A escravidão no mundo islâmico (séc. VI - XIII)

September 14, 2017 | Autor: Lucas Augusto | Categoria: Medieval History, Orientalism
Share Embed


Descrição do Produto

19



Segundo Karen Amrstrong, é o código de leis islâmicas presentes do Corão.
"Mamluk (no plural mamlukun e mamalik) significa propriamente 'aquele que é possuído', isto é, o escravo em poder de seu senhor". (GIORDANI, 1975, p.147).

DANIELLE VIVIANE BABIERI
FELIPE TKAC
LUCAS AUGUSTO TAVARES DA SILVA
SAULO NASCIMENTO













A ESCRAVIDÃO NO MUNDO ISLÂMICO (SÉC. VI - XIII)

Trabalho de pesquisa apresentado ao Projeto Integrador do curso de Licenciatura em História da Pontifícia Universidade Católica do Paraná.


Orientador: Prof. Dr. Wilson Maske.










CURITIBA
2013
SUMÁRIO
1. RESUMO 3
2. ABSTRACT 3
3. INTRODUÇÃO 3
4. A ESCRAVIDÃO E A HUMANIDADE 4
5. O IDEAL LIBERAL E OS DIREITOS HUMANOS 5
6. OS BEDUÍNOS 6
7. MAOMÉ 7
8. OS PRIMEIROS CALIFAS 9
8. O CALIFADO OMÍADA 9
9. O CALIFADO ABÁSSIDA 10
10. OS AYYÚBIDAS 12
12. CONSIDERAÇÕES FINAIS 16
13. REFERÊNCIAS 17
14. FONTES PRIMÁRIAS 17



1. RESUMO


A escravidão dentro da sociedade muçulmana no período que engloba do século VI ao século XIII deve ser observada com cautela, principalmente pelo Ocidente. Quando pensamos em escravidão imediatamente nos ocorre a concepção de trabalho servil que caracteriza as Américas no período colonial até o final do século XIX, do escravo negro africano, subjugado e fadado à submissão pela cor de sua pele. Com o objetivo de compreender esta relação analisaremos os diferentes períodos que dividem-se dentro do referido recorte temporal, guiando-se sobre a égide de, quem é o "povo da areia" antes e depois de Maomé até o século XIII? Questionamento necessário para entender o modo de vida que guia tal grupo humanístico. Juntamente com a análise da problemática, qual é a relação entre o senhor e o escravo no Islã neste período?

Palavras-chave: Escravidão no Islã, Islã Medieval.


2. ABSTRACT


Slavery in the Muslim society in the period that includes the sixth century to the thirteenth century must be viewed cautiously, especially in the West. When we think of slavery occurs immediately in the design of bonded labor that characterizes the Americas during the colonial period to the late nineteenth century, the black African slave, subdued and bound into submission by the color of their skin. In order to understand this relationship we will analyze the different periods that fall within that time frame, guided under the auspices of, who is the "sand people" before and after Muhammad until the thirteenth century? Questioning necessary to understand the way of life that guides such group humanistic. Along with the analysis of the problem, what is the relationship between master and slave in Islam in this period?

Keywords: Slavery in Islam, Medieval Islam.


3. INTRODUÇÃO


Com o objetivo de compreender o comportamento dos Árabes na Idade Média durante o período compreendido entre os séculos VI e XIII, bem como, entender a sua relação com a prática escravagista, foi elaborado o presente trabalho.
Desta forma, utilizando a metodologia de pesquisa bibliográfica com análise de fonte primária, procura-se, inicialmente, apresentar a escravidão em linhas gerias, para assim chegar-se ao recorte temporal, onde analisa-se o desenvolvimento desta prática no mundo islâmico, desde o período da Arábia-pré-islâmica, onde os ensinamentos do profeta Maomé ainda não tinham sido difundidos.
Posteriormente, passa-se pela época de expansão do islamismo, na qual os preceitos do Corão começaram a penetrar na sociedade árabe, neste contexto realiza-se a relação da escravidão com os ensinamentos corânicos.
Assim, finalmente chega-se ao período de expansão e desenvolvimento dos principais califados da história muçulmana, durante os quais a prática escravista adquiriu características peculiares em comparação com os demais contextos apresentados anteriormente.


4. A ESCRAVIDÃO E A HUMANIDADE



Tem-se notícia da escravidão desde o Mundo Antigo e consistia-se na perda de direito e privilégios, tornando o escravizado propriedade de seu comprador. Nos povos mediterrâneos a escravidão se dava por credo, pensando-se no povo egípcio e a escravidão dos hebreus, já na Antiguidade Clássica a escravidão não fazia distinção de raça, cor ou credo. Um indivíduo se tornava escravo através de dívidas, ou se era derrotado em guerras. Com um cunho econômico, o escravo era tratado como um bem poderia ser vendido ou trocado, ou mesmo poderia ser liberto se pagasse o que devia.
Na Antiguidade Clássica a escravidão é considerada a base da economia destes e é apontada como pivô na queda de Roma, quando a expansão sessou as guerras deixaram de trazer novos escravos, a economia começou a ruir, bem como o Império.
Como cita Anderson (2004):


O poder militar estava mais intimamente ligado ao crescimento econômico do que talvez em qualquer outro modo de produção, antes ou depois, porque a principal fonte de trabalho escravo eram normalmente prisioneiros de guerra, enquanto o aumento das tropas urbanas livres para a guerra dependia da manutenção da produção doméstica por escravos; os campos de batalha forneciam a mão-de-obra para os campos de cereais e vice-versa – os trabalhadores capturados permitiam a criação de exércitos de cidadãos (ANDERSON, 2004, p. 28).

A escravidão atingiu as mais diferentes civilizações e pelos motivos mais variados. Na África a escravidão tem seu início no século XV e perdura até o século XX, as mais diversas rotas e disposições de escravos que viriam para as colônias de países europeus ou mesmo para as capitais, a rota Transatlântica tornou-se importantíssima para a manutenção de um, segundo Lovejoy (2002), "modo de produção escravista" ou seja, um sistema de produção de exploração das riquezas naturais das colônias, naquela época.


5. O IDEAL LIBERAL E OS DIREITOS HUMANOS


A ideia de abolição da escravatura começou a ser debatida na Europa no final do século XVIII, entretanto vários pensadores já debatiam a igualdade entre os homens, Hobbes (2013) apresenta:

[...] a natureza fez os homens tão iguais quanto às faculdades do corpo e do espírito que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isto em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa igualmente aspirar. (HOBBES, 2013, p.45)

Com o julgamento do escravo fugitivo Somersett na colônia, em 1772 pela coroa Britânica e com o surgimento do ideal liberal e a ciência econômica. Pensando no capital a escravatura era tida como pouco produtiva e moralmente incorreta, tendo em vista que o escravo não é proprietário do que produz então ele não é estimulado a produzir mais, bem como se recebesse pelo seu trabalho ele também consumiria e haveria maior circulação de capital como menciona Braiani, Trombeta e Avanço (2010):

O grande impulsionador da abolição foi o liberalismo, sendo que esta ia contra os seus princípios de liberdade e igualdade, o liberalismo é uma corrente política que abrange diversas ideologias históricas e presentes, que proclama como devendo ser o último objetivo do governo a preservação da liberdade individual. No entanto, houve grande oposição por parte da burguesia que iria deixar de auferir lucros. Entretanto, a razão material da abolição consiste no, surgimento da sociedade industrial, vinda pela introdução da máquina a vapor no processo produtivo. Não se tinha mais interesse em manter os escravos uma vez que estes não poderiam consumir, pois não tinham ordenado, e o consumo em massa exigia mercados livres e trabalhos assalariados. (BRAIANI, TROMBETA & AVANÇO, 2010. p.2).

Em 1948 a Declaração Universal dos Direitos Humanos enfatiza entre outros aspectos nos seus capítulos III e IV o direito a vida, liberdade e segurança, bem como que "ninguém será mantido em escravidão ou servidão, a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas." Ainda assim é possível perceber focos de trabalho escravo em vários países na atualidade, exemplo é o Sudão que mesmo abolindo a escravatura na década de 50, com a guerra civil que iniciou na década de 80 houve a retomada deste regime de trabalho segundo Farah (2001).


6. OS BEDUÍNOS


A gênese do Islã está vinculada aos Beduínos. Originários da Península Arábica e de atividade pastoril e comercial se dividiam em várias tribos, dentre elas alguma nômades. Sua religião era basicamente politeísta, que em primeiro plano aparecem as divindades astrais, que agem sobre todas as manifestações da vida terrestre.
A atividade comercial era de suma importância entre essas tribos, tendo em vista as dificuldades geográficas e climáticas para manutenção de uma agricultura de subsistência, em contrapartida esta mesma geografia facilitou o desenvolvimento comercial, como cita Giordani:

A situação geográfica fazia da Arábia Meridional a escala intermediaria entre o Indico e o Mediterrâneo. Era, portanto, a encruzilhada por onde passavam mercadorias de largo consumo em regiões distantes: pérolas do Golfo Pérsico, marfim, seda, especiarias, ouro, penas de avestruz, escravos, etc. O comércio se fazia via marítima e via terrestre. (GIORDANI, 1975, p. 26)

O escravo fazia parte do contexto da atividade comercial, sendo uma importante moeda troca. Para alguns estados monárquicos da Arábia Meridional o servo ocupava um lugar fixo na estrutura social, segundo Giordani: "Dentro das tribos encontramos uma hierarquia social no cimo da qual se encontram os nobres e em cujo pedestal estão os servos." (GIORDANI, 1975, p. 26), ou seja, o escravo aqui é um servo no palácio, e importante para a manutenção daquele estilo de vida.
A partir do século V com o domínio de Meca, uma importante cidade econômica e também religiosa nesse contexto politeísta, pelos coraixitas sob a liderança de Qusay, que instituiu as pessoas de coraixi de "guardiões do santuário" e reuniu as principais divindades árabes, segundo Giordani.
Mesmo com a ascensão do islã, algumas tribos beduínas ainda mantêm suas características fundamentais até os dias atuais, como vemos nessa figura:


Imagem disponível em: www.insightgeopolitico.com


7. MAOMÉ


Através da crescente atividade comercial que se desenvolvia na Península Arábica, os árabes receberam influências de diversos povos que habitavam as regiões vizinhas. Através destas influências, o "povo da areia" recebeu as bases de uma nova religião que unificaria as diversas tribos existentes na Península Arábica.
Conforme afirma Franco Jr.:

Este povo até então obscuro e inculto - que sofria poderosas influências, sobretudo religiosas, vindas através de mercadores bizantinos ortodoxos, sírios monofisistas, judeus e abissínios cristãos que dominaram o sul da península arábica algum tempo - sairia do atraso em que se encontrava graças a uma religião, o Islã, que os uniu e impulsionou sob o cetro de seu deus Alá. (FRANCO JR., 1976, p. 164)

Dentre a tribo dos coraixitas, que dominavam a cidade de Meca, nasceu Maomé no ano de 570. Tendo presenciado diversas disputas com objetivos econômicos e políticos, Maomé permaneceu em um estado de inquietude e espera de algo que pudesse unir o seu povo e os fizesse relembrar dos antigos valores tribais. Assim, no ano de 610, segundo a crença, Maomé recebeu a revelação de um novo livro sagrado, o Corão, que iria mudar o rumo da história dos povos árabes.
Deste modo, Franco Jr. diz:

Certo dia, em 610, Maomé teve uma visão em que lhe apareceu o arcanjo Gabriel que teria revelado a ele a verdadeira religião, segundo a qual "Alá é o único deus e Maomé é o seu profeta". Impressionado com tal aparição, ele começou a pregar a nova religião no seu círculo de relações, onde ele fez algumas conversões. (FRANCO JR., 1976, p. 164-165).

Assim, no momento que Maomé começou a pregar em público ganhou inimigos, levando em conta que sua doutrina monoteísta não aceitava inúmeros deuses adorados na Caaba, prejudicando deste modo os coraixitas que viviam do comércio feito com os que peregrinavam para adorá-los. Este fato incitou diversas reações por parte dos coraixitas, conforme diz Franco Jr.:

Quando a reação começou por ficar demais violenta, Maomé e seus seguidores deixaram Meca, indo para a cidade de Yatrib, depois conhecida como Medina ("cidade do profeta"). Tal acontecimento é a famosa Hégira, ponto inicial da cronologia islamita, que se deu em 22 de setembro de 622. (FRANCO JR., 1976, p. 165)

Em Medina, devido à grande porcentagem de judeus existentes, a ideia de um Deus único ganhou terreno e Maomé pôde conseguir inúmeros simpatizantes. Neste período várias práticas foram tomadas de empréstimo ao Judaísmo, como o jejum, a abstinência de carne de porco entre outras. Para obter recursos para manter a população de Medina, Maomé iniciou um processo de assalto às caravanas comerciais de Meca, o que gerou inúmeros conflitos, até que em 630 com o apoio de diversos chefes tribais, Maomé tomou Meca e destruiu todos os ídolos pagãos da Caaba, proclamando a religião de Alá.
Neste contexto de expansão do islamismo e difusão dos preceitos do Corão, a questão escravista, prática já presente na sociedade árabe mesmo antes de Maomé como já vimos, ganha características peculiares e merece destaque. Esta forma de escravidão não se assemelha àquela desenvolvida nas Américas, onde o escravo era utilizado como mão-de-obra nas atividades agrícolas, pelo contrário, entre os árabes os escravos eram domésticos, realizando tarefas das mais diversas nas residências das famílias mais favorecidas. Quando Maomé começou a pregar a mensagem corânica, a prática da escravidão foi codificada, diversas passagens do Corão defendem a liberdade e emancipação dos escravos, sendo seu proprietário recompensado com uma parcela do paraíso caso concedesse a libertação de seus escravos, porém esta emancipação não era obrigatória. A defesa da liberdade que o Corão prega fica evidente nesta passagem [...] quanto àqueles, dentre vossos escravos e escravas, que vos peçam a liberdade, concedei-lha, desde que considereis digno dela, e gratificai-os com uma parte dos bens com que Deus vos agraciou. (CORÃO 24:33)
Deste modo, a escravidão era um status reconhecido na lei islâmica, segundo esta, o muçulmano que nascia livre não podia ser escravizado, os escravos eram não muçulmanos capturados em guerras ou adquiridos de outro modo. A lei islâmica e o Corão também primam pelo bom tratamento dado aos escravos. Este preceito é abordado por Albert Hourani quando diz que "Eles não possuíam todos os direitos legais dos livres, mas a charia determinava que fossem tratados com justiça e bondade, sendo um ato meritório libertá-los". (HOURANI, 2006, p.162).


8. OS PRIMEIROS CALIFAS


Com a morte de Maomé em 632, grandes discussões começaram a aparercer na sociedade árabe para decidir quem continuaria a obra do profeta. Neste contexto, se destacaram quatro califas que por seu grau de proximidade e amizade com o profeta, tomaram a liderança daquela sociedade.
O primeiro califa foi Abu-Bakr (632-637), que consolidou o domínio muçulmano na Península Arábica e iniciou o imperialismo fora dela, invadindo Jerusalém e conquistando a Síria.
O segundo califa foi o cunhado do profeta Maomé, Omar (637-644), que expandiu o domínio muçulmano através da conquista da Pérsia, do Egito e finalmente de Jerusalém.
Othman (644-654), genro de Maomé, foi o califa seguinte, tomou Chipre e Rodes, dando aos muçulmanos importantes bases navais. Ele havia sido indicado para califa por Omar, o que descontentou Ali e levou a seu assassinato.
Ali (656-661), marido de Fátima, filha de Maomé, foi o quarto califa, que acabou sendo assassinado por um general que o acusava da morte de Othman.


8. O CALIFADO OMÍADA


Moawia (661-681), o mesmo general que assassinou Ali, da família dos Omíadas, fundou um novo califado mudando a capital do império islâmico de Meca para Damasco. Neste período a expansão teve continuidade: os árabes invadiram o norte da África conquistando Cartago, Marrocos, Argélia e Tunísia, atravessaram o estreito de Gilbratar e invadiram Espanha. No Oriente, conquistaram a Armênia, o Turquestão e parte da Índia, até fracassarem ao tentar tomar Constantinopla.
Os Omíadas tornaram a sucessão hereditária, quebrando a tradição e provocando um cisma entre os muçulmanos: os sunitas, que aceitavam as tradições que se desenvolveram à margem do Corão e reconheciam os omíadas, enquanto que os xiitas só aceitavam califas de linhagem sanguínea com Maomé. Essas disputas iriam engendrar a queda do califado omíada, conforme afirma Franco Jr.:

Em 750 uma revolução encabeçada por Abul-Abas, tio de Maomé, contando com a ajuda do general Abul-Muslinn, que eram simpatizantes dos xiitas e contando com o apoio destes, puseram fim ao Califado Omíada, tendo sido mortos quase todos os membros daquela família. (FRANCO JR., 1976, p. 169).

Como consequência dessas disputas ocorreu a ascensão de um novo califado: o Abássida, que transferiu a capital do império árabe para a cidade de Bagdá, onde na Antiguidade estava situada a cidade da Babilônia. Durante este califado o "povo da areia" iria continuar sua obra expansionista para diversas regiões do exterior.


9. O CALIFADO ABÁSSIDA


O Califado Abássida assinala uma profunda transformação na história do "mundo" Árabe medieval, que observado sob uma perspectiva historiográfica de longa duração, alterará também os rumos do islamismo.
Para compreender os acontecimentos que cercam tal período deve-se ter em mente que a partir da dinastia Abássida quebrasse um paradigma, o da hegemonia árabe. Entretanto, não se pode pensar que a troca de dinastias no poder foi um ponto onde os árabes perdem sua posição de dominadores, seria demasiadamente simplista. Segundo Giordani:

Na realidade os califas sucessores dos omíadas foram tão árabes como seus antecessores. Na própria estrutura política do Império encontraremos ainda governantes e chefes militares árabes. A língua árabe continua como língua oficial e o veículo de propaganda religiosa. Como, porém os abássidas haviam subido ao poder com o apoio dos iranianos era natural que, aos poucos, a influência desses fossem aumentando nos diversos ramos da estrutura administrativa. (GIORDANI, 1975, p. 84).

Essa síntese que ocorreu sob os abássidas, foi fundamental para o desenvolvimento do comércio. E a vida urbana torna-se característica a partir de então. Juntamente iniciasse a criação de um progresso intelectual genuíno, por árabes e iranianos principalmente, mas antes de tudo por mulçumanos. Essa aproximação com os iranianos acarreta também na mudança da capital do império Islâmico, segundo Hourani:

Bagdá foi situada num ponto onde o Tigre e o Eufrates corriam próximos um do outro, e onde um sistema de canais criara ricas terras cultiváveis, que podiam produzir alimentos para uma grande cidade e receitas para o governo; [...] Como era uma cidade nova, os governantes ficariam livres da pressão exercida pelos habitantes mulçumanos árabes de Kufa e Basra. (HOURANI, 2006 p. 59).

Esta decisão de afastar-se da Península Arábica mostra como os abássidas tornaram-se "campeões do Islã multinacional" (GIORDANI, 1975). Porém deve-se notar que os governantes abássidas dirigiram o império diretamente somente entre a metade do século VIII e a metade do século IX, a partir de então o controle do governo passa aos turcos mercenários, vizires, iranianos e inicia-se uma desintegração do califado como único.
Sobre os vizires:

Nos primeiros reinados, surgiu um cargo que iria tornar-se importante, o de vizir: era o conselheiro do califa, com variado grau de influência, e depois se tornaria chefe da administração e intermediário entre ela e o governante. [...] Um soberano que governa por meio de uma hierarquia de funcionários espalhados por uma vasta área tinha de providenciar para que eles não se tornassem demasiado fortes nem abusassem do poder que exerciam em seu nome. (HOURANI, 2006, p. 61).

Essa forma de governo mais burocrática e dividida em uma alta hierarquia de funcionários foi a pedra angular dos abássidas, entretanto também o ponto principal de seu declínio, como explicitado por Tamara Sonn:

No século IX os califas começaram a conceder retorno sobre os impostos a pessoas nomeadas como administradores desta rica região [Egito]. Tinha cuidado de escolher para administradores dessas "áreas tributáveis" pessoas sem nenhum vínculo tribal na área, principalmente turcos comprados como escravos, num esforço para que a lealdade fosse dirigida apenas ao governo central. Esses administradores turcos logo se tornaram tão poderosos que puderam se tornar independentes, criando inclusive seu próprio exército escravo. (SONN, 2011, pp. 115-116).

Como a religião corânica prega a não agressão entre "irmãos", ou seja, entre mulçumanos, esses turcos citados acima, além de trabalharem como administradores que respondiam ao califa, também foram usados em larga escala como soldados, novamente utilizando as palavras de Albert Hourani:

Os soldados do Curasão, por intermédio dos quais os abássidas haviam chegado ao poder, dividiam-se em grupos com líderes próprios. [...] No início do século IX, a necessidade de um exército eficaz e leal foi satisfeita com a compra de escravos e o recrutamento de soldados entre as tribos pastorais de língua turca da fronteira ou do outro lado dela, na Ásia Central. Esses turcos, e outros grupos semelhantes das fronteiras do governo estabelecido, eram estrangeiros que não tinha ligações com a sociedade que ajudavam a governar, e mantinham uma relação de clientela pessoal com o califa. A entrada de soldados turcos a serviço da abácidas iniciou um processo que acabaria por dar forma distinta à vida política do mundo islâmico. (HOURANI, 2006, p. 62).

Entretanto a presença do escravo no Califado Abássida não se dá apenas nas relações citadas anteriormente, mas também no próprio seio governamental, o dos califas. Al-Mahdi, considerado um dos melhores soberanos abássidas, teve dois filhos junto com uma escrava berbere, Musa e Harum, ambos posteriores califas, o segundo sendo o predileto de sua mãe, ganha de Al-Mahdi a legitimidade para ser o soberano sucessor. Fato que nos mostra que não somente os escravos serviam, mas como no caso citado anteriormente, tiveram influência direta na escolha do líder político supremo.
Sob uma perspectiva mais "doméstica" o escravo aparece principalmente na figura da concubina, que como cita Giordani:

Os negros são sobretudo recomendados para os trabalhos domésticos e as mulheres como concubinas ou amas de leite; os eslavos são empregados de vários modos pela aristocracia e é dentre eles que os especialistas fabricam os eunucos; (GIORDANI, 1975, p. 172).

Dentro desta mesma análise pode-se também citar Hourani:

Em sua maior parte, porém, eram criados domésticos e concubinas nas cidades. Eram trazidos da África negra, através do oceano Índico e do mar Vermelho, pelo Nilo abaixo, ou pelas rotas que cruzavam o Saara. A maioria era de mulheres, mas havia também eunucos para guardar a intimidade da casa. (HOURANI, 2006, p. 163).

Essa relação de trabalho servil parece-nos conflitante com os preceitos de justiça e igualdade dos homens que a religião corânica prega, entretanto tais regras são aplicadas somente aos muçulmanos, não muçulmanos são largamente hostilizados. Pois a escravidão é um status reconhecido na lei islâmica, muçulmanos nascidos livres não poderiam ser escravizados.


10. OS AYYÚBIDAS


A dinastia dos Ayyúbidas é de preponderante importância para nosso estudo, pois a partir dela que nascerá a dinastia de escravos que dominará o Egito até ser anexado como uma província do império Otomano em 1517.
Com a ascensão de Salah al-Din (Saladino) sob o califado Fatímida e a abolição do xiismo como religião oficial do Egito é que inicia-se o processo de consolidação dos Ayyúbidas. Como cita Giordani:

A morte de Nur ed-Din (1174) fortalece a posição de Saladino que em 1175 é investido pelo califa abássida no cargo de sultão do Egito, da Núbia, da Criméia, do Iêmen, da Palestina e das terras que possuía na Síria. (GIORDANI, 1975, p.146).

Dentro deste contexto político o califa Abássida tem um papel secundário, pois quem realmente comanda, pelo menos sob o aspecto político, é o sultão Saladino, que antes de sua morte, divide as terras em seu domínio entre seus filhos e irmãos. Entretanto os Ayyúbidas mantiveram uma prática comum herdada dos Abássidas, a compra de escravos, principalmente turcos, para completar os efetivos de suas tropas, especialmente de suas guardas pessoais. O que juntamente com rupturas políticas no poder central dos Ayyúbidas, foi fundamental para a instalação da dinastia dos Mamelucos. Segundo Sonn:

Como os Abássidas antes deles, os Ayyubis procuraram manter um exército leal, formados por escravos, principalmente turcos [...]. "Pensavam que, como estrangeiros, esses escravos não teriam lealdades locais que pudessem se desenvolver em estruturas rivais de poder." (SONN, 2011, pp.117-118).

Após o assassinato de Turan-Chah - o descendente e herdeiro da dinastia fundada por Saladino - por egípcios descontentes com os privilégios relegados aos mamelucos, ocorre a sublevação do poder por parte destes escravos, designando Chadjarat as-Durr como sultana, e casando-a com Aybeg, um chefe mameluco, dando início então ao período de mais de dois séculos de dominação dos mamelucos no Egito.


11. ESCRAVAS COMO PROPRIEDADE SEXUAL NO ISLÃ


No Alcorão não se vê a palavra "escravas" e sim "cativas", não alterando o significado de mulheres cativas como "àquelas que pertencem legalmente ao seu senhor", e afirmando que o sexo com estas era permitido. Maududi, um renomado e respeitado comentarista do livro sagrado islâmico, falecido em 1979, interpreta o sentido real das Suras (capítulos) e da Hádice (relatos das ações e palavras de Maomé, fora do Alcorão).
A Sura 23 foi revelada durante a vida de Maomé em Meca, antes da Hégira, ou da imigração para Medina no ano de 622 d.C. Durante os primeiros anos da revelação, Maomé não empreendeu guerras contra ninguém, eram tempos de paz, mesmo sofrendo perseguições.
O Alcorão na Sura 23:5-6 nos diz: "(Prosperarão os fiéis)... Que observem a castidade, exceto para os cônjuges ou cativas- nisso não serão reprovados.".
Maududi escreve:

Duas categorias de mulheres foram excluídas da ordem geral de guardar as partes íntimas: as esposas, e as mulheres que são propriedade legal de alguém, as escravas. Assim, o verso claramente estabelece a lei que permite e que autoriza alguém a ter sexo com uma escrava ou com a sua esposa, o princípio é o da possessão e não o do casamento. Se o casamento fosse a condição, as escravas seriam incluídas entre as esposas, então haveria necessidade de mencioná-las separadamente. (MAUDUDI, IBID, 1970. p. 241)

Na Sura 70:29-30, também revelada em Meca, Maomé usa quase as mesmas palavras da anterior dizendo que os homens devem guardar as suas partes íntimas de todas as pessoas, exceto de suas esposas e das escravas, significando que um homem pode ter sexo com ambas.
Depois da migração de Maomé, de Meca para Medina, a Sura 4 foi revelada, na qual o próximo verso do Alcorão é encontrado, sabe-se que durante este período ele lutou em várias guerras e incursões, exilou judeus das tribos de Qaynuga em 624 d.C e Nadir em 625 d.C, mantendo a política de sexo dos homens proprietários com as mulheres cativas em sua nova cidade de Medina, com a adição de escravização de mulheres prisioneiras de guerra, e também manteve a permissão para que os soldados tivessem sexo com elas.
Lê-se no Alcorão, Sura 4:24: "Também vos está vedado desposar as mulheres casadas, salvo as que tendes à mão (como prisioneiras de guerra)."
Isto é, as cativas de guerra contra aqueles que perseguem a fé, e sob as ordens de um Imam virtuoso (Jihad). As hostilidades dissolvem laços civis, permitindo com que as mulheres prisioneiras se casem ou que tenham sexo com os "senhores muçulmanos", independente do status marital destas.
Aos "senhores" é permitido ter sexo com as mulheres que passam a ser de sua propriedade, assim sendo, os guerreiros muçulmanos sagrados (Jihad), podem se casar com as prisioneiras de guerra, mesmo que os seus maridos ainda estejam vivos.
Existem duas escolas islâmicas de direito que abordam este tema de maneiras diversas, uma afirma que quando o marido e a esposa são capturados juntos, os muçulmanos não podem se casar com elas, mas a outra afirma que imediatamente o matrimônio entre maridos presos e as esposas é anulado a partir do momento da prisão.
No Alcorão, a injustiça sexual é repreensível, mas se entende que Alá o deseja.
Temos vários relatos das ações e dos feitos de Maomé (Hádice) que não estão contidos no corpo do Alcorão, dentre estes o mais confiável é o livro de Bukkari, falecido em 870, que demonstra que os jihadistas (guerreiros sagrados) tinham sexo com as mulheres cativas, sem se importar se eram ou não casadas.
Khumus, termo árabe, significa um quinto dos espólios de guerra, e na passagem a seguir, se vê as cativas como parte destes:
Ali, primo e genro de Maomé acabou de tomar um banho relaxante e foi criticado por alguém pelo seu ato…
O Profeta enviou Ali a Khalid para trazer o Khumus e ali tomou um banho (após o ato sexual com uma escrava do Khumus).
Qual foi a resposta de Maomé à pessoa que criticou Ali por seu ato sexual?
- Você odeia Ali por isso? Não o odeie, porque ele merece muito mais do que o Khumus. (BUKHARI, anotação 44).
Nesta passagem vemos que Maomé aceita e crê que as mulheres são parte dos espólios de guerra, além de serem tratadas como propriedade sexual. Ali é um herói muçulmano, marido de Fátima, filha do profeta e de Khadija, sua primeira esposa, assim sendo, pela falta de repreensão do profeta para com o seu genro, conclui-se que as escravas são parte de um jogo sexual ilícito.
Temos também várias passagens sobre a prática do coito interrompido com as mulheres capturadas, seu uso é proibido, porém enquanto estão em campanha militar e distantes de suas esposas, receberam cativas árabes, e passam a praticá-lo.
Nesse aspecto Maomé aconselha: "É melhor não fazer isso (praticar o coito interrompido). Não há pessoa que é destinada a existir, exceto aquelas que virão à existência até o Dia da Ressureição." (BUKHARI, HADICES. p.55).
Então assim, percebe-se que os muçulmanos deveriam parar de praticar o coito interrompido, mas poderiam segui-lo com as escravas, afinal, é o destino que controla quem vai ou não nascer.
Maomé não proibiu nem a escravidão, nem a sua prática, muito menos o ato sexual de senhores com as cativas.
Concluindo, nas Suras 4:3; 23:5-6; 70: 22-30, há a permissão para homens, donos de cativas, terem sexo com elas. Nas Suras 23: 5-6 e 70: 22-23, permite aos homens terem sexo com as escravas durante o período Mecano, ou seja, durante os períodos de paz, antes das pequenas pelejas e guerras, enquanto estava em Medina.
Nas Hadices vemos que os jihadistas tinham sexo com as mulheres capturadas, não importando se eram ou não casadas, e ainda vemos que as mesmas mulheres são parte do Khumus (um quinto dos espólios de guerra).
Outro grande exemplo de mulheres cativas, eram as concubinas, há o caso de Haroun-al Rashid, líder do século VIII, que governou com sucesso uma área equivalente ao Irã, Iraque e Síria, e teria mais de duas mil todas em troca de proteção e comida, o que para elas não parecia algo indigno.


12. CONSIDERAÇÕES FINAIS


A partir de tudo que foi apresentado nesta pesquisa, conclui-se que a escravidão esteve presente na história do mundo islâmico, durante o período compreendido entre os séculos VI e XIII, mesmo antes do surgimento da religião islâmica, passando pelo período de sua expansão e desenvolvimento, a partir do profeta Maomé, e posteriormente nos principais califados: Omíada e Abássida.
Percebe-se que a prática da escravidão no mundo islâmico não se assemelha àquela desenvolvida nas Américas, onde o escravo era utilizado como mão-de-obra agrícola e vivia em condições sub-humanas. No mundo islâmico, ao contrário, os escravos eram principalmente domésticos e eram adquiridos principalmente, através de guerras sendo capturados como prisioneiros.
Fica evidente também que o surgimento da religião islâmica não afetou radicalmente a prática da escravidão, está apenas foi codificada pelo Corão, que através de seus preceitos estimulava os senhores a libertarem seus escravos e, assim seriam recompensados com uma parcela do paraíso. Em vista disso, ressalta-se que o Corão não proibia a escravidão e nem a incentivava, ou seja, era de certa forma neutro com relação a esta prática, pois se ela ocorria esta era a vontade de Alá.


13. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ANDERSON, Perry. Passagens da Antiguidade ao Feudalismo. São Paulo: Brasiliense, 2004.
ARMSTRONG, Karen. O Islã. Editora Objetiva. Rio de Janeiro, 2001.
BRAIANI, Marina; TROMBETA, Mayara; AVANÇO, Rafaela. Escravidão Moderna. Buenos Aires, IX Congresso Internacional de Salud Montal Y Derechos Humanos, 2010.
GIORDANI, Mário Curtis. História do mundo árabe medieval. 4º Edição. Rio de Janeiro. Editora Vozes, 1975.
HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Ícone, 2013.
HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes. Editora Schwarcz. São Paulo, 2006.
LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África: Uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
SONN, Tamara. Uma Breve História do Islã: Um guia indispensável para compreender o islã do século XXI. Editora José Olympio. Rio de Janeiro, 2011.


14. FONTES PRIMÁRIAS


FARAH, Paulo Daniel. No Sudão, drama da escravidão atinge milhares de pessoas. Folha de São Paulo, São Paulo, 2001.
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, ONU, 1945.
"O Alcorão" - tradução de Mansour Challita ISBN 978-8-7799-168-6 -Ed. 1ª - Jan.2010.



Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.