A Escravidão Reabilitada: Um Clássico Volta à Vida

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A Escravidão Reabilitada

Um Clássico Volta à Vida Mário Maestri Com a reedição de A escravidão reabilitada, de Jacob Gorender, 26 anos após seu lançamento, a Editora Expressão Popular e a Fundação Perseu Abramo reapresentam um grande clássico da crítica historiográfica brasileira.1 Há anos, esse ensaio literalmente maldito é oferecido apenas em livrarias de livros usados por preços astronômicos, o que registra a “demanda reprimida” e, portanto, a oportunidade da presente iniciativa editorial. Ainda que cada livro tenha sua história, poucos demarcaram, ao ser lançados, o encerrar-se de toda uma época, como A escravidão reabilitada, publicado em 1990. Em 1978, Jacob Gorender lançou O escravismo colonial, denso trabalho de economia política sobre o que definiu como modo de produção historicamente novo, dominante na formação social brasileira, dos anos 1530 até a Abolição.2 Apresentado sob a ditadura militar, no início da chamada “abertura lenta, gradual e segura”, a tese erudita teve enorme e imediata repercussão no mundo intelectual brasileira. Contraditoriamente, em forma geral, causou apenas surpresa e certa perplexidade na esquerda nacional. Foram enormes o sucesso científico e o impacto acadêmico do denso trabalho. Em interpretação categorial-sistemática, Jacob Gorender propunha a superação das contradições em que se debatiam havia décadas não apenas as leituras marxistas sobre o Brasil pré-1888. Impasse intelectual sintetizado na oposição, tradicional e recorrente, entre as leituras de passado brasileiro como sociedade feudal e capitalista, em forma pura ou não. Poucos anos após a edição daquele trabalho, o livro coletivo Modos de produção e realidade brasileira, coordenado por José Roberto do Amaral, apresentava as visões de Jacob Gorender e de outros autores brasileiros destacados envolvidos naquele debate.3 Naquele trabalho, Jacob Gorender empreendia verdadeira revolução copernicana. 4Na esfera da economia política, interpretava em forma estrutural o Brasil pré-Abolição a partir das categorias modo de produção e formação social. Sobretudo, colocava o trabalhador escravizado - ancestral sociológico do trabalhador brasileiro contemporâneo - no centro de sua leitura, como demiurgo do passado do país. Elevava a refinado nível de intelecção epistemológica as propostas e sugestões, mais ou menos desenvolvidas, de argutos e sensíveis analistas anteriores, entre eles, Benjamin Péret, Clóvis Moura, Ciro Flamarión Cardoso, Décio Freitas, Emília Viotti da Costa, Manuel Querino, Robert E. Conrad, Stanley J. Stein, Suely Robles Reis de Queiroz. A produção e a receptividade de O escravismo colonial foram também produtos de sua época. No Brasil, após o refluxo social dos anos 1968-9 e a consolidação da ordem ditatorial, os trabalhadores e subalternizados retomavam, desde os anos 1976, a iniciativa que os levou às grandes greves de 1979 e à fundação da CUT, do PT, do MST, do MNU, em um sentido classista e anti-capitalista. Por alguns anos, os trabalhadores ocupavam posição central e autonômica na sociedade brasileira que jamais haviam conhecido. Realidade que abria espaço para representações que expressassem os interesses do mundo do trabalho e do progresso. O escravismo colonial não teve a mesma recepção entre a vanguarda da esquerda brasileira. Fora as excepções de regra, o volumoso tratado causou quase apenas surpresa e perplexidade em militância de esquerda que procurava se recuperar da derrota política sofrida, no contexto do  

 

 

 

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GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1990. GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1978; com segunda edição no mesmo ano; GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 5 ed. São Paulo: Perseu Abramo, 2011. 625 pp. 3! LAPA, José Roberto do Amaral. (Org.). Modos de produção e realidade brasileira. Petrópolis: Vozes, 1981. 210 pp. 4 MAESTRI, Mário. O escravismo colonial: a revolução coperniciana de Jacob Gorender. Cadernos IHU, Ano 3 - n.o 13 - 2005. Unisinos, São Leopoldo, RS. http://www.ihu.unisinos.br/images/stories/cadernos/ihu/013cadernosihu.pdf. 2!

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aniquilamento das propostas de luta armada incondicional contra a dominação burguesa.5 Mais comumente, ela perguntou-se por que Jacob Gorender, militante desde a primeira juventude, intelectual de referência do PCB, a seguir fundador do PCBR e ex-preso político, ao sair da prisão, dedicara-se a estudar meticulosamente o passado escravista brasileiro, como jamais fora feito! Nos segmentos diversos da militância de esquerda, para os quais o livro fora escrito, poucos aferraram seu objetivo principal. Ou seja, compreender a estrutura profunda do modo de produção hegemônico na pré-Abolição, para desvelar os segredos internos da constituição da gênese da produção capitalista no Brasil a partir daquele ambiente econômico-social particular. Produto de longa e destacada militância do autor, o livro era o preâmbulo e os alicerces para uma crítica geral da gênese e desenvolvimento sociedade capitalista. Ou seja, uma contribuição à chamada Revolução Brasileira. A incompreensão dos objetivos do livro também foi e segue sendo ampla nos meios acadêmicos. Um forte golpe Foi muito forte o desequilíbrio e deslocamento causado por O escravismo colonial na hegemonia das representações dominantes conservadoras sobre a sociedade brasileira, dos mais diversos matizes. Em resposta àquela inesperada fratura, estabeleceu-se movimento de crítica, desconstrução e deslegitimação das leituras, propostas e sugestões avançadas pelo pensador e militante marxista revolucionário. Um movimento de restauração que seria facilitado pela rápida e crescente sintonia nacional com o ritmo social, político e ideológico patológico que então se vivia mundialmente. Naqueles anos, a sociedade mundial se engolfava mais e mais na espiral descendente que levaria à vitória da contra-revolução neoliberal, com auge na dissolução da URSS e dos Estados de economia planificada, em fins dos anos 1980, inícios da década seguinte. Nesse novo contexto social e intelectual deletério, estabeleceu-se uma multifacetada crítica acadêmica, direta e indireta, às teses e propostas avançadas por Jacob Gorender em O escravismo colonial. Essa crítica teve como grandes vetores a negação da exploração do trabalhador escravizado; a defesa das condições excepcionais de vida de que gozariam os cativos: pouco trabalho, ótima alimentação, escasso castigo; a adaptação interessada dos trabalhadores escravizados ao mundo dos negreiros, recusado apenas pelos cativos socialmente desviados. Propunha-se, em um sentido lato, a impossibilidade da história enquanto ciência capaz de interpretar tendencialmente o passado. Ao igual que o presente e o futuro, o passado se transformava em processo ininteligível, ao qual deveríamos nos entregar sem resistência. Punha-se fim à proposta marxiana da reflexão e análise científicas como instrumentos da práxis social. Literalmente, negava-se a determinação tendencial da vida social pelas condições objetivas da existência. Impugnava-se a luta de classes como motor da formação social escravista e a revolução como processo de sua superação. O essencial no devir do passado seriam a negociação e a acomodação dos escravizados aos negreiros e ao cativeiro, forma de organização social que teriam apoiado e defendido. Em Defesa da Escravidão As teses de Gilberto Freyre, tecidas a partir de 1933, de um escravismo patriarcal, benigno e consensual, sistematização genial das visões apologéticas dos escravizadores sobretudo nordestinos, haviam sido impugnadas pelas ciências sociais, nos anos 195060. Elas foram desenvolvidas, restauradas e modernizadas, sobretudo a partir dos centros de pós-graduação, por cientistas sociais sustidos direta e indiretamente pelo Estado, pela grande mídia, pelos órgãos públicos de financiamento, etc. Foi variado o nível de compreensão por essa intelectualidade do papel social que desempenharam. Não poucos se deixaram simplesmente arrastar pela maré irracionalista que  

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GORENDER, Jacob. Combates nas trevas: A Esquerda Brasileira: das ilusões perdidas a luta armada. 5 ed. São Paulo: Expressão Popular; Perseu Abramo, 2014. 294 p.

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dominou as ciências sociais, impulsionada pelo tsunami neoliberal que varreu o mundo, anunciando o fim da história, a perenidade da ordem capitalista, a emancipação da humanidade pela economia social de mercado. Não havia interesse em defender os perdedores. A eles, as cascas! Por mais de uma década, Jacob Gorender, sem qualquer financiamento, obrigado a se ocupar como assalariado da subsistência sua e de sua família, respondeu, ponto por ponto, aos principais questionamentos diretos e indiretos às propostas de O escravismo colonial e às ciências sociais que interpretavam o passado a partir da luta dos oprimidos. Nesse processo, produziu rosário de textos acerados, verdadeiros clássidos da crítica marxista nas ciências sociais, em livros coletivos e revistas acadêmicas hoje de difícil acesso. Entre eles, destaca-se “Questionamento sobre a teoria do escravismo colonial”, apresentado como Anexo A do presente livro.6 Essa valiosa produção merece uma publicação consolidada, que facilite sua consulta sobretudo pelas novas gerações. Em um sentido retrospectivo, a obrigação de responder aos ataques lançados contra a sua interpretação mor do passado brasileiro, apesar do caráter metologicamente erudito e pedagógico, constituiu um movimento de sentido defensivo, que desviou o autor do projeto da continuação, também em forma de tese, de sua crítica geral da sociedade brasileira. Essa seria apresentada sobretudo em dois ensaios sintéticos - a “Gênese e desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro”, produto de conferência em 1979, e a Burguesia brasileira, publicado, em 1981, pela Brasiliense, na Coleção Tudo é História.7 Nesse período, também com largo sucesso de público, Jacob Gorender publicou o livro Combate nas trevas: A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada, indiscutivelmente até hoje a principal contribuição sobre a luta da esquerda naqueles anos.8 Em 1988, o governo federal impulsionou a celebração do I Centenário da Abolição da Escravatura do Brasil. Patrocinava aquele evento Celso Furtado, então Ministro da Cultura, arguto crítico da formação social brasileira, que compreendeu e propôs, sempre, a importância daquele sucesso histórico. Através do Brasil, em múltiplos encontros, nos quais Jacob Gorender participou com destaque, registrou-se o domínio já quase total do movimento revisionista neo-patriarcalista sobre o passado escravista brasileiro. Hegemonia intelectual de viés irracionalista que se apoiava e era apoiada pelos segmentos sociais dominantes que interpretavam. Vencia o debate a força da dominação, e não o peso dos argumentos. Um Livro Magistral Dois anos após aquela celebração, Jacob Gorender publicou A escravidão reabilitada, resposta geral e sistemática ao movimento acadêmico restauracionista, em momento em que a contra-revolução neoliberal alcançava seu ápice, com a dissolução final da URSS e dos Estados de economia planifica do Leste Europeu. Hecatombe histórica que, em médio prazo, terminou marcando profundamente o próprio autor e sua produção intelectual posterior. Jacob Gorender formara-se nas duras polêmicas partidárias, políticas e ideológicas, procurando sempre apreender em forma sistemática os fenômenos sociais e desvelar as origens sociais de suas representações. Em A escravidão reabilitada, o autor ensaia crítica e definição das raízes de classe e das orientações ideológicas das vertentes do pensamento neo-patriarcal e neo-conservador sobre o passado do país, em geral, e sobre a escravidão brasileira, em especial. Para Jacob Gorender não se tratava de polêmica erudita sobre o passado, sem ilações com o presente e o futuro da sociedade. Constituía, ao contrário, embate, no mundo das representações, sobre a antiga formação social brasileira, entre exploradores e explorados, com repercussões  

 

 

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Cf. pp. XX-XX.

! Cf. GORENDER. Gênese e desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro. Porto Alegre: Mercado Aberto, 7

1987; GORENDER. A burguesia brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1986. ! 8

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cf. nota 5.

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fulcrais no presente, não apenas culturais e ideológicas. Destacando o viés social-democrático do revisionismo neo-patriarcalista e neo-consensual sobre a escravidão, propôs: “[…] se foi possível e viável a conciliação de classes entre senhores e escravos […] muito mais possível e viável, vem a ser a conciliação entre capitalistas e assalariados.” 9 Nesse processo, nomeou e criticou, em forma detalhada e sistemática, uma enorme parcela dos então mais destacados estudiosos nacionais que abraçavam – como, em geral, abraçam ainda as propostas neo-patriarcalistas e irracionalistas sobre a escravidão. Assinalou incongruências metodológicas, limites de análise histórica, tropeços no uso da documentação, inconscientes e conscientes. O livro constitui, igualmente, registro indiscutível da sólida e ampla erudição do autor, nos campos da economia, da historiografia, da sociologia, da filosofia, da linguística, etc. Apesar de ter apenas cursado, quando jovem, sem concluir, o curso de Direito, que abandonou, primeiro, para ir combater no fascismo na Itália, a seguir, para dedicar-se plenamente à militância comunista. Por não ter curso superior, foi e é tratado como historiador não-profissional! Em A escravidão reabilitada, Jacob Gorender registra como obra referencial na inflexão neo-patriarcalista no Brasil a publicação da tradução ao português, em 1981, do livro da historiadora grego-francesa Kátia de Queiroz Matoso, Ser escravo no Brasil, dois anos após a sua publicação na França.10 Destaca a enorme fragilidade metodológica desse trabalho que apresenta de “um lado, o senhor ameno, generoso; do outro, o escravo dócil, embora maliciosa e sutilmente resistente.”11 Apesar dos recorrentes e não raro rasteiros lapsos e tropeços historiográficos, esse trabalho, mais próprio à ficção em prosa do que à historiografia, foi acolhido como futura referência paradigmática para os estudos escravistas no Brasil. Apesar de ser obra de historiadora profissional, era a apologia fazendo retroceder a historiografia.12 Como assinalado, os temas da restauração neo-patriarcal da escravidão abordados e criticados por Jacob Gorender foram muitos: as propostas sobre a coisificação e autonomia absoluta dos trabalhadores escravizados; a negação da oposição do cativo à sua exploração e sua transformação da escravidão, em proveito próprio, através da acomodação e negociação com os exploradores; as condições excepcionais de existência dos cativos na escravidão - pouco trabalho, muita comida, castigo raro; a lei dos escravistas como garantia do mundo dos escravizados; a existência de famílias escravizadas estabilizadas como fenômeno geral; a benignidade do tráfico negreiro; a transmutação do cativo em camponês, ainda sob o jugo do escravizador; a indeterminação total dos fenômenos internos pelos processos externos e da exploração pela estrutura econômica; a escassa mobilidade social do cativo; o caráter não classista das revoltas escravas, etc. A Revolução Abolicionista foi Nossa Revolução Burguesa Na discussão das influências deletérias exteriores sobre o pensamento acadêmico brasileiro, Jacob Gorender aborda criticamente, em páginas magistrais, ainda que sintéticas, os principais autores que propunham, direta ou indiretamente, a revisão, superação ou morte do marxismo, como método, e o fim da história, como devir e ciência: Louis Althusser, Michel Vovelle, Paul Veyne, Cornelius Castoriadis, Eugene Genovese, Robert William Fogel, Stanley L. Engerman, etc. Abandonando o leito da crítica historiográfica, serviu-se igualmente de A escravidão reabilitada para desenvolver temas que tocara, marginalmente, em outros estudos, como a discussão sobre a “consciência possível” do trabalhador escravizado, questão jamais discutida em forma sistemática no Brasil.  

 

 

 

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Id. A escravidão reabilitada. Ob.cit. p. 43.

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MATTOSO, Kátia de Q. Ser escravo no BrasiL São Paulo: Brasiliense, 1982. 267 pp. GORENDER, J. A escravidão reabilitada. Ob.cit. 12 MAESTRI, Mário. Como era Gostoso ser Escravo no Brasil A Apologia da Servidão Voluntária de Kátia de Queirós Mattoso. Revista Crítica Histórica, v. 12, p. 1-31, 2015. 11 !

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Sobretudo, nas páginas finais do ensaio, nos capítulos “A revolução abolicionista” e “O Brasil pós-Abolição e os negros”, Jacob Gorender disserta longamente - setenta página - sobre o caráter da abolição da escravatura, em sentidos lato e estrito. A abordagem da abolição da escravatura, imediatamente após o I Centenário, celebração à qual dedicou às páginas inicias do livro, constitui um quase livro no livro. Nela, o autor apresenta sua visão sobre aqueles sucessos, apoiado na definição anterior do caráter dominante do modo de produção escravista colonial e na necessária transição intermodal, em direção a formas de produção pós-escravistas. Para realizar a apresentação de sua leitura do que chamou de “revolução abolicionista”, empreende uma mais ampla e acurada reconstrução histórica dos sucessos. Inicialmente, Jacob Gorender assinala o viés político pragmático e conjuntural da negação de importância da abolição da escravatura pelo movimento negro organizado, quando das celebrações do I Centenária. Proposta utilitária, de visão curta, à qual antepõe, por um lado, a importante e radical luta pela obtenção do fim da instituição, na qual desempenharam papel fulcral o movimento abolicionista radicalizado e, sobretudo, a massa escravizada. Processo e lutas apresentados magistralmente no também clássico de Robert E. Conrad, Os últimos anos da escravatura no Brasil, publicado no Brasil em 1975.13 No frigir dos ovos, o desconhecimento do sentido referencial dos sucessos históricos que se concluíram em 13 de maio de 1888 constitui negação do agir da luta pela liberdade dos trabalhadores escravizados. O núcleo central da reflexão do autor concentra-se igualmente na discussão das determinações que levaram à enorme longevidade e solidez no Brasil daquela instituição e sua crise crescente, a partir dos anos 1850, que terminou na transição revolucionária intermodal. Ou seja, na transição revolucionária de organização social e produtiva escravista, que perdurara por mais de três séculos, para formas de produção apoiadas no trabalho livre. Um processo que teve seu momento terminal na abolição institucional da escravidão, em um momento em que a escravidão encontravase em agonia final, determinada pelo abandono pelos cativos das fazendas cafeicultoras, sobretudo paulistas. Abordando uma outra questão essencial do debate sobre o passado brasileiro, Jacob Gorender propõe que a “revolução abolicionista” teria feito “as vezes da revolução burguesa no Brasil”. Em verdade, para ele, ela seria “a revolução burguesa no Brasil”, que abriu caminho para o “capitalismo [então] possível”, nas condições históricas da época. A chamada Revolução de 1930 desempenharia, assim, um papel “complementar”, em um processo que não teria se desenvolvido sob a égide clara e límpida da burguesia brasileira e dos trabalhadores fabris. Uma proposta que coloca em discussão os caminhos e o caráter da revolução democrática [burguesa] na América Latina, em regiões pré-capitalista e pré-industriais. Para Encerrar a Discussão Quando foi publicada A escravidão reabilitada, vivíamos sob a maré neo-liberal que impulsionava em forma desbragada a restauração capitalista nos Estados de economia planificada do Leste europeu e as privatizações e destruição geral de conquistas, de instituições e de partidos operários e sociais através de todo o mundo. Ou seja, instalara-se plenamente o refluxo histórico e social dramático do mundo do trabalho diante do grande capital que vivemos ainda hoje. O livro não ensejou discussão e debate. Foi literalmente recebido de pedras nas mãos, por não poucos dos autores que Jacob Gorender criticara, encastelados nas estratégicas posições acadêmicas de que gozavam. Dando a tônica às respostas promovidas por verdadeiro contra-ataque acadêmico, atacou-se, já não mais as teses, mas o próprio autor. Um destacado comentarista do livro negou precisamente  

CONRAD, Robert Edgar. Os últimos anos da escravatura no Brasil. (1885-1888). Rio de Janeiro: Brasília, INL, 1975. 394 pp. 13

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qualquer sentido político-ideológico ao debate empreendido, perguntando, com cândida ingenuidade, “o porquê” da “historia da escravidão” ser para aquele autor “uma questão e importância tão transcendental”. Ou seja, qual o valor transcendente de discussão sobre as condições reais de existência dos milhões de africanos escravizados desembarcados no Brasil? 14 Para o comentarista, tratava-se apenas de um outro tema acadêmico, sem reverberação histórica e social. O esforço intelectual empreendido por Jacob Gorender em A escravidão reabilitada seria produto de “monomania classificatória”, igual à do “médico alienista, de Machado de Assis. Este último, “com suas experiências científicas” lançara o “terror entre os habitantes da vila de Itaguaí”. No presente caso, as vítimas do alienado obcecado com o passado - e com o presente e o futuro - dos oprimidos seriam os “historiadores que se atreveram a escrever sobre a história da escravidão e da abolição”. Todos eles inocentes criaturas agredidas pelo método “abrangente e aterrador” do alenista-alienado machadiano. Mais ainda, tresloucado e considerando-se “vítima de um complô urdido nas hostes revisionistas”, Jacob Gorender, não teria autoridade científica ou ética - segundo esse combatente acadêmico. Isto por que “nunca” teria feito “uma pesquisa histórica prolongada nos arquivos brasileiros sobre a escravidão. Teria, ao contrário, se limitado a “ler alguns documentos [sic] impressos e livros de viajantes”. Já sem quaisquer ressaibos de elegância, o resenhador-verdugo propôs que Jacob Gorender fundamentava “seus procedimentos de crítica historiográfica no truque e na pilhagem.” A partir desse momento, o debate praticamente se interrompeu e a desconstrução e deslegitimação da leitura revolucionária sobre o passado brasileiro foi liquidada, a partir do critério da autoridade e da força da posição e do título acadêmico. Jacob Gorender passou a ser um autor banido do círculo acadêmico, tornando-se cada vez menos citado e referido nos trabalhos universitários e acadêmicos, sempre flexíveis às determinações dos orientadores e dos modismos intelectuais. Nos anos seguintes, no contexto de um interesse decrescente do tema da escravidão, a reabilitação historiográfica da exploração escravista se concretizou, registrando o caráter profético do último grande trabalho de Jacob Gorender sobre a escravidão. “O trabalho historiográfico nunca é inocente”, escreveu o autor, nessa obra magnífica que, 26 anos após sua publicação, por além de questões menores, temas pouco desenvolvidos e conhecimento enriquecido pelo avanço da investigação, mantém plenamente sua candente atualidade e pertinência.  

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+ Mário Maestri, 68, doutor em História pela UCL, Bélgica, é professor do PPGH da UPF, Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected]

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Apresentação para o livro de Jacob Gorender, A escravidão reabilitada, a ser reeditado pela Expressão Popular e Fundação Perseu Abramo, em 2016.

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Cf. CHALHOUB, S. Gorender põe etiquetas nos historiadores. Folha de São Paulo, 24 nov. 1990.

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