A escrita de chumbo de Roland Barthes

June 5, 2017 | Autor: Claudia Amigo Pino | Categoria: Roland Barthes
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Manuscrítica § n. 26 • 2014 revista de crítica genética

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A escrita de chumbo de Roland Barthes 1

Claudia Amigo Pino

APESAR DE AINDA TER VIVIDO ALGUNS MESES NA DÉCADA DE 80, Roland Barthes sempre escreveu suas obras à mão, com caneta tinteiro. Só no final ele datilografava a versão que seria entregue à editora. O computador estava ainda longe de chegar a seu processo de escrita. Ou não. Barthes pode não ter tido um Apple II ou um Atari 400, mas ele criou um computador pessoal para chamar de seu. Refiro-me a seu Grande Fichário, que ocupava um quarto inteiro em seu apartamento e hoje se encontra na Biblioteca Nacional da França. São 12250 fichas, escritas em folhas A4 divididas em quatro. Ele iniciou sua escrita em 1943, ao ler a obra de Michelet, e continuou a escrevê-las até os dias prévios a seu acidente fatal. Ali, Barthes anotava impressões de leitura, desenvolvia temas de reflexão para obras futuras, anotava fatos e sensações observados em sua vida cotidiana, colocava questões – ainda – sem solução. Quando, mais tarde, alguém lhe encomendava um texto (e Barthes quase sempre escrevia por encomenda), bastava combinar todas essas fichas de acordo com o novo tema. Assim, se recebia o pedido para fazer um texto numa coletânea sobre Proust, por exemplo, ele procurava no seu fichário as fichas relativas a esse autor e as combinava com uma reflexão em particular (tal como um estudo acerca da preparação das personagens). Feita a combinação, ele muitas vezes grampeava as fichas em uma folha A4, montando assim seu primeiro manuscrito da obra. Depois disso, bastava copiar e recopiar esse quebra-cabeça inicial e a obra começava a ganhar corpo, sem nunca deixar de transcrever o conteúdo das fichas grampeadas e devolvê-las ao fichário. Dessa forma, nenhuma obra sua era realmente nova: cada novo manuscrito carregava um passado de escrita. Tratava-se de uma verdadeira máquina combinatória, que potencialmente era capaz de escrever muito mais do que todos os livros que ele escreveu: por isso o fascínio que produzem seus manuscritos. Neles podemos encontrar não apenas as versões preliminares de textos que Barthes realmente publicou, mas também as obras que ele ainda não tinha escrito, como o seu anunciado romance. Neste exemplo, podemos observar como vários projetos convivem em um mesmo suporte. Originalmente, esta ficha era uma anotação íntima, o que é possível deduzir pela data à direita. As fichas de Barthes raramente são datadas, salvo quando elas têm a função de servir como diário, como é o caso desta. Depois, a lápis, ela é atribuída a outro conjunto, “Φ”, letra que Barthes utilizava para se referir a seu projeto sobre a fotografia, que ele só começaria a escrever um ano depois: A câmara clara. Porém, na linha seguinte, identificamos a referência ao “luto”, conjunto de fichas que juntas formavam o Diário de luto, escrito depois da morte de sua mãe (ocorrida em outubro de 1977) e publicado somente em 2009. Há ainda outro título, “Douleur” [Dor], mas não sabemos a que ele se refere concretamente: outro projeto de obra? Uma parte de uma nova obra? Um tema de fichário? A dor à qual Barthes se refere não é exatamente a dor pela perda da mãe, mas a dor produzida pela impotência do ato de escrever. A escrita foi o seu primeiro conceito e, sem dúvida, o motor de todos os seus desenvolvimentos e experimentações seguintes. Porém, aqui, ela torna-se opaca, densa (de chumbo!). Ali onde a escrita não pode mais, a fotografia desperta uma emoção, as lágrimas. Essa percepção da insuficiência da linguagem verbal e a necessidade de dialogar com as imagens será tema (e forma) de muitos projetos no final de sua vida (A preparação do romance, A câmara clara, mas também seu romance Vita nova): essa pequena ficha anuncia todos eles.

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Universidade São Paulo – USP. E-mail: [email protected].

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Manuscrítica § n. 26 • 2014

Fac-símile

revista de crítica genética

Dor

29 de junho de 78

Φ (depois  Mam ou: ou: luto) [a lápis] Segue o luto profundo, imóvel, inverbalizável, ancorado, para sempre, no “para quê” das Frases. A excitação da Frase (excitação dolorosa mas in extremis salvadora) deu lugar a uma opacidade de chumbo: fora das frases, fora das lágrimas, que somente podem despertar: as Fotos.

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