A escrita automática e outras escritas: um depoimento

June 25, 2017 | Autor: Claudio Willer | Categoria: Literatura Comparada
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A ESCRITA AUTOMÁTICA E OUTRAS ESCRITAS: UM DEPOIMENTO
Versão bastante revista de um ensaio publicado
em 2007 na revista digital Agulha. Retomei o
tema, reapresentei esse relato – de como criei
um de meus poemas e em que essa criação
esclarece sobre poesia automática – em
palestras.
Claudio Willer


No final de setembro de 2006 – dia 29 de setembro, para ser preciso –
dei palestra no Recife, no Colóquio de Estudos Literários Contemporâneos
promovido pela Universidade Federal de Pernambuco e coordenado por Lucila
Nogueira. Meu tema, A poesia Visionária – A Fantasia no Surrealismo. Fui
precedido por uma mesa, Surrealismo e Geração Beat no Brasil, que incluiu a
comunicação "Na convulsão das tempestades: o erotismo em Claudio Willer"
por Cristhiano Aguiar.
Depois do que ouvi sobre minha poesia, senti-me no direito de ser auto-
referente, além de autobiográfico: dei palestra sobre minha criação. Ou,
antes, parti do modo como um de meus poemas foi escrito para tratar de
questões gerais.
Dias depois, repeti a mesma exposição em um curso de surrealismo na
Escola Livre de Literatura – Casa da Palavra de Santo André; e também em
outra palestra, no Encontro de Letras da Faculdade de São Bernardo do
Campo. Aprende-se ao dar palestras, cursos, oficinas. Discussões e
reflexões adicionais enriqueceram o que tinha a dizer. Essa versão
enriquecida, mas nem por isso livre de novos acréscimos – o tema, criação
poética, é inesgotável – que vai para publicação, convertido em relato em
capítulos, os primeiros mais narrativos, os seguintes mais especulativos.


1


Avisei que seria autobiográfico.
Início de 1980. Fevereiro, penso. Ou janeiro: recebi a visita de uma
moça atraente e talentosa que veio mostrar-me seus poemas e passou a noite
comigo.
No dia seguinte, sábado, havia combinado de ir ao sítio de meu amigo
Rodolfo Geiser, na região de Juquitiba, contrafortes da Serra do Mar, em
plena Mata Atlântica. Lugar isolado, no meio do mato, ninguém por perto.
Depois de passear no mato e nadar no lago, acomodamo-nos no galpão que
servia como sede. Noite de lampião de querosene e completo silêncio.
Comecei um poema sobre a véspera:



É ASSIM QUE DEVE SER FEITO



pouca gente é capaz de fazer tudo isso que fizemos
nos encontrar e ficarmos juntos
nesta hora mais
inexplicável
clarões de incêndios distantes
refletindo-se em nossas
peles
nossos gritos de prazer chicoteando as esferas da noite
nossos gritos de prazer explodindo pela madrugada afora
nossos uivos de prazer ecoando pelas ruas
desta cidade agora adormecida
e esta confusão de pedaços de corpos
todos gritando o mesmo nome selvagem espalhados sobre a colcha
Daí em diante, imagens foram aderindo espontaneamente a um mote ou
anáfora, nossos corpos:
nossos corpos druídicos formando círculos mágicos sinalizando o
reinício dos tempos
nossos corpos que se precipitam como os regatos que escorrem pela
encosta da montanha buscando seu rápido destino final
nossos corpos de vísceras entrelaçadas redescobrindo a pulsação das
galáxias
nossos corpos no turbilhão do galope de potros bravos à beira-mar
nossos corpos com seus relâmpagos rompendo o calor denso da noite na
selva tropical
nossos corpos de muitas vozes, muitas vozes que se confundem
nossos corpos sobre os quais viajamos como navegantes em busca da Terra
Prometida
nossos corpos recobertos de inscrições que passamos dias e noites
tentando decifrar
nossos corpos entregues a um êxtase canibal
nossos corpos percorrendo os labirintos do prazer e suas alamedas
ladeadas por tufos de azaléia elétrica
nossos corpos de bruma, mapa de penugens, texto sânscrito
nossos corpos pisoteando o braseiro da memória dançando animados por um
batuque que sai do centro da terra
nossos corpos mergulhando na água transparente de um lago gelado no
desvão de uma gruta calcária
nossos corpos embarcando em uma nave especial feita de palha trançada
nossos corpos investidos de seus plenos poderes, salvo-condutos para
qualquer viagem, licença para voar, passaporte para o delírio
nossos corpos suando gotas de fogo que escorrem por nossas costas
nossos corpos sombrios e úmidos nesta hora de fetos arborescentes e
samambaias, agora liquefeitos contra os filtros do crepúsculo,
transparentes como uma profecia
nossos corpos amarelos, azuis, laranja, cor de camaleão enlouquecido
estampado contra as paredes do tempo
nossos corpos impressos em milhares de figurinhas coloridas que são
distribuídas entre adolescentes dos subúrbios
E por aí afora, por mais algumas páginas do caderno (quem quiser o
poema todo, adquira Estranhas Experiências ou ache Jardins da Provocação em
algum sebo: os dois livros em que "É assim que deve ser feito" foi
publicado).
No dia seguinte, domingo à tarde, já em casa, prossegui, escrevi mais
sobre nossos corpos:
nossos corpos pronunciando as palavras sagradas, o agora, mais, põe,
vem, mais, com a certeza messiânica de um orador agitando as
massas
nossos corpos preparando um gigantesco patuá de uma magia negra das
mais pesadas para desviar o rumo da história e acabar de vez com a
barbárie capitalista
nossos corpos anarquistas defendendo a formação de sociedades
igualitárias regidas unicamente pelo princípio do prazer
nossos corpos com suas sacolas de escorpiões famintos, luas trêmulas,
ventos que ressecam a pele em paisagens de dunas movediças
nossos corpos cheios de reentrâncias, escadarias de pedra recobertas de
musgo, esquinas tão cheias de mistério quanto uma cidade-fantasma
invadida por um bando de bêbados altas horas da noite
nossos corpos recostando-se mansamente na beira de um lago, sentindo a
água na temperatura da pele, deitando-se e sendo recobertos aos
poucos pelas folhas que vão caindo das árvores ao redor
nossos corpos elípticos, cordas tensas prontas para disparar as flechas
incendiárias do prazer
nossos corpos rolando abraçados sobre este chão de cílios vibratórios
que recobrem a terra, esse balão luminoso que pisca na neblina
Foi quando parei. Senti que, depois dessas imagens fortes, o chão de
cílios vibratórios, a terra um balão luminoso piscando na neblina, a
escrita se tornaria fórmula fácil. Mas sabia que o poema não estava
terminado.


2


Em julho daquele ano, 1980, recebi um convite para passar alguns dias
no recém-inaugurado Club Mediterranée em Itaparica, tudo por conta da casa,
desde que, na volta, fizesse um relatório, dizendo o que havia achado,
quais haviam sido minhas impressões.
Se fosse com meus recursos, iria a Machu-Pichu. Mas meus recursos
nunca bastam para viagens mais longas. Sou um permanente convidado – e isso
é bom, pois adiciona o imprevisto, o não-programado. Tem algo a ver com a
disponibilidade surrealista. Sou um flâneur planetário, singrando ao acaso,
ao sabor dos convites que recebo. Ainda aguardo um convite para Machu-
Pichu.
Naqueles dez dias de Mediterranée em Itaparica, um belo lugar, além de
velejar – em um catamarã, passava pela barreira de arrecifes e circulava
pela Baía de Todos os Santos – e pedalar – fui de bicicleta até o Mar
Grande, para ver um pouco do Brasil propriamente dito –, passava manhãs
lendo à beira da piscina, por sua vez na beira da praia. Entre outras
leituras, Signe Ascendant, o último livro de poesias de Breton. Já havia
lido, mas era a ocasião para entrar nos poemas, entendê-los mais a fundo.
Um instrutor de natação do Mediterranée, francês e letrado, me ajudava,
atencioso dicionário bípede, a interpretar a amplidão vocabular e o estilo
tortuoso de Breton na "Ode a Charles Fourier", "Les états géneraux", "Fata
Morgana", "Pleine Marge".
Em uma das manhãs ao sol, vieram-me imagens à mente, da mesma família
daquelas que batiam na vidraça relatadas por Breton no primeiro Manifesto
do Surrealismo. Ao anotá-las, sabia que eram o final do poema dos corpos,
escrito e interrompido, deixado inconcluso, alguns meses antes:


armários em chamas rolam pelas escadarias
um arco-íris tenta executar os passos finais de um balé
ele tropeça e cai
desabando sobre as encostas da Serra da Mantiqueira
explodindo em um caleidoscópio de cores
as montanhas racham-se
fontes de água quente jorram contra as nuvens
sobre um palco de cartolina azul sapateiam três dançarinas nuas
com suas botas vermelhas
uma vitrola distante toca In a Silent Way de Miles Davis
um montão de papel picado é jogado para o alto
multidões rezam orações sem sentido
um avião se transforma em gota d'água e fica suspenso no céu
os navios da noite chegam mais perto
eles já dobram a barra do porto
suas luzes piscam
já se ouve a música das festas nos conveses
duas mil lavadeiras
batem peças de roupa em suas tábuas
em uma praia na margem direita do rio Araguaia
no fundo do quarto há uma porta
ela se abre para uma escada de ferro em caracol
pela qual descemos
para penetrar no bojo deste cometa alucinado dos nossos corpos
A criação deste poema, ela poderia ser classificada como escrita
automática? Creio que sim. Não há escrita automática pura, conforme
reconheceu Breton em "Le méssage automatique", ensaio de 1933 publicado na
coletânea Point du jour (Gallimard, 1970), ao observar que seria "quase
supérfluo nos embaraçarmos com uma divisão da escrita dita de modo corrente
"inspirada", que pretendemos opor à literatura de cálculo, em escrita
"mecânica", "semi-mecânica" ou "intuitiva", esses três qualificativos não
visando senão a dar conta de diferenças de graus".
Escrita automática não é um mundo à parte com relação ao restante da
criação daqueles autores que a praticaram. Há qualquer coisa de universal,
talvez inerente à própria experiência poética, no que surrealistas
denominaram escrita automática. Por isso, Octavio Paz a discute no capítulo
intitulado "A inspiração" de O Arco e a Lira. Toma-a como caso particular
do que, para Platão, já era o delírio, a possessão que movia os poetas. E
denuncia um viés ideológico na negação da inspiração, justificando
poéticas, filosofias ou psicologias da criação centradas na reflexão e
elaboração. Críticos e alguns poetas incorporaram uma representação do
homem e da consciência que é histórica e ideológica: aquela exposta por
Descartes, que contrapõe o "cogito", a consciência pensante, a um mundo
inanimado e dessacralizado. A negação da inspiração nada mais seria que
transposição da ideologia burguesa do trabalho; do bíblico "ganharás o pão
com o suor do teu rosto". Cito-o: "O ato poético era trabalho e disciplina;
escrever: "lutar contra a corrente". Não é exagero ver nessas idéias uma
transferência abusiva de certas noções da moral burguesa para o campo da
estética. Um dos maiores méritos do surrealismo foi ter denunciado a raiz
moral dessa estética de comerciantes. Na realidade, a inspiração não tem
relação alguma com noções tão mesquinhas como as de facilidade e
dificuldade, preguiça e trabalho, descuido e técnica, que escondem a noção
de prêmio e castigo: o "toma lá dá cá" com que a burguesia, segundo Marx,
substitui as antigas relações humanas. O valor de uma obra não se mede pelo
trabalho que custou a seu autor".
Meu relato de todas essas circunstâncias biográficas na criação desse
poema foi para mostrar alguns dos lugares de onde vinha a inspiração.
Principalmente, que não vinha de um ou outro lugar, mas de uma relação
entre lugares. Não foi a noite em meu apartamento; nem a noite seguinte no
meio do mato: foram um e outro; não foi a manhã à beira da piscina em
Itaparica: foi aquela manhã e aquelas noites anteriores. E foram as
leituras – a de Breton e outras – que tornam o episódio, a criação desse
poema, muito mais interessante.


3


Passaram-se outros três anos. Em 1983, preparava minhas traduções de
Allen Ginsberg. Ao examinar um poema que, com certeza, não havia mais lido
desde 1967 (quando preparei, junto com Décio Bar, uma encenação teatral
feita de leituras de poemas beat), e do qual me havia esquecido
completamente, levei um susto. É este poema, publicado em Kaddish, escrito
em 1958 em Paris, na fase do Beat Hotel, para Peter Orlovsky, que já havia
retornado aos Estados Unidos, e que vai a seguir, do modo como está
traduzido em Uivo e outros poemas, publicado pela L&PM:


Mensagem


Desde que mudamos
transamos conversamos
trabalhamos choramos & mijamos juntos
eu acordo pela manhã
com um sonho nos meus olhos
mas você partiu para NY
lembrando-se de mim Bom
eu te amo eu te amo
& teus irmãos são loucos
eu aceito seus casos de bebedeira
Há muito tempo tenho estado só
há muito tempo tenho estado na cama
sem ninguém a quem pegar no joelho, homem
ou mulher, tanto faz, eu
quero o amor nasci para isso quero você comigo agora
Transatlânticos fervem no oceano
Delicados esqueletos de arranha-céus não terminados
A cauda do dirigível roncando sobre Lakehurst
Seis mulheres nuas dançando juntas num palco vermelho
As folhas agora estão verdes em todas as árvores de Paris
Chegarei em casa daqui a dois meses e olharei nos teus olhos
Comparem este poema de Ginsberg com o final do meu poema sobre os
corpos, "É assim que deve ser feito", escrito de um só jato em uma manhã
inspirada em Itaparica.
Havia adaptado, transposto, os últimos versos do poema de Ginsberg, do
qual me esquecera. Os transatlânticos que fervem no oceano de Ginsberg, eu
os transformei em navios da noite; suas seis mulheres nuas dançando juntas
num palco vermelho tornaram-se três dançarinas nuas com suas botas
vermelhas, sapateando sobre um palco de cartolina azul; o desastre do
zepelim Hindenburg, A cauda do dirigível roncando sobre Lakehurst, foi
substituído por um avião que se transforma em gota d'água e fica suspenso
no céu.
Principalmente, adotei a mesma estrutura, a mesma solução de Ginsberg:
terminar um poema com algo de narrativo, mais linear, com uma seqüência, em
uma espécie de apoteose, uma sucessão não-linear de imagens.
Agora sim, pode-se falar em escrita automática, em intervenção ou
participação do inconsciente na criação poética. Um inconsciente – ou
subconsciente, ou pré-consciente, ou uma não-consciência, tanto faz – capaz
de reter poemas lidos uma década e meia antes e que aparentemente haviam-se
apagado da memória. Em meio às leituras à beira-mar de um criador da
escrita automática, emergiu um poema do beat.


4


O poema do Ginsberg foi um intertexto do meu poema dos corpos, sem que
eu me desse conta ao escrevê-lo. Um intertexto inconsciente, digamos assim.

A noção de intertexto é empregada por Michael Rifaterre, em um ensaio
muito esclarecedor, e que vem muito a propósito desse episódio que estou
relatando, intitulado "The Surrealist Libido: André Breton's "Poisson
soluble, Nº 8", publicado em André Breton today, coletânea organizada por
Anna Balakian e Rudolf E. Kuenzli (Willis, Locker & Owens, Nova Iorque,
1989). É sobre "a relação essencial entre desejo e linguagem, e entre o
desejo e a representação da realidade na literatura". Para mostrar essa
relação, Rifaterre examina um trecho de Peixe Solúvel de Breton, o extenso
texto de escrita automática publicado junto com o primeiro Manifesto do
Surrealismo. É o fragmento 8, no qual, do monte de Santa Genoveva
(padroeira de Paris), um bebedouro verte sangue, um filete de "sangue
precioso, que as plumas, as penugens, os pêlos brancos, as folhas
desclorofiladas que ele ladeia desviam de sua finalidade aparente". Para
Rifaterre (simplificando um ensaio complexo, sobre um texto mais complexo
ainda), é sangue menstrual, e também o sangue dos chamados à luta em A
Marselhesa. O ensaísta lembra ainda que, na Roma antiga, o local depois
designado como monte de Santa Genoveva era o mons Veneris, monte de Vênus.
A partir daí, vê, nesse trecho de Peixe Solúvel, signos da transgressão, de
uma tensão entre o sagrado e o profano.
Como isso é simbólico. Como essa prática cristã, de construir suas
igrejas sobre templos pagãos, se ajusta às categorias duais de princípio da
realidade e princípio do prazer, Ego e Id, consciente e inconsciente, por
sua vez regido por Eros. Prática tão generalizada – por exemplo, à beira do
lago Titicaca, na Bolívia, o santuário de Nossa Senhora de Copacabana
erigido sobre um templo da civilização pré-incaica de Tihuanaco – e tão
didática, ao exemplificar as relações entre a repressão e o reprimido. Como
é feliz a interpretação de Rifaterre, apontando dois estratos sobrepostos,
o do mundo pagão e do mundo cristão, no lugar da fundação de Paris
mencionado por Breton.
Rifaterre conclui que: "Este processo de leitura, durante o qual
interpretação, a descoberta do sentido de fato do texto literário ou do seu
foco real de interesse, a descoberta do que sua forma, imagens ou história
disfarçam – a descoberta, enfim, de seu simbolismo, do fato que aquilo que
é dito na superfície do texto é apenas uma cifra para uma significância
escondida no intertexto – todo esse processo é análogo ao processo de
escuta na psicanálise". Equipara assim o "texto lido ao discurso consciente
do paciente", enquanto "o intertexto, reprimido pelo texto mas recuperado
pelo analista-leitor, seria o inconsciente para o qual o discurso serve
como tela". O intertexto passa a equivaler, portanto, ao inconsciente do
texto.
Não há como discordar de observações de Rifaterre. Resolvem o
desajuste ou discrepância entre aquilo que seria o inconsciente freudiano,
e os resultados da escrita automática: ... "se a escrita automática não é
um produto imediato do inconsciente, tenta representá-lo, e tal esforço só
pode resultar em uma escrita conforme à associação verbal, em toda a sua
arbitrariedade. [...] A autenticidade de um empreendimento como esse,
indiscutivelmente adulterado em um nível psicológico, recupera sua pureza
em termos lingüísticos".
Aceita essa argumentação, o que escrevi era, de fato, escrita
automática. E o poema de Ginsberg, "Mensagem", um componente do
inconsciente do meu texto.
É possível, sempre, apontar relações intertextuais em textos de
escrita automática. Do pioneiro Les champs magnétiques de Breton e Philippe
Soupault, transcrevo um trecho de autoria de Soupault, intitulado "La glace
sans tain" (esse título se traduz como espelho sem o estanho, tain, que lhe
dá a propriedade reflexiva):
"Nós corremos nas cidades sem ruídos e os cartazes de rua encantados
não nos tocam. [...] Nada existe senão esses cafés onde nós nos reunimos
para beber essas bebidas frescas, esses álcoois dissolvidos, e as mesas são
mais pegajosas que essas calçadas nas quais tombaram nossas sombras mortas
de véspera.// Às vezes, o vento nos cerca com suas grandes mãos frias e nos
prende às árvores cortadas pelo sol. [...] As estações de trem maravilhosas
jamais nos abrigam: os longos corredores nos metem medo. [...] Cor dos
dias, noites perpétuas, será que vocês também, vocês irão nos abandonar?"
Nesse trecho atribuído a Soupault, os álcoois dissolvidos lembram
Alcoóis, o título do livro de poemas de Apollinaire; as árvores cortadas
pelo sol são uma variação sobre o célebre sol pescoço cortado do final de
Zona, que integra Alcoóis; o sintagma Cor dos dias, noites perpétuas lembra
o título da peça de Apollinaire, La couleur du temps. Do grupo formador do
surrealismo, Soupault foi o mais próximo a Apollinaire, que o apresentou a
Breton. Levando em conta essa convivência, comparar trechos de Les champs
magnétiques escritos por Soupault e outros de Apollinaire dificilmente
seria abusivo.


5


Cito Jorge de Lima, em Invenção de Orfeu:


Minha cabeça estava em pedra, adormecida,
quando me sobreveio a cena pressentida.


Em sonâmbulo arriei os pés e as mãos culpados
dos passos e dos gestos em vão desperdiçados


Ou então:


Pra unidade deste poema,
ele vai durante a febre.


Falei sobre Jorge de Lima em minha palestra no aqui mencionado
Colóquio de Estudos Literários Contemporâneos da UFP, no Recife. O evento
foi em homenagem ao poeta César Leal, presente para a apresentação de sua
coletânea de ensaios, Dimensões Temporais da Poesia (Imago, 2005). Citei
passagens do ensaio de Leal, "Universalidade de Jorge de Lima", dessa
coletânea. Há uma vigorosa defesa do autor de Invenção de Orfeu, rebatendo
as acusações de que seria ininteligível, abusivamente hermético. Por
algumas páginas, Leal interpreta poemas de Invenção de Orfeu, como os do
Canto IV, comparando-os com passagens de A Divina Comédia de Dante e
mostrando como, à luz dessa comparação, o aparentemente esdrúxulo e
arbitrário da poesia de Jorge de Lima vai ganhando sentido – desde que se
conheça Dante, é claro.
Uma dupla relação de Jorge de Lima com Dante Alighieri: consciente, é
claro, e também em um nível mais profundo. A Divina Comédia, intertexto e
inconsciente do texto em Invenção de Orfeu. Um deles: no subsolo da epopéia
fragmentária de Jorge de Lima, encontra-se de Homero a Lautréamont e García
Lorca, passando por Camões e muito mais.


6


No ensaio Le message automatique, de 1933, Breton mudou o foco da
discussão da escrita automática. Deixando de citar Freud, refere-se a
Myers, psicólogo do século XIX de orientação experimentalista, precursor
tanto da parapsicologia quanto da psicologia da percepção, e que pesquisou
as imagens eidéticas, os pós-efeitos visuais (por exemplo, quando olhamos
fixamente para uma fonte de luz, e esta, alterada, permanece ao fecharmos
os olhos). Breton conclui esse ensaio com uma afirmação ousada: "Toda a
experimentação em curso seria de natureza a demonstrar que a percepção e a
representação – que para o adulto ordinário parecem opor-se de uma maneira
tão radical – não devem ser tidos senão como produtos da dissociação de uma
faculdade única, original, da qual a imagem eidética dá conta e da qual se
reencontram traços entre os primitivos e as crianças". Visões e alucinações
equivalem ao automatismo, e vice-versa. Ganham o estatuto de percepções
reais, íntegras. Para o surrealismo, o visionário alucinado efetivamente
vê; ou, no automatismo verbal, de fato ouve.
Breton exemplifica com Santa Tereza d'Ávila, ao ver sua cruz de
madeira transformar-se em crucifixo de pedras preciosas. Considera essa
visão ao mesmo tempo imaginada e sensorial. O exemplo o leva a uma tirada
de humor: "Tereza d'Ávila pode passar como alguém que comanda essa linha na
qual se situam os médiuns e os poetas. Infelizmente, ainda não passa de uma
santa".
Retornemos à comparação do final do meu poema dos corpos e de
"Mensagem" de Ginsberg. As minhas dançarinas: "sobre um palco de cartolina
azul sapateiam três dançarinas nuas/ com suas botas vermelhas". As
dançarinas de Ginsberg: "Seis mulheres nuas dançando juntas num palco
vermelho". As seis dançarinas de Ginsberg se tornaram três: uma
condensação. O palco vermelho de Ginsberg se torna azul. E o vermelho do
palco de Ginsberg passa para as botas das dançarinas. Deslocamentos.
Típicos processos de formação de conteúdos manifestos do sonho, em sua
relação com os conteúdos latentes, com o que simbolizam. Há mais, porém:
essa inversão cromática, do vermelho para o azul, é característica da
percepção eidética estudada por Myers. Se alguém olhar para uma fonte de
luz vermelha e em seguida fechar os olhos, verá, contra o fundo escuro, uma
mancha azul: é a percepção eidética.


7


Em O Arco e a Lira, Octavio Paz faz uma defesa da inspiração e da
espontaneidade na criação poética. A idéia de que o poema deva ser
"trabalhado" seria, diz, subo0rdinação à ideologia do trabalho. Mas no
capítulo final do livro retoma a discussão da escrita automática: "Entre os
meios destinados a consumar a abolição da antinomia poeta e poesia, poema e
leitor, tu e eu, o de maior radicalismo é a escrita automática". Expõe suas
objeções: "A escrita automática não está ao alcance de todos. Diria ainda
que sua prática efetiva é impossível, já que supõe a identidade entre o ser
do homem individual e a palavra, que é sempre social". A dificuldade,
segundo Paz, reside na identificação do nome e da coisa nomeada, do signo e
do significado:
A escrita automática é um método de alcançar um estado de perfeita
coincidência entre as coisas, o homem e a linguagem; se esse estado
fosse alcançado, isso consistiria numa abolição da distância entre a
linguagem e as coisas e entre a primeira e o homem. Porém, sendo essa
distância que cria a linguagem, a distância se evapora se a linguagem
desaparece. Ou, dito de outro modo: o estado a que a escrita
automática aspira não é a palavra e sim o silêncio.
Discordo. Não é silêncio o que se encontra, que emerge, aparece no fim
do túnel ou no fundo do poço ao final dessas descidas pelo inconsciente,
pela vertigem poética: é a palavra. No fundo do poema escrito através da
escrita automática, haverá outro poema. Outra voz. Desde que se seja poeta,
é claro – e, por isso, leitor de poesia. O inconsciente é simbólico. É
constituído pelo símbolo. Mas isso já foi dito antes – inclusive por Lacan.
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