam em seus caminhos, além de roubarem as criações, destruírem ou simplesmente abandonarem os aldeamentos nos quais soldados e missionários tentavam ardorosamente fixá-los. Além disso, os ataques dos portugueses e especialmente o sequestro de suas mulheres e crianças os enfureciam sobremaneira, instigando-lhes a raiva e a vingança, dois motores da guerra: “Embora por um colono morram dez selvagens, os índios sempre voltam, desassossegando os pobres moradores desta infeliz zona. Os índios, que não trabalham, incapazes de todo esforço que exige perseverança e paciência temem o desaparecimento da mata pelo machado e pelo fogo e portanto de seu principal alimento, a caça. (Giesbrecht apud Missagia de Mattos, 2002: 65). “A cada assalto que recebem das expedições contra eles organizadas, respondem os bugres com novos e traiçoeiros ataques, para realizá-los deixando apenas que passe algum tempo, de maneira a acharem mais desprevenidas e incautas as suas vítimas.” (Palazzolo, 1973 [1873-1952]: 229).

 

 

 

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“Quando mais tarde se soube que em alguns lugares, no rio Doce, [os Botocudo] simularam disposições pacíficas, batendo palmas, e depois mataram traiçoeiramente, com os formidáveis arcos, os portugueses que dêles se acercaram confiantes nas maneiras amigáveis, extinguiram-se todas as esperanças de descobrir sentimentos de humanidade entre esses selvagens.” (Wied-Neuwied, 1958 [1815-1817]: 153). “(...) A selvageria dos índios, excitada ainda mais pela maldade e imprudência de certos nacionais e portugueses, era causa de cruenta guerra entre as duas partes. Os índios matavam com suas terríveis flechas, viajantes e animais carregados de mercadoria; roubavam tudo; em seguida, se retiravam para o centro das matas, onde se lhes deparava a segurança de inexpugnável fortaleza natural. À vista de tão lamentáveis acontecimentos, viu-se o governo obrigado a estabelecer alguns postos militares ao longo da estrada; esta providência não deu resultado algum, pois, quando os soldados acudiam ao ponto em que se davam os cruéis assaltos dos silvícolas, estes, consumado o ato, já se haviam metido pelas suas conhecidas brenhas, onde, sem receio, zombavam de tudo e de todos” (Palazzolo, 1973 [1873-1952]: 34)

Nem é preciso dizer que muito mais sangue se derramou à “pólvora e bala” do que a flechadas em toda aquela região. Ocorre, contudo, que a “cruenta guerra” que ali se travou não se limitou a essas “duas partes”: índios, de um lado, nacionais e portugueses, do outro. Aos europeus ou “neo-brasileiros” que passaram ou viveram por ali, espantavam não somente as notícias de ataques, assaltos e revoltas desferidas pelos índios contra seus patrícios quanto a “guerra eterna” e a “inimizade” generalizada que aqueles povos cultivavam entre si: “Essas tribos, que em sua totalidade integravam a poderosa e temida nação Botocuda, viveram em contínua e fratricida guerra, que a fome ateou, obrigando-os a se disputarem pequenos territórios, onde encontrassem raízes tuberosas alimentícias, alguma caça e peixe com o que manter a própria subsistência. Resultou deste ininterrupto e sanguinolento embate entre irmãos – como era fatal – a derrota e absorção dos mais fracos pelos mais fortes.” (Palazzolo, 1973 [1873-1952]: 38-9).

 

 

 

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“Faz compaixão ver como essa gente mutuamente se extermina. Os naknenuks e aranaus, que habitavam na vertentes do Arapuca, são irreconciliáveis, e se não há no presente conflitos sanguinolentos, é porque os aranaus temem-se de vir ofender os naknenuks no centro dos seus novos aliados cristãos, e os naknenuks acham mais vantajosos arrancar puaia e plantar batatas para vender com os couros de veado em Filadélfia (...)” (Otoni, 2002 [1859]: 85). “Dos botocudos, que antes habitavam na região de Salto Grande, vimos apenas dois. A horda que aqui vivia retirou-se alguns dias antes de nossa chegada para reunir-se a outros e lutar contra uma tribo com quem estavam em guerra por causa do assassinato de parentes. Disseram-nos que não se pôde dissuadi-los de tal intento e que eles desapareceram mata adentro.” (Pohl, 1976 [1817-1821]: 352). “Os Macunis engajados como soldados, são muito úteis nas espécies de caçada que se fazem aos Botocudos, não só por causa da prática que tem das florestas, como ainda porque um ódio ilimitado os anima contra os inimigos.” (Saint-Hilaire, 1975 [1830]: 217).

É certo que a crescente ocupação dos territórios indígenas pelos invasores tenha “excitado” o ódio e portanto os conflitos entre aqueles grupos, uma vez que estes eram progressivamente reduzidos a porções cada vez menores de mata onde se refugiar. Também não pairam dúvidas de que a “situação colonial” tenha introduzido uma série de eventos, agentes e modos de relação diversas daquela que estes povos mantinham antes da catástrofe que se lhes abateu. Aqueles, por exemplo, dentre os índios e dentre os portugueses, que mais rapidamente se familiarizavam com os hábitos, e especialmente a língua, uns dos outros, tornavam-se figuras centrais nas mediações locais. Lembre-se, por exemplo, dos chamados “línguas”, como ficaram conhecidos os (em geral índios) que se especializaram no “contato” e que, muitas vezes aliados aos estrangeiros, colaboravam nas “caçadas” ou na “atração” de índios em toda a região, ou ainda nas centenas de homens indígenas feitos soldados “muito úteis” às tropas portuguesas e que às vezes chegavam a ser maioria nessas expedições. Várias partes, portanto, se envolveram em alianças e guerras (in)constantes durante todo aquele período, sob motivações diversas. Havia aqueles perseguidos há longa data pelos

 

 

 

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inimigos botocudo - os povos da família Maxakali, notadamente - que viram na aliança com os estrangeiros uma chance de defesa e, especialmente, de vingança. Com frequência, contudo, abandonavam seus novos aliados e embrenhavam-se novamente nas matas, preferindo lançarem-se na guerra a submeterem-se aos padrões de vida (isto é, de trabalho) exigidos pelos cristãos. Não raro voltavam, abatidos pela fome, doenças ou combates na floresta. Já aqueles que se recusavam mais tenazmente ao contato e à fixação nos aldeamentos, eram aos poucos perseguidos e exterminados ou buscavam refúgio nas matas progressivamente mais escassas. Mas, antes de revisitar os episódios, no século XIX, determinantes para que a maioria dos índios da região “perdessem a guerra”, gostaria de me demorar um pouco mais na caracterização da guerra indígena, isto é, em como os índios “faziam guerra”, ou o que podemos especular sobre a guerra que faziam. Pois que o idioma da relação entre índios e europeus naquele período tenha sido predominantemente o da guerra e da “predação generalizada” não diz somente da violência que marcou a tônica do contato, mas também daquilo o que caracterizava os modos de “fazer relação” dos povos que ali habitavam. Afinal, como ouviu Saint-Hilaire de um proprietário de terras da região – que obviamente ignorava a nacionalidade do hóspede – “os botocudos (...) são como os franceses, só gostam de guerra.” Os Tikmũ’ũn atacados Os Yĩmkoxeka cercaram um vale estreito onde viviam os Mõnãyxop. Pretendiam matá-los, mas ali não conseguiriam. Conversaram entre eles e decidiram: “vamos deixar para atacálos quando estiverem num lugar aberto... assim vamos matá-los”. Os Mõnãyxop foram embora e construíram aldeia noutro lugar. Antigamente, eles não moravam num lugar só não; faziam aldeias em vários lugares. Hoje, no lugar mesmo destas antigas aldeias, existem várias cidades. É assim. À noite, os Mõnãyxop decidiram que se mudariam novamente ao amanhecer. Enquanto um pajé dormia, o espírito do seu filho apareceu. Veio e bateu nos paus de madeira que fechavam a sua casa. O pajé saiu de casa e viu o filho, que lhe disse: “meu pai, se o pessoal for mudar, não vá! Yĩmkoxeka vai matar o pessoal lá!”. Assim ele ficou sabendo e o espírito do filho voltou para o céu. No dia seguinte, o pessoal se mudou. O pajé tinha arrumado tudo para partir, mas lembrou-se

 

 

 

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da fala do filho: “Ah! Ele falou pra mim! Não posso ir, estou errado!”. Desfez suas coisas e colocou de volta no lugar. O genro dele também queria partir e falou para a mulher: “você fica aqui e eu vou e qualquer coisa volto correndo pra cá”. O índio partiu, mas sua mulher saiu chorando atrás dele. O pajé, seu pai, pediu que ela ficasse: “Não vá não! Fique aqui! Deixa ele ir sozinho”. Mas ele não lhe deu ouvidos e seguiu o marido. Os Yĩmkoxeka já estavam por perto, querendo matá-los. Anoitecia e uma mulher que foi buscar água avistou os Yĩmkoxeka descendo pelo rio. Outros também vinham por baixo, cercando a aldeia onde estavam os Mõnãyxop. Quando chegou em casa, ela contou pro marido: “tem gente descendo o rio nadando”. Mas o marido não acreditou: “deve ser pato ou kuktuinmip xop (‘caboclo d’água’)”, disse. À noite, os Yĩmkoxeka já haviam rodeado a aldeia e preparavam o ataque. Um índio que acendeu um fogo e virou-se para se aquecer foi flechado nas costas e gritou. Outro índio que fazia o mesmo foi flechado e também gritou. Uma mulher bem velhinha estava em casa e gritou: “reconheçam de quem é a flecha!”. Acendeu uma tocha de fogo e saiu, mas antes que pudesse falar sua garganta foi cortada pelos Yĩmkoxeka: grr grr grr. Os Yãmĩyxop ficaram enfurecidos com as mortes dos pajés e decidiram se vingar. Pouco antes do ataque, Putuxop (papagaio-espírito) havia chegado no kuxex e saiu para matar Yĩmkoxeka. Putuxop matava e gritava: yap yap yap yap. Um papagaio (konũg) que morava na aldeia o imitava: yap yap yap yap yap. Kotkuphi (mandioca-espírito) também saiu para matar Yĩmkoxeka e gritava: aaax, aaax, aaax. E o papagaio o imitava. Os outros Yãmĩyxop - Xũ’ũy (preguiça-espírito), Yãmĩy, Xũnĩm (morcego-espírito) Ãmãxux (anta-espírito) - não tinham experiência de matança, mas Kotkuphinãg (mandioca-espírito pequeno) era experiente matador e matou os Yĩmkoxeka todos, vingando os mõnãyxop mortos. No outro dia, os Mõnãyxop se esconderam e os Yãmĩyxop partiram para o céu. Um índio corria, mas lembrou da sua mulher e voltou. Um jovem Yĩmkoxeka carregava um cachorrinho (kokexnãg) de Mõnãyxop e perguntou seu pai: “nós vamos levar?”. Ele respondeu: “pra que levar cachorro desses coisas ruins?!” – e tomando o cachorro das mãos do filho, matou-o jogando-o no chão. Um Mõnãyxop assistia tudo de longe e, com raiva, falou: “olha só como eles fazem raiva na gente! vou flechar daqui de longe! se eu acerto viadinho (mũnũy nãg) de longe, imagina esse Yĩmkoxeka!”. Atirou a flecha, mas

 

 

 

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atingiu o filho de Yĩmkoxeka. O pai ficou zangado e os Yĩmkoxeka saíram correndo, hehe hehe hehe hehe, lançando flechas em todas as direções. Uma delas acertou de raspão a testa de Mõnãyxop. Enquanto corriam, um deles olhou para o seu grupo e percebeu que eram poucos: “vamos embora! somos só um pouquinho! estamos acabando! se continuarmos vamos morrer todos!”, disse. Eles foram embora, voltaram para suas casas. Na aldeia dos Mõnãyxop, vários Yĩmkoxeka estavam caídos mortos, no chão, deitados de barriga para baixo. Os Mõnãyxop viravam um por um, com a cabeça para cima. Então cortavam a barriga deles, de onde saía mel de abelha. Acabavam com eles, como eles faziam com os Mõnãyxop. *** Foi numa de nossas conversas no kuxex, casa onde se reúnem os homens e os espíritos, que o pajé Mamey recuperou esta história, um impressionante relato da guerra que os povos da família Maxakali travaram contra seus inimigos mais próximos, os Botocudo, a quem chamam de Yĩmkoxeka (yĩmkox, orelha; xeka, grande), “Orelhudos”, também em referência aos adornos corporais que os distinguiam. Pouco posso ou pretendo especular sobre o momento histórico no qual o relato eventualmente se passou. Quando narram eventos transcorridos em tempos muito antigos, os Tikmũ’ũn geralmente se referem àqueles índios, seus antepassados, como Mõnãyxop. Diz-se hõmã...hãmhitap... para situar um evento num passado remoto, mas estes marcadores já os ouvi empregados para se referirem tanto ao “tempo do mito” quanto a algum evento que tenha se passado há não mais que uns vinte anos, como um casamento. Devo destacar, contudo, a presença do “cachorrinho” (kokex nãg), raptado pelos Yĩmkoxeka na história. Sabe-se que os índios adotaram os cachorros como animais domésticos às vezes muito antes de manterem contato intensificado com os portugueses e que se serviram (e ainda se servem) destes animais como importantes auxiliares na caça. Não por acaso, “nos seus assaltos aos destacamentos, os cães grandes eram uma das primeiras coisas que roubavam”, como observou Wied-Neuwied (1958 [1815-1817]: 305). Não fosse, portanto, um “cachorrinho”, talvez o jovem botocudo não obtivesse a mesma negativa do pai. Os Yãmĩyxop, por sua vez, são como os Tikmũ’ũn denominam uma miríade de seres ou “povos” e seus encontros quase diários com eles em suas aldeias, e que costumamos

 

 

 

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traduzir como seus “espíritos” ou “rituais”. São vários e variados e possuem cada grupo deles um vasto repertório de cantos que trouxeram a partir de diferentes encontros com os humanos, em tempos ainda remotos. Trataremos destes encontros e dessa formidável intervenção dos Yãmĩyxop na guerra no terceiro capítulo. Por ora, permitam-me concentrar nos demais aspectos do combate que esta narrativa permite entrever. Que sejam os Yĩmkoxeka aqueles a perseguirem e atacarem os Mõnãyxop do relato não parece uma observação fortuita. A crônica da região sugere mais de uma vez uma certa “supremacia” bélica dos povos Botocudo sobre os Maxakali, sugerindo inclusive que, às vésperas da invasão portuguesa, estes últimos encontravam-se duplamente acuados: pelas investidas dos Botocudo, ao sul de seus territórios, e dos Tupiniquim, que ora os expulsavam do litoral. Alguns cronistas chegam mesmo a sugerir que essas pressões teriam movido os povos da família linguística Maxakali, notadamente os Pataxó, Makoni, Malali, Monoxó, Comanoxó, além dos próprios Maxakali, a se aliarem por diversas ocasiões contra seus inimigos comuns: “Do lado da costa marítima os Botocudos vivem em guerra com diversas tribos, entre as quais destacam-se particularmente os Patachós e os Machacaris; mais para o interior, com os Panhamis e ainda com outras (...). Todos esses últimos, por serem mais fracos, reuniram-se contra os Botocudos. As próprias hordas de tapuios travam entre si rudes combates, quando acaso se encontram. Empregam nessas circunstâncias toda a sua astúcia e todo o seu tino de caçadores; (...). Ordinariamente trava-se terrível batalha, em que todas as flechas são utilizadas por ambas as partes, cabendo geralmente a vitória a quem as possua em maior número. O ataque é feito debaixo de enormes gritos e, quando os inimigos chegam-se mutuamente ao alcance das mãos, entram em ação unhas e dentes. (...) O vencedor sai ordinariamente em perseguição aos vencidos, e, pelo menos no que respeita aos Botocudos, só faz muito poucos prisioneiros.” (WiedNeuwied, 1958 [1815-1817]: 311).

Sobre a “terrível batalha” travada entre eles, podemos acrescentar alguns detalhes. Como se viu, os inimigos eram constantemente perseguidos e os índios acompanhavam as movimentações uns dos outros, em busca do melhor momento e localização para o ataque. Não raro, tais movimentações eram por si só um anúncio de guerra, pois que os limites

 

 

 

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territoriais entre os diversos grupos eram bastante nítidos para eles: “cada capitão dos Botocudos se atribui o domínio de certa extensão de florestas para aí caçar e colher frutos. Não permite que os indivíduos pertencentes a outras tribos apareçam em suas terras, e, na época da maturidade dos frutos, envia homens para os lindes, a fim de observar se não foram ultrapassadas pelos seus vizinhos.” (Saint-Hilaire, 1975 [1830]: 255); “As terras que occupão tem limites entre elles de Serras e Rios. Cada porção he pertencente a huma Horde governada por hum Chefe que a acompanha, dirige e Commanda (...) Cada Chefe faz respeitar pelos outros os seus limites: a infração causa a Guerra.” (Marlière, 1825: 231). Na história, ainda, os Yĩmkoxeka se aproximam ao anoitecer e atacam os Monãyxop desprevenidos em suas cabanas ou ao redor de seus fogos. Para se prevenirem destes ataques ou espionagens noturnas, os índios usavam amarrar um pecari ou cão nas imediações do acampamento, para que seus grunhidos e latidos denunciassem a presença dos inimigos e o mesmo usavam fazer os portugueses. Aliás, embora é certo que os índios evitassem, por motivos óbvios, os longos deslocamentos noturnos, não se pode negar que os guerreiros, ao menos, lidassem melhor com este tipo de movimentação. Assim, também os portugueses temiam ser surpreendidos durante o sono nos acampamentos de suas comitivas, e por isso mantinham-se – ou, melhor dizendo, mantinham os soldados indígenas - em constante estado de alerta: “Quando a nossa gente dançava o batuque nas noites de luar, tocando a viola (guitarra) e acompanhando sempre com palmas, estas eram repetidas pelos selvagens, no outro lado da lagoa. O ouvidor, que não perdia a ocasião de lhes tentar a amizade, fez frequentes esforços para os atrair, gritando-lhes: Schmanih (camarada! ou capitão), Nei (grande chefe!) etc. porém em vão; não obstante, os índios, que mandávamos à inspeção, notavam muitas vêzes, pelas pegadas, que os selvagens se acercavam da derrubada durante a noite, explorando todas as circunjacências do acampamento.” (Wied-Neuwied, 1958 [1815-1817]: 192).

Eu dizia que os índios eram atacados desprevenidos. Mas melhor seria dizer que eram surpreendidos, pois desprevenidos nunca pareciam estar. Os homens eram mesmo inseparáveis de seus longos arcos e flechas, que chegavam a medir dois metros de altura, e

 

 

 

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que ainda crianças recebiam de seus pais, em versões menores. Distinguiam-se flechas para caça e guerra, mas em nenhum dos casos se usava envenená-las. Wied-Neuwied distingue três tipos delas, “geralmente idênticas em todos os tapuias da costa oriental”, a saber: as flechas “propriamente de guerra”, feitas com pontas agudas de taquara; outras com pontas dentadas, feitas geralmente com a palmeira Ariri e ainda um terceiro tipo, de ponta arredondada, utilizada na caça de pequenos animais. (1958 [1815-1817]: 110). Devido ao longo comprimento, os homens usavam transportá-las nas mãos, em número médio de seis ou sete. Também lançavam mão de estrepes de taquara, que costumavam fincar no caminho dos inimigos, para perfurar-lhes os pés. Já o arco era igualmente feito com a madeira resistente e flexível da Ariri ou do Ipê, e as cordas com as fibras da embira ou do gravatá. Acrescentavam-se ainda à extremidade inferior das flechas penas de arara, mutum ou jacutinga, que lhes conferiam estabilidade e precisão no vôo. As técnicas de tiro pareciam, ademais, igualmente variadas e a extrema habilidade dos indígenas no uso de seus arcos e flechas não deixava de impressionar os europeus, que os acusavam também por isso de ardilosos e traiçoeiros em suas táticas de ataque: “Os índios preparavam e executavam as emboscadas de forma inteligente, sem que pudesse por esse modo escapar sequer um animal ou uma pessoa, logo que fosse avistado por entre a brecha. (...) Correspondente a cada uma das seteiras, ou brechas circulares, fincavam uma estaca ou forquilha, sobre a qual o índios da frente apoiava a sua flecha, o seu imediato apoiava a flecha no ombro do da frente e o terceiro no segundo, de forma que, daquele ponto, partiriam pela mesma seteira três flechas ao mesmo tempo (...).” (Palazzolo, 1973 [1873-1952]: 35) “Tem-se

visto

índios

atirarem

as

suas

flechas

quasi

que

perpendicularmente e na queda da flecha acertar em qualquer objeto de antemão. Em 50 passos, raras vezes erram o alvo, ainda que seja pequeno e vi um menino flechar uma tructa na distancia de 30 passos e isso depois de ter estado ao meu serviço durante varios mezes em que elle nunca manejou o arco porque eu lhe tinha ensinado o uso da espingarda. (...)

 

 

 

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Índios Botocudo, Rio Pancas, 1909. Fotos: Walter Garbo.

 

 

 

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Quando um índio foi flechado e a flecha ficou na ferida, como quasi sempre acontece, quebra ele a ponta e tira o cabo da ferida, torcendo-o.” (Freireyss, 1901: 244).

“Vivem estes bárbaros de saltear toda sorte de gentio que encontram e nunca se viram juntos mais de vinte até cinquenta frecheiros; (...) toda sua briga é atraiçoada, dão assaltos pelas roças e caminhos por onde andam, esperando o outro gentio e toda sorte de criatura em ciladas detrás das árvores, cada um por si, de onde não erram tiro, e todas as flechas empregam, e se lhes fazem rosto, logo fogem, cada um para sua parte. Mas como vêm a gente desmandada, fazem parada e buscam onde fiquem escondidos, até que passem os que seguem, e dão lhes nas costas, empregando suas flechas à vontade.” (Soares de Sousa, 2010 [1587]: 75).

Que os combates durassem enquanto durassem as flechas é um indicativo de que, se o número de mortos pudesse ser maior do que por vezes se estimara ou se gostaria de se estimar, não eram nem por isso comparáveis aos ataques dos portugueses em seus objetivos ou efeitos etnocidas. Por mais que o desejassem, tudo indica que muito dificilmente um grupo conseguiria “matar uma aldeia” num só combate, a menos que estivesse em número muito superior. A paridade ou superioridade numérica entre os guerreiros das duas partes era, aliás, um importante critério para decidirem um ataque, postergá-lo ou mesmo dissimulá-lo. “Breve voltaremos com mais gente”, anunciaram os índios Aranã em Itambacuri, após as mulheres que tinham vindo resgatar terem se recusado a se juntarem a eles. E, de fato, voltaram: “Dois anos, mais ou menos, se tinham passado depois das ameaças dos índios de Poaia e, como haviam prometido, voltaram em número bem maior e armados. Mas encontraram o que talvez não esperavam... Todavia cercaram a casa, ameaçadoramente... Frei Serafim tomou imediatamente as medidas necessárias; mandou ficarem de prontidão os soldados bem armados; armou também todos os camaradas índios da casa e ficou esperando os acontecimentos. Quando os Aranás se aperceberam que pela segunda vez se tinham enganado, diante daqueles homens armados e decididos à luta, mudaram de tática e, humilhados, se apresentaram a Frei Serafim, declarando que tinham vindo passear e que não tinham nenhuma intenção de brigar.” (Palazzolo, 1973 [1873-1952]: 57).

 

 

 

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Além disso, não é difícil imaginar que, uma vez percebendo sua inferioridade numérica durante um combate, os índios decidissem recuar e sumirem novamente na floresta, como fizeram os Yĩmkoxeka do relato: “vamos embora! somos só um pouquinho! estamos acabando! se continuarmos vamos morrer todos!”. E, ainda que perseguidos pelos vitoriosos, dificilmente não lograriam escapar, até porque não seria problema esperar, de uma parte e de outra, para dar sequência à vingança. E, já que voltamos ao tema, é notável que a velha que morreu nas mãos do Yĩmkoxeka logo no início do relato tenha se apressado em convocar os seus justamente a reconhecer as flechas inimigas, o que talvez indique uma preocupação fundamental para os índios: saber contra quem se vingariam. O imperativo da vingança O imperativo da vingança e a obstinação com que a tarefa era perseguida pelos índios são mesmo dos aspectos da socialidade guerreira os mais ressaltados pelos cronistas, aqui e alhures3. É curioso, aliás, que um tal sentimento tenha sido comumente atribuído a uma “natureza” antes do que a algum “costume”: “a vingança é neles como uma cousa inata”, vaticinava o Frei Ângelo de Sassoferato (apud Missagia Mattos, 2002: 404). No que Giesbrecht lhe fazia coro: “os nossos selvagens são visceralmente vingativos e perversos, guardam por muito tempo a lembrança do mal que lhes foi feito, dos companheiros mortos e juram terrível vingança aos seus perseguidores.” (apud Missagia de Mattos, 2002: 65). E os colonos logo perceberam (e sofreram) as consequências de se envolverem numa guerra de tal “natureza”: “onde escapa um bugre, testemunha do ataque à sua aldeia e da morte nele de companheiros, jaz um implacável inimigo, sedento de ódio e de vingança e à espreita de oportuna ocasião para ofender os seus perseguidores.” (Palazzolo, 1973 [18731952]: 230)4. A proeminência da vingança é tal, entre os índios, que Henri Manizer, que conviveu com os Krenak já nos idos de 1915, chega mesmo a sugerir que a obrigação de vingar seria um dos principais vínculos de parentesco, como quem diz que “parente” é

                                                                                                                3

Sobre o tema da vingança, entre os Tupinambá, especialmente, ver o artigo seminal de M. Carneiro da Cunha e E. Viveiros de Castro, “Vingança e Temporalidade: os Tupinambá” (1985). 4

Devido a constatações como essa, desde cedo os perseguidores de índios eram instruídos e incentivados pela administração colonial a não pouparem os “homens em idade de guerra” em seus ataques. Uma carta do Governador Geral do Brasil, em 1688, recomendava explicitamente a degolação de todos os homens adultos “porque poderiam vir a se rebelar no futuro”... (Perrone Moisés apud Paraíso, 1998: 68).

 

 

 

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aquele cuja morte se deve vingar: “le lien d’origine n’impose q’une obligation: c’est la coutume de venger la mort d’un parent” (1919: 263). Assim, é notável que um provável fragmento de mito contado pelos Malali a Saint-Hilaire quando questionados sobre a origem da guerra possa muito bem ser lido (ou confundido) com uma certa “origem da vingança”: “Segundo eles, os Monoxós, originariamente denominados Munuchus, começaram a guerra que desde então nunca cessou entre os Botocudos e as diversas nações de origem comum. As mulheres dos Monoxós não davam a luz senão crianças do sexo masculino. Para impedir a extinção de sua tribo, esses selvagens raptaram as mulheres dos Botocudos, e essa é a origem do ódio que desde então sempre existiu entre esses últimos e os Monoxós, Malalis, etc.” (Saint-Hilaire, 1975 [1830]: 182, grifo meu).

Muito provavelmente, os aqui “originariamente denominados “Munuchus” são os Mõnãyxop aos quais os Tikmũ’ũn se referem atualmente. Além disso, o rapto de mulheres e crianças, aí apontado como a “origem do ódio”, parece de fato uma das principais características da guerra entre os diversos grupos que ali viveram. Note-se novamente na história tikmũ’ũn que o guerreiro insiste para que sua mulher não o acompanhe, provavelmente temendo sua captura no prenunciado combate. Ainda segundo SaintHilaire, desta vez sobre os Botocudo: “para aumentar os próprios bandos os chefes raptam uns aos outros mulheres e crianças, e essa é a causa das discórdias que entre eles reinam” (Saint-Hilaire, 1975 [1830]: 257). A recorrência dos raptos e a sua importância na dinâmica guerreira parece igualmente corroborada por um certo comportamento ou atitude das mulheres, que demonstravam relativa indiferença e por vezes certa volubilidade diante da condição de “cativas”: “as mulheres a princípio soltavam grandes gritos; mas apenas caminhavam um pouco e apegavam-se aos seus condutores” (Saint-Hilaire, 1975 [1830]: 184). Isto quando não resistiam, isto sim, a serem reincorporadas pelos antigos parentes, como no episódio comentado acima, envolvendo índios do Aldeamento de Itambacuri e seus inimigos Aranã: “(...) os índios de Itambacuri tinham furtado duas mulheres aranãs. Os aranãs ficaram furiosos e vieram para vingar-se e chegaram armados,

 

 

 

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prontos a guerrear. O Frei Serafim quis impedir a guerra, chamou as duas mulheres e lhes falou que acompanhassem os da tribo para assim evitar-se a guerra, mas as duas mulheres não quiseram ouvi-lo (...).” (Licodia apud Missagia de Mattos, 2002: 194).

No relato do companheiro de Frei Serafim, o Frei Ângelo, consta elas terem dito que “somente arrastadas poderiam sair donde estavam” (Ângelo apud Palazzolo, 1973 [18731952]: 55). Se um tal comportamento se observava, especialmente no âmbito dos conflitos entre os índios, não se pode ignorar , contudo, que o que se passava nos conflitos com os brancos era de outra ordem, e que as mulheres não tardaram a perceber o destino que lhes era reservado na companhia destes: a escravidão, o abuso sexual, os castigos, a separação de seus filhos... Também por isso as mulheres ficaram conhecidas por uma recusa por vezes mais obstinada que a dos homens em deixarem seus grupos se aldearem5. E, diante da recusa, o fim que costumavam obter não era muito diferente do que Wied-Neuwied relatou num certo episódio: “no ataque dirigido a Linhares, pouco antes de minha chegada, prendeu-se uma mulher, que não queria se entregar, defendendo-se por meio de dentadas e arranhões; um soldado abriu-lhe o crânio com um golpe de facão, tão violento, que chegou a ferir a cabeça do menino que ela trazia às costas.” (1958 [1815-1817]: 312). De todo modo, tal ressalva não nos impede de notar o comportamento dos homens eventualmente rendidos ou capturados em combate. Nestes casos, o guerreiro parecia invariavelmente preferir a morte ao cativeiro: “o único sobrevivente [de um ataque de Portugueses e Maxakali a alguns Botocudo], para não se matar, foi atado a uma árvore, onde expirou, finalmente, recusando alimentação por três dias e batendo a cabeça contra o tronco.” (Moura apud Missagia de Mattos, 2002: 187). Saint-Hilaire registra semelhante atitude impávida: “quanto aos homens, se acontecia prenderem-se alguns, fechavam os olhos, negavam-se responder às perguntas que se lhes dirigia em sua própria língua, e deixavam-se matar.” (Saint-Hilaire, 1975 [1830]: 184). A captura de cativos adultos e masculinos, como já afirmei, não fora, entretanto, um traço importante ou mesmo notado no complexo guerreiro daqueles povos. O seu registro torna-se frequente, isto sim, depois do contato com os colonizadores, que estimulavam com recompensas diversas a participação dos índios na “caça” e comércio de escravos. A atitude do guerreiro botocudo,                                                                                                                 5

Sobre a influência feminina na “etnopolítica” botocudo, ver Missagia de Mattos, 2002, pp. 187-200

 

 

 

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entretanto, é especialmente sugestiva se quisermos revisitar uma indagação frequente tanto nas fontes históricas quanto no trabalho de alguns modernos historiadores: eram os botocudos antropófagos? Controvérsias canibais A aparência dos índios Botocudo despertava especial repulsa aos olhos dos europeus, como não esconde, dentre outros, o Príncipe de Wied-Neuwied: “a vista dos Botocudos causou-nos indescritível espanto. Nunca víramos antes seres tão estranhos e feios. Tinham o rosto enormemente desfigurado por grandes pedaços de pau, que atravessam no lábio inferior e nas orelhas.” (1958 [1815-1817]: 52). A esta imagem particularmente monstruosa que os colonizadores faziam deles, vinha se somar a crescente reputação de “ferozes”, “belicosos” e “indomáveis”, que em pouco tempo alçou-os a inimigos número um da colônia. Neste contexto, é difícil discernir no que se disse acerca de seus hábitos o que é fato do que é juízo. Assim, a pecha de “canibais”, frequentemente atribuída aos Botocudo, parece no mais das vezes fruto do imaginário do colonizador - para quem, no limite, todo índio o era - antes que uma prática observada entre eles. A hipótese, contudo, permanece em aberto, afinal foram em geral poucos, distantes ou muito breves os seus observadores. Um dos poucos diálogos entre indígenas registrado à época - a fala do “capitão” pojichá de nome Kan Jirun ao “língua” que tentava dissuadí-lo do combate - não deixa, por isso mesmo, de soar inquietante: “Eu não gosto dos brasileiros, eu estou muito bravo. Eles nos são hostis, tu trouxeste essa gente aqui, que nos são hostis. A gente que trouxeste vou matar como hostis a nós. Vou fazer o fogo claro e comer a carne dessa gente. Vou assar a carne dessa gente com bananas verdes. Eu vou matar essa gente. Outros brasileiros mataram meu pai, eu estou muito bravo.” (apud Missagia de Mattos, 2002: 573).

Se modo de dizer ou modo de comer, não sei. Mas se praticaram a antropofagia real, esta muito provavelmente não obteve entre eles os mesmos contornos ou a mesma centralidade encontrada, por exemplo, entre seus vizinhos e inimigos costeiros, os Tupinambá. Neste ponto, a atitude do guerreiro botocudo que, frente à captura, recusa a alimentação e prefere a morte ou mesmo a provoca, contrasta nitidamente com a postura que as fontes deram a conhecer dos cativos tupi. Não porque estes últimos rejeitassem a morte, mas porque

 

 

 

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sentiam-se de fato honrados em morrerem nas mãos de seus contrários: “embora os selvagens temam a morte natural, os prisioneiros julgam ser felizes por morrerem assim publicamente no meio de seus inimigos, não revelando nunca o mínimo pesar.” (Léry apud Fernandes, 2006: 300). Morrer com as próprias mãos seria, neste caso, senão impensável, indigno de um guerreiro. Ademais, se a receita canibal de Kan Jirun – isto é, “assar a carne dessa gente com bananas verdes” – é correta, então haveria também importantes divergências culinárias entre os canibalismos botocudo e tupinambá, pois sabe-se que o repasto canibal destes últimos era servido como “uma espécie de sopa muito rala, onde se achava diluída a níveis quase homeopáticos a carne do contrário.” (Viveiros de Castro, 2002a: 247). Se houve, entretanto, um costume este sim amplamente difundido entre os índios do Mucuri e Rio Doce, e que parece ter contribuído para alimentar as suspeitas de canibalismo na região, este foi o hábito de mutilar ou esquartejar os cadáveres abatidos no combate, como fizeram os Mõnãyxop aos Yĩmkoxeka, no relato de Mamey Maxakali. De fato, não há nas fontes históricas nenhum viajante que tenha testemunhado o ato canibal in loco. Porém, o estado em que os corpos das vítimas de ataques indígenas eram encontrados na região era suficiente para atiçar a imaginação dos colonos e incutir o ódio e o horror aos Botocudo, tão eficaz para aquecer a guerra que se movia contra eles: “(...) A crônica desses selvagens é uma história de crimes atrozes, em que não se sabe o que se deve admirar, se o ódio, se a perversidade. Suas vítimas, na estrada daqui para Aimorés, contam-se às dezenas. O instinto sanguinário e a paixão da vingança que os caracteriza, levam-nos muitas vezes não só a matar os infelizes, que lhes caíam embaixo das setas, como a perfurar-lhes os cadáveres e fazê-los em pedaços.” (Missagia de Mattos, 2002: 64). “Seis anos atrás, mais ou menos, sete pessoas voltavam de Itapemirim, a cuja igreja tinham ido, quando foram atacadas pelos Puris, salvando-se, de todo o grupo, apenas um homem. Uma rapariga, que fugira ao primeiro assalto, foi perseguida e cruelmente assassinada. Encontraram-se depois os corpos, com os braços e as pernas arrancados e o tronco descarnado.” (Wied-Neuwied, 1958 [1815-1817]: 130).

 

 

 

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“Esses militares fizeram questão de mostrar-me uma casa cujos habitantes haviam sido mortos pelos selvagens (...) Encontraram-se os corpos dos colonos chacinados; os selvagens não lhes haviam desarticulado os membros, mas tiraram-lhe as carnes e só lhes deixaram a cabeça intacta.” (Saint Hilaire, 1974 [1779-1853]: 21).

Estes relatos, naturalmente, corriam e exageravam-se ao longo das fazendas, quartéis e vilas da região. Wied-Neuwied se intrigava com o tema e oscila, em seus escritos, entre a dúvida e a certeza, chegando às vezes a dar detalhes do canibalismo, evidentemente inspirados na literatura sobre os tupi quinhentistas. O índio botocudo Queck, que acompanhou o Príncipe em suas viagens e, posteriormente, à Europa, teria um dia, depois de muita insistência, finalmente “confessado” a prática: “Contou-me então a cena que vou narrar, e de cuja verdade devemos tanto menos duvidar, quanto mais difícil nos foi conseguir dela sua descrição. Um chefe de nome Jonué cudgi, filho do famoso Jonué iakiiam, aprisionara um patachó. Todo o bando se reuniu, o prisioneiro foi trazido de mãos amarradas, sendo morto por Jonué Cudgi com uma flechada no peito. Fizeram então uma fogueira, onde foram cortadas e depois assadas as coxas, os braços e as outras partes carnudas do corpo, que todos depois comeram, dançando e cantando. A cabeça foi pendurada num poste, por meio de uma corda, que entrava pelos ouvidos e saia pela boca, de modo a poder-se erguê-la e abaixá-la. Ali ficou a secar, depois de lhe haverem arrancado os olhos e raspado os cabelos, com exceção de um tufo sobre a testa.” (Wied-Neuwied, 1958 [1815-1817]: 315).

O episódio, como se vê, é atribuído por Queck aos ânimos de um chefe em particular e talvez - por quê não? - à particularidade de um chefe e seu grupo. Se evocarmos mais uma vez a ameaça canibal que Kan Jirun dirigia a seus inimigos, então talvez possamos sugerir que a prática do canibalismo estivesse condicionada a certas preferências mais ou menos individuais, sujeita às variações de humor (isto é, de ódio e raiva) envolvendo a vítima ou as circunstâncias de sua execução. Sua virtualidade seria, desse modo, inegável, mas sua efetuação talvez variasse mais ainda do que, mais uma vez, entre os Tupinambá. Recordese que mesmo para estes últimos, tidos como antropófagos inveterados, “forma máxima da vingança, o canibalismo não era entretanto sua forma necessária. O gesto próprio da

 

 

 

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vingança guerreira, e o requisito crucial para a obtenção de um novo nome, era o esfacelamento ritual do crânio do contrário.” (Viveiros de Castro, 2002a: 258)6. WiedNeuwied tanto insistiu, que Queck provavelmente terminou por lhe contar um ou dois eventos que lhes satisfizesse a curiosidade. Se não convém mesmo duvidar, nada nos permite, nem por isso, generalizar o costume ou deduzir daí uma instituição central para aqueles povos. Ademais, por quê teriam abandonado a prática antes mesmo de intensificarem o contato com os missionários ou colonos que aos poucos e penosamente se estabeleciam na região? De qualquer maneira, é interessante acrescentar ainda uma outra hipótese, de outro botocudo, Firmiano, desta vez o acompanhante de Saint-Hilaire, que de certo modo refreia as especulações do francês, inspiradas nos relatos dos regionais: “Quando esses índios matam algum inimigo saboreiam, disseram-me, sua carne como se fosse um manjar delicado, e não fazem o mesmo caso de todas as partes do corpo. Muitas vezes, asseguraram-me, foi encontrado só o tronco dos mortos por eles, e foram vistos os ossos dos outros membros em volta de fogueiras apagadas. Devo dizer aqui que Firmiano, o Botocudo que me seguiu durante vários anos, repelia a acusação de antropofagia como uma mentira inventada pelos portugueses a fim de terem um pretexto para fazer mal à sua nação; mas, ao mesmo tempo, acrescentava que poderia ter dado ensejo à essa calúnia o hábito que tinham seus compatriotas de cortar em pedaços o corpo dos inimigos já privados de vida.” (Saint-Hilaire, 1975 [1830]: 185).

Tal hábito talvez nos remetesse ao esfacelamento do crânio pelos Tupinambá. Seriam tais mutilações e esquartejamentos algo como a “forma mínima” da vingança para aqueles povos? Que a retalhação dos corpos fosse também uma forma de retaliação não é mesmo nada improvável. Note-se que tudo o que a história tikmũ’ũn comenta a respeito é que os guerreiros “acabavam com eles como eles faziam com os Mõnãyxop”. Mas nada indica que o hábito estivesse associado a algum processo semelhante à aquisição de novos nomes entre os Tupi, para o qual o esfacelamento do crânio do inimigo era uma etapa essencial. As mutilações neste caso parecem antes associadas a algumas práticas funerárias                                                                                                                 6

Viveiros de Castro (2002a) lança mão deste argumento justamente para demonstrar como foi muito mais difícil demover os tupinambá da guerra de vingança do que coibir-lhes a prática do canibalismo.

 

 

 

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compartilhadas por vários povos da região. Trata-se, sobretudo, do temor de que os cadáveres se transformem em onças ou seres canibais, o que se pode prevenir esquartejando ou cremando-lhes os corpos. Manizer menciona, por exemplo, entre os Krenak, a figura dos nanitiong: “Le mort se métamorphose en nanitiong, être fantastique, qu’il suffirat de voir pour mourir. (...) Pour éviter la reencontre d’un nanitiong on ne s’approche sous aucune pretexte du lieu où un mort a été déposé. La terreur du nanitiong prend parfois le caractère d’une panique. Une fois au campement des Krenaks, s’élevèrent de tels cris et lamentations que l’interprete pensa qu’un jaguar massacrait les indien. Or la nuit étant clairement iluminé par la lune, c’était quelqu’un qui avait aperçu un nanitiong au bord de la rivière et la terreur s’était emparée de tout le monde.” (Manizer, 1919: 266)

Os Tikmũ’ũn, tanto antigos como atuais, receiam igualmente que os mortos, depois de enterrados, transformem-se em ĩnmõxa, uma espécie de morto-vivo, canibal e ferocíssimo, cujo corpo é escuro e duro como uma couraça e cujos ossos dos punhos se projetam para fora como duas lâminas bastante afiadas. Extremamente ágil e veloz, é capaz de matar uma aldeia inteira em poucos instantes. Essa metamorfose indesejada é sempre associada ao não cumprimento, ainda em vida, do resguardo. Contudo, ao contrário do que afirmou Manizer sobre os Krenak, os Tikmũ’ũn se aproximam das sepulturas justamente para conferir se o morto não se transformou em ĩnmõxa. Se for este o caso, procedem à exumação e cremação do cadáver. Voltaremos a esses espíritos canibais adiante. Por ora, o que estas ideias sobre o destino post-mortem parecem sugerir é que o hábito de mutilar e esquartejar os corpos dos inimigos mortos possa estar associado a este perigo de transformação. Afinal, não deveria ser muito tranquila a ideia, para os índios, de que uma horda de inimigos assassinados pudesse vir a perseguí-los e exterminá-los nas florestas, sob a forma destes nanitiong ou inmõxa. E, ademais, como em geral não enterrariam os mortos de um combate e nem se arriscariam retornar ao local para averiguar o estado de seus corpos, não é difícil imaginar que optassem por se prevenir.

 

 

 

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Mas a história que me contou Mamey não terminava ali, quando os Mõnãyxop rasgam as barrigas dos inimigos mortos, de onde jorra mel7. O seu desfecho é outro: um Yĩmkoxeka que, flechado, tentou fugir, morreu atravessando o rio, onde seu corpo boiava com a barriga para cima. Os Mõnãyxop decidiram abandonar a aldeia novamente e viram o corpo de Yĩmkoxeka boiando. Pisando no peito dele, os Mõnãyxop atravessaram o rio. Pisavam e atravessavam, pisavam e atravessavam, e assim fizeram todos eles. Como costumam dizer os Tikmũ’ũn, “essa história tem canto”. Hoje, Putuxop (papagaio-espírito) canta assim quando vêm visitar suas aldeias: kukxeka xenex nẽ atravessando o rio pisando kukxeka xenex nẽ atravessando o rio pisando tapu’ux8 xop nos inimigos kukxeka xenex nẽ atravessando o rio pisando ax i i ia tapu’ux xop õm naquele inimigo tapu’ux xop õm naquele inimigo kukxeka xenex nãmi atravessando o rio pisando kukxeka xenex nãmi atravessando o rio pisando kukxeka xenex nẽ                                                                                                                 7

A imagem do mel jorrando das vísceras dos Yimkoxeka de fato me intrigou. Enquanto traduzíamos o relato, Sueli Maxakali me explicou que aquilo se devia ao costume yimkoxeka de ingerir água somente misturada com mel. Manizer notara tal costume entre os Krenak: “dans l’eau de boisson ils mêlent souvent du miel, mais leur friandise consiste sourtout en larves.” (1915: 259). 8

O termo tapu’ux é como os antigos Tikmũ’ũn glosavam “inimigos”, muito semelhante, de fato, ao termo em tupi antigo tapy'yîa para glosar “não tupi”, “estrangeiros” em geral. Lembremos que os Tikmũ’ũn estavam dentre os índios conhecidos como “Tapuias” nas primeiras décadas da invasão portuguesa.

 

 

 

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atravessando o rio vieram yak hax hi hia tapu’ux xop õm naquele inimigo tapu’ux xop õm naquele inimigo kukxeka xenex nãmi atravessando o rio pisando kukxeka xenex nãmi atravessando o rio pisando kukxeka xenex nẽ atravessando o rio vieram kukxeka xenex nẽ tapu’ux xop nos inimigos kukxeka xenex nẽ atravessando o rio vieram kukxeka xenex nẽ atravessando o rio vieram yak hax hia tapu’ux xop nos inimigos tapu’ux xop nos inimigos kukxeka xenex nãmi atravessando o rio pisando kukxeka xenex nãmi atravessando o rio pisando kukxeka hahi o rio...

 

 

 

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haaaai i i i i nãm tut max nã reparando o arco e as flechas nãm tut max nã reparando o arco e as flechas tapu’ux ãpot hã preparando para o inimigo nãm tut max nã reparando o arco e as flechas punux xeka nãg o chefe dos papagaios punux xeka nãg o chefe dos papagaios tapu’ux ãpot hã preparando para o inimigo tapu’ux ãpot hã preparando para o inimigo nãm tut max nã reparando o arco e as flechas yak ha ha hax hax hi hia punux xeka nãg o chefe dos papagaios punux xeka nãg o chefe dos papagaios tapu’ux ãpot hã preparando para o inimigo nãm tut hahi o arco e as flechas haaaaai i i i i

 

 

 

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Assim, a história, que começava com um deslocamento, conclui-se com outro. O evento guerreiro é feito canto. O canto é o próprio evento, o caminhar, o movimento. Terminado o combate, os homens reparam os arcos e as flechas. Seguem adiante sobre os inimigos tombados, preparando-se já para os inimigos que virão. Os Yĩmkoxeka que sobreviveram partiram, furiosos, lançando suas flechas para o ar, hehe, hehe, hehe. Mais cedo ou mais tarde, voltarão para se vingar. Assim a vida e a guerra seguem... estes dois movimentos incessantes.

 

 

 

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CAPÍTULO 02

A Guerra de Estado “Fixer, sédentariser la force de travail, régler le mouvement du flux de travail, lui assigner des canaux et conduits (...) – ce fut toujours une des affaires principales de l’Etat, qui se proposait à la fois vaincre un vagabondage de bande et un nomadisme de corps.”

(Deleuze e Guattari)  

Da guerra anti-indígena “(...) Sendo-me presente as graves queixas que da Capitania de Minas Geraes tèm subido á minha real presença, sobre as invasões que diariamente estão praticando os indios Botocudos, antropophagos, em diversas e muito distantes partes da mesma Capitania, particularmente sobre as margens do Rio Doce e rios que no mesmo desaguam e onde não só devastam todas as fazendas sitas naquellas visinhanças e tem até forçado muitos proprietarios a abandona-las com grave prejuizo seu e da minha Real Coroa, mas passam a praticar as mais horriveis e atrozes scenas da mais barbara antropophagia, ora assassinando os Portuguezes e os Indios mansos por meio de feridas, de que sorvem depois o sangue, ora dilacerando os corpos e comendo os seus tristes restos; tendo-se verificado na minha real presença a inutilidade de todos os meios humanos, pelos quaes tenho mandado que se tente a sua civilisação e o reduzi-los a aldear-se e a gozarem dos

 

 

 

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bens permanentes de uma sociedade pacifica e doce, debaixo das justas e humanas Leis que regem os meus povos; e até havendo-se demonstrado, quão pouco util era o systema de guerra defensivo que contra elles tenho mandado seguir, visto que os pontos de defeza em uma tão grande e extensa linha não podiam bastar a cobrir o paiz: sou servido por estes e outros justos motivos que ora fazem suspender os effeitos de humanidade que com elles tinha mandado praticar, ordenar-vos, em primeiro logar: Que desde o momento, em que receberdes esta minha Carta Régia, deveis considerar como principiada contra estes Indios antropophagos uma guerra offensiva que continuareis sempre em todos os annos nas estações seccas e que não terá fim, senão quando tiverdes a felicidade de vos senhorear de suas habitações e de os capacitar da superioridade das minhas reaes armas de maneira tal que movidos do justo terror das mesmas, peçam a paz e sujeitando-se ao doce jugo das Leis e promettendo viver em sociedade, possam vir a ser vassallos uteis, como já o são as immensas variedades de Indios que nestes meus vastos Estados do Brazil se acham aldeados e gozam da felicidade que é consequencia necessaria do estado social. (...) Que sejam considerados como prisioneiros de guerra todos os Indios Botocudos que se tomarem com as armas na mão em qualquer ataque; e que sejam entregues para o serviço do respectivo Commandante por dez annos, e todo o mais tempo em que durar sua ferocidade, podendo elle emprega-los em seu serviço particular durante esse tempo e conserva-los com a devida segurança, mesmo em ferros, emquanto não derem provas do abandono de sua atrocidade e antropofagia.” (Carta Régia, 13 de maio de 1808)

Com estas palavras, o Príncipe Regente D. João VI mandava fazer guerra aos índios Botocudo pouco mais de dois meses após a transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em março de 1808. A carta é um registro eloquente da orientação que o Estado passaria a assumir em relação aos povos indígenas das capitanias de Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia ao longo do século XIX. Se a guerra contra os índios, oficial ou não, já se fazia há séculos naquelas partes, sua ofensiva desta vez declarada pela autoridade máxima do Império não deixava de ser reveladora dos interesses que ora se voltavam para aquela que até então fora convenientemente conservada enquanto sua “zona tampão”. Várias razões justificam este renovado interesse nos territórios até então pouco explorados que se estendiam entre os Vales do Rio Doce e Mucuri. As minas de ouro e diamante já há algum tempo davam sinais de esgotamento e, naquele início de século, o declínio da

 

 

 

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mineração instalava uma crise econômica de grandes proporções, que afetaria radicalmente os rumos da política interna e externa do país. Outro marco histórico importante, a transferência da sede do Império para o Rio de Janeiro, também daria novo impulso à política expansionista e integracionista estatal, mais tímida durante o período colonial devido à própria distância geográfica da metrópole e suas maiores dificuldades em manter o controle sob o território. Além disso, era necessário abastecer a população que se implantava ou crescentemente se acercava da capital. Naquele momento, portanto, tornava-se interesse máximo da Coroa interligar as províncias de Minas Gerais, Bahia, Rio de Janeiro e Espírito Santo, facilitando assim o comércio e o escoamento dos produtos agrícolas do interior para o litoral9. Aquelas matas, ademais pouco conhecidas, alimentavam ainda esperanças de descoberta de novas jazidas minerais, ou pelo menos de abundância de terras férteis para o avanço da agricultura e pecuária. Todo esse contexto ainda seria embalado pela crescente divulgação das ideias e ideais iluministas que imbuíam aqueles homens oitocentistas de uma nova missão religiosa: a civilização. Impunham-se-lhes, portanto, as tarefas de converter a mata em pasto, estradas, vilas... e os índios em “vassalos úteis”, isto é, mão de obra escrava ou barata. Assim recebiam e celebravam as “boas novas” os governantes e proprietários locais:   “(...) as extensas e dilatadas brenhas que serviram até agora de covil às feras e aos Botocudos mais terríveis que as mesmas feras, transformar-seão em povoações deliciosas, prosperando a agricultura em terrenos novos e, por isso, fertilíssimos; animando-se outra vez a mineração e criando-se, ao mesmo tempo, um comércio ativo, que Minas nunca teve, nem esperou ter (...)” (Santos apud Paraíso, 1998, p. 274 ).

Mas a nova ofensiva que se anunciava muniu-se igualmente de novas estratégias. Àquela altura, os administradores regionais já haviam adquirido experiência suficiente para perceberem que o confronto direto com os índios era ineficaz, que o seu resultado era somente acirrar os ânimos dos guerreiros e estimular novos ataques, impedindo a penetração e implantação dos colonos na região. Era preciso, portanto, conquistá-los, mas não somente através da força e da supremacia bélica como se havia tentado até então. A                                                                                                                 9

Lembremos que a primeira medida do Príncipe Regente ao chegar ao Brasil foi declarar a abertura dos portos às nações amigas e romper, com isso, o exclusivo colonial.

 

 

 

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“conquista” aqui adquire aquele outro e pernicioso sentido, o de “atrair” ou “seduzir” os índios, para só então traí-los e reduzí-los. Assim, ainda que declarada a guerra aos Botocudo, a orientação geral adotada pelos comandos da região ao longo daquele período seria outra e, de fato, mais eficiente, pois os colonos não tardaram a perceber que “(...) o mais enérgico meio de persuadir e convidar [os índios] é fazer-se-lhes presentes de certos gêneros de que eles tanto têm precisão (...)” (Miranda apud Paraíso, 1998: 359). Neste tocante, o manuscrito Como se deve tratar os indígenas para trazê-los ao grêmio da civilização, do Frei Ângelo de Sassoferato orientava: “para atrair o índio à civilização é preciso presenteá-lo, tratá-lo com lhaneza e jovialidade e, sobretudo, não mostrar-lhe desconfiança, o que exige do missionário prodígios de habilidade e prudência. Só se lhe pode impor autoridade com muita delicadeza.” (apud Palazzolo, 1973 [1873-1952]: 229). O próprio Rei, aliás, vendo os efeitos de tal orientação política renderem os primeiros frutos nos aldeamentos das margens do Rio Doce passaria a ver com bons olhos a medida e a recomendar igualmente "(...) captar a amizade e a aliança dos Botocudos mansos e para por seu modo principiar a fazer aldeias a que depois possam vir sucessivamente incorporar-se os Botocudos bravos, continuando a fazer-se-lhes uma dura guerra enquanto não quiserem pacificar-se e viver debaixo da proteção das Leis de S.A.R (...)” (apud Paraíso, 1998: 245). Concomitante a essas orientações viria se somar ainda outra tática crucial, e talvez final, de perseguição aos indígenas: o “devassamento” da floresta. A ordem era avançar sobre o território, explorá-lo, rasgá-lo em estradas, sesmarias, vilas, aldeamentos... “Desinfestá-lo”, como se usava dizer no jargão da época, para então aproveitar suas terras, madeiras, couros e mananciais. Assim, aos poucos, os colonizadores logravam reduzir a exuberante fauna e vegetação de Mata Atlântica que tanto os assombrava: “ao europeu – escreve Frei Ângelo causavam pasmo as árvores seculares do Brasil, de 30, 40 e mais metros de altura e grossura extraordinária.” (Palazzolo, 1973 [1873-1952]: 42); “essas florestas virgens, densamente entrelaçadas, em cujo interior reinam trevas quase eternas, são de encher a alma com arrepio e pavor.” (Spix, 1981 [1781-1826]: 222) 10. Além disso, era muito                                                                                                                 10

Rosângela de Tugny (2011b) dedicou um belo texto ao confronto entre os dois modos diametralmente opostos de relação com a floresta, notadamente o dos indígenas que a habitavam há séculos e o dos colonos e naturalistas europeus que a percorreram com um misto de terror e desprezo.

 

 

 

 

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comum os cronistas constatarem que, por maiores que fossem seus esforços e investimentos em “seduzi-los”, nada parecia demover os indígenas de retornarem ao abrigo das florestas e ao convívio dos seus parentes. Nas palavras de Freireyss: “pode-se tirar um selvagem brasileiro de suas matas e trata-lo de melhor modo, que elle sempre estimará, acima de tudo, poder voltar para os seus patrícios.” (Freireyss, 1901: 247). E o Barão Johann Jakob von Tschudi concluía: “(...) não se sentem bem por muito tempo entre os homens civilizados e têm uma saudade incontrolável de suas florestas.” (2006 [1866]: 265). Por isso mesmo, os diretores dos aldeamentos, bastante importunados pela inconstância dos indígenas e por suas frequentes “deserções”, costumavam concluir que “enquanto houvesse mata haveria correrias de índios” (Gorízia apud Missagia de Mattos, 2002: 399) e o então Governador de Minas Gerais, Ataíde e Melo, reforçando as ordens de deitar floresta abaixo, vislumbrava o tempo quando “(...) estes antropófagos se achariam na precisão de largarem suas habitações; e uma vez perseguidos, se embestariam nos matos à proporção que estes fossem desmanchando e com o andar do tempo se domariam (se é possível domar monstros deste toque).” (apud Paraíso, 1998: 180). No mesmo sentido caminharia a observação de D. João VI em outra de suas cartas às autoridades locais: “ (...) tendo mostrado a experiência que um dos melhores meios de se conseguir a pacificação e civilização destas e de outras bárbaras raças de índios, que tanto merece o meu cuidado, consiste em se fazerem transitáveis por muitas e diferentes estradas, os extensos bosques em que se acham abrigados, a fim de que por toda a parte hajam de encontrar os atrativos

da

civilização,

sendo

convidados

com

brandura

ao

reconhecimento e sujeição às minhas leis e castigados pesadamente os que cometerem hostilidades (...)” (apud Paraíso, 1998: 249).

É assim que - mais e mais acuados territorialmente, assolados pela fome e pelas doenças, além de frequentemente ameaçados pelos combates constantes com seus inimigos índios aos poucos, vários povos começavam a se “apresentar” nos aldeamentos e vilas da região. “Jak Jemenuk”, “estamos mansos”, aprenderam a dizer aos Botocudo os portugueses e a expressão era por eles repetida, como um código de aproximação, acompanhadas frequentemente por “sincorana”, “capitão paquejú rehe”, “tenho fome”, “o capitão

 

 

 

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grande é muito bom” (Otoni, 2002 [1859]: 81). Com efeito, a distribuição de presentes geralmente foices, machados, facões de metal, vestimentas e alimentos - seria muito mais eficaz enquanto estratégia de “atração” e os nomes de Guido Marlière e Teófilo Otoni marcam especialmente dois momentos desta nova orientação política levada a cabo nos vales do Rio Doce e Mucuri do século XIX. Marlière era um oficial francês que aportou no Brasil com a família real portuguesa e que foi alguns anos mais tarde nomeado Diretor Geral da Civilização dos Índios em Minas Gerais, onde comandou as sete divisões militares distribuídas entre as bacias dos rios Doce, Suaçuí Grande, Jequitinhonha e Araçuaí. Atuou especialmente entre os índios Puri, Coroado e Naknenuk e tornou-se conhecido por estimular “relações pacíficas” com estes grupos, reformando o quadro dos servidores dos destacamentos militares (composto em sua maioria por homens degredados ou condenados nos tribunais de deportação europeus) e coibindo as conhecidas práticas de caça ou extermínio dos indígenas tão em voga em toda a região. Já Teófilo Otoni, comerciante e proprietário oriundo de uma família tradicional do Serro, seguia carreira política como deputado no Rio de Janeiro quando convenceu o governo imperial a criar a Companhia de Comércio e Navegação do Mucuri, da qual foi nomeado diretor. Animado pelos relatos do engenheiro Victor Renault, que percorrera a bacia daquele rio em 1836, Otoni prometia finalmente cumprir o antigo ensejo da administração colonial de interligar “o sertão de Minas, do Nordeste Mineiro, com um pôrto do mar, em linha reta, atravessando as matas virgens” (Timmers, 1969: 12). Com este objetivo percorreu a bacia do Mucuri em 1847, aonde regressou e se implantou definitivamente a partir de 1852, fundando a cidade de Filadélfia, assim batizada devido à admiração do diretor pela colonização da Pensilvânia, nos EUA e mais tarde rebatizada com o seu próprio nome. Ali, naquele mesmo ano, Otoni se depararia com centenas de índios Naknenuk: “Os primeiros cumprimentos que lhes fiz foram uma larga distribuição de toucinho, farinha e rapaduras. Um dos índios era Poton, cacique de uma das tribos que ocupavam um ribeirão, légua e meia abaixo daquele lugar. (...) De Poton declarei-me parente, Poton-Otoni, e êle acolheu rindo a demonstração de que o éramos. Aceito o parentesco, disse-me que eu trouxesse os mais parentes, porque as terras eram muitas e chegavam para todos. Peguei-lhe pela palavra e quinze dias depois abria-se, por conta de

 

 

 

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diversos parentes, uma grande derrubada, que produziu três magníficas fazendas (...)” (Otoni apud Timmers, 1969: 20-1).

A estratégia, contudo, não se demonstraria “infalível”, como dela se rejubilava inicialmente o empreendedor. A Companhia e seus funcionários frequentemente esbarrariam na firme oposição dos indígenas ao avanço dos seus negócios e foi, por exemplo, aos gritos de “não quero estradas nas minhas terras!” que um chefe botocudo e seu grupo recebeu à flechadas uma escolta de operários a poucas léguas de Filadélfia, em junho de 1853 (Otoni, 2002: 77). Além disso, mesmo aqueles índios que pareciam oferecer menor resistência à aproximação com os colonos demonstrariam que, se era relativamente fácil “atraí-los”, muito mais difícil seria fixá-los. Por isso, se os administradores puderam comemorar à princípio a nova política de alianças, entusiasmados com a “descida” de centenas, às vezes milhares de indígenas aos seus vilarejos, não demorou até que seus ânimos se arrefecessem. Uma vez nos aldeamentos, os índios nem por isso demonstravamse mais inclinados a neles permanecerem. Pelo contrário, tão logo chegavam naquelas paragens e já constatavam as reais intenções dos portugueses: submetê-los a jornadas exaustivas de trabalho, castigá-los caso se recusassem a obedecê-los, separá-los de seus parentes mais próximos (especialmente as crianças dos seus pais)... Não demorava muito, portanto, até que decidissem bater em retirada: “Com promessa de dar-lhes ferramentas e armas, 2000 Puris foram attrahidos à Villa Rica. Chegados eram logos agarrados e distribuídos entre os portuguezes para os quaes deviam trabalhar, naturalmente sem ser em qualidade de escravos, mas, unicamente para tornarem-se cidadãos prestimosos. O plano era sem duvida bom e o meio empregado talvez tivesse sortido effeito, mas os autores do plano não conheciam os seus patrícios e além do mais, commetteu-se o erro de não deixar os índios viverem em família; marido e mulher, paes e filhos foram separados e mandados a lugares diversos. A consecuência foi que, mal tinham os Puris trabalhado uns 8 dias que todos os homens fugiram, tanto por causa das pancadas recebidas, como amor à liberdade e saudades da família. Fervendo de ódio, por terem sidos obrigados a abandonar mulheres e filhos nas mãos dos seus algozes, estavam estes poucos outra vez nas suas mattas, matando todos os portuguezes que podiam e, entre elles, aqueles que lhes enganaram a vir para Villa Rica.” (Freireyss, 1901: 250).

 

 

 

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“Os malalis em 1787 perseguidos pelos naknenuks apresentaram-se no Alto dos Bois, nove léguas distante de Minas Novas, e aí ficaram aldeados junto ao quartel das divisões. (...) No Alto dos Bois, os malalis voluntários ou recrutados sentaram praça nas divisões. Tendo alguns desertado sofreram castigos severos, bem como pessoas de suas famílias acusadas de haverem acoitado os desertores. A proteção dos cristãos, assim exercida, começou a parecer-lhes mais intolerável do que a guerra com seus irmãos das florestas. E uma bela manhã o comandante do quartel do Alto dos Bois achou a aldeia completamente abandonada.” (Otoni, 2002 [1859]: 43).

A chegada nos aldeamentos era ainda acompanhada por sucessivas baixas populacionais, devido aos surtos de gripe, sarampo e varíola, doenças que dizimavam os índios e contra as quais não podiam resistir. As numerosas mortes com frequência confirmariam neles os receios de que os brancos (especialmente os padres) fossem os autores de tamanhos feitiços, e estas eram sempre ocasiões propícias a ataques e agitações, afinal, “quando entre eles morre alguém” - observava o Frei Ângelo de Sassoferato - “há sempre pavoroso alvoroço, vinganças estúpidas, brigas e roubos, tudo acrescido do pranto das mulheres, a modo das carpideiras judaicas.” (apud Palazzolo, 1973 [1873-1952]: 118). Além disso, pelas mesmas razões evocadas no final do capítulo um, envolvendo o potencial de transformação dos mortos em feras canibais, era comum que os índios abandonassem suas aldeias quando da morte de um parente, geralmente queimando-se-lhes as casas: “(...) pois jamais ocupam habitações que tenham servido de túmulos” (Wied-Neuwied, 1958 [18151817]: 268). Também por isso, não é difícil imaginar que ao ver dezenas dos seus sucumbirem e serem enterrados à moda cristã, bem perto de onde viviam, aqueles grupos logo desejassem partir... Mas, com o tempo, suas estratégias de afastamento e contato também iam se inovando, e os índios passavam a manipular com habilidade as imagens que os portugueses faziam ou esperavam deles, servindo-se delas em benefício próprio, como demonstra exemplarmente o episódio registrado por Saint-Hilaire, envolvendo os “Machaculis” e que vale a pena transcrever na íntegra:

 

 

 

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“Já há muito tempo que essa tribo se pôs em contato com os portugueses, fugindo assim como os Malalis, Monochós, Macunis, etc., das perseguições dos Botocudos, inimigos de todas as demais nações índias. Os Machaculis procuraram asilo, em primeiro lugar, em Caravelas, onde se fizeram grandes dispêndios para inspirar-lhes o gosto pelo trabalho. Preguiçosos como o são todos os indígenas, amigos da independência, habituados à vida nômade, apaixonados pela caça, não se costumaram a cultivar a terra. Esses índios, vendo que não eram mais alimentados, e que tinham cessado de lhes dar instrumentos de ferro e vestimentas, abandonaram o litoral; meteram-se pelas matas, e chegaram, mais ou menos em 1801 às proximidades de Tocoios. Quando ainda estavam em Caravelas, tinham-nos batizados, e aprenderam um pouco de português; mas querendo encontrar em Tocoios as mesmas vantagens que em Caravelas, empregaram a astúcia; fingiram sair pela primeira vez das selvas, e se apresentaram, sem dizer uma palavra em português, fazendo sinais para mostrar que se queriam tornar cristãos. Os habitantes de Tocois se enganaram com este embuste e escreveram para Villa Rica que uma nação indígena, até então desconhecida, tinha chegado à sua povoação; que mostravam as melhores disposições, e pedia o batismo. Imediatamente a administração concedeu socorros para civilizar os recém-vindos; deramlhes ferramentas e roupas; mandou-se construir para eles uma capela; deuse-lhes um sacerdote; encarregou-se um diretor de instruí-los e, ao mesmo tempo, colocou-se perto de Tocoios um destacamento militar, para manter a ordem. Apesar de todos esses esforços, não se obtiveram em Tocoios resultados mais felizes do que em Caravelas; os Machaculis aproveitaramse dos benefícios dos portugueses, mas não se tornaram mais laboriosos. No entanto, o embuste destes índios não permaneceu por muito tempo ignorado. Foi descoberto pelo capitão João da Silva Santos, que quando explorou o curso do Jequitinhonha, ficou não pouco admirado ao chegar ao Tocoios em 1804, de aí encontrar esses Machaculis, com os quais já se tinham feito tão grandes despesas na comarca onde ele era o capitão-mor.” (Saint-Hilaire, 1975 [1830-1851]: 271).

Para além do intenso trânsito entre as matas e os aldeamentos, o qual os administradores e chefes de índios tentavam de todas as maneiras limitar, a presença indígena nestes locais não tornava a sua permanência e convivência mais “pacífica”. Isto porque, se a prodigalidade dos portugueses tinha como finalidade o aldeamento dos índios – e terminava, portanto, por aí - para os índios, esta não era senão a condição de sua estadia.

 

 

 

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Desse modo, os pedidos por mais ferramentas, presentes e víveres tornavam-se incessantes e seriam o motivo de crescente importuno para os seus civilizadores. Como diria o Frei Palazzolo: “o índio é exigente; quer tudo o que vê e lhe apraz. Na mata, vive da pesca e da caça como pode, mas, em companhia dos civilizados, é sumamente exigente e, se não lhe derem o que ele viu e pretende, rouba e se torna até insolente.” (1973 [1873-1952]: 61). Marlière fornece uma imagem ainda mais vívida do seu incômodo: “Continuamente cercado de Botocudos pouco me é possível escrever. Se fecho a porta, entram pela janela. Numa palavra, eles me põe às vezes fora do assento. Havendo agentes para lhes ministrarem o necessário, eles aqui não querem receber senão das minhas mãos, até o próprio sustento. A sua impertinência é excessiva, eles me pedem cavalos para irem ao porto e no porto, canoas para se transportarem pelos rios de um lugar a outro. Já duas canoas me perderam e que me será preciso pagar aos donos. Com o tempo e paciência, havemos de ter canoeiros e cultivadores porque tomam gosto ao trabalho.” (Marlière apud Paraíso, 1998: 368).

O tempo, entretanto, passava, os pedidos não cessavam e o “gosto ao trabalho” nunca parecia chegar. Assim, a impermanência dos indígenas tornava o problema da “atração” permanente para os portugueses, que se veriam muitas vezes obrigados a adaptar suas estratégias e dispender mais do que planejavam ou estavam dispostos inicialmente, se quisessem manter os índios sob suas vistas: “Enquanto essa gente não ficar mais arraigada nos nossos costumes, outras providências não convém por ora ter-se com ela senão o afago e mimo; porque pode pela menor desconfiança desprezar todas as comodidades presentes, principalmente não estando ainda bem estabelecida e tornar a ser-nos bastante prejudicial (...)” (Mascarenhas apud Missagia de Mattos, 2002: 217). “As promessas que fizer devem ser observadas porque o selvagem, ainda que o seja, tem tino bastante para se escarmentar da primeira falta de fé com eles praticada e desta conduta iníqua dos nossos encarregados da civilização deles, tem o Estado a enorme perda e falta de tantos braços, como a história mostra.” ( Ferraz apud Paraíso, 1998: 402).

 

 

 

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“(...) cotidianamente deve-se dar aos indígenas alguma cousa, mantimento cru pra eles mesmos o aprontarem em suas casas, ao contrário, ficam aborrecidos e descontentes e querem voltar para as matas; e pertas fazendas aonde se acham sempre recursos e principalmente aguardente em abundância.” (Gorízia apud Missagia de Mattos, 2002: 392).

Os presentes e com eles os gastos iam assim se multiplicando e a contrapartida esperada, isto é, o trabalho, jamais viria em igual proporção. Mesmo aldeados, muitos dos índios ainda prezariam por manterem-se a certa distância do centro dos assentamentos, mais próximos dos leitos dos rios, onde pudessem pescar e caçar, práticas que os administradores tentavam a todo custo, e sem nenhum sucesso, coibir. Na lavoura, se apresentavam com irregularidade, mais atraídos pela colheita do que pelo plantio: “(...) os proprietários locais dizem que, se esses índios não plantam, sabem muito bem colher: metem-se pelos matos na época das derrubadas e do plantio e voltam quando a colheita se faz nas vizinhanças.” (Saint-Hilaire, 1975 [1830-1851]: 272); “essa gente, enquanto acha roças ou mantimento para o seu sustento está presente, mas apenas chega o tempo das plantações e se exige trabalho ausenta-se para sustentarem nos matos de caçadas e frutas (...)” (Castro apud Missagia de Mattos, 2002: 82). Tal recusa obstinada ao trabalho nas lavouras será o motivo da velha pecha de “preguiçosos” aos índios sempre atribuída: “(...) todos os fazendeiros para os quais os botocudos trabalham reclamam da incrível preguiça desses índios (...). A preguiça é tão grande que eles raramente conseguem aguentar mais que três ou quatro dias.” (Tschudi, 2006 [1866]: 262); “é pois claro que os índios adultos não se sujeitam senão com muito custo, ao trabalho aturado, pelo mal costume que desde a infância têm de caçar, pescar e tomar para si o alheio (...)” (Gorízia apud Missagia de Mattos, 2002: 430). O nomadismo, a caça e a pesca constituíam, assim, os principais obstáculos à exploração da mão de obra indígena e à sua almejada “civilização”. Como os índios não se adaptavam, mesmo após anos aldeados, às atividades agropastoris principais práticas econômicas da região - imaginou-se que porventura obteriam maior sucesso explorando as atividades nas quais os nativos se destacavam, como a guerra, as derrubadas, a navegação, a olaria ou a pesca. Assim, houve quem chegasse mesmo a vislumbrar que, senão pela agricultura, quiçá pela pesca se cativaria finalmente os selvagens...

 

 

 

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“Vendo nossas redes (...) os indígenas quererão obtê-las. Para fazer a divisão de uma pescaria abundante, tornar-se-ão matemáticos; seu comércio de pesca, tomando extensão, os obrigará a aprender a leitura e a escrita; dentre esses homens civilizados pela pesca, surgirão marinheiros e pilotos hábeis; depois, operários para a marinha e negociantes, em uma palavra, cidadãos úteis... Os pobres índios viram nossas redes; elas lhes foram inúteis; e eles continuaram indígenas.” (Saint-Hilaire, 1973: 70).

Os índios seguiam assim transitando entre as fazendas, quartéis e aldeamentos, estabelecendo-se temporariamente onde encontrassem as melhores condições de vida e ofertas de víveres, partindo, entretanto, sempre que lhes conviesse. Note-se que as disputas e divergentes orientações políticas entre fazendeiros, missionários e comandantes iriam frequentemente alimentar este trânsito; os primeiros em busca de mão de obra barata para pequenas temporadas de trabalho no plantio ou colheita, os segundos esforçando-se por educar e converter os selvagens à civilização e os terceiros, mais próximos destes, visando arregimentá-los em suas tropas. Assim, cada vez mais atentos às suas movimentações, os colonos teriam muitas vezes de negociar com os índios a sua permanência e estes iam encontrando maneiras de remanejar sua existência num mundo em que evitar a companhia dos portugueses demonstrava-se cada vez mais impossível: “(...) Pela época da minha viagem os Machaculis tinham projetado deixar a região (...) Quando chegamos à aldeia, Julião mandou chamar o chefe desses índios, e disse-lhe que não queria constranger a liberdade de sua tribo que os Machaculis podiam retirar-se para onde julgassem convenientes, mas que não era justo que seus vizinhos trabalhassem constantemente para eles, e que, se se retirassem na época do trabalho e do plantio, não os deixariam voltar na época da colheita. Depois de negar que tivessem o intuito de se retirar, depois de terem dito que só pretendia fazer uma caçada pela vizinhança, o capitão dos Machaculis acabou por confessar que realmente tivera a intenção de abandonar o local para nunca mais voltar. “Minha tribo, disse ele a Julião, não está acostumada a comer unicamente milhos e batatas; tem necessidade de carne; nesse lugar a caça foi destruída pelos Botocudos; se o comandante nos permitir, iremos estabelecer-nos mais abaixo, porém, sempre às margens do rio”. Indicou então o local em que desejava estabelecer-se e o comandante, achando

 

 

 

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razoável seu pedido, permitiu-lhe fazer o que desejava.” (Saint-Hilaire, 1975 [1830-1851]: 272-3).

Mas a paciência dos colonos com os índios não demoraria a se esgotar. Em grande medida, a tal política de alianças e relações pacíficas respondia à escassez de mão de obra na região e só era interesse dos proprietários sustentá-la enquanto não fosse possível atrair para ali um maior contingente populacional, preferencialmente branco. Além disso, em meados do século XIX, a penetração naqueles territórios já se encontrava muito mais consolidada e com a rápida e drástica redução da população indígena, os riscos provocados por sua inimizade e ataques já se viam relativamente contidos e não eram mais impedimento suficiente para o estabelecimento dos colonos. Por isso, aos poucos, os políticos e fazendeiros locais começavam a julgar absurdo dispender recursos com a civilização dos selvagens – esforço considerado, ademais, lento e inútil - em vez de financiar, por exemplo, a atração de imigrantes europeus, estes sim “naturalmente laboriosos”: “A experiência de trezentos anos tem mostrado que os índios, ociosos por natureza, e de sentimentos abatidos e humildes, apenas servem para encher número na Marinha; sua indústria se limita a poucos tecidos de palha, não custosos, como esteiras, cestinhas... Eles tem negação absoluta para o comércio e agricultura. Não ha um só proprietário: satisfeito com sua sorte, pouco acima dos selvagens, eles constituem suas riquezas e mobílias, numa palhoça desprezível, um samburá, um bodoque, um marimbo para a água, uma linha de pescar, calça e camisa de algodão. E será possível que, para se formarem daqui a trezentos

anos uns tais

homens, esteja a Nação despendendo 19:200$000 anualmente com a Diretoria do prometido aldeamento no Rio Doce, esquecendo-se de se mandar colonos civilizados para aquele país da abundância e da riqueza e que promete ser um dia a mais rica e feliz povoação? Eu não duvido que o Governo proteja, conceda civilização desses miseráveis por serviço meramente humanitário, porém, estes cuidados devem ser secundários. Lance-se mão primeiramente do que interessa e convém à Nação toda, promovendo-se a povoação do rio Doce por meio de colonos estrangeiros, só as margens deste rio fertilíssimo, rico e majestoso, oferecem proporções para mil casais de habitantes. Os proprietários das muitas sesmarias que lá tem, aproveitarão muito mais com a colonização de industriosos em menor

 

 

 

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número do que com a civilização de inumeráveis bárbaros.” (Duarte apud Paraíso, 1998: 356)

Com efeito, uma das obrigações contratuais da Companhia de Comércio e Navegação do Mucuri era justamente o assentamento de colonos nas terras cedidas pelo governo e a opção privilegiada na época seria a importação de colonos europeus - a maioria alemães, suíços e belgas – já que Otoni nutria “a mais viva esperança de germanizar o vale de Todos os Santos” (Otoni apud Timmers, 1969: 34). Desse modo, sucessivas levas de imigrantes desembarcaram naquelas margens a partir de meados do século XIX. No cômputo do Frei Olavo Timmers: “até o fim de 1857 foram recebidas umas 70 famílias com 320 pessoas, mais 194 solteiros, em tudo 514 pessoas, 37 suiços, 65 portugueses e 412 alemães.” (1969: 39). No ano seguinte, o número saltaria para 1768 pessoas (Timmers, 1969: 43). Mas as esperanças depositadas na imigração europeia e em seus efeitos sobre a região também logo seriam perturbadas; os imigrantes europeus, a maioria operários ou camponeses pobres11, vinham atraídos pelas promessas de terras férteis e já cultivadas, propaladas pelas companhias de imigração que anunciavam as melhores condições de vida e trabalho num verdadeiro paraíso terrestre. Aqui, contudo, aquelas famílias se deparariam com um ambiente totalmente desconhecido e hostil, assolado por constantes epidemias de febre, escassez de alimentos e péssimas condições de salubridade... Vários morriam, outros tantos quebravam seus contratos e fugiam para a capital em busca de melhor sorte. Em viagem à região no ano de 1859, o médico francês Robert Avé-Lallemant se chocaria com a situação dos europeus vivendo ali. No segundo volume de sua Viagem pelo Norte do Brasil, o médico relatava o estado “lastimoso” de todos os imigrantes com os quais ia se deparando naquele “matadouro humano”, como definiu o Vale do Mucuri. O retrato que compõe em seus relatos é o de homens e mulheres suplicantes, famintos, endividados, pessimamente alojados, revoltados contra os negociantes - nas suas palavras, verdadeiros “mercadores de carne humana” - que lhes haviam prometido mundos e fundos em seus países de origem. (Avé-Lallemant, 1961 [1859]). De volta ao Rio de Janeiro, onde desembarcara tomado pela indignação e trazendo consigo algumas dezenas de imigrantes doentes, o médico procurou imediatamente a corte para                                                                                                                 11

Assim os descreviam Tschudi: “(...) gente que nada queria com o trabalho, sujeitos fracassados, criminosos libertados, prostitutas e somente algumas poucas pessoas ordeiras, pois as promessas lhes deviam parecer, de antemão, muito suspeitas.” (2006: 308).

 

 

 

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relatar sua viagem e denunciar a situação que testemunhara na Província de Minas Gerais, sem poupar críticas à Companhia de Comércio e Navegação do Mucuri e ao seu diretor, Teófilo Otoni. As providências do imperador foram enviar logo dois emissários à região. As denúncias de Avé-Lallemant cruzaram o oceano e foram a causa da suspensão da licença para a remessa de novos imigrantes alemães ao Brasil12. De volta ao Rio, Otoni rebateria as denúncias e tentaria recuperar a confiança no seu empreendimento. De fato, chegaria a conseguir um novo empréstimo naquele mesmo ano, mas a crise já estava instalada. No ano seguinte, outro evento trágico aceleraria o declínio da Companhia: o vapor de nome “Mucuri”, um dos principais da frota, naufragaria nos mares do Espírito Santo. Em setembro do mesmo ano, o governo imperial adquiria todas as ações da empresa e em 1861 as colônias do Mucuri passavam de vez ao seu controle. A falência do empreendimento de Otoni representou igualmente a falência daquele modelo de alianças estabelecidas com os indígenas praticado pelo diretor. Para muitos dos seus adversários políticos, o seu afastamento era a ocasião de levar a cabo o extermínio e a perseguição aos povos da região, nos moldes que sempre se fizera ali. Além disso, com a retirada da Companhia e dos seus recursos, vários índios já aldeados foram deixados ao acaso e entregues à fome. Os saques ou ataques que eventualmente promoviam seriam ainda o motivo de investidas fatais contra esses grupos. A conversão à lavoura O leitor de A inconstância da alma selvagem, ensaio magistral de Eduardo Viveiros de Castro (2002a) sobre os desencontros entre os Jesuítas e os Tupinambá no século XVI, certamente terá reconhecido aqui os seus ecos. E talvez, com razão, terá sentido a ausência destas figuras, os missionários, nos Vales do Mucuri e Rio Doce que ora descrevo. De fato, os missionários não estiveram ausentes da colonização destes vales, embora sua presença e influência tenham sido consideravelmente menores do que a dos membros da Companhia de Jesus nos idos de 150013, sobretudo devido ao caráter predominantemente militarista da                                                                                                                 12

“Conta-nos o pastor Bielefeld que o nome ‘Mucuri’ tornou-se uma palavra pela qual a gente, na velha pátria tinha costume de assombrar as crianças até chorarem: ‘cuidado meu filho, se não obedecer, eu te mando pro Mucuri!’, um nome que durante decênios na Alemanha era o primeiro citado porque queriam combater e desgabar a emigração ao Brasil.” (Timmers, 1969: 48).

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Comparando os capuchinhos seus contemporâneos aos antigos jesuítas, Tschudi escrevia: “(...) os capuchinhos de nossa época não têm o mesmo espírito que os fransciscanos e jesuítas dos séculos passados. Falta-lhes a força espiritual, a consciência da importância da missão, a coragem admirável e dedicação

 

 

 

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ocupação desta região. Além disso, na aurora do século XIX, a própria Igreja Católica já não desfrutava do mesmo espaço nas esferas de decisão política e devemos lembrar que os jesuítas, há menos de meio século, haviam sido expulsos de Portugal e de suas colônias por ordem do Marquês de Pombal. Assim, será a atuação da missão dos frades capuchinhos que se destacará na Província de Minas Gerais, especialmente a partir do Regimento das Missões e Civilização dos Índios, publicado em 1845. Sua intervenção vinha alimentar a esperança de que a expertise e a perseverança próprias da empresa missionária dessem finalmente conta da civilização do gentio, objetivo que os soldados e administradores locais já desconfiavam ser impossível alcançar. Cumpre notar que o interesse do Estado na atuação – e, portanto, no financiamento - destas missões também iria variar conforme a demanda por mão de obra nas fazendas da região. Desse modo, o interesse em fomentar as relações pacíficas com os indígenas e em condicioná-los ao trabalho, tarefa da qual deveriam se incumbir os missionários, seria tanto maior quanto menor a oferta de braço escravo, cada vez mais limitada ao longo do século XIX a partir da proibição do tráfico negreiro e, mais tarde, com a própria abolição da escravatura. Por isso, salta aos olhos que a preocupação daqueles padres parecesse mesmo relegar a um segundo plano o problema da conversão religiosa dos indígenas. Como resumia laconicamente o Presidente da Província do Espírito Santo àquela época: “(...) a verdadeira catequese será a povoação daquelas margens e florestas por onde vagam, hão de ser a lavoura, os instrumentos de trabalho, o penacho de fumo dos vapores ou o apito da locomotiva.” (Mafra apud Paraíso, 1998: 826). Guido Marlière também deixaria claro para os subcomandantes das suas divisões que a ordem era “priorizar os investimento no sustento e na educação civil e só depois cuidar da espiritual, devendo os índios serem transformados em bons agricultores, o que permitiria o aproveitamento dessa mão-de-obra mais barata e ‘menos imbecil que os negros’, abandonando-se as escolas de primeiras letras, que não seriam produtivas.” (Marlière apud Paraíso, 1998: 395). O problema da conversão à lavoura ocupou, assim, aqueles homens infinitamente mais do que a conversão ao cristianismo; afinal, estavam muito mais interessados nos “braços” do                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               abnegada que levaram aqueles indivíduos às profundezas das florestas e às choupanas das tribos mais selvagens. Os capuchinhos do Brasil (a maioria, alemães da província de Tirol) acham muito mais confortável e seguro ficar entre os alemães dóceis do que entre os botocudos selvagens, cujas flechas são muito pontudas.” (2006: 275).

 

 

 

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que nas “almas” dos selvagens. Mas que a instrução religiosa fosse de fato uma preocupação secundária não tornava a conversão ao trabalho menos improvável, como já apontei. E como sua insistência em fixar e civilizar os índios em pouco resultava, os missionários não demoraram eles também a concluir pela impossibilidade da tarefa, especialmente em relação aos adultos. Por isso mesmo, os dois métodos que mais obstinadamente perseguiriam nos aldeamentos eram a educação das crianças indígenas, devidamente apartadas do convívio com os pais, e o estímulo aos casamentos entre índios e nacionais: “Bem poucos sabem a grande abnegação e os sacrifícios do pobre missionário capuchinho para tirá-lo da brenha e do deplorável estado de embrutecimento, a que são os índios aferrados desde sua infância (...); por esta razão, tem-se o maior cuidado possível em educar as crianças, a fim de premuni-los a tempo de tais vícios e de acostumá-los ao trabalho útil.” (Gorízia apud Missagia de Mattos, 2002: 456). “(...) é muito custoso regenerar os índios adultos criados no estado brutal na imundície, inação e vagueação dentro de matos incultos (...) Mas é preciso que se lhes tomem seus pequenos filhos antes do estrago de costumes e do gosto à vida selvagem e nômade, como tem-se praticado nesta Colônia Indígena, mimoseando com presentes os pais, a fim de os entregarem ao missionário para sua civilização e instrução primária, ficando este obrigado de os alimentar, vestir e tratar, e de lhes dar livros de escola e também instrumentos de lavoura e ofícios para as horas vagas.” (Sassoferato apud Missagia de Mattos, 2002: 441). “(...) dever-se-á reservar este trabalho e dispêndio [o da catequese] para os menores mestiços, para quem convirá fazer-se um recolhimento, longe de seus pais, que só os possam ver em épocas determinadas, a fim de vedarse-lhes a contínua vadiação a que sempre são conduzidos.” (Oliveira apud Missagia de Mattos, 2002: 254). “Como era difícil recuperar os adultos! Os padres chegaram à conclusão de que era melhor fazer o cruzamento de raças e começarem a incentivar o casamento entre as duas raças já civilizadas e habituadas ao trabalho. Com esses laços conseguiram melhorar o relacionamento, a mudança de hábitos

 

 

 

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e impediram que os índios voltassem para mata depois de aculturados e batizados. (Cultrera apud Missagia de Mattos, 2002: 275)

Assim não era raro ouvir os índios lamentarem: “os portugueses (...) levaram-nos quase todos os nossos filhos, prometeram-nos que eles voltariam, e, no entanto, não os vimos mais.” (Saint-Hilaire, 1975 [1830-1851]: 258). Muitas vezes, a doação das crianças seria mesmo a “moeda de troca” para obterem comida e abrigo nos aldeamentos e afirmarem suas intenções de ali se estabelecerem. Eis, portanto, como eram praticadas as ideias à época tão em voga da “mestiçagem racial”: uma vez separadas as crianças dos demais índios, não se esperava destes senão que fossem aos poucos desaparecendo, sendo a tarefa deixada a cargo das doenças, do alcoolismo, das execuções sumárias e, mais raramente, do envelhecimento, de modo que, com a morte progressiva dos mais velhos, contavam ver em breve abolida a distinção entre “índios” e “nacionais”. (Palazzolo, 1973 [1873-1951]: 175). Mas, obviamente, uma tal indistinção só era desejada se englobada pela distinção, esta sim intocável, entre “nacionais ricos” e “lavradores pobres”, aos quais os índios deveriam justamente se fundir. O interesse fica explícito na política de “uniões mistas”14 levada a cabo nos aldeamentos: “E tem sido justamente em virtude desta união e aliança entre lavradores indígenas com lavradores nacionais, que se tem conseguido aqui a mais acertada e espontânea transformação dos selvagens prejudiciais em laboriosos nacionais mestiços, desaparecendo de modo imperceptível pela mesma metamorfose, ou por morte natural, o alto algarismo de índios puros, terror dos habitantes desta fértil região, povoando-se a extensa e espessa floresta, abrigo outrora de feras bravias.” (Palazzolo, 1973 [18731852]: 174).

Assim, com o passar de algumas gerações, dir-se-iam daqueles homens e mulheres vivendo nos aldeamentos que “somente de índios têm o nome”, e nos censos estatais                                                                                                                 14

Valeria a pena, aliás, analisar detalhadamente os ofícios e censos da época, tendo em vista o sentido destas uniões e a confirmação de certas tendências, como a união muito mais comum entre mulheres indígenas e homens brasileiros do que o inverso. Além disso, as uniões entre indígenas e lavradores pobres significava, no mais das vezes, entre índios e negros. Um tal detalhamento demográfico talvez nos permitisse demonstrar com maior rigor quem, de fato, se “misturou” com quem na história da por vezes tão elogiada mestiçagem nacional. Para uma pequena demonstração neste sentido, ver a apresentação de Missagia de Mattos (2002: 483) do progressivo apagamento das origens indígenas nos nomes ou sobrenomes das alunas do antigo colégio Santa Clara, em Itambacuri.

 

 

 

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passariam progressivamente a constar como “lavradores” ou “nacionais” pobres. E, quando a composição populacional atingia os índices de “confusão” desejáveis, era hora de se proclamar o fim dos aldeamentos e, especialmente, de quaisquer recursos destinados às obras de civilização dos índios. A partir daí, as “origens indígenas” da população pobre só seriam ocasionalmente evocadas quando se tratasse de menosprezá-la ou justificar o seu “atraso” econômico e sociocultural. O “processo da mestiçagem” costuma frequentemente ser imaginado como uma lenta e gradual acomodação do conflito – ou fricção? - entre “visões de mundo” e “culturas” distintas. Tudo se passa como se ao longo da história (do Brasil, pelo menos), índios, negros e europeus fossem através dos séculos se influenciando mutuamente, se misturando, adotando uns os traços culturais (e físicos) dos outros, “contribuindo” cada qual com a gestação de uma identidade ou cultura “nacional”, “brasileira”, “mestiça”, na qual aos poucos tais origens iriam se confundindo, ao ponto de tornar indiscerníveis o que pertenceria a um ou a outrem nesta “síntese original”. As táticas de mestiçagem dos missionários aqui exemplificadas apontam, contudo, para outra direção. Seu alvo principal era a organização social indígena, isto é, o desmantelamento das relações de parentesco entre os grupos aldeados; tratava-se sobretudo de impedir-lhes a reprodução social, via descendência (raptando-lhes os filhos) ou aliança (estimulando o casamento com os nacionais). E, uma vez garantido um tal “bloqueio sociológico”, bastava assistir os “índios puros”, seus idiomas, crenças e costumes “incorrigíveis” (sua “cultura”, se quisermos) definharem à proporção em que sucumbiam – de modo nem tão lento nem tão gradual assim – os seus últimos membros vivos. Eis a “mestiçagem” em ação. Conversão e reversão Num ensaio recente e de amplo alcance comparativo, José Antonio Kelly (s/d) distingue uma das principais características da “máquina da mestiçagem” e de sua influência na formação das identidades nacionais ou criollas latinoamericanas; trata-se da ideia de que o processo da mestiçagem age através de um tipo de “fusão consumptiva”, para o qual a “mistura” entre índios, negros e europeus, se bem que elogiada pelas elites nacionais, sempre prevê no seu ínterim a absorção dos primeiros pelos últimos. Por isso, a ideia por vezes tão louvada de que “somos todos misturados” não costuma contradizer, neste

 

 

 

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esquema, o sentido inexorável da assimilação dos indígenas às sociedades de matriz europeias implantadas nas Américas. Nas palavras do autor: “Two features of this conception of mixture as consumptive fusion stand out. First, the fusion in mestizaje presents an unequally valued contribution of White, indian, and black races or cultures. It is, above all, White social organization, work ethic, and Christian morality that was uplifting and enabling of Latin American societies. Second, each race gives it contribution to the mix, but, through mestizaje, indigenous culture is inexorably bound for assimilation. Mestizaje and ‘assimilation’ are both methaphors for consumptive fusion.” (Kelly, s/d).

O fato de os colonizadores terem por muitas vezes desistido da possibilidade de domesticação, civilização, conversão ou educação dos índios – outras metáforas, igualmente, para “assimilação” e “mestiçagem” - é significativo, contudo, de que aqueles homens esbarravam, na prática, com lógicas ou experiências nativas da transformação muito diferentes das que eles próprios concebiam ou esperavam, especialmente no que diz respeito ao seu sentido unidirecional, isto é, sempre do índio para o branco, do selvagem para o civilizado, do caçador para o agricultor, do pagão para o cristão e nunca o inverso... Por isso mesmo, o que de fato tornava impossível a transformação final do gentio era a sua insistente – ou, como talvez dissessem, “insolente” - reversibilidade. A assimilação indígena seria sempre incompleta15, instável, vacilante... Como resumia o engenheiro Ceciliano Abel de Almeida, sobre os índios do Rio Doce: “mansos, sim, quando lhes dão roupas e eles vestem-nas, mas quando entram, de novo, na mata, e despem-na, tornam-se bravos como dantes.” (apud Missagia de Mattos, 2002: 242). É justamente o caráter reversível, relativo ou “inconstante” das teorias indígenas da transformação que Kelly tem explorado em seus trabalhos mais recentes (2005, s/d),                                                                                                                 15

Incompleta porque se não alcançava um termo final, assimilações nem por isso deixavam de ocorrer, mesmo que sempre seletivas e refratárias aos objetivos totalizantes dos civilizadores. Assim, ainda que talvez sem o mesmo “apetite” tupinambá por, digamos, tudo o que não era seu, os índios do Mucuri e Rio Doce demonstrariam em diversas ocasiões um interesse todo especial pela “cultura” alheia, que era traduzido em frequentes pedidos de batismo, execução de orações, gestos em “sinal da cruz”... Mas isso antes tem a ver com aquilo o que dizia Viveiros de Castro a partir dos Tupi: “os implementos europeus, além de sua óbvia utilidade, eram também signos de poderes da exterioridade, que cumpria capturar, incorporar e fazer circular, exatamente como a escrita, as roupas, os salamaleques rituais dos missionários, a cosmologia bizarra que propalavam.” (2002a: 224).

 

 

 

 

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enfatizando, a partir da etnografia yanomami, a noção de “anti-mestiçagem”, contraponto teórico-político à ideia da “assimilação” dos povos indígenas, reinante nas versões tanto antropológicas quanto populares das teorias do contato. A partir do exame de algumas etnografias recentes entre os índios Piro (Gow, 1991), Wari (Vilaça, 2000), Karajá (Nunes, 2010) e Tzeltal (Pitarch, 2010), Kelly demonstra como a ênfase ameríndia no problema do “tornar-se branco” – um tema, por assim dizer, “panamazônico” – encontra-se posta precisamente no “tornar-se”: “(...) it is the ongoingness, the transformation that is relevant to life; complete, finished, overall conversion into the Other is neither desirable nor possible.” (Kelly, s/d). Desse modo, poderíamos estender a abrangência da noção de “anti-mestiçagem” para o seu outro polo, justamente o “tornar-se índio”. Pois tanto ou mais imprevisível aos esquemas “assimilacionistas” em questão é a ideia de que os índios “aculturados” – como aqueles que iam aos poucos sendo “desindianizados” nos antigos aldeamentos – pudessem reverter, isto é, subverter um tal processo. Não será por acaso que os movimentos mais recentes conhecidos como “emergência étnica” ou “etnogênese” - isto é, coletivos que, considerados há muito tempo “civilizados”, “aculturados”, “integrados”, etc. insistem ainda hoje em afirmar e reivindicar sua indianidade - provoquem tanto “escândalo” na opinião pública nacional. Como comentava Viveiros de Castro (2006) numa conhecida entrevista: “(...) é o mundo de cabeça para baixo e de trás para frente. Pois é como não se pudesse – e pudesse no sentido lógico, não apenas no sentido moral – querer virar índio, só se pudesse querer deixar de sê-lo. É como se querer “virar índio” fosse uma contradição em termos; só se pode desvirar.” O que pretendo destacar aqui é somente que, se o “escândalo” diante de tais movimentos parece tanto maior quanto mais recente eles são – isto é, quando já se presumia que estes coletivos estivessem há muito e irreversivelmente desligados de suas “origens históricas” – movimentos de “conversão” e “reversão” foram, entretanto, uma constante no processo de colonização dos vales do Mucuri e Rio Doce, como as fontes aqui revistas permitem concluir. Assim, não era menor o incômodo dos missionários, comandantes, governadores, etc. quando testemunhavam que os índios, mesmo após décadas aldeados, convertidos ou civilizados, frequentemente os surpreendessem com insuspeitadas reviravoltas:

 

 

 

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“Muitos anos atrás, um rapaz botocudo foi presenteado a uma família na Bahia. Essa família fez com que seu protegido recebesse uma educação cuidadosa. Depois de haver concluído a escola preparatória, para satisfação de seus professores, foi matriculado na Faculdade de Medicina. Contudo, uma melancolia profunda marcava o seu caráter. Depois de ter exercido a clínica médica de forma autônoma por alguns meses, desapareceu da Bahia repentinamente, sem deixar traços. Vários anos depois, seus pais de criação receberam a notícia segura de que ele tinha voltado para as florestas e que seguia, agora, os guerreiros de sua nação com arco e flecha, tendo se desfeito de suas roupas e, com isso, de todos os traços da civilização.” (Tschudi, 2006 [1866]: 266). “Uma prova ainda melhor, de quanto é forte a sua saudade do lar e do modo de vida livre e bruto das mattas, foi-me fornecida pela historia de um padre na comunidade do Rio Pomba. Este padre era Coroado nato que, em creança tinha vindo para o bispo em Marianna que o educou no intuito de dar aos índios um padre da sua própria raça, um pensamento que merece todo applauso. Effectivamente, o nosso Coroado chegou a ser padre e, condecorado com o hábito de Christo, foi mandado para a comunidade converter os seus patrícios. Durante muitos anos, cumpriu elle ahi seu dever para grande satisfação da egreja, quando, repentinamente, acordou-se nelle a vontade de mudar a sua vida de padre para a que elle tinha levado em creança. Despiu a sotaina, deixou o habito de Christo e tudo mais e fugiu em procura dos seus patrícios nús, entre os quaes começou a viver como eles, casou com varias mulheres e até hoje, ainda não se arrependeu da mudança.” (Freireyss, 1901: 247-8).

Ora, tais trajetórias individuais nada incomuns encontrariam ressonâncias, por sua vez, em movimentos coletivos, como nos inúmeros casos de abandono dos aldeamentos já mencionados ou nas revoltas que com frequência eclodiram nas colônias da região. Não por acaso, o aldeamento por muitos anos celebrado enquanto o exemplo de maior sucesso e prosperidade de toda a Província de Minas Gerais revelar-se-ia igualmente o de maior fracasso. Trata-se da Missão do Itambacuri, fundada em 1872 pelos capuchinhos Frei Ângelo de Sassoferato e Frei Serafim de Gorízia, aqui já referidos algumas vezes. Ao longo de vinte anos, os dois padres lograram erguer naquela região um pequeno povoado, onde vieram se estabelecer diversos povos indígenas, a maioria deles Aranã, Naknenuk e Pojichá. O aldeamento daqueles povos pouco conhecidos e considerados, ainda na segunda

 

 

 

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metade do século XIX, como o “terror do Mucuri” era celebrado pela população local como uma espécie de vitória final sobre os selvagens. Como narrou o Frei Palazzolo: “a entrada dos índios Pojichás em Itambacuri constituiu, sem dúvida, um grande triunfo (...). A vasta região do Mucuri estava agora livre de incursões, massacres e depredações; podia a pacífica população cuidar dos seus trabalhos sem temores.” (1973 [1873-1952]: 143). Mas, para surpresa de todos, numa noite de maio de 1893, centenas dos índios aldeados - a maioria deles “meio-civilizados”, como usavam classificá-los - armaram um ataque contra os padres e os nacionais vivendo no aldeamento. Munidos de seus arcos e flechas, os corpos pintados com urucu e jenipapo, os índios se esconderam nas matas ao redor do cemitério local, aguardando que os dois padres voltassem de sua habitual visita à horta da missão. No caminho de volta, já ao anoitecer, os dois foram surpreendidos com duas flechas certeiras, lançadas em suas direções. Uma delas por pouco não atingira no peito o Frei Serafim, penetrando-lhe no antebraço esquerdo. A outra feriu o Frei Ângelo na espádua, mas sua ponta resvalou. O frade então sacou sua espingarda e atirou: “Os índios responderam ao tiro com uma chuva de flechas e, praticando toda sorte de vandalismo, correram em direção ao sul e se acamparam num terreno apropriado para o manejo dos arcos, próximo do largo. Os meninos indígenas internados nas casas dos padres, sob a direção de um professor mestiço, fugiram, juntando-se aos seus pais.” (Gorízia apud Palazzolo, 1973 [1873-1952]: 181). “Destruíram totalmente uma próspera lavoura, que se estendia por mais de 120 quilômetros [sic]; queimaram todas as casas de roça e com estas todos os depósitos de mantimentos, pertencentes aos nacionais ali estabelecidos; destruíram todas as pontes e, finalmente, mataram os animais domésticos que encontraram, deixando por todos os lugares que passaram os restos de uma ferocidade inaudita.” (Onofre apud Palazzolo, 1973 [1873-1852]: 190).

Meio que por milagre, os dois padres sobreviveram. Ao todo, “foram mortos quatro nacionais e 7 foram flechados, tendo enlouquecido um, pelo choque de terror (...)” (Gorízia e Sassoferato apud Palazzolo, 1973 [1873-1852]: 197). As notícias dos ataques não tardaram a chegar em Teófilo Otoni, de onde partiram imediatamente 20 praças que

 

 

 

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“devoraram” as seis léguas que separavam as duas localidades, chegando em tempo de evitar novos ataques. Diante dos reforços enviados, os índios viram reduzidas as chances de sucesso de uma nova investida e dispersaram-se nas matas saqueando e incendiado as casas que encontravam e destruindo as pontes para que não se lhes alcançassem. Mas não levou muito tempo até que as tropas surpreendessem alguns deles no caminho com um tiroteio: “os silvícolas, apesar de toda a sua presteza e habilidade não conseguiram organizar a resistência: sucumbiram diversos e os demais se dispersaram em desabalada fuga.” (Sassoferato apud Palazzolo, 1973 [1873-1852]: 183). A varredura das matas perduraria até que 16 índios fossem capturados e transferidos para o presídio em Teófilo Otoni. O fracasso da missão reacendia nos discursos locais a certeza de que não haveria destino possível para os indígenas senão o seu total aniquilamento.

                     

 

 

 

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CAPITULO 03

Outros, entre outros. Vous les nommez esprits, mais ils sont autres. (Davi Kopenawa) The spirits, the Maxakali say, are always dangerous. (Frances Popovich) Yãmĩyxop mutix | Entre Yãmĩyxop

As narrativas tikmũ’ũn remetem sempre a um passado de incessantes deslocamentos, através dos quais os antigos Mõnãyxop travaram encontros diversos com uma miríade de povos-espíritos, os Yãmĩyxop, que desde então nunca deixaram de lhes visitar em suas aldeias. São eles, dentre outros, Putuxop (espíritos-papagaio), Mõgmõka (espíritos-gavião), Xũnĩm (espíritos-morcego), Ãmãxux (espíritos-anta), Kotkuphi (espíritos-mandioca), Yãmĩyhex (espíritos-mulher), Tatakox (espíritos-lagarta) Kõmãyxop (“comadre” e “cumpadre”), Mĩxuxop (espíritos-folha), Po’op (espíritos-macaco), Kukmax xop (espíritosjabuti)... Estes que menciono, contudo, não são senão alguns deles e por isso insisto no “dentre outros”, pois seria mesmo impossível enumerar todos os Yãmĩy com os quais os Tikmũ’ũn mantêm diariamente uma cuidadosa relação. Estes seres que por falta de melhor

 

 

 

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tradução chamamos16 “povos-espíritos” são multidão e podem se apresentar sob aspectos variados: fora do alcance da vista nas “terras outras” (hãmnõy) que habitam no céu ou nas matas, minúsculos e invisíveis nos corpos ou cabelos dos humanos, materializados nos cantos que entoam no kuxex ou ainda sob os corpos magníficos, coloridos e mascarados que saem no pátio das aldeias para buscar comida, cantar e dançar. Mas os Yãmĩyxop são igualmente o próprio evento, os cantos, as danças ou os “rituais”, como também os chamamos. A eles os Tikmũ’ũn dedicam quase diariamente boa parte do seu tempo, seja preparando o que lhes oferecer de comer, como fazem as mulheres, ou recebendo-os no kuxex, cantando e caçando com eles, como fazem os homens. Quando notei que a palavra continha entre suas raízes o verbo mĩy (fazer), além de yã, um enfatizador, perguntei o óbvio a Isael Maxakali, que nutre um gosto todo especial por etimologia: -

Yãmĩy e mĩy se parecem, não?

-

Sim! Yãmĩy é assim – exemplificou-me - quando uma coisa está formando, formando, mas ainda não acabou...

-

Como transformando?

-

Isso! Muito inteligentes, né, os Mõnãyxop...

Os Tikmũ’ũn também se referem aos Yãmĩyxop como Koxukxop17. Koxuk é a palavra que empregam para glosar as sombras, os rastros deixados por algo ou alguém no solo, uma fotografia ou imagem de vídeo, aquilo o que todos os viventes têm e que os mortos são18, e que os etnólogos também conhecemos como “alma”, “princípio vital”, “duplo” ou “imagem” - noção praticamente universal em toda a América Indígena. Quando viajam longas distâncias (como entre a aldeia e Belo Horizonte), os Tikmũ’ũn recomendam sempre chamar o Koxuk antes de partirem ou regressarem, sob o risco dele não acompanhá-los. O Koxuk também pode abandonar o corpo dos vivos durante o sono - o que é mais comum - e perambular por aí, seguindo caminhos muitas vezes perigosos que conduzem, dentre outros lugares, às aldeias onde vivem os mortos, de onde nem sempre é                                                                                                                 16

Digo “chamamos”, no plural, pois adoto aqui em boa medida as traduções propostas por Rosângela de Tugny (2009a, 2009b, 2011a) a partir de um longo trabalho desenvolvido em parceria com especialistas tikmũ’ũn ao longo da última década. 17

“Os Tikmũ’ũn mostram-me sempre os Yãmĩyxop, os povos-espíritos, com seus corpos pintados chegando à aldeia, dizendo-me que são ‘Koxuk’ ou Koxukxop.” (Tugny, 2011a: 88). 18

Afinal a morte não é senão uma viagem do Koxuk às terras distantes onde ficam as aldeias dos parentes mortos, uma dissociação, em suma, do Koxuk e do corpo (ãyĩn).

 

 

 

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possível retornar. Tais excursões são precisamente os sonhos (yõn kup) e o perigo neles envolvido é este não retorno (a morte) ou este retorno mais árduo, que implica a doença ou “quase-morte”19. Quando morrem, contudo - isto é, quando deixam seus corpos (ãyĩn) de vez - o Koxuk pode perambular ainda algum tempo pelos arredores da aldeia, decidido a levar consigo algum parente próximo, motivo pelo qual todos redobram suas atenções nesses momentos, enterrando, destruindo ou queimando os pertences e às vezes a própria casa do morto ou mudando-se de aldeia; livrando-se, em suma, de todos os seus vestígios ou de tudo aquilo o que pode evocar sua lembrança e despertar saudades, tristeza (estes dois sinônimos: yãĩy) nos seus parentes vivos - sentimentos que são como atalhos para a doença e a morte. Mas com o tempo, os vivos vão se esquecendo dos mortos e os mortos vão se esquecendo dos vivos. O Koxuk então vai se juntar aos Yãmĩyxop, Koxukxop. Agora virão às aldeias tikmũ’ũn para comer, caçar, cantar e dançar. Sobre esta transformação dos mortos em Yãmĩy sei muito pouco. Os Tikmũ’ũn, sempre que instigados por mim, falavam dela num certo tom de obviedade, sem entrar muito em detalhes. Frances Popovich (1988:108) afirma que, passado este período logo após a morte, em que o Koxuk representa uma significativa ameaça aos vivos, seu destino é “escolher” dentre os bandos de espíritos aquele entre os quais deseja ficar (i.e., se transformar) sendo tal escolha relacionada ao grupo de cantos/yãmĩy que a pessoa adquiriu em vida. A autora afirma também que nas situações comuns, o Koxuk do morto é guiado por algum parente morto pelos caminhos que conduzem até suas aldeias distantes. Bem, esta imagem me parece indissociável das experiências de “quase-morte”, isto é, dos sonhos ou dos momentos de perda de consciência, tal como os Tikmũ’ũn costumam descrever. Neles, muitas vezes, os índios se deparam com um parente morto que os conduzem até suas aldeias, que em quase tudo se assemelham às dos vivos: as casas são como as deles, feitas de palha, há fartas plantações de mandioca, batata e banana, a mata é grande e a caça abundante... Lá são convidados a comer e a participarem dos rituais com eles, convite que devem a todo custo recusar. Se aceitam ficar por lá, compartilhando de suas comidas e rituais, adoecem aqui. Se decidem não voltar, morrem. Esta, portanto, parece ser a “escolha” em jogo. Além disso, como os cantos e, portanto, a posse dos Yãmiyxop                                                                                                                 19

A funcionária da Cordenação Técnica Local (CTL) da Funai em Teófilo Otoni recebeu certa vez um telefonema de uma aldeia tikmũ’ũn comunicando que uma mulher havia sofrido um ataque cardíaco e morrido. Ela se apressou em providenciar o resgate e em comunicar a morte às autoridades locais quando um novo telefonema desfez o mal-entendido: “ela morreu só um pouquinho”, corrigiram os Tikmũ’ũn, depois que a parente despertou-se de um longo desmaio.

 

 

 

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circulam entre os parentes próximos, poderíamos talvez supor que os mortos se reúnam eles também, entre os seus, de modo que o destino-yãmiy de cada um seja, como me pareceu, um tanto óbvio. Mas o Koxuk dos mortos também podem assumir a forma de animais variados, como capivaras, pacas, caititus, sucuris, veados, onças... Não por acaso, a palavra para se referir aos bichos em geral, xokxop, bem poderia ser traduzida por algo como “os mortos”, afinal o radical “xok” é igualmente o termo para “morto” e xop, como já sabemos, um coletivizador. Estes mortos-animais, me contou Isael, são especialmente agressivos. Ficam à espreita dos vivos na beira do rio ou nas trilhas da mata esperando sua passagem para que possam atacá-los. Quando os vivos visitam a aldeia ou casa abandonada de um morto, é comum também se depararem com os rastros do bicho. Se são mortos por um caçador e desavisadamente ingeridos, podem provocar doenças. Será então preciso queimar um pedaço de seu couro ou osso e untar as cinzas sobre o doente, expulsando o Koxuk do morto do seu corpo e pedindo que vá embora: apep! apep! Espíritos, mortos, animais... Como se vê, estamos diante de mais um daqueles casos abundantes nas etnografias sul-americanas em que tais posições privilegiadas da alteridade se comunicam ou intercambiam. É bem provável, aliás - como notou Marcela Coelho de Souza para a noção jê setentrional mekarõn - que a vizinhança entre as noções tikmũ’ũn de yãmĩy, koxuk e xokxop expressem um semelhante “problema de perspectiva”: “de seu ponto de vista (em sua aldeia), os mekarõn são humanos; do ponto de vista dos humanos, no entanto, são animais, a não ser que logrem capturar o humano para o seu próprio ponto de vista, revelando-se então como espírito de um morto” (2001: 74). Tais inversões de perspectiva atentam, por sua vez, para a própria impossibilidade de apontarmos definições estáveis ou definitivas para essas mesmas noções. Por isso, talvez, nossas traduções, sempre que tentamos nos aproximar destas potências outras, nos pareçam sempre insatisfatórias, equívocas, parciais... Pois não são apenas múltiplos os “sentidos” de expressões como Yãmĩyxop. São os Yãmĩyxop eles mesmos multiplicidade. Daí suas variações aparentemente infinitas, refratárias às nossas tendências totalizadoras, objetificantes e classificatórias. Assim, pelo menos, entendo a lista que me preparou certo dia o pajé Mamey, na qual mencionava algumas dezenas de variações ou “qualidades” existentes somente entre os povos-morcego-espírito, Xũnĩm:

 

 

 

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É neste sentido, como afirmou Viveiros de Castro, que: “Um espírito, na Amazônia, é menos assim uma coisa que uma imagem, menos uma espécie que uma experiência, menos um termo que uma relação, menos um objeto que um evento, menos uma figura representativa transcendente que um signo do fundo universal imanente – o fundo que vem à tona no xamanismo, no sonho e na alucinação, quando o humano e o não humano, o visível e o invisível trocam de lugar.” (2007: 326)

Mas uma vez brevemente introduzidos os Yãmĩyxop, passemos (também brevemente) àquilo o que de fato mais parece interessar aos Tikmũ’ũn quando os recebem em suas aldeias. Os Yãmĩyxop vêm para comer, cantar e dançar com os humanos. Suas visitas são esperadas e desejadas pelos Tikmũ’ũn e boa parte do cotidiano das aldeias é por elas animado. Não por acaso, a planta ideal de uma aldeia tikmũ’ũn consiste em algumas dezenas de casas retangulares organizadas em semicírculo e voltadas para o centro, onde fica localizado o kuxex, casa onde os Yãmĩyxop vêm cantar. O kuxex, por sua vez, possui uma configuração igualmente especial: suas laterais voltadas para o pátio e casas da aldeia são cuidadosamente vedadas com folhas de palmeira ou feixes de capim, mas sua porção voltada para o exterior da aldeia, por onde penetram os Yãmĩy, é mantida aberta. Somente os homens iniciados - em geral todos a partir dos sete ou oito anos de idade - têm acesso à casa. Os Yãmĩyxop não têm hora pra chegar e, a rigor, qualquer homem adulto pode “chamá-los” (xanãhã), embora geralmente comuniquem a intenção aos pajés mais experientes com alguma antecedência. Estes chamados são feitos a partir de longos assovios que alguém emite já dentro do kuxex20. Conforme o som ecoa pela aldeia, os homens interrompem aos poucos os seus afazeres e rumam em sua direção. No kuxex, enquanto aguardam a chegada dos demais, os pajés mantêm animadas conversas, entremeadas o tempo todo por brincadeiras e gozações uns com os outros, motivo pelo qual do pátio sempre se ouvem sucessivas explosões de risos. São nestas horas também que alguns homens mais velhos costumam contar aos presentes as histórias dos Mõnãyxop - os compridos cigarros de tabaco enrolados em folhas de caderno circulando de mão em mão. Quando se juntam                                                                                                                 20

Quando um dia, desprevenido e um tanto orgulhoso, eu praticava dentro de casa as técnicas de assovio que havia aprendido no kuxex, fui repreendido por minha anfitriã: “tá louco roberto? chamando Yãmĩyxop aqui pra dentro?”. O assunto depois virou motivo de piada.

 

 

 

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alguns homens – em torno de quinze ou trinta - e percebe-se que, por ora, mais não aparecerão, é hora dos Yãmĩyxop descerem, cantando. Como cantam? “Vários cantos, pertencentes aos diferentes repertórios de yãmĩyxop, observam modalidades distintas de emissão. Os cantores tikmũ’ũn dispõem de um vasto leque de formas de emissões vocais e com elas criam ricos jogos de diferenciação. Os regimes de enunciação variam categoricamente para cada grupo ritualístico: os cantos do Putuxop (os povos-papagaio-espíritos) são entoados por alguns vocais homogêneos (homens e espíritos), os cantos do Ãmãxux (os povos-anta-espíritos) alternam-se entre vários solistas; entre os cantos dos Mõgmõka (os povosgaviões-espíritos), predominam os responsórios (solista/coro); os cantos dos Yãmĩyhex (os povos-mulheres/sucuris-espírito) são, na sua maior parte, solísticos, os cantos do Xũnĩm (os povos-morcego-espíritos) alternam coros de vozes masculinas e femininas que se encontram distantes e se ocultam mutuamente (os homens nas casas dos cantos e as mulheres fora, no pátio da aldeia). É no ritual do Po’op que as mulheres têm a maior participação vocal. Em outros repertórios, como o do Putuxop e do Kõmãyxop suas vozes servem como um intensificador timbrístico dos coros masculinos, reforçando as notas mais agudas dos seus cantos, sem, no entanto, reproduzir as palavras. Além desses regimes de enunciação, os espíritos trazem traços distintivos como assovios, gritos, finalizações, timbres vocálicos e instrumentos: nem todos trazem chocalhos (apenas Putuxop e Mõgmõka), poucos trazem aerofones (Hemex, Yãmĩyhex , Tatakox).” (Tugny, 2011a: 155).

Assim como os regimes enunciativos dos cantos, o próprio desenrolar dos rituais variam enormemente: podem acontecer pela manhã, à tarde ou à noite, durar algumas horas de cantoria no kuxex ou estenderem-se por dias (e noites) seguidos; exigirem para sua realização a morte de bois ou porcos ou somente algumas bolachas com café... Tudo varia conforme os Yãmĩyxop, as orientações dos pajés, os homens que participam, os cantos que possuem, a pessoa ou família que chamou o Yãmĩy e que, portanto, deve patrocinar, preparar e oferecer o banquete (ãmmok xeka), feito no mais das vezes de arroz, feijão, frango, macarrão, café, biscoitos, bananas e refrescos... Tampouco a execução dos repertórios de cantos dos Yãmĩyxop respeitam algum ordenamento rígido. Como igualmente enfatizou Tugny, sua estrutura é sempre instável, cambiante, pois “não existe

 

 

 

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apenas uma sequência inequívoca e unilinear, entre os cantos de um ritual. Cada canto está em situação de vizinhança com respeito a vários outros e pode se conectar a outros cantos de diferentes formas.” (2011a: 207). Os Tikmũ’ũn desde crianças adquirem cantos doados por seus parentes mais próximos. Receber um canto é, ao mesmo tempo, vincular-se a um Yãmĩy, tornar-se o seu “pai” (tak) ou “mãe” (tut), passar a partir daí a “cuidar” deles e alimentá-los sempre que estejam de passagem pelas aldeias. Por isso os Tikmũ’ũn também se referem aos pajés (ou payexop) como Yãmĩyxop tak ou Yãmĩyxop tut, “pais” ou “mães” dos Yãmĩy. Quando recebem esses cantos, é nos seus corpos mesmos que eles vêm habitar. Assim, costumam dizer dos “grandes” pajés, que conhecem/possuem muitos cantos, que sentem mais fome que os demais e que, por isso, comem sempre muito, pois os seus Yãmĩy comem com e através deles. É neste sentido também que podemos dizer que todos os homens e mulheres são um pouco xamãs, pois todos possuem cantos/yãmiy. Afinal, como afirmou Viveiros de Castro: “as palavras que traduzimos por xamã não designam algo que se é, mas algo que se tem – uma qualidade ou capacidade adjetiva ou relacional, mais que um atributo substantivo (...)” (2004: 322). Que os Tikmũ’ũn, ademais, não vacilem em apontar em suas aldeias quem são “os” pajés - geralmente homens mais velhos, também chamados yãyãxop – em nada contradiz essa ideia, pois essa diferença se mantém “de grau” e não “de natureza”. Afinal, que alguns homens sejam reconhecidos como principais “conhecedores” ou “especialistas” não fazem dos demais (ou das mulheres) não-xamãs, mas, no máximo, um pouco “menos”21. O trânsito dos Yãmĩyxop nas aldeias é ainda fundamental para a construção dos corpos tikmũ’ũn de uma série de outros modos que a transmissão dos cantos. São eles quem são chamados para restituírem o koxuk ao corpo dos doentes (isto é, “curá-los”), para fazerem crescer e fortalecer os corpos dos meninos ou conduzí-los ao kuxex quando atingem a idade de iniciação; quem expulsam dos arredores das aldeias os temíveis espíritos canibais, ĩnmõxã, ou instilam “mel de fumo” e fumaça de tabaco nos olhos das crianças e adultos, fazendo com que suas cabeças se abram e a memória e o aprendizado dos cantos se                                                                                                                 21

Vejam-se, por exemplo, as histórias tikmũ’ũn nas quais muito frequentemente os antigos homens e mulheres tornam-se “encantados” (yãn xãmẽah), transformando-se em Yãmĩyxop – como Yãmĩyhex ou Mõgmõka. (cf. Tugny et al., 2009a, 2009b).

 

 

 

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reforcem... São eles, enfim, quem “movimentam” a aldeia, tornando todos alegres, fortes e vibrantes. Num dos raros dias que presenciei em que os Yãmĩyxop não vieram cantar e dançar em Aldeia Verde, uma amiga se queixava para mim: “hoje o dia está assim triste...não tem Yãmĩyxop, a aldeia tá toda parada...”22. Sem este movimento, portanto, que animam os corpos e as vidas tikmũ’ũn, todos se entristeceriam, adoeceriam... Seus corpos seriam fracos, a memória ruim, não resistiriam às ameaças que os rodeiam... Fico tentado, então, a especular: o que fariam os Tikmũ’ũn sem os Yãmĩyxop? Existiriam? Persistiriam? Fiquemos com a interrogação. Agora que creio ter apresentado em contornos (bem) gerais as relações entre os Tikmũ’ũn e os Yãmĩyxop, permitam-me antes retomar aquela impressionante intervenção guerreira dos Putuxop (espíritos-papagaio) e Kotkuphi (espíritos-mandioca) no combate contra os Yĩmkoxeka (Botocudo) narrado por Mamey Maxakali e apresentado no primeiro capítulo. Lembremo-nos que, diante do ataque repentino sofrido pelos Tikmũ’ũn, foram estes Yãmĩyxop quem, furiosos, saíram aos gritos do kuxex para vingarem a morte dos seus “pais” e “mães”, liquidando assim com seus inimigos. Vejamos, então, como os Tikmũ’ũn narram as antigas trajetórias destes povosespíritos e seus encontros com eles, para voltarmos, em seguida, à participação deles no combate. O encontro inesperado com o diverso História de Putuxop: “A mãe dos Putuxop sempre chorava quando eles chegavam em um novo lugar. Kũ kũ kũm... kũ kũ kũm..., ela fazia, dizendo que ali alguém havia matado um de seus parentes. Os filhos sempre diziam à mãe que parasse de chorar e dissesse logo quem encheu barriga comendo o pai. Primeiro encontraram uma sucuri que matou seu pai. Mesmo que a mãe advertisse sobre os perigos, os irmãos Putuxop foram onde ela estava e foram cercados por ela. O mais velho conseguiu, com os dentes de sua flecha fazendo cócegas em seu ventre, fazer com que a sucuri levantasse e todos pudessem sair do círculo fechado por ela. Flecharam a sucuri, cortaram em

                                                                                                                22

À propósito, é curioso notar a observação de Frances Popovich em sua lista dos “nove principais objetivos das práticas rituais Maxakali”. Como observa a autora, em primeiro lugar: “play, fun, amusement, excitement of festivities are important aims of both supernatural beings and the Maxakali. The aim of many rituals seems to be no more than this.” (1976: 23). No dicionário elaborado pelo casal de missionários (Popovich e Popovich, 2005), igualmente, o verbo “divertir”, kute’ex, parece muito semelhante ao verbo kutex, “cantar”.

 

 

 

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pedaços e levaram para a mãe cozinhar. Enquanto a mãe cozinhava eles cantavam: Eu e meu irmão matando a sucuri, estamos matando a sucuri, dia rai aa... eu e meu irmão matando a sucuri, estamos matando a sucuri... Quando se mudaram novamente, a mãe chorou e contou que a cobra-cega havia matado seus parentes. Os Putuxop foram atrás da cobra-cega. Ela saiu de dentro da terra, debaixo de um cará grande. Ela logo matou um dos irmãos Putuxop. O irmão mais conhecedor fez vários feitiços e seu irmão ficou bom. Logo atiraram a flecha na cobra-cega e a mataram. Era uma cobra-cega gente, que parecia índio. Levaram para a mãe, que cozinhou. Mas mostraram primeiro para a mãe a minhoca pequena que a mãe disse que não era aquela que havia matado o pai. Deram então o “bicho verdadeiro” e enquanto a mãe cozinhava, os Putuxop cantavam Minhocagente sai de dentro da terra e mata, a minhoca-gente sai de dentro da terra e mata, ai dia a bia ai... Foram embora novamente e a mãe chorou. Disse que foi a lacraia que matou seus parentes. Os Putuxop foram procurar a lacraia e a viram correndo atrás dos quatis e das antas. Os Putuxop mataram a anta e esconderam da lacraia. Quando ela veio, pediu as partes. Um dos Putuxop jogou a cabeça da anta com muita força na cabeça da lacraia e a matou. Levaram para a mãe, que cozinhou enquanto eles cantavam: filhote de anta-fêmea, todo pintado, filhote de anta fêmea, patas cozidas todas arregaçadas... Chegaram onde o esquilo matou seus parentes. Viram o esquilo gente e começaram a quebrar coquinhos para atraí-lo com o barulho. O irmão Putuxop flechou o esquilo-gente e um esquilo pequeno, e levou para a mãe cozinhar. A mãe escolheu o esquilo-gente. Enquanto cozinhava, os filhos cantavam: esquilo em cima dos coquinhos com rabo levantado, esquilo em cima dos coquinhos com rabo levantado... Quando se mudaram novamente, a mãe pediu que buscassem muita madeira para cercar bem a casa, porque lá havia um morcego que matou seus parentes. Cercaram. Logo vieram muitos morcegos, assim que o sol entrou n’água, fazendo: mẽmẽmẽmẽmẽmẽmẽmẽm... Os Putuxop iam batendo em todos e matando. Acharam que mataram todos os morcegos, mas um deles apenas caiu e se aproveitou para morder a vulva da mãe dos

 

 

 

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Putuxop. Quando o filho mais sabido viu que a mãe estava morta, mexeu nela e ela reviveu. Eles prepararam os morcegos e comeram: morcego grande é o seu marido, o morcego grande é o seu marido [a mãe dos Putuxop se casou com o morcego]. Quando andaram novamente, perguntaram a várias árvores se elas eram fortes: a sapucaia, o jequitibá, a jeniparana, até que conseguiram achar uma árvore muito forte. Aí veio o tatu derrubando todas árvores pelo caminho, mas não conseguiu derrubar a árvore onde estava o Putuxop e ficou cansado. Mataram, cozinharam e cantaram comendo: tatu grande vem derrubando a árvore, tatu grande vem derrubando a árvore, hai diac há... “Qualquer bicho que eles matavam tiravam canto da história. Cantam a história, comem e cantam a história.” Mudaram-se de novo e viram os gaviões. Eles haviam matado muitos porcos-do-mato. Os Putuxop mataram dois caititus. Um Putuxop mandou o irmão ir buscar fogo junto aos gaviões, instruindo que pedisse à águiasolitária, e não ao gavião carijó. O irmão fez o contrário e ainda pegou o fogo sem pedir. Os gaviões correram atrás dele e bateram na sua cara. Quando chegou chorando, seu irmão mandou-lhe sentar sobre um caititu e segurar bem forte. Jogou uma flecha sem ponta na panela grande em que os gaviões cozinhavam o porco do mato. Todos os porcos fugiram vivos da panela e a água quente queimou todos os gaviões. Os gaviões ficaram muito bravos e queimaram samambaia seca em volta deles. A fumaça cercou os Putuxop e novamente o irmão mais sabido pegou umas pedras pequenas e jogou no fogo para apagá-lo. O irmão Putuxop ensinou ao outro que ficasse imóvel quando os urubus viessem pousar em suas cabeças. Mas o mais novo mexeu e o urubu mordeu na sua cabeça. O irmão mais velho matou o urubu. Foram embora novamente e chegaram ao outro lado do rio, onde havia muito passarinho: saracura-matraca, saracura do banhado, saracura do mangue, pato. A garça estava pescando e a mãe Putuxop disse aos filhos que atravessassem o rio em seu pescoço. Ela ficaria na outra margem, vigiando alguma traição da garça, segurando o bico dela. Os passarinhos ficaram alegres com a chegada dos Putuxop e ofereceram-lhes “suco de milho preto”. Era um panelão de girino cozido. Mas os Putuxop não aceitaram, dizendo: Ah, vocês trouxeram o suco feito do meu pai!.. Pediram à mãe que fizesse suco de milho verdadeiro e enquanto estavam perto da panela cantavam: você

 

 

 

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trouxe suco de meu pai! você trouxe o suco de meu pai! Mãe, traga nosso suco de milho verdadeiro! você trouxe suco de meu pai! você trouxe suco de meu pai! Os patos ficaram muito bravos e foram chamar uns aos outros. Fizeram pontas nos paus e puseram dentro do rio. Chamaram os Putuxop para banhar. Queriam que as pontas matassem os Putuxop. Os patos deslizavam em cima do rio e chamavam os Putuxop que ficavam agachados perto do rio. Quando um dos patos tentou empurrar o Putuxop, ele se esquivou e o pato caiu na ponta do pau. Os outros ficaram bravos e vieram todos com os passarinhos. Os Putuxop atiraram flechas neles e eles ficaram com o nariz furado.” (Tugny et al., 2009a: 412) História de Kotkuphi: Há muito tempo, um homem morava na aldeia. Todos moravam juntos, mas depois de um ano ou dois os outros homens fizeram reunião para sair e ir morar em outro lugar. Escolheram lugar para morar e saíram. Foram todos. Deixaram as casas vazias. Mas ficou o homem e sua mulher, sozinhos. O homem falou: “-Eu não vou sair daqui, eu vou ficar”. Os outros foram morar em outro lugar. O homem ficou sozinho com a mulher. Eles não tinham filhos. No outro dia, foi ao mato caçar alguma coisa. Encontrou uma árvore que tem frutas. Ele chegou lá e viu que os bichos comeram as frutas. Havia sementes, frutas caídas. Ele então pensou assim: “-Aqui tem frutas, todos os bichos comem. Vou fazer armadilha.” Ele mandou sua esposa fazer uma linha para amarrar e pegar o bicho. Não era armadilha de pau. Era armadilha de pegar algum pássaro. Ele deixou a armadilha armada, terminou e foi até a casa dele. No outro dia de manhã cedo, ele saiu para olhar e pegar e viu. A armadilha pegou o gavião e falou: “-Armadilha não pode pegar gavião, gavião não anda no chão.” Mas tinha sido yãmĩyxop que fez aquilo para ele. Yãmĩyxop pegou o gavião, amarrou no pescoço a armadilha dele e deixou lá para ele pegar. O homem ficou pensando alguma coisa. “Armadilha não pega gavião...” Era yãmiyxop que chama Kotkuphi que fez aquilo para ele. Kotkuphi não existia antes. Tinha Putuxop, Mõgmõka, Po’op. Então kotkuphi veio e deixou gavião na armadilha para encontrar o homem e marcar um dia em que iria à aldeia dele. O kotkuphi deixou o gavião e ficou escondido na árvore que estava perto. O homem veio pegar o gavião e também sabia que

 

 

 

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iria acontecer alguma coisa. Quando abaixou para pegar o gavião já sabia que atrás da árvore havia alguma coisa. Ele se levantou e viu kotkuphi atrás da árvore. Ele pensou que Kotkuphi iria matá-lo e falou: “- Você não vai me matar?”. Mas Kotkuphi falou: “- Eu não vou matar você”. Kotkuphi queria ir ficar com ele na aldeia. O homem não conhecia Kotkuphi e ficou com medo. O Kotkuphi falou para ele levar o gavião, comer e ficar esperando na casa de religião. Ele mostrou o gavião à esposa e contou tudo à ela. De tardinha o homem pegou o fogo e foi até o Kuxex. Os outros homens já tinham ido todos morar em outro lugar. Ele ficou sozinho lá, sem yãmiyxop. Juntou lenha e acendeu. Kotkuphi tinha falado para o homem esperá-lo no kuxex. Ele foi e esperou. Ficou olhando na estrada, olhando pra lá, mas Kotkuphi estava vindo por baixo da terra. Ele olhava pra lá e ia escurecendo e Kotkuphi saiu perto dele, espalhando a fogueira dele, saindo debaixo da terra. Cada Kotkuphi saiu gritando, assoviando. Um saiu e falou assim: rêc, o outro, assoviando, o outro saiu e ficou gritando assim: uôôôôô, o outro saiu e ficou gritando também: uôôôôô. Até saírem todos. Descansaram e depois cantaram. De noite, escurecendo, cantaram as músicas deles até nove horas, nove e meia, e pararam. Aquele homem então ficou amigo do Kotkuphi. Ficou sendo seu dono. De madrugada kotkuphi cantava de novo. De três até cinco horas. Aí eles saíram, os Kotkuphi saíram sem falar nada para o dono dele. Eles são bons de flecha. Jogam flecha e acertam. Saíram cedinho e voltaram, eu acho que em cinco minutos. Não demoraram. Acharam um beija-flor e trouxeram gritando. Chegaram e entregaram para o seu dono. Saíram de novo e trouxeram macaco, trouxeram para dar ao dono dele. Os Kotkuphi mataram muitos bichos e o dono deles ficou sozinho. Então Kotkuphi perguntou: “-Você mora sozinho? Onde estão seus parentes?”. O homem contou que eles foram embora e os Kotkuphi mandaram que ele fosse chamar os outros para voltarem à aldeia. O homem foi e chamou. Contou que Kotkuphi chamaram os outros. Contou para o povo. Um homem falou que ele não conhecia o nome do Kotkuphi. E disse: “-Se nós voltarmos para lá os Kotkuphi vão nos matar.” Mas aquele que já os conhecia explicou: “-Não, eles matam algum bicho e entregam para nós comermos”. Mas os outros não foram. Ficaram com medo. Voltou sozinho para sua aldeia. De tardinha, os outros vieram até sua aldeia. Trouxeram os filhos, as crianças. Chegaram e falaram para os filhos não conversarem, ficar calados. Deixaram todas as suas coisas em suas casas e foram para o Kuxex ver Kotkuphi. Foram. Chegaram no Kuxex. Todos os Kotkuphi

 

 

 

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estavam lá dentro. Estavam deitados. Eles chegaram e olharam Kotkuphi. Era quase de noite e os Kotkuphi estavam começando a cantar. Todos então foram voltando para suas antigas casas. Kotkuphi cantaram até nove horas e pararam e cada um escolheu um homem para ficar sendo seu dono. Escolhiam os homens para dizer quem iria com quem. Escolheram e na madrugada cantaram novamente. Cada homem escutou e foi para o Kuxex. Iam sair todos para caçar. Kotkuphi saíram para caçar. E cada um saía com o dono que escolheu. E cada um matava algum bicho e entregava para o seu dono. Foram todos, Kotkuphi e os homens. Aí Kotkuphi achou um macaco maior, com rabo. Achou lá no mato, em cima da árvore e matou com a flecha. Acertou o macaco, acertou no olho. O macaco caiu, mas o rabo dele ficou enrolado no pau. Ficou lá em cima da árvore, pendurado. O Kotkuphi falou para o dono dele subir e tirar o macaco e ensinou: “-Você vai subir e tirar o macaco e deixar ele cair. Mas você não olha o macaco caindo. Se você olhar eu vou acertar flecha e matar você”. Aí o homem subiu, chegou lá e tirou e jogou o macaco para cair no chão. Ele jogou e olhou o macaco caindo. O Kotkuphi acertou a flecha nele. O homem morreu e caiu também. Kotkuphi matou. Tirou o cipó e amarrou as pernas e jogou nas costas. Pegou o macaco e jogou também e foi embora para a aldeia. E foi chegando gritando. Chegou no meio da aldeia e veio chorando. Estava chorando porque matou seu próprio dono. Chegou no Kuxex e distribuiu seu dono para os outros Kotkuphi. Distribuiu os pedaços e comeu o dono dele. Aí o pai do homem que Kotkuphi matou e as mulheres ficaram com medo. Ele não chorou na aldeia. Saiu para a roça dele, chegou lá e chorou. Os dois choraram, o pai e a mãe. Depois que pararam de chorar foram para a casa deles. Mas o irmão do homem que Kotkuphi matou ficou muito zangado, com raiva. Não foi ao Kuxex, nenhum dia. Ficou quieto na casa dele. Ficou quieto na casa dele. Então Kotkuphi marcou o dia de ir embora, porque já estava na hora de ir embora. Aí aquele irmão estava com muita raiva do Kotkuphi. E o pai e a mãe estavam chorando com saudades do filho. Os Kotkuphi estavam limpando flechas, se pintando, se arrumando para ir embora. Os outros índios levavam comida para os Kotkuphi comerem e irem embora. Mas aquele irmão não mandou comida. Ele sabia que Kotkuphi iria embora. Ele foi no Kuxex e não entrou, não ficou no meio dos yãmiyxop. Não sentava. Ficava em pé. Porque estava muito bravo com Kotkuphi. Aí ele disse aos Kotkuphi assim (quando Kotkuphi vai embora ele joga flechas no passarinho): “-Ah, vocês estão arrumando as flechas todas. Podem arrumar tudo e na hora que forem embora, não joguem nos pássaros, joguem todas

 

 

 

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as flechas em mim. Eu vou subir em cima da casa e ficar em pé. Se vocês não jogarem em mim, eu venho aqui no kuxex e vou matar vocês todos”. Os Kotkuphi então se pintaram e arrumaram tudo, arrumaram as flechas estragadas. Estava chegando a hora deles irem embora. O irmão sabia que ele iria embora. Kotkuphi começaram a cantar o canto de quando vão embora. Pararam o canto, já iam embora. O irmão então saiu e subiu em cima de sua casa. Estava na hora do Kotkuphi jogar flecha em algum pássaro. O irmão subiu lá em cima e ficou em pé. Não caiu. Depois que jogaram as flechas, os Kotkuphi entraram de novo na terra de onde vieram saindo. O homem ficou em pé depois que o Kotkuphi foi embora. Acho que ficou dois minutos, três minutos. Morreu, caiu junto com as flechas e ficou deitado em cima da casa dele. Os outros subiram e tiraram ele de lá. Deixaram no chão. Ficaram todos chorando. Essa história é do Kotkuphi e do ancestral. Ela aconteceu. Toninho contou. Quando as crianças crescerem nós contaremos a elas e elas contarão aos seus filhos e irão passando.” (Tugny et al., 2009a: 408)

Cantos-movimento Os Mõnãyxop viviam se mudando, como sempre costumam enfatizar os Tikmũ’ũn. Não paravam em um lugar só. Estes incessantes deslocamentos são tão constantes em suas narrativas que eu arriscaria mesmo dizer que são qualquer coisa como o “motor” da sua história. Não por acaso, as narrativas tikmũ’ũn muito frequentemente se iniciam por alguma frase - praticamente um “refrão” - como: “os Mõnãyxop iam se mudar...”. Nos mitos, tais mudanças como que preparam ou antecedem algum evento (ou uma série deles) a partir dos quais as narrativas vão se constituindo... Assim a sequência de vinganças guerreiras dos Putuxop - que sempre ao se mudarem e ouvirem os lamentos da mãe partiam em busca dos inimigos que no passado haviam lhes matado o pai. Assim também o “primeiro contato” dos Kotkuphi com os Mõnãyxop, antecedido por uma debandada geral da aldeia, onde um casal não obstante insistira em permanecer. Pois não mudavam-se, apenas, enquanto um bloco ou grupo indiviso. Neste movimentar-se, igualmente, dispersavam-se 23 . E era no curso destas deambulações que os antigos Tikmũ’ũn deparavam-se com povos vários, os quais vinham receber em suas aldeias, para comer e                                                                                                                 23

Lembremos, igualmente, do pajé que, alertado em sonho pelo espírito do filho, não acompanha o bando que partia e, sem saber, ia de encontro aos inimigos Yĩmkoxeka, no relato de Mamey Maxakali.

 

 

 

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cantar, tornando-se assim seus aliados. Como comentou certa vez o pajé Toninho Maxakali: “O antepassado não tinha religião24. Antigamente, morava dentro do mato, mĩmãti, muito mato. Não tinha branco, a terra era grande. Nós morávamos no mato até uns dois, três meses e então reunia para marcar outro lugar para mudar. Aí saíamos para vários lugares no mato. Não tinha religião, espíritos. Aí o Mõnãyxop saía para morar em outro lugar. Aí encontrava espírito. Putuxop não havia antigamente. O Mõnãyxop saía para morar em outro lugar e encontrou o Putuxop. Porque ‘religião’ morava dentro do mato. Assim como Xũnĩm, Putuxop morava dentro do mato. Antigamente não conhecíamos esse Putuxop. O Mõnãyxop encontrou dois Putuxop e os pegou para morar junto.” (apud Tugny, 2011a: 214; grifo meu).

As histórias tikmũ’ũn são, portanto, como vestígios destes constantes deslocamentos e dos encontros inesperados, na mata, com os Yãmĩyxop – estes povos igualmente nômades, que traziam como seu maior bem os vastos repertórios de cantos acumulados ao longo de suas contínuas viagens ou expedições guerreiras. A história dos Putuxop é bastante alusiva neste sentido. Note-se que em sua estrutura não há, a rigor, início nem fim, mas sucessivos encontros/combates, articulados como numa “espiral interminável de vinganças” (Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro, 1985: 200), na qual o canibalismo é o meio por excelência da aquisição dos cantos que são feitos como que “exalar” do cozimento dos inimigos por eles capturados (Tugny, 2011a: 36). “É assim o canto do Putuxop” - acrescenta Toninho Maxakali - “cada canto conta história do Putuxop matando. (...) Por exemplo, canta a da anta que ele também matou. Canta a da cobra. (...) Assim, Putuxop, Xũnĩm e outras religiões cantam, contando história.” (apud Tugny, 2011a: 33).

                                                                                                                24

Os Tikmũ’ũn também costumam traduzir Yãmĩyxop como “religião”, kuxex como “casa de religião” e o mastro que alguns yãmĩy transportam até as aldeias, o mĩmãnãm, como “pau de religião”. Não sei se porque nos últimos tempos passaram a ter mais contato com antropólogos e etnomusicólogos do que com missionários, mas tenho notado um uso mais frequente da tradução por “rituais” por algumas lideranças/professores atuais. De todo modo, me parece que ao traduzirem Yãmĩyxop como “religião”, os Tikmũ’ũn visam sobretudo contrapor um certo discurso da “escassez” e as tentativas missionárias de conversão apoiadas muitas vezes na ideia de que os índios não teriam religião ou que seus “espíritos” e “rituais” não seriam “religião”. Por isso é comum ouví-los afirmar “os yãmĩyxop são nossa religião”, assim como, inversamente, afirmam que as diversas religiões não indígenas são “os yãmĩyxop deles [dos brancos]”.

 

 

 

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De fato, praticamente não há eventos narrados pelos Tikmũ’ũn de onde os seus antepassados não tenham extraído cantos25. “Essa história tem canto”, costumam dizer os pajés no entremear de uma narrativa ou no seu desfecho. Ou ainda, “este lugar tem canto, tem história”, afirmam sempre que se referem a locais específicos, como uma cachoeira, uma pedra, uma montanha, a nascente de um rio... Lugares por onde passaram os antigos Mõnãyxop e que compõem a “paisagem cantada” dos Tikmũ’ũn atuais. Estes cantos, por sua vez, são muitas vezes como descrições em plano detalhe dos eventos ou dos seus personagens, como imagens em movimento ou ações em si fazendo26, como algumas passagens dos cantos dos Putuxop permitem entrever: Eu e meu irmão matando a sucuri, estamos matando a sucuri, dia rai aa...   Minhoca-gente sai de dentro da terra e mata, a minhoca-gente sai de dentro da terra e mata, ai dia a bia ai     filhote de anta-fêmea, todo pintado, filhote de anta fêmea, patas cozidas todas arregaçadas... esquilo em cima dos coquinhos com rabo levantado, esquilo em cima dos coquinhos com rabo levantado...   tatu grande vem derrubando a árvore, tatu grande vem derrubando a árvore...

Há, portanto, - me parece - toda uma cinemática nestes cantos-movimento tikmũ’ũn. Como se o que eles dessem a ver fossem justamente as imagens destes deslocamentos incessantes dos Mõnãyxop e Yãmĩyxop em suas expedições pela floresta. Associação, enfim, entre canto e nomadismo que não me parece tão distante do que autores como Pedro Cesarino (2006, 2011) têm enfatizado a partir de seus estudos em torno dos cantos xamanísticos ameríndios, nos quais as ideias de “deslocamento” e “caminho” possuem um considerável rendimento conceitual. Como observa o autor, tendo em vista especialmente o amplo recurso ao paralelismo na estrutura destes cantos: “(...) cada linha nada mais é do que fragmento de uma imagem maior em que vemos a pessoa do cantador se deslocar por                                                                                                                 25

As exceções mais notáveis, como igualmente notou Tugny (2009a, 2009b, 2011a), são as histórias de ĩnmõxa e São Sebastião, exatamente aqueles seres com quem os Tikmũ’ũn não aprenderam cantos. Comentarei as histórias de ĩnmõxa mais adiante. 26

Ora, não era uma definição semelhante a que me oferecia acima Isael Maxakali para o termo yãmĩy? Algo em si fazendo, “formando, formando...”, sem conclusão?

 

 

 

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posições outras do cosmos.” (Cesarino, 2006: 106). Rosângela de Tugny afirma algo semelhante acerca da experiência musical tikmũ’ũn: “(...) quando cantam coletivamente com os espíritos, estão ao mesmo tempo refazendo com eles seus caminhos e encontrando com eles imagens que povoam esses caminhos.” (Tugny 2011: 114). Cantar e deslocar seriam assim duas atividades aparentemente inseparáveis. Por isso, talvez, os Yãmĩyxop “cantam, contando história”. Relações perigosas Desejados e aguardados em suas aldeias, os encontros com os Yãmĩyxop não são nem por isso ocasiões livres de perigos. Isso porque os espíritos – como os “Outros” em geral - são marcados por uma intensa ambiguidade, entre afins e inimigos, mansos e ferozes, “bons” e “ruins” 27 ... Putuxop e Kotkuphi, por exemplo, são dois povos-espíritos reputados especialmente ferozes e agressivos pelos Tikmũ’ũn. Exímios cantores e caçadores, são também guerreiros e canibais. Sua violência inicialmente incontrolável teria sido o motivo pelo qual, num passado recente, foram eles os autores de frequentes agressões contra os humanos: “The Kotkuphix ‘Manioc Stalk’ spirit has orange and black stripes all over its body. It is one of the most vicious spirits. Some spirits have superhuman sexual appetites and are sexually abusive to women. The Putuxop ‘Parrot’ Spirit has an enormous male sexual organ that it uses to punish incest or just to rape a woman for pleasure. Rape by theses spirits are always fatal.” (Popovich, 1988: 103) “One myth tells how the Putuxop ‘parrot’ spirits punished a woman for comitting incest with her brother. It seems the brother slept through the entire process, so only the woman was guilty. The spirits raped the woman with their immense sexual organ and killed her.” (Popovich, 1988: 50). “Kotkuphixnãg used to kill and eat people but does not do so today. Kotkuphix ate children and kotkup mãnã looked for a child sacrifice.” (Popovich, 1976: 15).

                                                                                                                27

Os Tikmũ’ũn por vezes se referem aos yãmĩyxop como “max” (bons, belos) ou kumuk (ruins, feios). Embora fosse possível identificar alguns deles entre uma “classe” ou outra, creio que o mais importante aqui é a ambiguidade que estes espíritos revelam entre um polo e outro.

 

 

 

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O “histórico do contato” com estes espíritos é assim frequentemente descrito pelos Tikmũ’ũn como uma trajetória de sucessivas aproximações, ao longo das quais estes lograram pouco a pouco “amansá-los”. Como explicou uma mulher a Rosângela de Tugny: “(...) antigamente, se kotkuphi quando vinha gritando no caminho, visse tihik [homem, parente], matava. Era muito valente. Mas as mulheres no resguardo e as mulheres menstruadas mandavam comida para kotkuphi para amansá-lo. Elas foram mandando e assim amansaram.” (apud Tugny, 2011a: 87). Ao longo do tempo, igualmente, aprenderam a manter com eles uma cuidadosa etiqueta do olhar. Quando ouvem os gritos e assovios dos espíritos anunciando a chegada na aldeia após uma expedição de caça, mulheres e crianças apressam-se em se esconder em suas casas, aguardando até que eles atravessem o pátio e adentrem o kuxex. Também evitam sempre encará-los diretamente, mesmo quando se aproximam deles para oferecer comida ou dançar. Cheguei mesmo a ouvir que no passado, quando eram mais violentos, os Yãmĩy chegavam a arrancar os olhos daqueles que os fitassem. Como observou Luizinha Maxakali: “se os antepassados não tivessem amansado os Yãmĩyxop, eles estariam brabos até hoje” (apud Vieira, 2006). Mesmo assim, ainda hoje, os Yãmĩyxop podem eventualmente se enraivecer e vir repreender os Tikmũ’ũn pelo seu mau comportamento. Foi assim que numa manhã de maio de 2014, chegaram à aldeia vários deles, yãmĩy mõg ka’ok (espírito corredor), yãmĩy hãmgãy (espírito-jaguar), yãmĩy kup xahi (espírito-chefe), mõgmõka (espírito-gavião) e reuniram mulheres e crianças no pátio para soprar em seus olhos fumaça de tabaco. Alguns vieram espontaneamente, atendendo o chamado dos pajés, enquanto outros fugiram ou se esconderam em suas casas, onde os Yãmĩy iam buscá-los um a um. Os pajés explicavam que os Yãmĩyxop estavam bravos (ũgãy) com algumas mulheres que recentemente tinham deixado de dançar no pátio, ou que não estavam cuidando bem dos seus filhos. As crianças, por sua vez, eram punidas por não quererem ajudar os pais nas tarefas do dia-adia ou por não estarem frequentando o kuxex, no caso dos meninos iniciados. No dia seguinte, os Yãmĩyxop ainda voltaram, desta vez para punir os próprios pajés, que haviam recentemente bebido cachaça (kaxmuk)28 e prejudicado o bom andamento de um ritual. Um

                                                                                                                28

Os Tikmũ’ũn chamam cachaça (e por vezes a própria pessoa embriagada) de kaxmuk, literalmente, “som ruim” (kax = som; muk uma contração de kumuk, ruim) em alusão à fala ou canto desarticulados das pessoas em estado de embriaguez.

 

 

 

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a um os pajés foram conduzidos até o pátio, onde os Yãmĩyxop os açoitaram com finas varas de pau, à vista de todos. Chamo atenção para estes eventos para reforçar justamente a ambivalência dos Yãmĩyxop. Ambivalência que não é senão a marca da condição de estrangeiros que estes espíritos, antes de tudo, são. Notemos, por exemplo, o sentimento de medo frequentemente evocado nos relatos de seus primeiros encontros com os Mõnãyxop na mata, bastante explícito na história de Kotkuphi quando o índio revelava-se mesmo um tanto surpreso ao constatar que a intenção do forasteiro não era matá-lo. “Você não vai me matar?” - perguntava um tanto incrédulo. É com temor, igualmente, que os parentes do Mõnãyxop recusaram-se à princípio ir de encontro aos Kotkuphi na aldeia que haviam há pouco abandonado, suspeitando que acabariam todos mortos. Mas não obstante um tal temor, ao entardecer, todos decidiram voltar e se aproximar do kuxex, onde os espíritos dormiam. Que medo é esse, portanto, que ao invés de afastar, atrai? Que em vez de pura repulsa é também desejo? 29 Creio estarmos diante daquela “forma de medo” que, como comentou Viveiros de Castro: “(…) muito longe de exigir a exclusão ou a desaparição do outro para que se recobre a paz da auto-identidade, implica necessariamente a inclusão ou a incorporação, do outro ou pelo outro (pelo também no sentido de “por intermédio do”), como forma de perpetuação do devir-outro que é o processo do desejo nas socialidades amazônicas.” (Viveiros de Castro, 2011: 889). Notemos ainda na história de Kotkuphi que tão logo os espíritos são recebidos na aldeia para cantar com os homens, estes se tornam os seus “donos”. Os espíritos escolhem, como disseram, “quem iria com quem” antes de partirem todos para caçar. Sem querer me enveredar aqui numa longa discussão em torno de noções como “dono”, “pai” ou “mãe” dos espíritos – o que certamente exigiria maior atenção – o que gostaria de destacar é essa continuidade entre os rituais, a caça e a guerra, essas formas privilegiadas de relação com a alteridade. É para uma tal continuidade, afinal, que a intervenção dos Putuxop e Kotkuphi                                                                                                                 29

Ainda sobre o medo, é curioso notar que é ele o sentimento evocado em vários comentários dos cronistas acerca da relação dos índios com seus “entes sobrenaturais”. Pois, se bem que não cressem em nada – isto é, em nenhum “Ser Supremo” – temiam, isto sim, muitas coisas. Veja-se, por exemplo, a observação de Freireyss sobre os Coroados: “Não adoram Deus algum bom, mas temem um gênio mau que elles se figuram na trovoada.” (1901: 245) ou a conclusão de Hartt sobre a vida religiosa dos Botocudo: “I was unable to learn that the Botocudos had any idea of a God. The moon, which they call Tauru, is an object of fear, the Indians believing that occasionally it falls upon the Earth, destroying men, and that it sends storm and famine.” (1870: 599, grifo meu).

 

 

 

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no combate contra os Yĩmkoxeka parecem apontar. Experientes “matadores”, são os espíritos quem vingam os Mõnãyxop mortos. A intervenção de Putuxop é me ainda mais sugestiva por alguns detalhes. Os cantos que surgiram a partir do combate narrado por Mamey Maxakali são associados ao repertório deste povo-espírito. Lembremos da imagem evocada por um deles, em que é justamente o “chefe dos papagaios” quem repara o arco e as flechas, preparando-se para os inimigos: punux xeka nãg o chefe dos papagaios punux xeka nãg o chefe dos papagaios tapu’ux ãpot hã preparando para o inimigo tapu’ux ãpot hã preparando para o inimigo nãm tut max nã reparando o arco e as flechas yak ha ha hax hax hi hia

Além disso, quando os Putuxop visitam as aldeias tikmũ’ũn hoje em dia, são acompanhados pelos Yĩmkoxeka. São eles que saem do kuxex para abater a flechadas e bordunadas o porco que é atado a um poste no pátio do ritual. Segundo Tugny: “Os Tikmũ’ũn sempre explicam: “eles mataram e ficaram com eles, passaram a andar juntos”. É como ocorreu com os Putuxop e os Botocudos que mataram. Incorporaram seus cantos e sua amizade. Hoje os Botocudos acompanham os Putuxop quando eles vão às aldeias. Os cantos são novas camadas corporais, novas peles, roupas adquiridas pela pessoa múltipla dos Putuxop. Quanto mais caminhavam e consumiam inimigos, mas assimilavam cantos.” (Tugny, 2011a: 37)

Impossível dissociar, portanto, a trajetória guerreira e canibal dos Putuxop do relato do antigo combate no qual estes foram, aliás, os primeiros a deixar o kuxex e partir para o ataque/vingança contra aqueles que matavam seus “pais”. Associação que, por sua vez, suscita outra possibilidade intrigante, a de que do mesmo modo como eram eles quem

 

 

 

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matavam os inimigos dos Tikmũ’ũn, fossem eles também quem eventualmente os devoravam... Mas a participação dos espíritos na caça e na guerra parecem igualmente indicar uma certa vizinhança entre as posições de “matador”, “espírito” e “inimigo” - algo mais ou menos nos moldes do que propôs Viveiros de Castro (1986, 2002c) acerca do “ponto de fusão” do par matador-vítima Araweté/Tupinambá. Em sua interpretação da antropofagia tupi, Viveiros de Castro insistiu mais de uma vez que o que estava em jogo na “tragédia canibal” não era simplesmente a incorporação das potências do Outro ao Eu, mas especialmente uma alteração do Eu enquanto Outro. Em suas palavras: “a fusão entre o matador e o inimigo pressupõe um devir-outro do primeiro: o espírito de sua vítima jamais o deixa.” (Viveiros de Castro, 2002: 279). A posição do matador confunde-se, portanto, com a do inimigo. Matar é também morrer um pouco. Daí o perigo eminente evocado pela figura do homicida e as interdições de diversas ordens (alimentares, sexuais, rituais) que sobre ele costumam pairar, modos de evitar justamente que o processo incorra numa transformação descontrolada. Nesse sentido, acumular sucessivas mortes – o “ponto de honra” do guerreiro – equivaleria a morrer sucessivas vezes. Entre os Araweté, é justamente esta relação íntima do guerreiro com a morte que garante ao guerreiro morto um outro estatuto ontológico. Ao contrário dos comuns dos mortais, o matador, moropï’nã, não é devorado pelos Maï, os deuses canibais, quando atinge as suas moradas celestes. O seu destino é passar diretamente ao banho da imortalidade e tornar-se um Iraparadï, entidade temida e respeitada pelos próprios Maï. Como concluiu Viveiros de Castro (2002c: 280), é justamente por já conter em si esta “fusão complexa” de inimigos que o moropï’nã morto dispensa a devoração pelos Maï. Pois, sendo ele próprio um canibal, ele já é ele mesmo um Maï. O matador é, em suma, um “deus antecipado” (2002: 280). Matar é, assim, outra maneira de tornar-se espírito. O paralelo entre guerra e xamanismo30 é evidente: ambos são modos particulares de alteração ou “exteriorização do eu”, modos de perpetuar, enfim, o “devir-outro”.

                                                                                                                30

Como observou Viveiros de Castro: “a guerra indígena pertence ao mesmo complexo cosmológico que o xamanismo, na medida em que envolve a incorporação do ponto de vista inimigo.” (2011: 908).

 

 

 

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É nesse sentido, portanto, que consigo vislumbrar uma aproximação entre as figuras do “matador-espírito”, tal como o moropï’nã araweté, e dos “espíritos-matadores”, tal qual os Putuxop ou Kotkuphi entre os Tikmũ’ũn. Pois, assim como os primeiros tornam-se espíritos matando, estes últimos parecem tornar-se espíritos para matar. Em ambos os casos, o que parece crucial é a necessária ocupação do ponto de vista de outrem que a experiência guerreira coloca em ação. Experiência, ademais, inseparável de sua atividade cantora e caçadora. Afinal, se todo homem é um pouco pajé/cantor - porque contém em si os Yãmĩyxop - todo homem também é idealmente guerreiro e caçador. Os brancos canibais “Os indígenas temem o encontro, mas ao mesmo tempo o desejam.” (Lévi-Strauss)

  Se os espíritos, como estamos dizendo, “são outros”, então é justo supor que os “outros, entre outros”, sejam qualquer coisa como “espíritos”. Refiro-me, naturalmente, à famigerada equação entre brancos e “espíritos”, “deuses” ou “almas dos mortos” tão recorrente nas diversas “cosmologias do contato” registradas em várias partes da América Indígena (Albert, 2002). Uma tal associação, contudo, ao contrário do que sua vulgata tão frequentemente faz crer, em nada corrobora a conclusão automática por uma suposta e autointitulada supremacia dos brancos sobre os índios, como se a aparição dos primeiros encarnasse tudo o que há de mais magnífico e extraordinário a percorrer os mundos dos outros. Em primeiro lugar, porque os “espíritos” ameríndios em nada se parecem com as imagens de exterioridade e transcendência comumente evocadas pelas tradições cristãs ocidentais para figurar suas divindades 31 . E em segundo, porque o encontro com a alteridade e uma certa “abertura ao outro” (Lévi-Strauss, 1991) é a regra e não a exceção nos “multiversos” ameríndios. Se o encontro com os brancos foi, portanto, uma “surpresa” para os índios, nada exceto o nosso próprio narcisismo etnocêntrico autorizaria presumir que tenha sido a maior ou, sobretudo, a mais importante delas.                                                                                                                 31

Lembremos que a ausência de algum “Ser Supremo” o qual venerassem ou idolatrassem – constatação praticamente unânime entre os cronistas - foi muito frequentemente apontada pelos missionários para justificar a dificuldade de converter o gentio. Dois exemplos desta constatação entre os índios do Mucuri e Rio Doce: “Os Botocudos parecem ter uma ideia vaga da imortalidade; mas são, provavelmente, estranhos à de um ser supremo (...).” (Saint-Hilaire, 1975 [1830-1851]: 253); “Embora os Macunis que atualmente vivem na aldeia sejam todos batizados e tenham, portanto, nomes cristãos, possuem contudo uma ideia muito superficial e material de um Ser Superior. Quando se pretende dar-lhes uma explicação a respeito, a sua primeira pergunta é se no Céu nascem batatas, que é o seu prato predileto” (Pohl, 1976 [1817-1821).

 

 

 

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Como nos dizia Toninho Maxakali, antigamente não havia Yãmiyxop, espíritos. Não havia Xũnĩm, Po’op, Putuxop, Kotkuphi... Do mesmo modo, antigamente não havia ãyuhuk, os brancos. Os Mõnãyxop encontravam estes estrangeiros ao longo de suas excursões pela mata e de seus constantes deslocamentos. A história de Kotkuphi, mais uma vez, é quanto a isso exemplar. Desejoso de conhecer a aldeia dos Mõnãyxop, o espírito como que subvertia uma armadilha feita especialmente para capturar aves terrestres, atando a ela o supremo predador dos céus, o gavião. Com isso, é como se a armadilha se invertesse e sua “atração”32 se voltasse justamente contra o caçador que instigado pela improvável captura retornava no dia seguinte, feito uma presa, e deparava-se finalmente com o espírito. Mas poderia ainda evocar a história de Xũnĩm, o espírito-morcego, para outra imagem destes encontros: “Antigamente havia os nossos ancestrais, mas morcego-espírito para cantar não havia. Havia pés de banana e quando cresciam e saíam os cachos, os ancestrais os tiravam para deixar amadurecer. Uma vez, quando um ancestral foi buscar um cacho de banana, o morcego-espírito estava dentro do mato comendo banana madura. Ele chegou, viu as cascas e soube que não foi bicho que comeu. E soube que não era gente porque não viu sinais dos pés. Então o ancestral cortou novamente um cacho para deixar amadurecer e foi à tarde olhar e viu: alguém estava comendo suas bananas maduras e saiu fugindo. Ele mandou parar e perguntou: “- Você está comendo as bananas maduras que eu cortei?”; “- Eu comi, eu como só banana, essa é a nossa comida.”; “- Então venha dentro da nossa casa de cantos para comer bastante banana.” E o homem ainda lhe perguntou: “como são os cantos do seu povo?”. E o xũnĩm cantou: - ô hô hô hô hô ô hô hô hô hô hô hô” (Tugny et al., 2009: 39).

Os Tikmũ’ũn, como se vê, são portanto bastante experientes na “arte dos encontros” e talvez não deveria nos surpreender se o contato com os primeiros invasores europeus não tivesse passado para eles justamente disso: uma surpresa. Ou, como afirmou Marilyn Strathern sobre o contato entre melanésios e europeus, “a surprise, but not a special surprise” (1990: 31). Afinal, estamos tratando de mundos (o melanésio e o ameríndio, notadamente) em que, ainda nos termos da autora, “people constantly take themselves by                                                                                                                 32

Esta imagem de uma armadilha (e sua inversão) mediando o “contato” me parece, aliás, especialmente intrigante. A mim não deixa de evocar os “presentes” que os brancos espalhavam pela mata para “atrair” (a coincidência verbal não parece, justamente, uma coincidência) os indígenas.

 

 

 

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surprise.” (1990: 30; grifo meu). Mas que não se conclua daí que todo encontro é irrestritamente desejado e positivado, entre os índios. Pois há também encontros que são “mau-encontros”, aqueles precisamente em que a relação e a troca se demonstram total ou praticamente impossíveis. Assim, se os brancos foram com efeito encarados enquanto “espíritos” não foram, entretanto, tomados por um espírito – isto é, um Outro - qualquer. Os Tikmũ’ũn afirmam que os brancos surgiram dos espíritos canibais ĩnmõxa. Conta o mito que antigamente um dilúvio inundou toda a floresta e apenas um Mõnãyxop sobreviveu abrigado no tronco oco de uma árvore. Quando a água finalmente cessou, o homem preso e faminto foi socorrido pelo demiurgo Topa, que percorria a mata sob a forma de um besouro. Após resgatá-lo, Topa o alimentou e o ajudou a procurar uma mulher. O homem encontrou finalmente um veado fêmea, com quem copulou e teve vários filhos. Assim surgiram os Tikmũ’ũn. Já os brancos surgiram dos ĩnmõxa. Têm os corpos peludos como os deles. Topa ofereceu o rifle aos Tikmũ’ũn, mas como eles não souberam manuseá-lo, acabou legando a arma de fogo aos brancos, e deixando os primeiros de posse do arco e flecha. 33 Além disso, os brancos - atualmente chamados ãyuhuk - são também frequentemente associados às onças (hãmgãy): “uma vez questionei porque, em determinados momentos de rituais, a onça é também o homem branco. Disseram-me que eles não esperam, não conversam. ‘O branco pega logo o revólver, assim como a onça não espera’”, conta Rosângela de Tugny (2008: 05). Os Yãmiyxop, como vimos, podem ser ferozes, matadores e canibais, mas em seus encontros com os Mõnãyxop na mata interessavam-nos sobretudo conhecer suas aldeias, ser recebidos em seus kuxex, caçar, cantar e dançar com os Tikmũ’ũn. “Eu não vou matar você”, dizia Kotkuphi, revelando que sua intenção era ser recebido na aldeia dos Mõnãyxop. “Venha pra nossa casa de cantos comer bastante bananas!”, convidava o Mõnãyxop, por sua vez, ao Xũnĩm que encontrara no bananal, curioso para conhecer o repertório daquele povo. Com os ĩnmõxa, brancos e onças, entretanto, as coisas se passam de outro modo. Não há “espera”, troca, diplomacia ou aliança possível. Ou pelo menos é essa a imagem que prevalece na relação com esta difícil categoria de seres. Os brancos somos, assim, os “mau aliados por excelência”, gente com quem não se troca cantos, comida ou casamentos, mas que mata, rouba e escraviza gente (Viveiros de Castro, 2000).                                                                                                                 33

Para uma versão estendida desta narrativa, ver Harold Popovich (1976b).

 

 

 

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Mas, ainda sobre os ĩnmõxa, é importante acrescentar que não se tratam apenas de criaturas estrangeiras, inimigos ferozes e inconciliáveis a aterrorizar as aldeias tikmũ’ũn, mas igualmente uma forma de alteração descontrolada a qual estão sujeitos os próprios Tikmũ’ũn ainda em vida. O descumprimento do resguardo de sangue após o nascimento de um filho, a ingestão excessiva da “larva de taquara” kutekut (um poderoso alucinógeno) ou ainda o consumo exagerado da cachaça são alguns dos principais motivos apontados para essa transformação indesejada. A pessoa “enlouquece” (yãy hã putox kumuk), passa a vagar sozinha pelos arredores da aldeia, não reconhece mais os parentes, o humor e corpo se alteram e um apetite desmesurado por carne crua começa a lhe acometer. Os espíritoslagarta, Tatakox, e o som potente dos seus aerofones podem ser chamados para impedir que uma tal transformação se efetive, mas em alguns casos nem mesmo eles conseguem evitá-la. A pessoa terá então assumido a perspectiva ĩnmõxa: “O pai de um homem deu cabeça de kutekut, a larva da taquara, para um outro comer. Este não respeitava o resguardo e já queria virar doido, estava andando igual bicho. Comeu kutekut com a cabeça. Ele tinha duas mulheres. Comeu a cabeça e cantou religião só de bicho, ĩnmõxa. Virou bicho. O pessoal o amarrou. Tatakox (espírito-lagarta) veio tentar tirar bicho dele, mas não conseguiu. Acabou o pinto dele (virou mulher), a boca, o nariz, tudo mudou. (...) Passava uma índia com barrigão e ele dizia: “Que vontade de comer menininho novinho!”. Depois que mataram a capivara, para testá-lo, levaram sangue cozido. Ele virou a cara. Nem olhou. Levaram fígado cru. Ele avançou e comeu tudo. Os tihik [parentes] desistiram. As mulheres todas choravam. Pajé foi, pediu Yãmiyxop que o amarrasse bem amarrado. Eles o levaram para o córrego e o mataram enforcado. (Tugny et al., 2009a: 432).

O que esta perigosa potência transformacional parece colocar em evidência é justamente a instabilidade da própria condição de humanidade. Afinal, em um mundo em que “tornar-se outro” é uma possibilidade latente – e frequentemente atraente – assegurar uma posição (a de humanos) é precisamente o desafio que se impõe. É assim que o perigo de “tornar-se ĩnmõxa” deve necessariamente implicar o esforço em “tornar-se tikmũ’ũn”. Explico-me. Usei até aqui o termo Tikmũ’ũn talvez um tanto excessivamente ao modo de um

 

 

 

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“etnônimo”, como se ele delimitasse muito precisamente os contornos do socius ou circunscrevesse uma “comunidade” ou “grupo” bem definidos. Ocorre que não é bem assim. O termo Tikmũ’ũn condensa as raízes tik, contração de tihik (homens), mũ (“mesmo” ou “verdadeiros”) e ũn, contração de ũhũn (mulheres)34, algo como “homens e mulheres verdadeiros” ou “humanos verdadeiros”, como também costuma-se traduzir. Designações desse tipo, como sabemos, são praticamente universais entre os coletivos indígenas. Como destacou Viveiros de Castro (2002) à respeito: “A primeira coisa a considerar é que as palavras indígenas que se costumam traduzir por ‘ser humanos’ (...) não denotam a humanidade como espécie natural, mas a condição social de pessoa, e, sobretudo quando modificadas por intensificadores do tipo ‘de verdade’, ‘realmente’, ‘genuínos’, funcionam pragmática quando não sintaticamente, menos como substantivos que como pronomes. Elas indicam a posição de sujeito (...). Por isso as categorias indígenas de identidade coletiva têm aquela enorme variabilidade de escopo característica de pronomes, marcando constrastiva e contextualmente desde a parentela imediata de um Ego até todos os humanos, ou todos os seres dotados de consciência.” (Viveiros de Castro, 2002b: 371).

Desse modo, ĩnmõxa e tikmũ’ũn não distinguem duas entidades substantivas, mas antes qualidades perspectivas, posições, ou pontos de vista suscetíveis a inversões. É por isso que, como afirmava acima, a possibilidade de “tornar-se ĩnmõxa” implica como seu contraponto lógico a possibilidade – um esforço permanente, aliás - de “tornar-se tikmũ’ũn”. Caberia, portanto, indagar, “o que faz dos tikmũ’ũn, tikmũ’ũn?”, uma vez que esta não é uma condição inata? Uma vez que tal condição deve ser, como afirmou Marcela Coelho de Souza (2001: 90), “ativamente construída, isto é, diferenciada de outras formas de vida igualmente possíveis para todos os sujeitos (...)”? Dois episódios vivenciados por mim, em campo, talvez nos ajude a tangenciar essa questão. Durante uma reunião das lideranças indígenas com a equipe de saúde da Sesai, em janeiro de 2014, uma das principais queixas direcionadas aos funcionários era de que eles                                                                                                                 34

Essa etimologia foi-me igualmente proposta por Isael Maxakali. Rosângela de Tugny sugere algo semelhante: “Tik sendo possivelmente a contração de tihik e mũ’ũn uma variante de ũgmũg, nós mesmos”. Vale ainda notar que tihik é um termo frequentemente usado para glosar igualmente “parentes” ou “índios em geral”.

 

 

 

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frequentavam muito pouco as casas da aldeia: “vocês não tomam café com a gente, não comem a nossa comida, ficam só lá presas no posto, por isso vocês não aprendem a falar a língua!”, queixava-se então a cacique da aldeia, Noêmia Maxakali. Em fevereiro do mesmo ano, viajei para a aldeia Vila Nova do Pradinho para participar de um Encontro de Pajés. Na ocasião, eu já arranhava algumas frases na língua e tive igualmente a oportunidade de aprender um pequeno repertório de cantos, que os pajés me ensinavam com grande entusiasmo. Ao me verem progredindo no aprendizado da língua e dos cantos, ouvia várias vezes os homens me dizerem: “homet paye”, “homet yãmiyxop tak”, “homet tikmũ’ũn”, “roberto é pajé”, “roberto é pai dos yãmĩyxop”, “roberto é tikmũ’ũn”. Afirmações como essas parecem dizer algo justamente sobre o que significa “tornar-se tikmũ’ũn” ou, se quisermos, “humano de verdade” para os Tikmũ’ũn. Coisas, precisamente, como morar, comer e, especialmente, cantar juntos... Tudo o que remete, enfim, a um certo grau de proximidade e consubstancialidade. Como observou Aparecida Vilaça, a partir de um episódio muito semelhante a esses que relato: “Na primeira fase de meu trabalho de campo, ouvia constantemente exclamações do tipo: Ela não é Wari’, não come gongos”. Quando finalmente ingeri diante deles algumas dessas larvas, a notícia que se espalhou na aldeia é que eu havia me tornado completamente Wari’. Essa consubstancialidade produzida pelas relações físicas e pela comensalidade (...) é tão efetiva quanto aquela dada pelo nascimento, de modo que aqueles que vivem juntos, comem juntos ou partilham a mesma dieta alimentar vão se tornando consubstanciais, especialmente se passarem a se casar entre si.” (Vilaça, 2000: 60)

Digamos então, parafraseando a famigerada frase de Simone de Beauvoir, que não se nasce tikmũ’ũn: torna-se. E torna-se, precisamente, a partir desta “fabricação contínua do corpo” (Viveiros de Castro, 2002b: 390), garantida pelo resguardo, pela dieta alimentar, pela residência compartilhada, pelo intercurso sexual, pela aquisição dos cantos e realização dos Yãmĩyxop... O que torna, portanto, alguém tikmũ’ũn (para os tikmũ’ũn) são precisamente aquelas coisas que fazem de alguém um “parente” ou um “vivente”, pois “estar vivo (e não morto), ter um corpo humano (e não de onça, anta, veado ) e ser aparentado — relacionado de uma maneira determinada — aos outros humanos são três coisas equivalentes.” (Coelho de Souza, 2001: 71). Mas, dentre os “requisitos” apontados, gostaria de destacar

 

 

 

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especialmente a importância dos cantos e dos rituais. Frances Popovich, num curioso questionário, indagou algumas dezenas de pessoas nas aldeias do Pradinho e Água Boa quais seriam as características de um “bom” Tikmũ’ũn. A autora estava razoavelmente familiarizada com as características negativas, isto é, com aqueles traços que afastavam alguém do comportamento ideal, coisas como “avareza”, “deslealdade” ou “raiva”. Mas revelou-se de fato um tanto surpresa com as respostas praticamente unânimes que recebeu à questão que então propunha: “I was unprepared for the broad consensus of what a good person does. After their initial surprise at being asked such an obvious question, the answers varied very little. A good person builds a ritual center and carries out the souls-of-the-dead [yãmiyxop] rituals. This answer was given by an overwhelming majority of the seventy respondents.” (Popovich, 1988: 132).

Mais adiante, a autora listava ainda as cinco respostas mais frequentes ao mesmo questionário: “1. He observes the spirits rituals and feasts. 2. He helps to build the ritual center 3. He provides/prepare food for the celebrations. 4. He is not violent, angry and quarrelsome. 5. He shares food generously with his relatives.” (Popovich, 1988)

Note-se como as características de um “bom” tikmũ’ũn são feitas a maioria delas corresponder à participação nos rituais e ao preparo, provisão e compartilhamento de comida entre os parentes. O caráter negativo da quarta resposta, aliás, remete justamente àquelas alterações de humor e comportamento que desencadeiam metamorfoses indesejadas, como a transformação em ĩnmõxa. Popovich queria saber o que faziam dos Tikmũ’ũn, “bons”, uma questão de fundo eminentemente “moral” (e cristão). Ao que tudo indica, contudo, os seus interlocutores responderam o que faziam deles “Tikmũ’ũn” isto é, “humanos de verdade”. A aquisição de cantos e a participação nos rituais seria então, aqui, qualquer coisa como a ingestão dos gongos para os Wari. Algo que, com muita frequência, os etnógrafos que conviveram algum tempo com eles não demoraram a notar. Veja-se, por exemplo, o que observava Myriam Álvares acerca de suas primeiras incursões em campo:

 

 

 

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“(...) No início frequentei os Yãmiyxop na categoria de ‘aliada convidada’ como os outros afins pertencentes aos outros grupos o são, e depois com a constância e a frequência comecei a participar como membra do grupo ao receber o meu próprio Yãmiy, que passou também a cantar todas as noites, na ‘Casa dos Cantos, trazendo-me assim para o centro focal da vida Maxakali. Este sistema cerimonial, é claro, não está desvinculado das relações de parentesco. (...) Contudo, a ênfase quanto ao meu pertencimento ao grupo foi dada muito mais em função da participação ritual do que através de minha assimilação às relações de parentesco, relações essas que foram criadas mais como uma consequência da minha inscrição ritual.” (Álvares, 1992: 14).

Marina Guimarães Vieira (2006) e Douglas Campelo (2010) comentam algo semelhante, a partir de suas experiências iniciais e igualmente “iniciáticas” entre eles: “Fui convidada para dois rituais, dos quais participei ativamente. A participação nestes rituais foi de grande importância para minha aceitação entre os Maxakali. Durante as celebrações, adquiri um komãy (“compadre de religião”) e um yãmĩy (canto, espírito). Faziam com que eu dançasse, cantasse e comesse bastante ‘para aprender a língua mais rápido’, de acordo com um dos professores indígenas.” (Vieira, 2006: 21) “(...) encontrei-me com um grupo de professores e pajés Maxakali pela primeira vez em setembro de 2004 em Belo Horizonte. (...) Neste encontro, quando despretensiosamente e distraidamente cantei as primeiras palavras de um dos cantos - que a poucos dias tinha acabado de transcrever para a partitura musical - os professores e pajés que estavam presentes pediram que eu cantasse todo o canto. (...) Espantou-me o fato de que logo em seguida pediram que eu repetisse o canto, xehet, xehet, xehet. Após inúmeras repetições apelidaram-me carinhosamente de mõgmõkatox (gavião comprido).” (Campelo, 2010: 3-4).

A importância dos cantos e dos rituais no regime de diferenciação tikmũ’ũn, destacada por comentários como esses, não contradizem, entretanto, a centralidade dos corpos como “lugar de emergência da diferença” (Viveiros de Castro, 2002: 388). Para isso, precisaríamos assumir que os cantos/yãmiyxop seriam algo da ordem da “cultura” ou do “imaterial”, veículos da “socialização” de corpos “naturalmente” humanos. Mas não é isso o que a etnografia tem enfatizado. Ao contrário, como afirmou Tugny, “estamos aqui em

 

 

 

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uma instância da atividade acústica bem diferente daquela impalpável, abstrata, em que normalmente é pensada a atividade musical (...). Os cantos entre os Tikmũ’ũn são pura materialidade (...) substâncias, coisas palpáveis que passam a integrar o corpo da pessoa.” (2011: 43; grifos meus). A autora também chama a atenção para a semelhança entre os verbos kutex (cantar) e kutet (cozinhar). Lembremos ainda, como eu destacava acima, que os Yãmiyxop habitam os próprios corpos dos Tikmũ’ũn e se alimentam através deles. Desse modo, cantar juntos ou doar cantos seriam outros modos de consubstanciação, outras formas de “particularizar um corpo ainda demasiado genérico” (Viveiros de Castro, 2002: 388) ou ainda de relacionar pessoas entre si, isto é, de “fazer parentes”. Por isso mesmo, a circulação dos cantos entre os Tikmũ’ũn é indissociável do processo do parentesco. Mas não somente, me parece, por alguma ênfase particular no vetor vertical da “transmissão”, mas porque possuir cantos/yãmĩy é um dos modos, por excelência, do “tornar-se tikmũ’ũn” (humano, parente, vivente...). Podemos então retomar a questão que deixava em aberto no início deste capítulo: o que seriam dos Tikmũ’ũn sem os Yãmĩyxop? Existiriam? Persistiriam? Para Frances Popovich, uma missionária do Summer Institute of Linguistics, as respostas dos índios ao questionário eram especialmente desconcertantes e desanimadoras. “We had not understood that participation in the traditional rituals was such a high cultural value” (1988: 133), admitia. A missão de converter os Tikmũ’ũn ao cristianismo esbarrava, portanto, numa tarefa que, mesmo após anos de insistência, revelaria-se mesmo impraticável: demovê-los de realizar seus rituais, convencê-los a abandonar os Yãmĩyxop... Conforme estou sugerindo, estes seriam mesmo “pontos inegociáveis” para eles, pois abandonando os Yãmĩyxop estariam abandonando a si mesmos. Estariam como que abdicando da própria “humanidade” ou, mais precisamente, daquilo que os torna verdadeiramente “humanos”. Assim concluía um dos seus entrevistados: “If I am a Maxakali, I must participate in the rituals. Because if I am not a Maxakali, I am no one at all.” (apud Popovich, 1988: 133).

 

 

 

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em agosto de 2005, após uma sequência de assassinatos e vinganças ocorrida entre algumas famílias tikmũ’ũn, os grupos de Noêmia e Rafael Maxakali foram pressionados a abandonar suas aldeias em Água Boa e no Pradinho e partir. Dona Isabel, mãe de Noêmia, há muito acalentava a ideia de retornar à terra onde crescera, na divisa da atual Terra Indígena Maxakali, onde passa o Córrego do Norte. Ali, naquele lugar, tem canto. Foi ali que o irmão de Isabel, Dominguinho, ouviu o silvo da surucucu, kãyãtã, que ele matou e queimou. Ali também seus parentes plantaram vários pés de jaca próximo da aldeia antiga. Mas apesar das reivindicações, aquela área não foi incluída no território demarcado e, em 2005, pertencia aos limites da fazenda Monte das Oliveiras. Para lá partiram os dois grupos, onde ergueram acampamento, decididos a retomarem suas terras. Apesar da perseguição dos fazendeiros e das repetidas ameaças de morte, as lideranças mantiveram a ocupação. Foi assim que numa tarde do mesmo ano os índios ouviram o ranger do motor de uma caminhonete se aproximar. Eram dois pistoleiros armados com revólveres calibre 22 e 38. Chegaram atirando. Mulheres e crianças se esconderam e começaram a lançar pedras contra o veículo. Conseguiram estilhaçar o vidro e amassar a lataria. No meio do confronto, chegaram Kotkuphi e Putuxop. Kotkuphi gritava aaaax aaaax aaaax aaaax e Putuxop acompanhava: yap yap yap yap yap yap yap yap yap yap! ti ti ti ti ti ti ti ti ti! Armado de uma pequena espingarda de chumbo, Kotkuphi conseguiu surpreender um dos invasores, ferindo-o nas costas e na barriga. Feridos, os dois homens apressaram-se a entrar na caminhonete e partir. Segundo dizem, desistiram do “serviço”.

 

 

 

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Este relato Noêmia Maxakali me contou algumas vezes quando de nossas conversas em Aldeia Verde, onde dois anos depois desses eventos seu grupo veio finalmente se estabelecer. Pareceu-me propício concluir este trabalho com ele por dois motivos em especial. Em primeiro lugar, porque ele afasta daqui justamente qualquer pretensão a uma “conclusão”, apontando mesmo para toda uma série de desdobramentos que se poderia extrair a partir daí e do percurso que espero ter aqui iniciado. Seria, assim, preciso passar à constante fragmentação guerreira na qual os Tikmũ’ũn continuam firmemente engajados, seja examinando mais cuidadosamente os seus deslocamentos ao longo das décadas mais recentes, seja acompanhando como “diferenças horizontais” atravessam a constituição e dissolução dos grupos locais, que se põem, portanto, em perpétuo movimento e reconfiguração. Ainda que não tenha podido me aprofundar nestes desdobramentos aqui, não tenho dúvidas de que segui-los constitui um desafio etnográfico dos mais instigantes. Mas o presente relato – praticamente uma “transformação estrutural” daquele relato sobre o combate contra os Yĩmkoxeka - igualmente retoma e de certa forma condensa aquelas que acredito terem sido as linhas mestras deste trabalho, a saber, as continuidades entre guerra, ritual e nomadismo. Continuidades que foram aqui exploradas tendo em vista tanto uma caracterização da guerra travada entre os diversos povos indígenas que no passado conviveram naquela região (capítulo um), quanto algumas de suas consequências ou implicações para se (re)pensar as relações entre os índios e seus outros, os brancos dentre eles. Assim, se no segundo capítulo tratou-se de se extrair essas consequências tendo em vista especialmente os empecilhos que a mobilidade guerreira impunham ao avanço do projeto colonial, o movimento traçado no terceiro e último capítulo intentou situar o advento dos brancos a partir da série de encontros e deslocamentos que as narrativas tikmũ’ũn costumam perfazer. O objetivo era assim não somente enquadrar esta categoria de outros - os brancos - em algum esquema preconcebido pelos índios, mas explorar o que a vizinhança entre brancos, espíritos e inimigos poderia dizer sobre os seus modos de relação com a alteridade. É neste contexto, ainda, que o parentesco sugerido pelos Tikmũ’ũn entre os brancos e os espíritos canibais ĩnmõxa parece-me permitir uma abordagem do problema do “tornar-se branco” próxima daquele do “tornar-se ĩnmõxa”. Problemas que, por sua vez, remetem a um outro: o do “tornar-se tikmũ’ũn”, isto é, o esforço contínuo por fabricar e asseverar o

 

 

 

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ponto de vista “humano”. Em outras palavras, o perigo das transformações em “branco” ou “ĩnmõxa” (transformações, vale dizer, indesejáveis) apontam para o esforço inverso de transformação em tikmũ’ũn, um esforço que parece implicar sobremaneira os Yãmĩyxop, estas formas prototípicas da alteridade sem as quais o devir-tikmũ’ũn se veria de fato comprometido ou mesmo inviável. Ao ressaltar as direções possíveis dessas metamorfoses e destacar a condição tikmũ’ũn dentre elas estou enfatizando justamente a instabilidade dessas posições que se diferem antes por grau do que por natureza. Ora, me parece que é nos termos desta instabilidade que poderíamos revisitar aqueles episódios tão frequentes na crônica da colonização e que esforcei-me por compilar ao longo do capítulo dois. Tenho em mente especialmente o problema da “reversibilidade” que tanto perturbava os colonizadores quando se tratava de converter os indígenas ao sedentarismo, à lavoura ou ao cristianismo. Se bem o demonstrei, suas maiores dificuldades no cumprimento desses propósitos residiam justamente na impossibilidade de que tais transformações operassem em um sentido único ou que atingissem um termo final. Decididos a transformarem os índios (em “lavradores pobres”, “civilizados”, “cristãos”...) os colonizadores esbarravam, isto sim, em ideias radicalmente diversas de transformação. Uma transformação que em vez de operar por fusão, síntese ou assimilação opera por adição, multiplicação e suplementação. Mas a sugestão de que os Tikmũ’ũn estão continuamente empenhados em “tornar-se tikmũ’ũn” - através justamente da partilha de cantos, comida, residência, casamentos e dos Yãmĩyxop - talvez possua ainda algumas consequências interessantes para o problema mais geral do “tornar-se índio”. Numa observação pouco revisitada, Viveiros de Castro (1999) rejeitava a tendência a encarar as reivindicações de vários coletivos indígenas ditos “reemergentes” enquanto o resultado especial de um projeto político destes povos. Não porque de fato não o fosse, mas porque este “projeto político” não era simplesmente um cálculo estratégico e menos ainda poderia ser restringido aos coletivos que passaram a reivindicar (isto é, vindicar novamente) sua “indianidade” em décadas mais recentes - os “índios do Nordeste”, por exemplo -, mas uma característica dos próprios regimes de diferenciação indígenas, marcados que são por um “processo ativo e contínuo de diferenciação política: diferenciação frente a outros coletivos humanos, aos espíritos, aos animais” (Viveiros de Castro, 1999: 193).

 

 

 

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Não faria sentido, desse modo, opor aqueles que estivessem “virando índio” recentemente aos índios que, por assim dizer, nunca teriam deixado de “sê-lo” (os “índios da Amazônia”, por exemplo), como se a indianidade ou “identidade étnica” desses últimos fosse “natural” ou “dada” e a dos primeiros “fabricada” (“inventada”, “construída”, “performada”, etc.). Ao contrário, sugeria o autor, ambos estavam “virando índio exatamente do mesmo jeito” (1999: 134) precisamente porque “índio” não é um “modo de ser”, mas antes, um “modo de devir”. Assim, como refraseou recentemente: “os índios que “ainda” são índios são aqueles que não cessaram de perseverar em seu devir-índio durante todos esses séculos de conquista. Os índios que agora “voltam a ser” índios são os índios que reconquistam seu devir-índio, que aceitam redivergir da Maioria, que reaprendem aquilo que já não lhes era mais ensinado por seus ancestrais. Que se lembram do que foi apagado da história, ligando os pontos tenuamente subsistentes na memória familiar, local, coletiva, através de trajetórias novas, preenchendo o rastro em tracejado do passado com uma nova linha cheia.” (Viveiros de Castro, n/d)

O fato dos Tikmũ’ũn estarem há séculos convivendo bem de perto com os brancos e serem ainda hoje detentores de um repertório linguístico e musical próprios, além de exímios caçadores e guerreiros costuma frequentemente despertar um misto de surpresa e fascinação em seus interlocutores. Como sobreviveram? – a questão vez ou outra reaparece. Não intento, obviamente, respondê-la, mas creio ser possível (e talvez desejável) reformulá-la, pois à luz do que tentei propor aqui, não se trata tanto de indagar como os Tikmũ’ũn puderam manter-se iguais ao que sempre foram – como se disso se tratasse – mas sim como puderam, apesar de viverem hoje num mundo arrasado, manter em ação os seus modos de transformação e diferenciação, isto é, seus modos de “perseverar em seu devir-tikmũ’ũn”. E, se como insisti, estes modos de transformação parecem mesmo indissociáveis dos Yãmĩyxop, talvez então devêssemos estar dispostos a considerar, quem sabe, que os rituais (chamemo-nos assim) não somente “sobreviveram” com os Tikmũ’ũn como os Tikmũ’ũn sobreviveram com (isto é, “através dos”) rituais.

 

 

 

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